O Descontínuo Processo de Desenvolvimento Democrático em Angola
José Gonçalves
Universidade Federal, Brazil
A luta pela democracia em Angola tem uma tradição de mais de um século. Ligada ás
reivindicações e combates pela Independência, tal luta assumiu sempre um caráter de
desobediência em relação aos poderes estabelecidos, incidindo nas áreas dos movimentos
políticos e sociais, da economia, da mídia e da cultura de forma geral.
Três referências de partida são essenciais:
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a reivindicação democrática tem sido sempre conduzida por segmentos sociais urbanos
com perfis intelectuais – nas suas diversas variantes – e só a partir de finais da década
de 80 do século XX ganhou base social de apoio massiva. No entanto, antes disso,
verificaram-se momentos históricos de apoio amplo: os primeiros anos do século XX;
o reacender da ação nacionalista em 1959/1960 com momentos altos e baixos até á
transição para a Independência;
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esses segmentos sociais urbanos, localizam-se principalmente nas cidades de Luanda e
Benguela, fundadas nos séculos XVI e XVII, onde se encontraram populações de
várias origens étnicas e onde se produziram importantes sínteses culturais; os perfis
intelectuais só muito recentemente implicam formação universitária, compreendendo
grande numero de pessoas com ensino secundário, ensino religioso ou autodidatas em
numero elevado;
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o déficit de cultura democrática é o maior responsável pelas lutas fraticídas entre
movimentos de libertação ( e dentro deles) nos anos 60 e 70 e pelo desencadear da
guerra civil após o início da transição para a Independência; por essa razão, as pressões
internas pela paz basearam-se na defesa dos direitos humanos e representaram uma
nova consciência democrática de grande dimensão.
Todo este processo foi conduzido com características de grande informalidade, apesar de
algumas tentativas de formalização, no sentido de criar estruturas com mais estabilidade, um
facto que constituiu, em si, motivo de debate entre os envolvidos e cujos resultados foram
bastante determinados, por um lado, pelos sucessos das várias repressões e, por outro, pelo
peso da própria evolução da sociedade angolana e suas respostas espontâneas á crise pósIndependência.
Vários níveis de reivindicação democrática se desenvolveram, tanto de forma deliberada como
pelo desencadear de dinâmicas sociais resultantes de atitudes de sobrevivência.
As reivindicações políticas de forma deliberada consistiram na formação de grupos
clandestinos, com claras formulações democráticas, tanto no período colonial como póscolonial ou o surgimento de tendências democráticas dentro dos movimentos de libertação.Foi
o caso de múltiplos grupúsculos autônomos, dentro do país e entre exilados, antes da
Independência, da tendência “Revolta Activa” dentro do MPLA, em 1974/75 e de iniciativas
chamadas “democráticas independentes” após essa data. Ao mesmo tempo, constata-se a
formação de grupos de tipo cultural, como associações culturais, no periodo colonial ou
agrupamentos literários, como o “Archote” mais recentemente.
De forma não deliberada, atitudes ou trajetórias individuais também contribuíram para o
processo democrático, na medida em que abriram espaços de debate, que muitas vezes
ultrapassaram as intenções de quem os iniciou. Isso ocorreu com algumas divergências
pessoais nas áreas do poder político ou críticas suaves de escritores, que suscitaram
interrogações e aprofundamento posterior.
Este contexto teve quase sempre repercussão na mídia, de forma explícita nos momentos de
liberdade de expressão ou de forma alusiva sob condições de censura.
A imprensa angolana é das mais antigas do continente africano e conheceu um notável
crescimento no final do século XIX e começos do século XX, fortemente influenciadas pelo
pensamento republicano universal da época e veiculando o essencial das reivindicações
nacionalistas ou sociais. A presença em Angola de deportados políticos portugueses contribuiu
para o acesso aquelas idéias.
A partir dos anos 1920, os jornais angolanos foram severamente reprimidos no quadro da
política de intensificação da presença colonial. Após a segunda guerra mundial, alguns
exemplares da imprensa de esquerda do Brasil e de Portugal (clandestina também) entraram
nos círculos intelectuais de Angola, mas nunca mais houve clima para refazer a anterior
imprensa angolana.
Na década de 60, vários angolanos tiveram acesso aos jornais, revistas e emissoras de rádio,
então existentes e sob censura, mas onde puderam explorar algumas margens para textos
alusivos com base em comentários internacionais, literários ou de economia.
