EDUCAÇÃO E TRABALHO NA PERSPECTIVA MATERIALISTA HISTÓRICA E
DIALÉTICA
José Luiz Koliski, (PG), PPGTE, UTFPR, [email protected]
Mário Lopes Amorim, (OR), PPGTE, UTFPR,[email protected]
RESUMO: A educação e o trabalho são aspectos indissociáveis e inerentes à existência histórica do
homem enquanto ser social, que tem como resultado da sua práxis produzir sua existência material e
social. O trabalho, em sua dimensão ontológica, é uma ação teleológica pela qual o indivíduo supera a
natureza, o reino da necessidade, recriando sua própria natureza, o reino da liberdade. O surgimento
das classes sociais e a separação entre escola e trabalho, produzidas historicamente, culminaram na
organização social capitalista, ora em curso, que tem por característica expropriar as classes
subalternas do controle e do conhecimento pleno sobre o trabalho, permitindo-lhes uma educação que
reproduza as relações sociais de produção, subordinando o trabalho ao capital. O presente trabalho é
parte de uma pesquisa de mestrado, e pretende trazer alguns resultados teóricos para a compreensão da
relação entre educação e trabalho pelo referencial teórico-metodológico do Materialismo Histórico
Dialético.
Palavras-chave: Trabalho. Educação. Materialismo Histórico Dialético.
INTRODUÇÃO
N’O Capital, abordando o processo de trabalho e o processo de valorização, Marx (2006)
assevera que “o processo de trabalho deve ser considerado de início independentemente de qualquer
forma social determinada” (2006, p.297), e justificando tal afirmativa continua:
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo
em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo
com a Natureza. (...) Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes a sua
corporeidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria
natural numa forma útil para sua própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento,
sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua
própria natureza. (idem, 2006, p.297)
O trabalho é, antes de tudo, uma necessidade humana em qualquer período histórico, embora
tenha assumido formas específicas ao longo dos distintos modos de produção. Se inicialmente, por
força da natureza orgânica, o trabalho responde às necessidades biológicas mais elementares, ao
mesmo tempo em que satisfaz tais necessidades produz a existência do homem enquanto ser social,
dando existência à cultura material e simbólica, desenvolvendo valores éticos e estéticos (LUKÁCS,
2012).
O trabalho é necessariamente produto humano e origina-se com o próprio homem, desde que
este passou a produzir sua existência social adaptando a natureza as suas necessidades e, portanto,
recriando sua própria natureza.
Para Saviani,
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o ato de agir sobre a natureza, adaptando-a às necessidades humanas, é o que
conhecemos pelo nome de trabalho. Por isto podemos dizer que o trabalho define a
essência humana. Portanto, o homem, para continuar existindo, precisa estar
continuamente produzindo sua própria existência através do trabalho. Isto faz com
que a vida do homem seja determinada pelo modo como ele produz sua existência
(SAVIANI, 1994, p.152).
Quando se atribui a outros entes o predicado trabalho, como é o caso da referência feita à
atividade desempenhada por animais, por exemplo, não é mais que uma prosopopéia, isto é, atribuição
de qualidades humanas a entes não humanos. Logo, o ato de criar, produzir, trabalhar, é tarefa
deliberada e, para tanto, requer conhecimento, raciocínio, juízo de valor, enfim, faculdades
desenvolvidas e aperfeiçoadas historicamente e não decorrentes unilateralmente da evolução
biológica. Tais atributos são adquiridos no ato produtivo concomitante ao processo educacional,
compreendido aqui em sentido amplo como transmissão oral, conhecimento tácito, tanto quanto pela
educação formal, escolarizada. Enfim, o ato de produzir e aprender a produzir, a educação e o
trabalho, está intrinsecamente associado ao “ser” do homem, a sua ontologia, não enquanto ser
individual, mas como ser social.
A existência humana está condicionada tanto à natureza quanto à sociedade, sendo que ambas
constituem o fundamento do ser social. Para Lukács (2010, 2012), a constituição do ser social decorre
da inter-relação entre três grandes tipos do ser, os de natureza inorgânica, orgânica e a sociedade.
