IMPACTOS DA VARIABILIDADE INTERANUAL E INTERDECADAL NA FREQUÊNCIA DE EVENTOS EXTREMOS DE CHUVA SOBRE O SUL DO BRASIL Ieda Pscheidt¹ e Alice Marlene Grimm² RESUMO: Variabilidade climática de longo período altera a freqüência de eventos severos de chuva sobre o Sul do Brasil. O El Nino - Oscilação Sul (ENOS) modula a freqüência dos extremos sobre esta região com maior intensidade durante o mês de novembro. São analisadas para este período duas áreas, uma no litoral (área A) e outra ao sudoeste (área D), que apresentam variação significativa no número de eventos extremos durante as fases opostas de ENOS. A área D mostra-se mais intensamente influenciada por essa variabilidade interanual. Para as mesmas duas áreas verifica-se que a freqüência da precipitação extrema é também modulada por variabilidade em escala interdecadal. Os mais fortes impactos são também observados na área D. ABSTRACT: Low frequency climate variability modifies the frequency of severe rainfall events over Southern Brazil. The El Niño – Southern Oscillation (ENSO) modulates the frequency of extreme events over this region with more intensity during November. Two areas are analyzed for this period: one near the coast (area A) and another one to the southwest (area D), which present significant variation in the frequency of extreme rainfall events during opposite ENSO phases. This interannual variability influences more intensely area D. The frequency of extreme precipitation in these two areas is also modulated by climate variability in interdecadal time scale. The strongest impacts are also observed over area D. Palavras-Chave: eventos extremos de chuva, variabilidade interanual, variabilidade interdecadal. INTRODUÇÃO O El Niño - Oscilação Sul (ENOS) impacta fortemente a freqüência de eventos extremos de precipitação sobre o Sul do Brasil durante a primavera, principalmente durante o mês de novembro, de ano de episódio El Niño (EN) e/ou La Niña (LN) (Grimm et. al., 1998). Grimm e Pscheidt (2001) verificaram para esta região que durante EN a freqüência destes eventos aumenta muito em relação aos anos normais e que diminui consideravelmente em anos LN. Vários trabalhos mostram que além da variabilidade interanual, a variabilidade climática em escala de tempo interdecadal também causa impactos em todo o globo afetando a ocorrência das chuvas. No presente trabalho pretende-se verificar a influência do ENOS na freqüência de extremos de precipitação sobre o Sul do Brasil no mês de novembro com maior detalhamento espacial que em Grimm e Pscheidt (2001) e analisar se a variabilidade interdecadal também modula a freqüência da chuva severa sobre esta região. -----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------1. Instituto Tecnológico Simepar, Centro Politécnico da UFPR, Campus III, Jd das Américas, Cx. Postal 19100, CEP 81531-990, Curitiba, Paraná. Tel: (41)3320-2000, e-mail:[email protected]. 2. Universidade Federal do Paraná, Depto de Física, Centro Politécnico, Campus III, Jd das Américas, Cx. Postal 19044, CEP 81531-990, Curitiba, Paraná. Tel: (41)3361-3097, e-mail:[email protected]. DADOS E METODOLOGIA Dados Foram utilizados dados diários de chuva para o mês de novembro de 1950 a 2000 de 4.036 estações meteorológicas distribuídas pela região Sul do Brasil, São Paulo, Mato Grosso do Sul, Argentina, Paraguai e Uruguai provenientes de vários órgãos como a Agência Nacional de Águas (ANA), Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), Instituto Ambiental do Paraná (IAP), Serviço Meteorológico da Argentina, Serviço Meteorológico do Paraguai e Serviço Meteorológico do Uruguai. Estes dados de estações foram interpolados em uma grade regular com resolução de 1° de latitude/longitude. Para o mesmo período foram usados dados de Temperatura da Superfície do Mar (TSM) global mensais de áreas 1°X1° obtidas do conjunto HadISST1 (Rayner et al. 2003), interpolados em uma grade de resolução 10°X10°. Por fim, foram utilizados ainda índices de oscilação climática interdecadal obtidos do Climate Diagnostics Center, como o Índice de Oscilação Decadal do Pacífico (IODP), Índice de Oscilação do Atlântico Norte (IOAN), Índice de Oscilação Multidecadal do Atlântico (IOMA) e Índice de Oscilação Antártica (IOA). Métodos Foi calculada a chuva acumulada móvel de 3 dias em cada quadrícula (1°X1°) e o valor total atribuído ao dia central. Foram ajustadas distribuições gamma aos 51 valores de cada dia do período e a precipitação substituída por seu correspondente percentil. Aqueles em que o percentil foi igual ou maior a 85 foram considerados eventos severos de chuva. Os extremos ocorridos em cada uma das categorias de anos EN, LN e neutros do período foram contabilizados e então efetuada a diferença dos números médios destes