PLASMAFERESE PROLONGADA NUM CASO DE SÍNDROME HEMOLÍTICO URÉMICO
ATÍPICO
Autores:
Bernardo O. Faria, Médico Interno Complementar de Nefrologia, Unidade de Nefrologia e Diálise
Jesús Garrido, Médico Especialista em Nefrologia, Unidade de Nefrologia e Diálise
Tânia Sousa, Médico Especialista em Nefrologia, Unidade de Nefrologia e Diálise
Carlos Soares, Médico Especialista em Nefrologia, Unidade de Nefrologia e Diálise
Sérgio Lemos, Médico Especialista em Nefrologia, Unidade de Nefrologia e Diálise
Délia A. Osuna, Médico Especialista em Nefrologia, Unidade de Nefrologia e Diálise
Edgar L. Gomes, Médico Especialista em Nefrologia, Unidade de Nefrologia e Diálise
Instituição:
Hospital de São Teotónio, E.P.E.
Avenida Rei Dom Duarte, 3504-509 Viseu – Portugal
Autor Correspondente:
Bernardo Faria
Avenida Marechal Gomes da Costa, 649
4150-Porto, Portugal
Tel: 00351936995552
E-mail adress: [email protected]
Os autores declaram não ter nenhum conflito de interesse
Contagem palavras: 1794
PLASMAFERESE PROLONGADA NUM CASO DE SÍNDROME HEMOLÍTICO URÉMICO
ATÍPICO
Abstract
O síndrome hemolítico-urémico pode apresentar-se clínicamente sob a forma clássica associada a
diarreia, cuja patogénese por toxinas Shiga-like produzidas por bactérias está bem definida, e a forma
atípica, não associada a diarreia, sendo a sua etiopatogenia menos clara. A infecção urinária está descrita
como possível causa de SHU.
Apresentamos o caso de uma doente do sexo feminino, de 50 anos, internada com diagnóstico de
insuficiência renal aguda obstructiva e síndrome febril. Foi submetida a desobstrução mecânica e iniciou
antibioterapia por suspeita de urosepsis. O estudo efectuado no internamento revelou a presença de
insuficiência renal, anemia hemolítica coombs negativa, trombocitopenia, elevação da LDH e presença de
esquizócitos no esfregaço sanguíneo, que sugeriam o diagnóstico de síndrome hemolítico-urémico.
Iniciou tratamento urgente com plasmaferese diária e hemodiálise. Recuperou função renal após 20 dias
de tratamento embora com persistência da trombocitopenia e da elevação da LDH pelo que se associou
corticoterapia. Apresentou melhoria analítica lenta, necessitando de 35 sessões de plasmaferese durante 2
meses de internamento. Após 1 ano de seguimento em consulta, não houve recidiva apesar de várias
infecções urinárias por Escherichia coli, confirmando-se a recuperação completa da função renal.
O síndrome hemolítico-urémico atípico é uma patologia complexa de difícil tratamento. É importante a
pesquisa de foco infeccioso alternativo ao tracto gastrointestinal, nomeadamente o tracto urinário, nos
casos de síndrome hemolítico-urémico com apresentação atípica. A plasmaferese prolongada mostrou
neste caso uma relação custo-benefício favorável dada a eficácia na resolução do quadro agudo e na
recuperação da função renal
Palavras-chave: Infecção tracto urinário; 2 meses; Escherichia coli; Insuficência renal
1. Introdução
O síndrome hemolítico-urémico (SHU) caracteriza-se pela tríade de anemia de hemolítica
microangiopática, trombocitpenia e insuficiência renal aguda (IRA). Apesar do SHU poder ter uma
grande variedade de etiologias, a maioria dos casos está associada a infecção entérica por bactérias
produtoras de toxinas Shiga-like (Stx), sendo a mais comum a Escherichia coli (E.Coli) produtora de Stx
(STEC) como a E. Coli O157:H7. O mecanismo patogénico proposto para estas toxinas é por lesão
endotelial da pequena vasculatura do rim, tracto gastrointestinal, sistema nervoso central e outros órgãos.