Enquanto os seres de substância orgânica tendem à preservação de si e da espécie no processo de
reprodução, e apenas mudanças ambientais radicais provocam uma transformação também radical na
reprodução, no ser social a reprodução implica, por princípio, mudanças naturais e sociais, e é destas
últimas que decorrem transformações contínuas ou drásticas, não apenas quantitativas, senão
qualitativas, como foi o caso da transformação dos modos de produção.
O ser social se eleva à natureza sem poder prescindir desta como base, por necessidade
ontológica, pois “o elo central de mediação, que desse modo se coloca cada vez mais energicamente
além da mera naturalidade, mas conservando-se, de maneira irrevogável, radicado nela, é o trabalho”
(LUKÁCS, 2012, p.359). O trabalho, como valor de uso, é condição da existência humana em
qualquer sociedade como condição natural de mediar o metabolismo entre homem e natureza.
O fundamento ontológico objetivo destas transformações consiste no fato de que o trabalho,
como Marx demonstrou, é um pôr teleológico conscientemente realizado, quando
parte de fatos corretamente reconhecidos no sentido prático e os avalia corretamente,
é capaz de trazer à vida processos causais, de modificar processos, objetos, etc. do
ser que normalmente só funciona espontaneamente, e transformar entes em
objetividades que sequer existiam antes do trabalho (LUKÁCS, 2010, p.43 - 44).
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Um trabalho teleologicamente posto, isto é, o trabalho enquanto ação precedida de uma
finalidade posta idealmente, contém em potência a possibilidade de produzir mais do que o necessário
para a simples reprodução daquele que trabalha. Desta forma compreende-se, por exemplo, que o
trabalho deu existência à fabricação de ferramentas e domesticação de animais, no denominado
comunismo primitivo, enquanto transformação contínua, quantitativa, mas em certo estágio deste
desenvolvimento produziu transformações drásticas, alterando qualitativamente a estrutura desta
sociedade, criando a base objetiva da sociedade escravista que antes inexistia.
O trabalho constitui a categoria fundamental do ser social porque, ao fazer a mediação entre o
ser orgânico e inorgânico, o ser social produz saltos qualitativos, criando novas esferas ontológicas.
O materialismo histórico e dialético, método desenvolvido por Marx, pressupõe a superação
da dualidade “existência material versus existência espiritual” que produziu uma dicotomia entre a
essência, a-histórica e inapreensível, e a existência, como manifestação histórica “aparente” da
realidade, concepção que permeou a filosofia desde seu período clássico, com a concepção
substancialista aristotélica até Hegel. Com Marx, passa-se a compreender o ser social como ser
histórica e ontologicamente material, porque imanente à própria natureza orgânica e inorgânica, porém
não de uma materialidade inerte, passiva, mas transformadora, dialética, com a capacidade de “pôr
conscientemente” (LUKÁCS, 2012), uma nova esfera material, produzindo um “salto ontológico para
a sociabilidade, uma nova forma de matéria fundada pelo trabalho” (LESSA, 2008, p.437).
Trabalho, como categoria fundante, concepção unitária do ser (rompimento com a
dualidade espírito-matéria, com a essência não-histórica versus mundo fenomênicohistórico) e possibilidade da revolução proletária são absolutamente articulados em
Marx (e, para acrescentarmos autores contemporâneos, Lukács e Mészáros)
(LESSA, 2008, p.437-438).
Compreende-se a antecipação ideal do trabalho, o pôr teleológico, não como expressão de uma
essência imaterial, como o mundo das ideias de Platão, mas como “um momento ontológico
ineliminável da reprodução material do mundo dos homens” (LESSA, 2008, p.438).
A substância do ser social é material, mas de uma matéria diferente dos seres de natureza
orgânica e inorgânica porque de uma substância que somente passa a existir mediante a transformação
teleológica que converte a causalidade natural em causalidade social.