eventos entre anos EN e neutros e também entre LN e neutros. Utilizou-se o teste T de Student (diferença entre médias) para calcular o nível de significância. As áreas em que a diferença apresentou nível de confiança igual ou maior a 90% foram consideradas significativas. Os anos EN e LN aqui usados foram os mesmos utilizados por Grimm (2003). Para cada área, a série de número de extremos foi correlacionada com a TSM mensal. A fim de reter variabilidades com freqüências maiores ou iguais ao ENOS as séries destes números foram posteriormente submetidas a um filtro gaussiano de 9 pontos e então correlacionadas com a TSM mensal não filtrada e com os índices de oscilação interdecadal. Utilizou-se o método de Monte Carlo para o cálculo da significância. As séries de número de eventos severos de cada quadrícula sobre todo o Sul do Brasil, sem a separação por áreas significativas, foram submetidas ao filtro gaussiano e posteriormente à Análise de Componentes Principais (ACP) em modo de decomposição S. Os componentes principais (CPs) retidos foram correlacionados com a TSM mensal não filtrada e com os índices de oscilação climática interdecadal. RESULTADOS A diferença dos números médios de eventos extremos de chuva entre novembro de anos EN e neutros e entre LN e neutros mostram áreas com aumento significativo destes eventos durante a fase negativa de ENOS (EN) (figura 1(a)) e redução na fase positiva (LN) (figura 1(b)). São enfatizadas aqui apenas as análises para as áreas A (litoral) e D (sudoeste), uma vez que as áreas B e C estão contidas em D e também por apresentarem resultados bastante semelhantes aos desta última. A variabilidade do número de extremos em A e D mostra-se modulada pela variabilidade da TSM associada principalmente ao ENOS (figuras não mostradas). A correlação entre o número de extremos e a TSM indica que o aumento/redução dos eventos está geralmente associado ao aumento/redução da TSM no Pacifico tropical leste, Pacifico sul extratropical e oceano Indico, e associado à redução/aumento da TSM no Pacifico subtropical sul e tropical oeste (figuras não mostradas). As correlações significativas referentes à área D, no entanto, apresentam maiores coeficientes e regiões oceânicas mais abrangentes em relação àquelas referentes à área A. O número de eventos severos em A e D é também modulado por variabilidades com freqüências inferiores ao ENOS (figuras 2(a) e 2(b)). Nota-se que após 1970 ocorre mudança na oscilação que vinha se apresentando desde 1950, principalmente para os extremos na área D. Correlações entre a série filtrada da área A e a TSM (figura 3(a)) mostram valores significativos positivos principalmente sobre o Pacífico tropical leste, ao sul do equador, e com sinal contrário, no Pacífico sul subtropical e no Pacífico norte extratropical. Padrões estes que são semelhantes aos padrões das anomalias encontradas nos modos de Variabilidade Interdecadal e Multidecadal do Pacífico (Enfield e Mestas-Nuñez, 1999). Há ainda alguns padrões de correlação no Atlântico norte que lembram as anomalias da Variabilidade Multidecadal do Atlântico (Enfield e Mestas-Nuñez, 1999). Para a área D (figura 3 (b)), a correlação mostra regiões com valores significativos positivos sobre o Pacífico tropical leste, ao sul e ao norte do equador, sobre o oceano Índico e o Atlântico sul. Correlações negativas são encontradas sobre o Pacífico sul subtropical e Atlântico norte. Também neste caso existem características que lembram anomalias presentes especialmente no modo da Variabilidade Multidecadal do Atlântico e alguns aspectos da Variabilidade Interdecadal do Pacífico (no Pacífico Leste). O aumento (redução) do número de extremos está associado ao aumento (redução) da TSM nas regiões em que foram encontradas correlações positivas, simultaneamente à redução (aumento) da TSM nas áreas de correlação negativa. A série filtrada de número de eventos severos na área D apresenta correlação significativa com o IOMA e IODP, cujos valores são de -0,32 e +0,36 com os níveis de confiança de 96,2% e 98,4%, respectivamente. Para a área litorânea (área A), no entanto, as correlações com os índices de oscilação interdecadal não são significativas. (a) (b) Figura 1: Diferença do número médio de eventos extremos de chuva durante o mês de novembro entre anos (a) El Niño e neutros e (b) La Niña e neutros no período 1950 a 2000. (a) (b) Figura 2: Série temporal original (em cinza) e filtrada (em preto) do número de eventos severos de chuva ocorrido em novembro na área (a) A e (b) D no período 1950 a 2000. (a) (b) Figura 3: Correlação entre a série filtrada de número de eventos severos de chuva ocorrido na área (a) A e (b) D e a TSM global não filtrada para o mês de novembro no período 1954 a 1996. A ACP, em