De todos os serotipos de STEC só alguns estão associados ao SHU ou colite hemorrágica – estes são
designados de E.coli enterohemorrágica (EHEC). O SHU associado a EHEC apresenta geralmente um
pródromo diarreico. É o SHU associado a diarreia (SHU D+), a forma clássica, muito comum nas
crianças (1)
A patogénese do SHU não associado a diarreia (SHU D-) é menos clara, podendo estar relacionada com
outras infecções para além da entérica, utilização de medicamentos, doença neoplásica, gravidez,
vasculites, doenças vasculares do colagénio, deficiência da prostaglandina I2 e formas familiares. A
infecção urinária e posterior bacterémia por microorganismos produtores ou não de toxinas Shiga-like
está descrita como possível causa de SHU (1,2)
A plasmaferese é o tratamento inicial de escolha no SHU, exceptuando algumas situações, como no SHU
em crianças, ou o SHU associado a toxicidade farmacológica dose dependente (ex: mitomycina C) ou a
transplante alogénico de medula óssea. Não há critérios clínicos objectivos que definam a duração da
plasmaferese. A decisão de parar implica a remissão (baseada sobretudo na contagem de plaquetas), mas
é empírica. A recuperação da função renal é imprevisível e frequentemente lenta, podendo ser incompleta
(3).
2.Caso Clínico
Trata-se de uma doente do sexo feminino, de 50 anos, sem antecedentes patológicos relevantes. Recorre
ao serviço de urgência (SU) do nosso Hospital por febre, náuseas, vómitos e lombalgia à direita. No
estudo analítico apresenta discreta leucocitose, trombocitopenia ligeira – 132000 plaquetas, creatinina
(pCr) plasmática de 1,3g/dL e PCR de 30,4mg/dL. (Tabela 1). A ecografia renal revela acentuada ectasia
pielo-calicial bilateral, mais importante à direita. É-lhe proposto internamento, que a doente recusa, sendo
medicada para o ambulatório com ceftriaxone 2g/dia. Recorre de novo ao SU três dias depois por
agravamento do quadro (18000 plaquetas; pCr 2,2g/dL). Foi submetida a cirurgia urológica urgente com
ureterolitoextracção à direita e colocação de duplo “J” bilateral, e iniciou antibioterapia com meropenem
por suspeita de urosepsis.
No sexto dia de internamento foi solicitada a observação da Nefrologia por agravamento da insuficiência
renal (IR) com oligúria, anemia e trombocitopenia. O estudo efectuado revelou a presença de anemia
hemolítica coombs negativa e de esquizócitos no esfregaço sanguíneo, que associado a níveis de LDH de
6877U/L sugeriam o diagnóstico de anemia microangiopática/síndrome hemolítico-urémico (SHU).
Iniciou tratamento urgente com plasmaferese diária com troca de 1 volume plasmático com plasma fresco
congelado. Necessitou de 6 sessões de hemodiálise no internamento tendo efectuado a última sessão ao
20º dia de internamento após recuperação da função renal. Após a boa resposta inicial, a persistência da
trombocitopenia e a nova elevação da LDH justificou a associação de corticóide (prednisolona 60mg/dia).
Na 7ª semana de internamento após melhoria analítica lenta a plasmaferese passou a ser efectuada em
dias alternados. Dois meses e 35 sessões de plasmaferese depois a doente teve alta (após vários dias sem
realizar plasmaferese) apresentando valores normais de LDH e recuperação quase total da
trombocitopenia, com orientação para seguimento em consulta. (Tabela 1)
A recuperação completa do quadro clínico foi confirmada no seguimento em consulta, não se verificando
sinais de recidiva (apesar de vários episódios de novo de infecção do tracto urinário por E.coli). Um ano
após a alta a doente apresentava analiticamente: pU 51mg/dL; pCr 0,9g/dL; LDH 328; plaquetas 193000;
Hb-13,2g/dL
3.Discussão
O SHU atípico continua a ser uma patologia complexa de difícil tratamento. A plasmaferese está descrita
como eficaz na redução da mortalidade do SHU D+ (3,4), sendo superior à infusão de plasma isolada (5).
George GN preconiza a plasmaferese isolada com apenas a troca de 1 volume de plasma por sessão como
abordagem terapêutica inicial do SHU, estando indicada a corticoterapia (prednisolona 1mg/kg/dia) e/ou
o aumento para 1,5 volumes de plasma por sessão se há persistência ou exacerbação da actividade da
doença (avaliada sobretudo pela não recuperação da trombocitopenia)(3). No caso descrito observou-se
recuperação definitiva da trombocitopenia após introdução da corticoterapia nas doses acima descritas.
A resposta ao tratamento pode estar relacionada com a etiologia do SHU (3). Assim o SHU D+ ou o SHU
associado à terapêutica com ticlopidina ou quinino ou ainda à gravidez têm habitualmente necessidades
curtas de tratamento. Ao contrário, a evolução lenta e com exacerbações apesar da plasmaferese está
habitualmente associada ao SHU atípico, o que se confirmou no caso descrito.
