FORMAÇÃO INTEGRAL: PRESSUPOSTOS E MEDIAÇÕES PARA A EDUCAÇÃO
CONTEMPORÂNEA. (1)
José Luís Sanfelice(2)
Pode-se dizer, em termos gerais, que o pressuposto para que se realize uma formação
humana integral é que haja uma estrutura material, social e cultural (na sociedade como
um todo) que a queira e construa incessantemente condições objetivas para alcançá-la. É
preciso, portanto, que se coadunem vontade coletiva e ações necessárias de viabilização
do intento desejado. Não é possível, no processo, esquecermos do importante papel das
subjetividades individuais que, engajadas na obtenção do mesmo fim, a educação
integral, conformarão a vontade coletiva. Como em qualquer situação em que se pensa
tornar uma idéia hegemônica, também aqui, é preciso que muitos seres humanos
queiram a mesma coisa.
Se esse pressuposto tem algum fundamento, a conclusão inicial é que a viabilidade de
uma formação humana integral, hoje, é totalmente inviável. Uma análise da sociedade
em que vivemos, não permite constatar a existência de dados subjetivos ou objetivos que
nos indiquem a possibilidade de uma formação humana integral. Por quê? Porque a
lógica intrínseca do modo de produção capitalista vigente é absolutamente contrária a
uma formação humana integral. Modo de produção capitalista e formação humana
integral são dimensões que se excluem.
A lógica desumanizadora do capital que para se constituir, necessita que os não
detentores de capital alienem seu trabalho a ele, é irremediavelmente um processo
contínuo de alienação. Em conseqüência, na vigência de tal antagonismo, não resulta
nenhuma possibilidade para se propor e realizar uma educação humana integral. Se
alguns homens se arvoram em exploradores da maioria deles, essa relação é degradante.
Ela não é razoável para a humanidade como um todo.
Individualismo, competição, formação para o mercado e pedagogia das habilidades e
competências sinalizam na contramão de uma formação integral.
E o capital
transformou a própria educação escolar, institucional, em mercadoria preciosa. Hoje,
grupos econômicos internacionalizados disputam a propriedade de imensas redes
escolares privadas. E ainda recebem estímulos financeiros do poder público que, por sua
vez, vai se omitindo cada vez mais de construir uma rede escolar estatal.
A mercantilização da educação escolar vem acompanhada, via de regra, de uma imensa
desqualificação do trabalho pedagógico. O processo pedagógico está submetido a uma
lógica de resultados. É só verificar as múltiplas formas de avaliação atualmente em vigor.
Formas de avaliação que chegam às escolas, aos alunos e professores, de fora para
dentro. Não são avaliações pensadas a partir do processo pedagógico real e, menos
ainda, concebidas por quem atua no processo pedagógico real.
São tabelas
classificatórias de instituições escolares que geram interpretações estaparfúdias do
público em geral. São avaliações concebidas em organismos governamentais que, por sua
vez, se subordinam de forma consentida às Agências internacionais. As Agências, dentre
elas Bancos, são os atuais intelectuais da educação que impingem aos países periféricos o
modelo de educação a seguir.
Os governos locais, independentemente de partidos
políticos, cumprem o dever de casa. E a gestão da escola que, quase sempre, é a
vigilância imediata para que se trabalhe na lógica de resultados? E a ausência de uma
política nacional de formação docente? E a absurda pauperização da carreira docente?
E a formação inicial docente à distância? Enfim e sem fim, as perguntas estão no ar...
A fundamentação teórica de todos os artifícios que estão presentes na vida do conjunto
de trabalhadores atuais, cada vez mais precarizados, empobrecidos, inseguros e
bestializados, chama-se pensamento liberal, travestido de neoliberal. Travestido de
neoliberal porque não há nada de essencial nele que não esteja em consonância com o
liberalismo clássico. Ao se tornar hegemônico e quase um pensamento único, os sujeitos
se desesperam ao se verem individualmente responsabilizados pela própria situação de
não sucessos repetitivos. O refúgio tem sido nas religiões e na literatura de auto-ajuda.
As igrejas se expandem por todos os lados e a literatura de auto-ajuda bate recordes de
vendagem em todo o mundo.
O cidadão hoje, pobre concepção de cidadania, é conformado para competir no mercado
e tornar-se um consumista do supérfluo. Seu “lazer” é direcionado para os templos de
consumo: os shopping - center. Em um shopping parecem estar a segurança e a
felicidade da vida contemporânea.
Politicamente ele, cidadão, endividado em seus
cartões de crédito, está condicionado a brincar de democracia representativa burguesa.
Uma democracia totalmente servil ao poder econômico e manipulada pelos meios de
comunicação cada dia mais corruptos. Resta, às vezes, consolar-se assistindo novelas
inverossímeis.
