Tradição Cultural Angolana na Luta
pela Paz em Angola
Carlos Belli-Bello
esde as últimas décadas do
século XIX patriotas angolanos, intelectuais na sua
maioria, utilizaram a arma da escrita para combaterem o colonialismo
português. Nos últimos anos da
monarquia portuguesa, a imprensa
escrita angolana, gozava duma
“relativa liberdade”, e a partir de
1880, surgiram jornais e revistas
angolanas com um vincado cunho
nacionalista e um carácter combativo onde os nossos compatriotas
analisavam a situação do nosso
país, vítima de expedições militares
primitivas que pretendiam terminar
o período da conquista de Angola
pela força das armas e matar as
reinvindicações nacionalistas próindependência.
Vozes enérgicas angolanas
levantaram-se com firmeza e determinação para denunciarem com
força esta situação colonial com
incidência particular na condenação da escravatura, do trabalho forçado e da sistemática destruição da
sociedade e da cultura angolana,
feitas em nome dos pseudos superiores valores do cristianismo e da
civilização ocidental.
Vozes, como a do “angolense”
José de Fontes Pereira, nas folhas
do jornal O Futuro de Angola insurgem-se com veemência contra a
dominação colonial portuguesa,
que se traduzia pela escravatura,
pela ignorância e pela pilhagem das
nossas riquezas nacionais. Outro
ilustre “angolense”, o escritor
Cordeiro da Mata compila o primeiro Dicionário Quibundo/Português
em resposta à repressão feita pelos
colonialistas portugueses ao uso
das nossas línguas nacionais.
D
a cultura no “grito de ipiranga”
O nosso grito de “Ipiranga” do
ponto de vista cultural (a cultura
esteve sempre na base das nossas
reinvindicações políticas ) surge a
partir de 1900, num período particularmente difícil, com a imprensa
escrita amordaçada e proíbida,
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quando um grupo de grandes vultos angolanos (jornalistas na sua
maioria) publica um volume que
reúne os artigos dispersos nos jornais da época, e que se tornaria
célebre : “A Voz de Angola Clamando
no Deserto”. Este libelo acusatório
violento contra o facto colonial
marca realmente o renascimento da
cultura angolana e o nascimento da
literatura angolana, como observa
Mário Pinto de Andrade.
Segue-se a gesta literária e cultural em Luanda e noutros centros
urbanos com a criação da Liga
Nacional Africana, do Grémio Angolano, da Associação dos Naturais
de Angola, da Associação dos
Nativos do Sul de Angola, organizações que desempenharam um
papel fundamental na luta pela
liberdade e pela independência
nacional de Angola. Jornais como
o Farolim, Jornal de Angola,
Revista de Angola, Fumbeco e
outros, transformaram-se rapidamente no centro do repúdio e da
contestação da presença colonial
portuguesa em Angola.
Mas a grande largada acontece
em 1948 com a publicação da revista A Mensagem que marca uma viragem decisiva na luta anti-colonial.
Pela primeira vez, na era moderna
angolana, um grupo de intelectuais
ousa clarificar a situação interna do
país, e lança o grito: “Vamos descobrir Angola”.
A rejeição dos pretensos valores
coloniais obriga estes jovens a identificarem-se com os verdadeiros
valores nacionais, cumprindo assim
com o primeiro dever de raiz. Pela
primeira vez a cultura vai servir de
facto de base para as nossas legítimas e justas reinvindicações de
liberdade e de independência nacional.
Esta etapa, marca o período da
nossa recusa da assimilação cultural portuguesa e do facto colonial.
A cultura serviu de elo de ligação
entre os centros urbanos e o mundo
rural, serviu de mobilizador das
consciências nacionais durante o
intenso período de luta pela inde-
pendência nacional da pátria.
Hoje, na madrugada dum novo
milénio, com a pátria independente, mas infelizmente vivendo uma
situação trágica, devido à guerra
que o nosso país tem sido palco, é
necessário e imperioso que a cultura sirva de novo de catalisador para
a consolidação do processo de paz
em Angola. (... ...)
a diversidade étnica angolana
A grande riqueza de Angola
consiste de facto na diversidade
étnica dos seus povos Bantos e dos
povos não-Bantos que aí cohabitam: Kikongos, Kibundos, LundasKioko, Umbundos, Ganguelas,
Nhaneka-Humbe, Ambos, Hereros,
Xindongas e os representantes dos
povos não-Bantos como os:
Hotentote, Bochimanos, e os do
grupo Vatua, como os Cuissi e os
Cuepe, são de facto o nosso cimento para a unidade e a reconciliação
nacional com incidência muito particular para os nossos compatriotas
Kimbundus e Umbundos, confinados apenas no espaço nacional
angolano, dentro das fronteiras
actuais herdadas da colonização.