modo S, do número filtrado de extremos sobre toda a região Sul do Brasil, reteve 11 CPs que explicam uma variância acumulada de 97%. Aqui, no entanto, é mostrado apenas o primeiro modo, que explica 55,1% da variância. (a) (b) (c) Figura 4: (a) Primeiro fator retido da ACP, em modo S, do número filtrado de eventos extremos de chuva na região Sul do Brasil em novembro do período 1954 a 1996. O respectivo CP é mostrado em (b) e a correlação entre o primeiro CP e a TSM global não filtrada em (c). O primeiro fator (figura 4(a)) mostra uma variação homogênea quanto ao número desses eventos sobre toda a região. Verifica-se um núcleo mais intenso sobre grande parte da área D, que já é significativamente impactada em escala de tempo interanual. Pelo primeiro CP (figura 4(b)) são vistas duas fases de uma oscilação que dominantemente modula os extremos em freqüência inferior ao ENOS. Ocorre uma inversão de fase em torno do ano de 1973, o que concorda com a Variabilidade Multidecadal do Atlântico e a Variabilidade Interdecadal do Pacífico, e outra em 1986, o que pode ser explicado pela inversão da Variabilidade Multidecadal do Pacífico, sendo os valores altos entre 1973 e 1986 explicados pela atuação combinada destes três modos. Ao se multiplicar este CP pelo fator, observa-se, portanto, que nesse período houve aumento de eventos severos sobre a região, com maior intensidade sobre a área D, em relação ao período de 1950-1973. Através da correlação entre o CP e a TSM notam-se valores significativos negativos sobre o Pacífico tropical sul, oceano Índico e oceano Atlântico sul (figura 4(c)). Sobre o Pacífico subtropical sul, Atlântico norte e o Pacífico norte, por sua vez, predomina correlação positiva. Isto indica que se o CP torna-se positivo (negativo), ou seja, ocorre redução (aumento) no número de extremos sobre todo o Sul, em especial sobre a área D (núcleo mais intenso) em escala interdecadal, há redução (aumento) na TSM em áreas de correlação negativa, simultaneamente ao aumento (redução) da TSM em regiões de correlação positiva. Este CP é ainda significativamente correlacionado com o IOMA e IODP. Para o primeiro caso a correlação é de +0,3 e nível de confiança de 95,6 %, enquanto que para o segundo o valor é -0,34 e nível de confiança de 97,8 %. Estes resultados mostram ainda que CP positivo/negativo (redução/aumento no número de extremos) esta associado à fase positiva/negativa da Variabilidade Multidecadal do Atlântico, à fase negativa/positiva da Variabilidade Interdecadal do Pacifico e à fase positiva/negativa da Variabilidade Multidecadal do Pacifico. Este aspecto concorda com os resultados encontrados na análise de extremos de chuva para a área D, separadamente. CONCLUSÕES Foram encontradas áreas sobre o Sul do Brasil com variação significativa no número de eventos severos de chuva em escala de tempo interanual e interdecadal. Em escala interanual verifica-se que a freqüência dos eventos é modulada por variabilidade associada aos ENOS. Ocorre aumento no número de extremos em sua fase negativa, nas áreas A, B e C, e redução na fase positiva, sobre a área D. Em escala interdecadal, principalmente para a área D, ocorre mudança na oscilação do número dos eventos em torno de 1970 concordando com a inversão de fase das Variabilidades Multidecadal do Atlântico e Interdecadal do Pacífico. Padrões destas variabilidades são encontrados nos campos de correlação entre o número de extremos e a TSM. Quando é realizada uma ACP do número filtrado dos eventos severos sobre toda a região Sul, encontra-se uma variação bastante homogênea quanto a ocorrência dos extremos em escala de tempo interdecadal apresentando um núcleo mais forte sobre a área D. Esta análise mostra ainda que existe aumento no número dos eventos entre 1973 e 1986 em relação ao período 1950-1973, sobre toda a região, em especial sobre o sudoeste. Isto concorda com a inversão de fase da Variabilidade Interdecadal do Pacifico e Multidecadal do Atlântico ocorrido em torno de 1973 e da Variabilidade Multidecadal do Pacifico em torno de 1986. Estes resultados reforçam aqueles verificados anteriormente para a área D em separado, realçando o fato de que a freqüência de eventos severos de chuva sobre o sudoeste da região Sul do Brasil também é fortemente impactada por variabilidade interdecadal além da variabilidade interanual. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Grimm, A. M., S. E. T. Ferraz e J. Gomes, 1998: Precipitation anomalies in Southern Brazil associated with El Niño and La Niña events. J. Climate, 11, 2863-2880. Grimm, A.M. e I. Pscheidt, 2001: Padrões atmosféricos associados a eventos severos de chuva na primavera durante El Niño, La Niña e anos neutros. 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