Em um quadro tão adverso, do qual somente trouxemos algumas pinceladas, pois nem da
violência cotidiana praticada falamos, pensar a formação humana integral, soa como uma
utopia. Admitamos isso: é uma utopia face às nossas condições objetivas de coexistência. Mas é uma utopia positiva. Uma utopia positiva no sentido de que ela
resulta de uma elaboração ideal que visa construir algo que esteja para além do que está
aí estabelecido. E não é esse o papel histórico do pensamento utópico? Desejar algo
que ainda não existe inclusive como forma de criticar o que existe? Não devemos ter
receios de sermos chamados de utópicos. Precisamos de utopias, não como um caminho
de fuga, mas como um elemento que nos induza a lutar pela transformação
revolucionária do status-quo.
Entretanto, não basta alimentar as utopias. É preciso fazer uso das ciências para
construirmos nossas utopias. Mesmo sabendo que as ciências, em geral, estão sendo
usadas a serviço de interesses contrários à transformação radical da realidade social,
econômica, política e cultural, não podemos abrir mão de nos apoderarmos dos
conhecimentos científicos. As ciências nos ajudam a entender, a interpretar, a intervir de
forma criadora no mundo físico e no mundo humano. A ciência é uma leitura adequada
do real que nos permite atuar de maneira a alterá-lo de acordo com nossos interesses.
Então, é preciso indagar: numa sociedade, como a nossa, a ciência está a serviço de quais
interesses? Quem estabelece, por exemplo, as prioridades do trabalho científico? Quais
são os projetos acadêmicos de investigação que merecem prioridade de financiamentos?
Em poucas palavras: quem está controlando o conhecimento historicamente disponível?
Mas, independentemente do uso que se faz hoje das ciências, nossa reafirmação é a de
que não é possível abrir mão delas. É necessário reorientá-las para fins mais
humanizadores, mais solidários e democráticos. Não é mais possível conviver com
ciências do e para o poder econômico. Então, precisamos aliar as nossas utopias às
ciências humanizadoras, solidárias e democráticas.
Por exemplo: parte das ciências sociais nos evidencia que a história da humanidade é
produzida por ela mesma. Ficamos então cientes de que o processo histórico não resulta
de nenhuma vontade divina ou de outra força superior qualquer.
É algo assim
condenatório: os seres humanos estão lançados à sua própria sorte. Ao construírem a
sua história, os seres humanos também produzem a sua essência. Uma essência,
conseqüentemente, histórica. Ao longo dos tempos, as relações humanas foram se
modificando.
No conjunto das transformações conjunturais e estruturais, em
movimento contínuo, evidenciaram-se contradições insolúveis até que fossem superadas
por realidades qualitativamente superiores. Assim, é possível dizer, comparativamente,
quando nos referimos às relações do trabalhador assalariado com o capital, ou as
relações do servo com o seu senhor, ou ainda das relações dos escravos com seus
proprietários. Enfim, há uma notável transformação das relações sociais que por sua vez
alteraram, gradativamente, todas as instâncias das sociedades. Não há nenhum indício
de que o momento atual da humanidade seja um ponto de chegada ou que se torne
permanente. Pelo contrário, tudo está a demonstrar que muito virá pela frente, seja
pelas chamadas crises cíclicas do capitalismo ou por conta da crise estrutural dele. É
cientificamente legítima a utopia que almeja uma realidade humana qualitativamente
superior à existente, pois a atual contradição (capital x trabalho) é insolúvel dentro da sua
própria lógica. O trabalho explorado pelo capital não é um resultado de lei divina ou de
lei natural. É resultado, sim, da dominação burguesa, portanto, uma situação produzida
por seres humanos em uma história mais recente. A exploração do trabalho pelo capital
é a essência atual de toda a desigualdade humana.
A formação humana integral supõe uma relação de igualdade entre os seres humanos.
Somente as características físicas seriam diferenças reconhecíveis e respeitadas. No
restante a igualdade teria que ser plena. Igualdade social, igualdade de participação
política, igualdade de condições de trabalho e igualdade para ser dirigido ou ser dirigente,
dentre outras. A formação humana integral supõe uma dimensão de formação para o
trabalho enquanto necessário para viver e não o viver para trabalhar. A formação
humana integral implica na posse do conhecimento teórico e prático das ações
necessárias para o trabalho. Implica em trabalhar com o delineamento dos fins últimos
pelos quais se está a trabalhar. A formação humana integral exige a preparação dos
seres humanos para o lazer e para suas necessidades “espirituais”: as artes, a filosofia, a
literatura, a música e tudo aquilo que o acervo cultural da humanidade nos disponibiliza.
A formação humana integral é para a vida e não para o mercado. E, sem pruridos, para
uma vida feliz e de realizações humanizadoras.