Às leis naturais, de origem adaptativa e evolutiva, sucedem-se leis sociais, de manutenção e
reprodução econômico-social, por vezes sem relação imediata com a existência material da natureza
orgânica e inorgânica, como a vida e a morte biológica, mas que pode ser alterada pelo ser social
consubstancializando a vida e a morte não mais como um processo estritamente natural orgânico, mas
na produção de uma materialidade antes inexistente, a natureza social. Seriam dessa ordem as guerras
ou o aviltamento do trabalho no capitalismo, por exemplo:
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A matéria do ser social se distingue da matéria natural não porque não seja material,
mas porque consubstancia uma matéria cuja reprodução requer a mediação da
consciência, cuja continuidade tem na consciência seu “médium” e seu “órgão”, no
dizer de Lukács (LESSA, 2008, p.437).
O que diferenciará a materialidade humana da natural é que aquela introduz novas leis e
processos inexistentes em outra natureza que não a social, isto é, produz a história, que ao contrário
dos imperativos da natureza orgânica e inorgânica, pela ação teleológica do trabalho, constitui a
especificidade do ser humano, sua ontologia.
Porém, “o ser social não é menos material do que a natureza por esta razão” afirma Lessa
(2008, p.438), acerca do fundamento subjacente, a materialidade. Pode-se concluir o raciocínio
retomando o postulado de Lukács (2012) de que, apesar do trabalho colocar-se além da natureza,
jamais prescindirá da base material, de onde deriva a centralidade histórica do trabalho na sua forma
geral, ontológica. Cabe agora, compreender o trabalho como categoria histórica, e sua relação com a
educação.
O TRABALHO E A EDUCAÇÃO NAS SOCIEDADES PRÉ-CAPITALISTAS
Segundo Saviani (1994), a fixação na terra, tornando-a o principal meio de produção da
comunidade primitiva, foi a base material condicionante do surgimento da propriedade privada, e à
apropriação privada da terra remonta historicamente o surgimento da divisão social do trabalho e do
surgimento de classes sociais, inicialmente na forma do escravismo.
Nas comunidades primitivas trabalho e educação identificavam-se. Neste estágio da vida
humana a sobrevivência dos hominídeos dependia diretamente do desenvolvimento de técnicas de
produção e criação de animais, fabricação de armas, utensílios e abrigos. Toda técnica ou
conhecimento desenvolvido era transmitido ao mesmo tempo em que se desempenhava a atividade. A
apropriação dos meios de produção da existência era coletiva e a educação também ocorria neste
processo, coletiva e concomitante à produção da existência, “a origem da educação coincide, então,
com a origem do homem mesmo” (SAVIANI, 2007, p.154), isto é, aprendia-se a trabalhar
trabalhando, via experiência.
Com a divisão social do trabalho e a apropriação privada da terra, separando proprietários dos
meios de produção de não proprietários, que na Antiguidade caracterizava-se pela existência de
escravos e proprietários da terra e dos escravos, possibilitou à classe proprietária viver sem trabalhar,
ou melhor, viver da exploração do trabalho alheio. Com o surgimento das classes que vivem do não
trabalho, graças ao trabalho do outro, produz-se um tipo de educação destinada exclusivamente à
classe proprietária, a aristocracia, a educação escolar, que em grego significa etimologicamente lugar
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de ócio (σχολή), da educação destinada às classes proprietárias que dispõem do tempo livre
(SAVIANI, 1994, 2007).
Tanto no Antigo Egito quanto na Grécia Antiga, a finalidade da escola era instruir as classes
dominantes na arte militar e na arte de governar, isto é, na retórica e na oratória, enquanto às classes
dominadas – aos escravos – coube a instrução para o trabalho manual.
Na Antiga Grécia tinha-se de um lado a paidéia – que era a educação dos homens livres e está
associado ao ócio e à prática de jogos e de ginástica, e de outro lado o conceito de duléia – que era a
educação dos escravos fora da escola, no próprio processo do trabalho.
Porém, ainda não é historicamente o momento da universalização da escola como instituição
própria de transmissão de conhecimento, “em contraposição, a educação geral, a educação da maioria
era o próprio trabalho: o povo se educava no próprio processo de trabalho” (SAVIANI, 1994, p.153).
