LITERATURA ANGOLANA: UMA FERRAMENTA NA COMPREENSÃO E
SUBSIDIO PARA O ENSINO DE ÁFRICA.
Alexsandro Bastos de BRITO[1]
[email protected]
UFBA/ CEAO/ PÓS-AFRO
Os diversos povos, que habitavam o continente africano, muito antes da colonização feita
pelos europeus, dominavam várias áreas: com técnicas de agricultura, mineração, ourivesaria e
metalúrgica, tinha conhecimento em vários campos da ciência como a astronomia e a medicina.
Infelizmente, as imagens que se tem da África e de seus descendentes não é relacionada com a
produção intelectual nem com a tecnologia. Ela aparece, em grande parte, trazida pelos meios de
comunicação, com crianças famintas e famílias miseráveis, povos doentes e em guerra ou paisagens
de safáris e mulheres de cangas coloridas. Essas idéias distorcidas contribuem para desqualificar a
cultura negra e acentuam o preconceito.
O pouco caso com a cultura africana e seus diversos povos se reflete na sala de aula. O
segundo maior continente do planeta, aparece em livros didáticos, grosso modo, quando o tema é
escravidão, deixando aquém a noção de diversidade dos seus povos e minimizando, por outro lado,
a importância dos afros-descendentes. Neste sentido, entrou em vigor a Lei nº 10.639, que tenta
corrigir este silêncio e distorções, incluído o ensino de história e cultura africana nas escolas do
ensino básico. É certo que uma norma não mudara a realidade de imediato, mas pode ser um
impulso para introduzir em sala de aula um conteúdo rico em conhecimento e em valores.
Uma boa ferramenta para introduzir, discutir e pensar á África são os romances literários
de escritores africanos. No Brasil, um destaque especial, aos romances de países de língua oficial
portuguesa. Neste sentido, destaca-se a obra do escritor angolano Artur Carlos Maurício Pestana
dos Santos, cujo pseudônimo é Pepetela. Ele nos apresenta as primeiras contradições internas da
guerrilha em Angola, especificamente dentro do Movimento Popular pela Libertação de Angola
(MPLA),[2] o qual era guerrilheiro. Em seu livro, Mayombe, para discutir estas questões o palco
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a contribuição das populações de matrizes africanas no Brasil.
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principal é uma grande floresta tropical localizada em Cabinda que tem o mesmo nome da obra, no
qual Pepetela busca organizar seu trabalho de acordo com a vivência dos guerrilheiros, donde as
motivações que levaram as personagens à revolução liderada pelo MPLA, são justificadas, em
muitos casos, pela experiência individual e não exclusivamente por uma atitude política.
Seu trabalho nos dá uma dimensão da vida dessas pessoas na guerrilha. Por ser um escritor
gestado no ambiente revolucionário, Pepetela constrói ao nível ficcional uma realidade
extremamente presente no seio das sociedades africanas, a exemplo das disputas tribalistas que será
uma tonante dentro do romance Mayombe. Tais disputas são apresentas como motivo de discórdias
naturais, e como uma justificativa para quebra de hierarquia, formação de complôs, flexibilidade
nas punições em favor de um ou de outro grupo, fator que colocava em risco, não só a estrutura
administrativa e disciplinar do MPLA, mas a própria prática de guerra uma vez que poderia
ocasionar a perda de vidas durante combates contra as forças colonialistas.
Visando dar uma ênfase maior nas discussões que envolvem o tribalismo, é marcante na
obra a divisão dos guerrilheiros em dois grupos: os Kimbundos, à volta dos Chefes de Operações e
os Kinkongos ao lado do Comissário, que reunia ainda em seu favor os Umbundos e destribalizados
como Muatiânvua, filho de pai Umbundo e mãe Kimbundo.
A obra literária em questão, permiti-nos visualizar o projeto de sociedade que busca o
MPLA, “vamos tomar o poder e que vamos dizer ao povo? Vamos construir o
socialismo”[3]circunscrevendo conjunturalmente a obra é interessante salientar que tal posição é
fruto do confronto permanente decorrente do antagonismo (político, ideológico e econômico) entre
as duas potências emergentes da Segunda Guerra Mundial (EUA x URSS) sem verificação do
conflito direto, que a historiografia convencional chama de Guerra Fria.
Pepetela dá voz aos personagens, que em grande parte da obra apresentam-se em primeira
pessoa. Revelando por vezes sua formação intelectual advinda dos estudos na Europa como é o caso
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do Kikongo Sem Medo, principal comandante da guerrilha apresentada na obra. Neste sentido,
aparece com maior clareza a importância de “formar” guerrilheiro não só preparados para pegar em
armas, isto se torna explicito na manutenção das aulas de formação geral, sobretudo de política
ministrada pelo professor Teoria.