A nossa utopia não é acanhada e com o auxílio das ciências sociais que nos dão uma visão
de que é necessário resistir e enfrentar a atual hegemonia alienante e despolitizada, num
processo de luta contínua, almejamos que os seres humanos se humanizem cada dia
mais. Humanizar-se mais significa ganhar maior liberdade face aos condicionamentos
que nos são impostos pelas relações de desigualdade entre os interesses do voraz capital
e a classe que aliena seu trabalho a ele. Humanizar-se mais significa dar unidade ao
“homo faber” e o “homo sapiens”. Somente assim, uma educação hoje diferenciada
entre as classes sociais, poderá se constituir em uma educação humana integral. É
necessário, portanto, superar a existência das classes sociais. Sim, é necessária uma
revolução em direção a um patamar superior das relações sociais. O modo de produção
capitalista encontra-se sem solução para a sua contradição fundamental.
A educação humana integral pode, sem dúvida, ser mediada pela educação escolar, mas
não necessariamente somente por ela. Não vamos confundir a formação humana
integral com a proposta de turno escolar integral ou expandido, em voga no momento.
Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Embora se possa fazer a discussão sobre a
ampliação do tempo de permanência dos alunos nas escolas, o significado disso, não é
razoável acreditar que estamos falando da mesma coisa.
A questão da formação
humana integral é relacionada aos fundamentos da educação e da própria sociedade.
Em síntese: a educação humana integral é a utopia para se construir uma nova sociedade.
E, para que não pairem dúvidas, quero lembrar que a luta começa na defesa incondicional
da escola estatal gratuita, laica e de qualidade. É preciso que a escola estatal se converta
em escola do e para os interesses públicos. E, mais uma vez para que não pairem
dúvidas, é preciso retomar o lema revolucionário abandonado pela burguesia assim que
chegou ao poder: liberdade, igualdade e fraternidade. Essa é a bandeira!
Não é mais possível fechar os olhos ao mundo em globalização. Não é mais possível
fechar os olhos ao pensamento único implantado pelas mídias e outro meios que querem
nos convencer de que a realidade humana atual é uma condição natural. Não é mais
possível fechar os olhos à inconseqüente pretensão de que se não aceitarmos o modo de
produção capitalista globalizado, voltaremos à barbárie.
É possível ver que na
globalização, seja lá um dos muitos significados que o termo abarca, os mais ricos ficaram
mais ricos e os mais pobres, mais pobres ainda. É possível ver que a barbárie reina no
interior do próprio capitalismo: o desemprego, o achatamento salarial, a precarização dos
trabalhadores e o trabalho temporário humilhante. É possível ver a violência de toda
ordem e o individualismo avassalador das relações humanas cada dia mais precárias. E,
perante tudo isso, declara-se a morte das utopias? A quem serve tal declaração?
A burguesia, contanto com o apoio dos seus intelectuais orgânicos, vem denunciando que
toda crítica ao projeto atual de sociedade é meramente ideológico. Que a educação
escolar está ideologizada. Puseram-se agora em campanhas e na busca de viabilizar
legislações que cerceam, ainda mais, a possibilidade de que se pense diferente dela ou
que discordem do seu projeto de sociedade. É só mais uma arma para a luta que a
burguesia trava contra a classe trabalhadora e que precisa ser rechaçada. É mais um
mecanismo de busca da alienação pela qual se tenta fazer a ideologia burguesa uma
verdade absoluta.
Em tempos de desfavorecimento no embate das classes sociais, com a classe
trabalhadora vulnerável, fica mais difícil manter nossa utopia de uma educação humana
integral e de uma sociedade qualitativamente superior. Mas é preciso resistir, mesmo
que não consigamos, por hora, avançar.
A construção de subjetividades que alimentem a utopia de uma formação humana
integral, a busca de domínio dos conhecimentos científicos necessários, a defesa da
escola estatal gratuita, laica e de qualidade, a restauração da bandeira revolucionária,
“Liberdade, Igualdade e Fraternidade” são ações mediadoras que devem fazer parte do
nosso cotidiano. É um projeto coletivo ao qual nenhum educador deveria se furtar,
embora saibamos que muitos estarão com propósitos diferentes ou cooptados para
outras finalidades. Mas, é o processo da luta a ser travada, ou a ser continuada.
Notas:
1- Conferência proferida no V Seminário Interdisciplinar em Experiências Educativas
(SENIEE), promovida pelo Grupo de Pesquisa Representações, Espaços, Tempos e
Linguagens em Experiências Educativas (RETLEE) e Universidade Estadual do Oeste do
Paraná (UNIOESTE), Campus de Francisco Beltrão, em 22 de maio de 2015.
2- Professor Titular em História da Educação da UNICAMP (aposentado e colaborador).
Docente do Mestrado em Educação da UNIVÁS.
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José Luís Sanfelice