É necessário contextualizar, histórica e filosoficamente, o lugar e a sujeição do escravo na
Antiguidade, legitimadas pela inversão aristotélica na compreensão de que a racionalidade
caracterizava o fundamento ontológico do ser humano. O filósofo grego Aristóteles definia homem
como um animal racional, e considerando que “uma definição dá-se pelo gênero próximo e pela
diferença específica” (SAVIANI, 2007, p. 153), o gênero humano, no caso, é animal, pois indica
aquilo que o ser do homem tem em comum com outros seres de espécies diferentes, e a diferença
específica, ou o que torna diferentes seres do mesmo gênero, seria a racionalidade.
A racionalidade, portanto, seria a essência humana. Logo, por conseqüência, trabalho e
educação seriam atributos acidentais enquanto que a racionalidade seria o atributo essencial. Atributo
essencial é aquele que o ser possui, é o que lhe define, uma condição sine qua non, enquanto que
atributo acidental diz-se daquela característica que pode ou não acompanhar o ser, sem alterar-lhe a
sua essência. Há que se considerar que tal fundamento justificou historicamente a cisão entre o saber e
o fazer, entre o pensar e o trabalhar, entre as classes proprietárias e não proprietárias, que neste caso
eram os escravos.
A concepção substancialista aristotélica, que por sua lógica formal separa o sujeito (homem)
do objeto (trabalho), atribuindo àquele a ação passiva de conhecer, sem conexões necessárias com o
ato de produzir, contrapõe-se à concepção dialética do homem como ser que produz e se autoproduz
socialmente. Assim, desvincula-se a teoria da prática, e as relações sociais produzidas no seio desta
sociedade são reificadas e, portanto, legitimadas. Esta situação corresponde, no plano do
conhecimento, à separação entre pensar e fazer, entre teoria e prática. Na educação, aquelas cisões
correspondem à separação entre estudo e trabalho, entre ensino e produção. A separação entre
organização do trabalho produtivo e organização educacional na forma escolar, em que esta manifesta
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a estrutura do poder e serve de instrumento ideológico, impõe o modo de existência social através de
concepções e princípios que naturalizam e perpetuam a sociedade de classes.
Portanto, a relação educação e trabalho são constitutivos inerentes da essência humana
ontologicamente anterior à razão por ser resultado da práxis social, porque o homem não é senão
produtor e produto daquilo que faz e que sabe, e ainda é consciente deste processo. Se
ontologicamente o homem se constitui quando age sobre a natureza, intencionalmente, com metas e
objetivos antecipados idealmente, então o exercício intelectual já está presente nos trabalhos manuais
mais primitivos, e a separação das funções intelectivas e manuais, ou a cisão entre o processo
educacional e o trabalho em si, é incompatível com a própria definição de ser humano, constituindo-se
em uma falácia produzida histórica e socialmente por parcelas da humanidade que exerceram e
exercem a dominação material e ideológica.
Para Lukács (2010,2012) o trabalho é parte fundamental da ontologia do ser social porque a
consciência ocorre via trabalho, não enquanto emprego ou trabalho produtivo da sociedade capitalista,
mas como atividade essencial pela qual o ser humano cria e recria-se, enquanto atividade consciente e
teleológica em que o indivíduo supera o mundo da necessidade, imediato, pelo mundo da liberdade,
sendo a educação uma das mediações.
Mas o controle que os homens possuíam do processo produtivo e, por conseqüência, do
processo educativo, foi restringindo-se a pequenos grupos humanos, à classe dominante. O resultado
histórico desta dominação culminou na manipulação do saber em si e do saber fazer por parte destas
forças hegemônicas que se formaram historicamente, a saber, os detentores dos meios de produção em
cada fase histórica subsequente:
Conclui-se, portanto, que o desenvolvimento da sociedade de classes,
especificamente nas suas formas escravista e feudal, consumou a separação entre
educação e trabalho. No entanto, não se pode perder de vista que isso só foi possível
a partir da própria determinação do processo de trabalho. Com efeito, é o modo
como se organiza o processo de produção – portanto, a maneira como os homens
produzem os seus meios de vida – que permitiu a organização da escola como um
espaço separado da produção. Logo, a separação também é uma forma de relação,
ou seja: nas sociedades de classes a relação entre trabalho e educação tende a
manifestar-se na forma da separação entre escola e produção (SAVIANI, 2007,
p.157).