A formação política dos guerrilheiros era uma preocupação constante dentro do MPLA. A
medida que o colonizador se utilizava de uma pedagogia a serviço da exaltação do português,
silenciando as culturas africanas considerada inferior surgem escritores voltados para seu povo ,
para terra e chamam a atenção para o drama angolana. Neste sentido, a literatura é utilizada como
veiculo de ensinamento, fazendo germinar a palavra que ira florescer, transformando-se em arma
contra o colonizador. Decepção quase que geral é apontada na obra quando o guerrilheiro
Ingratidão rouba o dinheiro de um trabalhador durante a realização de uma missão. Como salienta
Sem Medo “o erro dum responsável não justifica um roubo, um roubo de merda de cem paus, dum
miserável sabotador. Vamos passar revista. As guerras não se ganham com demagogias, só para se
ter apoio das bases! Lutamos aproxima-te”.[4]
O autor em atitude pedagógica utiliza para mostrar a nós leitores que a convicção nos ideais
e a formação política desenvolvida pelo MPLA, trazem bons resultados, na medida que conseguiu
convencer alguns trabalhadores que tornaram-se refém durante a operação, a ponto de um deles, (o
mecânico) semanas depois, deixar seu trabalho e ir engrossar as fileiras da guerrilha, e conforme ele
mesmo se expressa a Sem Medo “vim ter com vocês. Quero trabalhar no Movimento. Sai do Kimbo
ontem de manhã, cheguei ao Congo sem problemas. Venho apresentar-me”.[5]
A necessidade que Pepetela, tem de trabalhar os ideais políticos do movimento, buscando
convencer a sociedade angolana que o que impedia o crescimento e gerava a miséria dentro de
Angola era exploração dentro do território pelos europeus, como salienta o Comissário “(...) Isso é
exploração colonial. O que trabalha está a arranjar riquezas para os estrangeiros, que não
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trabalha”.[6] O personagem buscava desta forma, conscientizar a população, buscando seu apoio no
processo das lutas de libertação da mesma forma que o autor pretende fazer com seu povo, através
de sua obra.
A noção de identidade social na contemporaneidade esta muito associada à noção de
identidade cultural. A identificação dos indivíduos como parte de um determinado grupo,
estabelecem dinâmicas de exclusão, e inclusão, permitem a definição de “nós” e, ao mesmo tempo,
caracteriza como distinto os “outros”.
A identidade complementa-se através da comparação com outros grupos, no sentido em que
se desenvolve um processo de avaliação positiva das suas características, por oposição, exacerbação
das diferenças e desvalorização das características atribuídas aos outros. Nesse âmbito, as
identidades sociais são processos relacionados entre nós e os outros. Idéia percebida quando o
professor teoriza um mulato em busca de aceitação admite temer participar dos combates.
Um mestiço mostrar o medo? Já viste o que daria? Tenho procurado sempre
dominar-me, vencer-me...compreendes? É como se eu fosse dois: um que tem
medo, sempre medo, e outro que se oferece sempre para as missões arriscadas, que
apresenta constantemente uma vontade de ferro (...) Sei que sozinho, sou um
covarde, seria incapaz de ter comportamento de homem. Mas quando os outros
estão lá, a controlar-me, a espiar-me as reações, a ver se dou um passo em falso
para então mostrarem o seu racismo, a segunda pessoa que há em mim predominame e leva-me a dizer o que não quero, a ser audaz, mesmo demasiado, porque não
posso recuar... É duro![7]
Neste sentido, pode-se evidenciar que uma identidade social é resultado da criação de uma
visão de mundo, partilhada pelos membros de um grupo na definição do lugar social do indivíduo
no grupo e, por conseguinte, no mundo.
É através da identidade que os indivíduos reconhecem-se e interagem com o universo,
sendo, portanto, evidente a estrita relação entre identidade e cultura.[8] Os percursos de
identificação se manifestam de forma gradativa e encadeada, que possibilite gesta uma identidade
nacional comum. É pelo encontro e desencontro com o outro, com o diferente, que nos
encontramos, que passamos a reconhecermo-nos como parte do “nós”. As identidades ocupam e
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aparecem em quase todos os espaço, algumas de nossa própria escolhas, mas outras, influenciadas e
propostas, pelas pessoas em nossa volta. Neste sentido, o meio o qual convivemos é fundamental na
formação da identidade.
A “identidade cultural angolana no seu sentido óbvio, não existe”.[9] Não existe em Angola,
como também não existe em qualquer outro país. Porém neste território, assim como em outros
países jovens, construídos a partir de um mosaico de pequenas “nações culturais”, a distância que
vai da nomeação ao óbvio e naturalmente maior. Assim quando, grosso modo, de forma
forçosamente imprecisa - mas útil por vezes- a ela nos referimos, nada mais pretendemos do que
nomear o esforço desenvolvido pelo poder político constituído. Neste caso a construção se dá sob a
direção do MPLA, no sentido de alcançar uma maior unificação ou harmonização cultural do país.
Na verdade, não se pretende, nem nunca se pretendeu com tal expressão, designar outra coisa que
não o percurso escolhido por tais responsáveis políticos e culturais para a harmonização cultural do
país.
