Variações sobre o poder
MIGUEL REALE
Segundo a Teoria Tridimensional do Direito, tal como a venho expondo em vários livros,
notadamente na 5.ª edição do que tem aquele título (Editora Saraiva, 1994), a experiência
jurídica é constituída por um processo dinâmico e concreto de modelos normativos, os quais
representam a integração de fatos sociais segundo múltiplos valores.
O ordenamento jurídico não é, pois, formado por uma série de normas ideais, em função das
quais os fatos vão valorativamente se desenvolvendo, mas sim uma realidade concreta de três
dimensões que desde o início se correlacionam em unidade plural.
Fatos, valores e normas se coordenam em unidades concretas de ação, as quais se confundem
com a própria experiência jurídica. Tais unidades são de natureza histórico-cultural de
conformidade com uma dialética de complementaridade, caracterizada pela oposição e
polaridade dos elementos que a compõem.
A essa luz, os fatos sociais, que estão na base das regras de direito, não se explicam uns pelos
outros de maneira empírica, segundo relações causais de caráter determinista, mas são o
resultado de valorações daqueles fatos na forma de estruturas normativas, ou, por outras
palavras, de modelos jurídicos, cujo sentido é dado pela integração dialética desses três
elementos.
Ora, se toda norma jurídica representa sempre uma integração de fatos segundo valores, é o
caso de perguntar como é que essa integração se realiza, e qual é a sua razão determinante. É
aqui que se põe a problemática do poder.
O poder tem duplo significado. Ora significa auctoritas, ou seja, o mero poder ou comando
do Estado no exercício de sua soberania, tanto nas relações internas como nas internacionais;
ora se refere à força que, com a anuência da coletividade, preside o surgimento dos modelos
jurídicos.
Fazendo abstração do poder como soberania - matéria de estudo da Teoria do Estado, ou do
Direito Constitucional -, vou- me limitar a apreciar o poder como elemento de conexão no
processo de formação do direito, observando que, quando um determinado número de valores
incide sobre o fato social, dá lugar a várias soluções normativas (por exemplo, vários projetos
de lei), uma das quais se converte em norma legal, devido à escolha decisória do Poder.
Como se vê, a opção do poder no Estado de Direito não é arbitrária, mas ocorre no âmbito de
um processo axiológico global.
Os juristas apegados à compreensão sociológica do Direito entendem que o processo
nomogenético resulta da evolução social qua talis, em razão do determinismo causal que lhes
seria inerente e que vincularia fatos e valores contrapostos em uma solução normativa. Tudo
estaria, em suma, sociologicamente traçado.
Por outro lado, há a solução normativista integral de Hegel, para quem a regra jurídica se põe
de per si, pois "o que é vale e o que vale é", desenvolvendo-se dialeticamente o processo
normativo, no qual o poder está imanente, dando preeminência ao Estado.
Foi meditando sobre as características do valor (polaridade, realizabilidade, historicidade,
etc.) que, no início da década de 1950, contestei a posição idealista de Max Scheller e Nicolai
Hartmann, que consideravam os valores objetos ideais. Minha tese fundamental é a de que o
valor não pertence ao "mundo do ser", mas sim ao do "dever ser", de conformidade com a
doutrina de um novo culturalismo, de acordo com o qual os objetos culturais "são enquanto
devem ser".
Pois bem, a realizabilidade dos valores levou-me a compreender que, no processo
nomogenético, o valor abre um leque de soluções possíveis, uma das quais é escolhida e
positivada pelo poder, tornando-se norma cogente.
À primeira vista, poder-se-ia entender que, na criação de um modelo jurídico, haveria a
interferência de um quarto fator, o poder, mas este não opera "ab extra", mas na imanência da
oposição fato-valor, sendo a norma o resultado dessa integração fático-axiológica.