Na Idade Média mantém-se a permanência da terra e da agricultura como meio de produção
dominante e a divisão social entre proprietários e não proprietários. Entretanto, se a vida no modo de
produção anterior fora essencialmente urbana, embora suprida com o trabalho agrícola, no período
medieval será essencialmente agrária, da mesma forma que a força produtiva escrava dá lugar às
relações de produção servis.
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No que se refere à educação permanece a cisão entre a escola como lugar do ócio,
compreendido como uma atividade da nobreza, em contraposição ao próprio trabalho como meio de
educação destinado aos demais homens. O trabalho do camponês medieval, autossuficiente, destinavase basicamente à subsistência, e a escola ocupava-se do doutrinamento religioso e político. “As
destrezas e os conhecimentos necessários para seu trabalho podiam ser adquiridos no próprio local de
trabalho; e, de qualquer forma, a escola não os oferecia” (ENGUITA, 1989, p.105).
O próprio modo de produção feudal não demandava novos aprendizados, como assinala
Saviani (2003):
Na Idade Média, o trabalho propriamente produtivo, que sustentava o conjunto da
sociedade, era o trabalho servil, o cultivo da terra. Esse também era um trabalho
desenvolvido segundo técnicas simples e reiterativas e que, portanto, não requeriam
diretamente a incorporação de conhecimentos sistemáticos (SAVIANI, 2003, p.134).
A escola como ambiente próprio e separado da atividade produtiva, como “não trabalho”,
continua sendo uma forma secundária de educação, enquanto que a forma de educação predominante
ainda ocorria no próprio processo de trabalho.
Enguita (1989) caracteriza a educação medieval de crianças e adolescentes como familiar, não
de cada indivíduo em sua própria família, mas em outra, através de um intercâmbio familiar quando o
infante completava sete anos, e a educação basicamente consistia na assimilação de boas maneiras e
do trabalho servil doméstico. A aprendizagem de ofícios artesanais regia-se pela reciprocidade: o
aprendiz habitava a casa do mestre desempenhando tarefas de ofício e da vida doméstica como um
todo, e em contrapartida recebia o sustento, aprendizagem da técnica de um ofício, formação moral e
religiosa.
Esta relação de subordinação, amenizada pela expectativa do aprendiz em se tornar um
artesão completo, um mestre de ofício que provavelmente reproduziria tais laços de dependência. O
ponto chave da educação feudal enfatizado por Enguita é o de que “a criança que é enviada como
aprendiz-servente a outra família está aprendendo algo mais que um ofício ou boas maneiras: está
aprendendo as relações sociais de produção” (ENGUITA, 1989, p.107 grifo nosso).
Em suma, a concepção de educação medieval pode ser pensada em quatro partes, sendo duas
relacionadas ao não trabalho e duas ao trabalho: a dos nobres em aprender montar e usar armas, e a
dos monastérios em que se aprendia a escrever para desempenhar a função de copista; a dos artesãos e
camponeses que, fora a doutrinação religiosa e moral, aprendiam determinado ofício no próprio
processo de trabalhando.
Em relação a esta última forma educativa, intrinsecamente associada ao processo laboral, vale
lembrar que ao contrário das sociedades primitivas anteriores ao aparecimento da escrita, o artesão
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utilizava tanto instrumentos quanto técnicas de produção com certa sofisticação de conhecimentos
matemáticos, das propriedades dos materiais utilizados no ofício e do desenho, e além do aprendizado
tácito da produção adquiriam e divulgavam “manuais práticos, publicações periódicas e
enciclopédias”, constituindo uma “rede formal e informal de capacitação profissional e formação
técnica e científica” (ENGUITA, 1989, p.120 -121).