Campo profícuo para a visualização de tais problemas, a literatura africana moderna, sendo
uma forma de resistência simbólica aos discursos dominante, precisa ser entendida no seu contexto
histórico de existência, mesmo quando se busca uma análise e, mais ainda, quando se busca uma
análise funcional.
Preferimos, então, considerar os elementos de construção identitária como aspecto de uma
mesma identidade em constante transformação, ou, no outro caminho de leitura, uma das muitas
identidades que se manifestem com maior ou menor preponderância no cotidiano das relações
sociais. Múltiplas identidades, portanto – mais, ou menos, eleitas; mais, ou menos, impostas – se
superpõe em cada indivíduo, manifestando-se em diferentes graus, conforme se estabelecem às
relações e as estratégias de convivência e sobrevivência, ou ainda, relembrando E. P. Thompson,
conforme se manifestam às oportunidades de “ser e torna-se”.[10]
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Em outras palavras, as identidades se constroem e se reconstroem constantemente no interior
das trocas sociais. Neste caminho de compreensão, cabe-nos considerar que não há identidade entre
si, nem mesmo unicamente para si. Identidade e alteridade estão intrinsecamente relacionadas numa
relação dialética que transparece através do Muatiânvua
Querem hoje que eu seja tribalista!
De que tribo? Pergunto eu. De que tribo, se eu sou de todas as tribos, não só de Angola,
como de África? Não falo eu swahili, não aprendi eu o haussa com um nigeriano? Qual é
minha língua, eu, que não dizia uma frase sem empregar palavras de línguas diferentes? E
agora, que utilizo para falar com os camaradas, para deles ser compreendido? O português.
A que tribo angolana pertence a língua portuguesa?[11]
Consideramos que a identidade é sempre uma concessão, uma negociação, um resultado de
uma relação de poder expresso no campo de valores,[12] que na literatura angolana encontra-se
suporte para trilhar caminhos que leve a compreensão da formação identitária desta jovem nação
que reuniu em suas fronteiras diversos povos de diferentes identidades e que após sua
independência buscam elementos que possa identificar a nação que formou-se.
O ensino da História e cultura da África, desde sedo, poderá levar o aluno, a perceber estas
questões.
É o papel da escola, de forma democrática e comprometida com a
promoção do ser humano na sua integralidade, estimular a formação de
valores, hábitos e comportamentos que respeitem a diferença e as
características próprias de grupos e minorias. Assim a educação é essencial
no processo de formação de qualquer sociedade e abre caminhos para a
ampliação da cidadania de um povo.[13]
Assim, ganha destaque, a Casa de Angola na Bahia (CANBA), que tem por finalidade a
organização de um centro de informação especializado, que reúna a bibliografia de obras
significativas da cultura angolana, documentação e as memórias escritas, orais e visual deste povo.
O CANBA, localizada na região central da capital do estado (Barroquinha), esta voltada para um
tipo de trabalho que visa informar e prestar serviço de ordem cultural e fomento a pesquisa.
Atualmente encontra-se, seguramente, com a mais ampla biblioteca, na Bahia, de obras de
escritores angolanos. Esta biblioteca, já tem suas obras, disponível aos vários tipos de
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pesquisadores, desde alunos do ensino básico, até os que desejam desenvolver trabalhos de pósgraduação. Entretanto, o restante da documentação, constituída: de jornais de Angola; fax, cartas e
sedex, vídeos e roteiros de filmes; Diários Oficiais; fotos de diferentes tamanhos e formas ainda não
se encontra a disposição do público em geral. Após um longo processo de limpeza, seleção e
identificação de cada um destes materiais, resta ainda, executar a catalogação. O processo final visa
que, esta vasta documentação esteja pronta para ser consultada e juntamente com literatura
angolana, ajude na constituição de trabalhos que favoreça, no futuro próximo, na implementação e
elaboração de pesquisa que favoreça o conhecimento do continente africano, em especial a uma
nação muito próxima a nós, Angola.
[1] Mestrando
do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Estudos Étnicos e Africanos.
O MPLA foi uma organização política fudada em 1956, sendo responsável pela independência
de Angola em 1975. Cf. CHAVES, Rita. A formação do romance angolano. São Paulo: USP.
1999.
[2]
[3] PEPETELA.
Mayombe. São Paulo. Ática,1982. p. 121.
[4] Idem.,
p. 39.
[5] Idem.,
p. 250.
[6] Idem.,
p. 34.
[7] Idem.,
p. 43.
[8] HALL,
Stuart. Identidade na pós modernidade. Rio de Janeiro. DPIA. 2000.
VENÂNCIO, José Carlos. Literatura versus sociedade: uma visão antropológica do estudo
angolano. Lisboa. Vega. 1991. p. 96.
[9]
[10] THOMPSON.
[11] PEPETELA,
Miséria da teoria. Rio de Janeiro. Zahar,1981.
op. cit., p.133.
[12] THOMPSON.
Costumes em Comum. São Paulo. Companhia das Letras. 1998.
Ver apresentação do SEPPIR nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Brasília, DF, outubro de 2005, p. 07.
[13]
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a contribuição das populações de matrizes africanas no Brasil.
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