Se o poder fosse concebido como simples auctoritas, seria esta, com seu arbítrio ou
discricionariedade, a senhora absoluta da nomogênese jurídica, recaindo-se no autoritarismo
de Hobbes, de acordo com o qual a opção do legislador por este e não por aquele outro
projeto de lei constituiria um ato de escolha unilateral e arbitrário, e não uma posição tomada
em função dos livres contrastes havidos entre fatos e valores, como é próprio da democracia.
Por outras palavras, a meu ver, a decisão do poder ocorre no âmbito do processo
nomogenético, e representa o triunfo de um dos caminhos decorrentes do valor perante os
fatos. No Estado de Direito a escolha não resulta de mero arbítrio, mas de um livre cotejo de
valorações em sintonia com os fins visados pela comunidade.
Essa compreensão do poder como momento do processo nomogenético se torna mais
transparente quando colocamos o problema da normatividade em razão das fontes do Direito,
mostrando que assiste razão a Burdeau, apoiado por Goffredo Telles Júnior, quando escreve
que "o poder é a energia da regra".
Devem-se a Hans Kelsen a renovação e o alargamento do conceito de normatividade,
mostrando que a norma legal não é a única fonte do Direito, por mais que seja relevante a
função do legislador na emanação das regras jurídicas, visto como outras surgem, como as
estabelecidas por uma sentença (direito jurisdicional) ou pelos costumes (direito
consuetudinário) ou, ainda, por acordo de vontades, como ocorre num contrato (direito
negocial).
Nesses quatro processos de instituição de regras jurídicas há interferência, respectivamente,
do poder legislativo, do poder jurisdicional, do poder costumeiro e, finalmente, do poder
negocial.
O paradoxo da Teoria Pura do Direito kelseniana, na sua versão originária, consistiu na sua
identificação inicial entre Estado e Direito, só possível numa concepção idealista do
ordenamento jurídico, concebido como uma série hierárquica de modelos ideais, cuja
validade dependeria de uma norma transcendental, hipoteticamente pensada. Nessa fase
inicial, o seu livro Teoria Geral do Estado era, ao mesmo tempo, Teoria Geral do Direito e do
Estado.
Mais tarde, quando ele, fugindo do totalitarismo nazista, se refugiou nos Estados Unidos da
América, entrou em contato com o Common Law, que é de natureza consuetudinária e
jurisdicional, sendo obrigado a rever sua posição, tanto assim que, em lugar de sua obra
principal, Hauptprobleme des Staatsrecheslehere (Problemas Fundamentais da Doutrina
Jurídico-Estatal), Tubinga, 1911, publicou novo livro, significativamente denominado Teoria
Geral do Direito e do Estado, Cambridge, 1945, que ele teve a gentileza de enviar-me. A
palavra Staatsrechslehere expressa bem a identidade kelseniana do Direito com o Estado, tal
como era exposto na primeira versão da Teoria Pura do Direito, que, como vimos, ele depois
alterou, continuando, porém, a ver o Estado e o Direito como conjuntos distintos de normas,
ou seja, sem abandonar seu normativismo integral.
Kelsen acaba, todavia, reconhecendo que o processo nomogenético não se desenvolve apenas
no plano da validade, mas também no da eficácia, a qual pressupõe, a meu ver, a
interferência do poder, ao optar por um dos valores em jogo. O Estado e o Direito não são,
em suma, meras configurações normativas, exatamente porque há o poder que decide em
função dos fins que presidem o ordenamento jurídico, sem o que não haveria legitimidade.
É no âmbito dessa compreensão que se demonstra que o poder não é um fator arbitrário que
se põe "ab extra", mas sim como momento da nomogênese jurídica, sendo a decisão tomada
em face e em razão de uma multiplicidade de valores livremente estabelecidos como é
próprio do Estado de Direito.
Miguel Reale, jurista, filósofo, membro da Academia Brasileira de Letras, foi reitor da USP
E- mail:
[email protected]
Home
pages:
www.miguelreale.com.br
e
www.realeadvogados.com.br
Download

Variações sobre o poder