AS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E A UNIVERSALIZAÇÃO ESCOLAR
Na transição da modernidade para a contemporaneidade, quando o capitalismo produz
revolucionárias técnicas de produção, é que os conhecimentos são incorporados como força produtiva,
fazendo com que a ciência até então especulativa torne-se ciência material, empírica, aplicada ao
desenvolvimento de técnicas e engenharias que facilitaram e aumentaram a produção. O campo
subordina-se à cidade, que a partir dos conhecimentos científicos aplicados na forma de técnicas de
produção tornam o trabalho agrícola mecanizado, mais produtivo.
O crescimento das cidades na modernidade provocou alterações nas relações sociais antes
fundamentadas nos códigos morais e legais do direito consuetudinário, suscitando o direito positivo,
sustentados por normas formais, também baseadas no consenso e no estabelecimento de padrões, mas
agora materializadas na escrita:
Esse tipo de sociedade tem, pois, como pressuposto, como premissa necessária, a
introdução de códigos de comunicação não naturais, não espontâneos. É a partir daí
que se pode entender a exigência de generalização dos códigos escritos, trazendo
consigo, por conseqüência, a necessidade da generalização da alfabetização. Sobre
esse pressuposto também se coloca a questão da universalização da escola que,
estando referida ao trabalho intelectual, à cultura letrada, se constitui como via de
acesso aos códigos escritos (SAVIANI, 2003, p.135).
Ao contrário do feudalismo, as sociedades capitalistas incorporam na própria forma da
organização - urbana e comercial - os códigos escritos, tornando necessário que todos dominassem
estes códigos para o bom funcionamento da sociedade. E isto somente seria possível se o Estado
assumisse a tarefa de universalizar a escola.
Entretanto, a universalização da escola não significou um restabelecimento de vínculos entre
trabalho e educação, porque “após o surgimento da escola, a relação entre trabalho e educação
também assume uma dupla identidade” (SAVIANI, 2007, p.157). Ainda haverá uma educação para o
caso do trabalho manual, no próprio processo do trabalho e concomitante ao próprio trabalho, e de
outro lado haverá uma educação destinada ao trabalho intelectual.
Interessa analisar, sobretudo, a questão do contexto histórico em que a forma social capitalista
impõe-se como modelo dominante, subordinando as mediações trabalho e educação aos interesses do
capital, como condição para o desenvolvimento do próprio capital.
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A sociedade medieval era composta, além dos camponeses, nobres e artesãos, por grupos
marginalizados de mendigos, órfãos e vagabundos que ameaçavam a ordem pública, desencadeando
delitos graves como o latrocínio e promovendo a degeneração dos “novos valores morais” do trabalho
capitalista, assim como do desperdício do tempo.
Neste contexto a manufatura surge concorrendo com a forma artesanal de produção, e segundo
Enguita (1989, p.109), “foi o desenvolvimento das manufaturas que converteu definitivamente as
crianças na guloseima mais cobiçada pelos industriais: diretamente, como mão de obra barata, e
indiretamente, como futura mão de obra necessitada de disciplina”.
O mesmo autor prossegue afirmando que “na Inglaterra as workhouses converteram-se em
Schools of Industry ou Colleges of Labour” (ENGUITA, 1989, p.109), havendo um interesse maior
em imprimir hábitos e disciplina para o trabalho industrial do que o exercício do trabalho apenas
visando o auto-sustento destes marginalizados.
Neste contexto surge a instituição escolar, inicialmente composta de muitas horas de trabalho
e poucas de estudo visando, sobretudo, o letramento, dado o consenso inicial de que deveria ser dada a
educação suficiente para o entendimento do respeito à ordem social, sendo antes uma instrução de
cunho moral religioso do que técnico propriamente dito. Ao doutrinamento acrescenta-se o
disciplinamento para o exercício das atividades industriais, pressupondo uma subordinação ativa do
operário assalariado, condição para o funcionamento eficiente do trabalho industrial.