A sobreposição da cultura euro-
LATITUDES
n° 3 - juillet 98
peia e da cultura africana está na
base de muitos mal-entendidos que
podem explicar a divisão e a guerra que dividem hoje o país e a
nação. Quando os portugueses chegaram a Angola, os angolanos estavam à procura das vias conducentes
à unidade nacional, através dos
contactos entre os reinos do Congo,
da Matamba, e de outros reinos
existentes no território que constitui hoje a Républica de Angola.
Esta procura da unidade nacional,
através da concertação e do diálogo, pelas alianças e os casamentos
entre os membros dos diversos reinos existentes no território, não foi
levada até ao fim porque os portugueses com a política de dividir
para reinar, impuseram a divisão e
semearam a discórdia. É assim que
assistimos infelizmente a um facto
que mancha de vergonha a história
da luta de resistência em Angola à
penetração colonial portuguesa,
quando a rainha Jinga é combatida
pelo seu próprio irmão! Analogias
com certas situações vividas infelizmente nestes últimos anos na nossa
terra.
É pois fácil falar de guerras fraticidas em Angola, e considerar que
os angolanos sofrem de um mal
congenital, pois a Rainha que deu
o nome ao país é fruto da luta intestina no seio do seu próprio reino.
Tudo isto incita-nos a interrogarmo-nos sobre a questão de saber
se a tradição africana pode ainda
servir de base para a busca de um
mecanismo conducente para a paz
em Angola. A resposta parece dever
ser positiva na medida em que o
conteúdo da tradição africana
conduz inevitavelmente a essa
resposta e por outro lado porque
Angola tem condições para que o
diálogo inter-africano tenha a primazia na luta pela paz.
uma sociedade essencialmente
africana
A sociedade Angolana, como
dizia Agostino Neto, é essencialmente africana. O advérbio essencialmente serve aqui para pôr em
realce dois aspectos da tradição cultural angolana :
a) Mestiçagem cultural
Uma das provas da tolerância
da sociedade angolana é que ela
foi capaz de absorver as populações oriundas de outros continentes
LATITUDES
n° 3 - juillet 98
e de outras latitudes. Isto explica,
por um lado, a possibilidade de
convivência de populações de
regiões diversas e por outro lado a
possibilidade de desenvolvimento
e de reconhecimento da identidade de cada um.
b) Diversidade cultural
Os africanos sempre consideraram que nenhuma etnia ou raça
deveria ser considerada como sendo
superior ás outras. É assim que apesar das diferenças de cultura entre
as populações existentes no território sempre se pensou que uma cultura vale a outra da mesma maneira que os valores culturais podem
convergir no mesmo sentido.
primazia do diálogo africano na
luta pela paz
Se há divisão da nação angolana, que começou mesmo antes da
independência e se prolongou até
hoje, é porque os africanos em
geral e os angolanos em particular
não souberam procurar no seio das
suas próprias sociedades as vias e
os meios para o estabelecimento
de um diálogo fraternal entre as
partes beligerantes.
Angola não é o único país em
que filhos da mesma família combatem-se e morrem numa luta fraticida. A luta pelo poder no reino da
França, antes da Revolução Francesa,
no reino da Inglaterra, antes do reinado da rainha Vitória, ou no reino
de Portugal até ao reinado de D.
Manuel II demonstram claramente
que a luta pelo poder é uma luta
pela realização de ambições pessoais, muitas vezes em detrimento
da ambição nacional.
Em Angola, o que é preciso é
mudar a dinâmica da relação interpessoal e internacional. (... ...)
Termino juntado a minha voz à
voz calorosa e fraterna do Andiki,
grande poeta da minha geração,
que desde as Terras de Malanje,
onde se encontrava a viver, por
razões profissionais, enviou-me
para publicação em Luanda este
poema, inspirado pela beleza da
terra e pela hospitalidade das gentes
de Malanje.
“Vem cacimbo
estende teus dedos anulados sobre a minha carapinha,
derrama a tua inconsciente
tranquilidade sobre
a minha angústia submergida
Vem cacimbo
eu quero ver os cafeeiros
ao peso dos bagos vermelhos
endireita os troncos vencidos dos bambus
Coroa os cumes altos das serras do Bailundo
Limpa a visão empoeirada
dos combois que descem para Benguela,
Nimba poeticamente os horizontes dos caminhantes de Angola
Vem cacimbo
Debruça-te cuidadosamente sobre as plantas da madrugada
Destrói a angústia resignada
das gentes da minha terra
Abre-lhes os horizontes
dos cantos de esperança
Vem cacimbo
Derrama a tua inquieta saciedade sobre a minha natureza
A esta hora empoeirada
com o barulhos das esquinas
Com o cheiro a óleo sujo
dos automóveis
E com a visão daquele nosso amigo cujo ordenado são
quinze escudos
diários
Irremediavelmente caído sobre a grama do jardim
O cacimbo
Eu quero percorrer teus campos sossegados
Orquestrados pela alegria do beija-flor »
Para que avance a Primavera !”
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