REFLEXÕES SOBRE A REFORMA DO
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Por ROBERTO DAS CHAGAS MONTEIRO
Curitiba
2001
Aos incumbidos da ingente e sublime
missão de elaborar um novo Código
de Processo Penal para o Brasil, com a
firme esperança de que a Providência
Divina os ilumine e oriente
O Autor.
APRESENTAÇÃO
Este trabalho pretende oferecer uma contribuição a todos
aqueles que, nos dias que correm, se interessam pelas questões relacionadas com a
reforma do Código de Processo Penal, atualmente em discussão por iniciativa do
Ministério da Justiça.
Embora tenha adotado, em linhas gerais, a metodologia de
trabalho científico, a presente publicação se reveste, em muitos dos seus trechos,
de um estilo muito assemelhado ao de uma crônica, ao defender teses
tradicionalmente polêmicas da processualística penal brasileira, como é o caso da
extinção do inquérito policial, da adoção do juizado de instrução e do
estabelecimento do sistema da oralidade plena no país.
Sem embargo de ser polêmicas - e apesar de freqüentemente
rejeitadas e sequer ser discutidas com profundidade, em face de posturas
conservadoras motivadas por interesses nitidamente corporativistas - as propostas
ora apresentadas são o resultado da experiência vivida pelo Autor na condução de
inúmeros inquéritos policiais, ao longo de vinte e seis anos no exercício do cargo
de delegado de polícia federal, sendo aqui defendidas e apontadas como soluções
eficazes para a situação de colapso total por que hoje atravessa a Justiça Criminal
no Brasil.
Se a leitura deste texto tiver o condão de despertar o interesse
dos estudiosos para o debate das questões e propostas de soluções aqui
apresentadas, decerto terá sido atingido o desiderato colimado pelo Autor, ao tomar
a decisão de o escrever.
O Autor.
REFLEXÕES SOBRE A REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Por ROBERTO DAS CHAGAS MONTEIRO 1
“Nada significa tanto para uma profissão como sua capacidade
para exercer a autocrítica.”
(BARTOLOMÉ DE VEDIA, jornalista)
1. Intróito
O mundo jurídico brasileiro encontra-se ultimamente presa de uma ampla
discussão sobre a reforma do atual Código de Processo Penal, o qual, no dia primeiro do ano
vindouro, completará sessenta anos de vigência.
Trata-se, portanto, de um código sexagenário cuja reforma se impõe menos
pela idade que ele ostenta do que propriamente pelo fato de ser um diploma legal de inspiração
abeberada nas cosmovisões autoritárias da época de sua elaboração, incompatíveis com o ideário
democrático e de respeito aos direitos humanos, que, felizmente, hoje viceja no Brasil.
Não é necessário pesquisar os grandes mestres de nossa doutrina
processual penal para identificar o perfil autoritário do código vigente, bastando para isso ler a
Exposição de Motivos que o apresenta, onde o Ministro FRANCISCO CAMPOS, sem tapulhos,
logo no intróito, expressa-se da seguinte forma, verbis:
“De par com a necessidade de coordenação sistemática das regras do processo
penal num Código único para todo o Brasil, impunha-se o seu ajustamento ao
objetivo de maior eficiência e energia da ação repressiva do Estado contra os
que delinqüem. As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus,
ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidência de provas, um tão
extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna,
necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo
à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do
interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a
contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum.”
Esse trecho da Exposição de Motivos, sobre demonstrar a natureza
rigorosa do código que apresentava, amolda-se com muita perfeição ao discurso daqueles que,
neste início do Terceiro Milênio, ainda enxergam no aumento da ferocidade do Estado a
ferramenta jurídica eficaz para enfrentar o complexo fenômeno da criminalidade.
Contudo, o fracasso do atual código em refrear o avanço da criminalidade
no Brasil é a melhor prova da falta de acerto da “Weltanschauung” que o influenciou.
1
O autor é delegado de polícia federal em atividade.
1
Somos uma sociedade que, em 1988, optou pelo primado da cidadania e da
dignidade da pessoa humana ao inserirmos tais princípios como fundamentos do Estado
Democrático de Direito, logo no artigo primeiro de nossa Constituição.
E se acolhemos esses princípios foi porque compreendemos, em boa hora,
que o autoritarismo e o desrespeito à dignidade humana não solucionavam os nossos graves
problemas sociais e tampouco nos outorgavam o cobiçado passaporte de ingresso no chamado
Primeiro Mundo.
No campo processual penal, o que realmente legamos do regime de
exceção foi uma polícia com dificuldades invencíveis de colher elementos de prova sem o uso de
métodos pouco ortodoxos de trabalho e uma execução penal caolha, que vem servindo de
fermento e adubo aos já conhecidos comandos vermelhos e aos novéis primeiros comandos da
capital, verdadeiros filhos e netos bastardos de uma Lei de Segurança Nacional de triste
memória.
Dessarte, quando hoje, no âmbito das acaloradas discussões a respeito da
reforma processual penal ora impulsada pelo Ministério da Justiça, ressuscitam idéias rançosas
como as de, por exemplo, em nome de uma pretendida melhor eficiência, conferir maiores
poderes ao aparato repressor em detrimento dos direitos e garantias fundamentais do cidadão –
mesmo quando se trate de um cidadão que comete crimes – é do melhor alvitre que essas teses
sejam de pronto exorcismadas, porquanto não somente se demonstraram totalmente ineficientes
quando foram adotadas, como também porque estorvam a nossa árdua marcha para a “sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos” sonhada no Preâmbulo de nossa Carta Magna.