A ruína do feudalismo, devido a fatores como os cercamentos das terras, a urbanização e a
disponibilização de farta e barata mão de obra “bastavam para que a força de trabalho aparecesse no
mercado por seu valor de troca, mas não assegurava a extração de seu valor de uso” (ENGUITA,
1989, p.109).
Será, então, a escola o instrumento que promoverá a disciplina e a submissão necessária à
transformação da força produtiva em valor de uso para o burguês. Enguita (1989) observa que
inicialmente muitos empresários desconfiavam dos benefícios da escolarização, mas após constatarem
os primeiros resultados quanto aos hábitos de ordem, disciplina e subordinação adquiridos, úteis à
produção fabril, tornar-se-ão os principais defensores da instrução pública.
Obviamente que o quadro social descrito por Enguita trata não do capitalismo na sua forma
plena, mas de uma fase transitória entre a subordinação formal e a subordinação real do trabalho ao
capital, demonstrando haver espaço para resistência de determinados comportamentos ou traços
culturais da sociedade precedente, pré-capitalista.
A coerção política e social, na forma da imposição de uma moral do trabalho, disciplinamento
escolar e internamento compulsório daqueles que resistem ao trabalho capitalista produtivo, é
substituído pela coerção econômica que submete o trabalhador à jornada de trabalho longa e intensa, à
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mais-valia absoluta, ao tratar o trabalhador como dono da força produtiva vendável por tempo e não
mais por tarefas.
Para Saviani (2003) a transformação pela qual passou o modelo capitalista, caracterizado pela
separação entre trabalho e conhecimento, criou os germes de sua própria contradição. Os trabalhadores
não podem ser totalmente expropriados do conhecimento porque sem conhecimento não há aumento
na produção, e sem aumentar a produção ou sem produzir adequadamente de acordo com as novas
exigências do capitalismo contemporâneo não se acrescenta mais valor ao capital; em outras palavras,
diminui-se o lucro.
Como assinala Saviani, “desse modo, a sociedade capitalista desenvolveu mecanismos através
dos quais procura expropriar o conhecimento dos trabalhadores e sistematizar, elaborar esses
conhecimentos, e devolvê-los na forma parcelada” (SAVIANI, 2003, p.137). A educação, que
ontologicamente é indissociável do trabalho, assume caráter contraditório numa sociedade
historicamente caracterizada pela divisão de classes sociais, ora servindo à alienação do homem, ora
como possibilidade de libertação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A compreensão da dimensão histórica e ontológica do trabalho, assim como da relação
inseparável entre educação e trabalho, permite a compreensão de um princípio educativo do trabalho
que não significa apenas a possibilidade da reprodução da existência humana, mas a produção de uma
nova realidade, de outra natureza, a sociedade.
A sociedade é concomitantemente fruto da dimensão ontológica do trabalho, inalienável do
ser social, porém também da dimensão histórica que o trabalho assume nos diversos modos de
organização social. Inicialmente, a educação formal surge como apropriação exclusiva das classes
dominantes, cabendo às classes dominadas a aprendizagem pela prática, no trabalho.
Mas o surgimento do capitalismo e a necessidade do capital conformar à classe subalterna a
um quantum de trabalho produtivo, tornando-o valor de uso, produziu – historicamente - a necessidade
da universalização escolar, que a serviço do capital terá por finalidade primordial a subordinação
formal do trabalho ao capital, momento precedente à subsunção real do trabalho ao capital, quando se
produz a mais valia absoluta.
Da mesma forma, o desenvolvimento científico e tecnológico, e sua apropriação como força
produtiva do capital na produção de mais valia relativa, são exigências técnicas que,
contraditoriamente, podem devolver ao homem a capacidade de criar e controlar e, de alguma forma,
podem também constituir o germe da mudança histórica em direção a uma nova organização social.
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________________. Trabalho e educação: fundamentos ontológicos e históricos. Revista Brasileira
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THOMPSON, Edward P. O tempo, a disciplina do trabalho e o capitalismo industrial. In: SILVA,
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EDUCAÇÃO E TRABALHO NA PERSPECTIVA