Na fase de transição para Independência, voltou a surgir uma mídia angolana, embora
condicionada pouco depois pelos conceitos de partido único.
De 1975 a finais da década de 80, repete-se o fenômeno de pós-segunda guerra mundial, com
introdução de artigos e livros de origem exterior aproveitando agora a existência da fotocópia.
Repete-se também o fenômeno da escuta de rádios estrangeiras em português, como ocorreu
durante toda a guerra de libertação com Rádio Brazzaville, nos dois casos animando grupos de
discussão.
O cessar-fogo do começo dos anos 1990 e a preparação das eleições deu lugar a uma fase de
grande dinamismo e subida de nível de formulação da mídia angolana, cujos efeitos se sentem
até hoje, com grande impacto na defesa da liberdade da própria imprensa e na divulgação dos
direitos humanos e ética da vida econômica.
A economia também foi palco de atitudes e iniciativas que contribuíram para quebrar os
monolitismos dos pressupostos materiais, tanto coloniais como pós coloniais.
O desencadear da guerra pela Independência em 1961, obrigou o poder colonial a introduzir
algumas modificações nas relações econômicas e sociais no campo, ao mesmo tempo que
abriu as portas localmente a um novo modelo de capitalismo colonial. Este processo ocorreu
quando no mundo se trabalhavam conceitos como “terceiro mundo”, e “crescimento sem
desenvolvimento” ou a teoria da dependência, que em maior ou menor grau se fizeram sentir
em debates ou em práticas de certas organizações, sobretudo acadêmicas e religiosas.
Após um período de imposição dogmática a seguir á Independência, este mesmo debate
retomou, inicialmente centrado na questão das competências técnicas de gestão se estendendo
em seguida á questão da propriedade e do dimensionamento do papel econômico do Estado.
Em simultâneo com o debate, que foi ampliando seu espaço á medida que a crise economica
se acentuava, surgiu o mercado informal cujos primeiros passos representaram uma resistência
a medidas fortemente burocratizadas na economia. Da venda ou troca discreta de produtos
fora dos locais e dos preços oficiais á criação de um mercado de cambio paralelo, uma imensa
rede se organizou. Após uma inútil primeira fase repressiva, as autoridades passaram a
conviver com o mercado informal e, no começo dos anos 90, através da liberalização dos
preços, aceitaram a hegemonia deste tipo de mercado onde até hoje se abastece a maior dos
consumidores.
Mas a evolução do mesmo suscita interrogações decisivas no sentido da construção da base
material da democracia e das vias de acumulação voltadas para o desenvolvimento, já que ás
características iniciais de sobrevivência e da inevitável emergência das grandes regras da
economia, se passou a práticas generalizadas de especulação, sub-emprego e precariedade.
A proliferação de ONG’s, componente importante da sociedade civil em ascenção, estendeu a
discussão sobre economia e sua relação com os direitos sociais inerentes á democracia,
aprofundando formulações já esboçadas pela Revolta Activa com as referências á “democracia
econômica”.
O fim da guerra em 2002, com a vitória militar do governo mas respeitando os direitos
políticos da UNITA, traduziu-se por uma maior descompressão do debate político, busca de
data para novas eleições, constante apresentação de reivindicações sociais e de ética
econômica e enunciado de novos investimentos, tanto na área petrolífera quanto fora dela.
Tudo isto, faz aparecer com grande nitidez as enormes desigualdades sociais e a elevada
dependência economica externa, produzidas por todo o período pós-Independência, dois
temas que vão constituir a coluna vertebral dos programas eleitorais em preparação pelas
diversas forças.
Angola está novamente em fase de grande ebulição. Nas fases anteriores, as expectativas
foram desmentidas pelos acontecimentos seguintes, em larga medida porque fortes
hegemonismos se estabeleceram fazendo valer seus interesses. No presente, as condições são
de mais equilíbrio entre foras sociais, a consciência dos direitos individuais e de grupo é muito
mais intensa e as idéias democráticas – a todos os níveis – ganharam até importantes áreas do
poder.
A presidência angolana da SADC, pelo período 2002/2003, obriga a uma postura de busca de
alternativas que, sendo para toda a região, envolve fortemente Angola, que possui o segundo
PIB da sub-região.
Nestes termos e após tantas décadas de evolução do pensamento democrático em Angola, o
momento fornece já um bloco de elementos que autoriza testar á escala angolana a noção de
Amartya Sen sobre desenvolvimento como liberdade.
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informal e pressão social no desenvolvimento