A indicação para a manutenção da terapêutica com plasmaferese baseia-se fundamentalmente em dois
parâmetros: a existência de trombocitopenia e a presença de sinais de hemólise (avaliada principalmente
pelos níveis de LDH)(3). A decisão de suspender este tratamento é sempre difícil, tendo em conta o risco
de exacerbação da doença após cessar a plasmaferese versus o risco das complicações associadas a esta
técnica, que incluem as relacionadas com a cateterização central (infecção local ou sistémica, hemorragia,
pneumotórax, trombose do catéter) ou outras, como a trombose venosa, doeça do soro ou hipotensão.
Neste caso verificou-se que a realização intensiva e prolongada da plasmaferese resultou na remissão
completa da doença e recuperação da função renal, não se tendo verificado enhuma complicação
associada à técnica apesar do elevado número de sessões e tempo de cateterização a que a doente foi
sujeita. Observou-se também que a função renal foi o primeiro parâmetro a normalizar, ao contrário do
que está habitualmente descrito, que caracteriza a sua recuperação como lenta e por vezes
incompleta(3,6).
No SHU associado a doenças infecciosas, a infecção entérica por E. Coli produtora de verotoxina (como a
E. Coli O157:H7) é a causa mais comum (1).No entanto, no caso descrito, a doente desenvolveu HUS
após infecção urinária, sem diarreia concomitante. Esta é uma variante pouco frequente, tendo sido
descritos apenas 18 casos de SHU associado a infecção do tracto urinário (ITU) por E.coli., e sendo a sua
inclusão nos sistemas de classificação etiológica do SHU pouco focada (7). Esta baixa incidência,
associada ao facto de a E. Coli ser a principal causa de ITU pode ser explicada por um estudo no qual
não foram isoladas estirpes STEC entre 597 E.coli isoladas num elevado número de casos de ITU (8). A
pesquisa de ITU na abordagem etiológica do HUS não deve no entanto ser negligenciada, pois o seu
desconhecimento pode levar ao retardamento do diagnóstico e do início da antibioterapia, à pesquisa
desnecessária de outras possíveis etiologias, e a escolhas terapêuticas erradas, podendo afectar em último
caso a evolução clínica do doente
Referências
(1).Starr M, V. Bennett-Wood, AK Bigham, et al. Hemolytic-uremic syndrome following urinary tract
infection with enterohemorrhagic Escherichia coli: case report and review. Clin Infect Dis 1998 Aug;
27(2):310-5
(2).Chiurchiu C, Firrincieli A, Santostefano M et al. Adult nondiarrhea hemolytic uremic syndrome
associated with shiga toxin Escherichia coli O157:H7 bacteremia and urinary tract infection. American
Journal of Kidney Diseases 2003 Jan;41(1):E4
(3).George JN. How I treat patients with thrombotic thrombocytopenic purpura-hemolytic uremic
syndrome. Blood. 2000 Aug 15;96(4):1223-9. Review
(4).Dundas S, Murphy J, Soutar RL et al. Effectiveness of therapeutic plasma exchange in the 1996
Larnakshire Escherichia Coli O157:H7 outbreak. Lancet 1999; 354:1327-30
(5).Rock GA, Shumak KH, Buskard NA et al. Comparison of plasma exchange with plasma infusion in
the treatment of thrombotic thrombocytopenic purpura. Canadian Apheresis Study Group. N Engl J Med
1991; 325:393-7
(6).Vesely, SK, George, JN, Raskob, GE. Long term clinical outcomes of thrombotic thrombocytopenic
purpura-hemolytic-uremic syndrome (TTP-HUS) among different patient groups. Blood 1999; 94:15a
(7).Nguyen QV, Descombes E. Etiology-based classification of hemolytic uremic syndrome/thrombotic
thrombocytopenic purpura. What about hemolytic uremic syndrome associated with urinary tract
infections?. Kidney Int. 2007 Mar;71(5):466
(8).Johnson JR, Jerome C, Boster DR et al. Analysis of urinary Escherichia coli isolates for ability to
produce Shiga toxin. J Clin Microbiol 2002 40:2247-2248
ANEXO
TABELA 1: Evolução analítica no internamento
Dias de
Internamento
Parâmetros
analíticos
Hb
Plaquetas
Ureia
Creatinina
LDH
1º
6º
11º
21º
35º
43º
60º
1 ano
depois
12,7
1320
00
59
1,3
7,5
78000
6,8
75000
10,6
62000
9,8
50000
10,7
116000
247
6,2
6877
199
7,2
1614
10,5
10300
0
142
4,0
501
75
0,7
618
66
0,9
481
53
0,9
437
13,2
19300
0
51
0,9
328
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