Causa tristeza verificar a quantidade de pessoas com formação jurídica,
algumas delas até dotadas de grande conhecimento do Direito, que defendem que se confira à
polícia cousas como, por exemplo, o direito de, sem autorização judicial, proceder buscas na
casa de suspeitos ou bisbilhotar a correspondência e as comunicações telefônicas das pessoas.
Esse entendimento míope, além de desservir à sedimentação da democracia
em nosso país, contribui para perpetuar a incapacidade profissional de um ainda considerável
número de policiais, que não conseguem colher elementos de prova para uma investigação senão
pela cômoda utilização de métodos ilícitos e clandestinos.
O primado do respeito ao cidadão e aos direitos humanos não deve, a toda
evidência, limitar-se ao trabalho da polícia.
Na esfera judicial - mais do que em qualquer outra, eis que dotada do
poder de decisão sobre a liberdade do suspeito – a lei processual deve coibir com veemência
toda e qualquer prática ou instituto que fira ou ponha em risco os direitos e garantias assegurados
aos processados pelo artigo 5.º da Constituição Federal.
Nenhuma emergência de segurança pública, por pior que seja, justifica o
vilipêndio daqueles direitos e garantias fundamentais, cabendo aos que hoje estão encarregados
da árdua tarefa de reformar o Código de Processo Penal zelar pela incolumidade desses
princípios, cuidando de fazer ouvidos de mercador aos cânticos de sereia daqueles que
pretendem que a sociedade brasileira obtenha mais segurança em detrimento da sua liberdade.
2. Reforma ou código novo, eis a questão
Seguindo o paradigma do direito continental europeu, o Brasil optou desde
os primórdios de sua evolução jurídica pela legislação codificada.
Somos, a exemplo da Alemanha, França e Itália, um país de códigos.
2
Dentro dessa realidade, sempre que um código apresenta sinais de
desatualização, ou uma falta de capacidade para atender eficazmente às demandas do sempre
mutante fato social, surge a necessidade de sua mudança e, inevitavelmente, vem à baila o velho
dilema sobre se se deve fazer um novo código “de fond en comble”, ou se apenas uma reforma
parcial do código em vigor.
Trata-se, evidentemente, de uma questão muito discutível e problemática,
sobre a qual os juristas do momento opinam num ou noutro sentido, sempre invariavelmente
respaldados por argumentos de maior ou menor rigor doutrinário e científico.
O jurista ALFREDO BUZAID, ao redigir, em 1972, a Exposição de
Motivos do atual Código de Processo Civil, abordou esse sensível tema com a minúcia e a
autoridade intelectual que lhe eram peculiares, dando-lhe tal prioridade a ponto de ter a singular
cautela de, logo após o vocativo endereçado ao Excelentíssimo Senhor Presidente da República,
transcrever a seguinte citação, que serviria de autêntico “Leitmotiv” para a defesa da opção que
fez pela elaboração de todo um novo código de processo civil para o Brasil:
“Convien decidersi a una riforma fondamentale o rinunciare alla speranza di un
serio progresso”. (CHIOVENDA, La riforma del procedimento civile, Roma,
1911, p. 4).
Dentro desse entendimento, BUZAID explicou, ao longo daquela bem
elaborada exposição, os motivos que o levaram a impulsionar a feitura de um novo código,
convencido, segundo ele próprio afirma, de que “era mais difícil corrigir o Código velho do
que escrever um novo”.
Essa opção parece ser a mais indicada a seguir, sempre que a quantidade e
o porte das mudanças a ser inseridas num código comprometam a unidade dos princípios
doutrinários que o regem, correndo o risco de o transformar, ao final de um árduo trabalho, numa
colcha de retalhos ou num ente deforme como se produzido por algum Dr. Frankenstein da
ciência do Direito.
No caso específico do atual Código de Processo Penal Brasileiro, está mais
do que indicada a sua total substituição por um novo, pelas seguintes razões, entre inúmeras
outras:
-
o fato de a sua orientação doutrinária profundamente autoritária ser incompatível com a atual
realidade institucional do país, conforme se falou mais acima;
-
a sua redação de muito má qualidade, que, entre outras cousas, freqüentemente emprega
palavras diferentes para se referir ao mesmo instituto, além de utilizar aqui e ali verdadeiros
teratóides jurídicos, como é o caso dos seus artigos 4.º, 250 e 298, que atribuem “jurisdições”
às autoridades policiais;2
-
o fato de ele já representar, desde algum tempo, uma autêntica colcha de retalhos, em
decorrência das numerosas mudanças que sofreu ao longo desses seus sessenta anos de
existência, como é o caso daquelas introduzidas pela Lei n.º 263, de 23.2.48 (que modificou a
competência do Tribunal do Júri), pela Lei n.º 1.408, de 09.8.51 (que prorrogou o
vencimento dos prazos judiciais), pela Lei n.º 1431, de 12.9.51 (que lhe alterou o artigo 725),
pela Lei n.º 4.611, de 02.4.65 (que alterou as normas processuais para os crimes de homicídio
culposo e lesão corporal culposa), pela Lei n.º 6.416, de 24.5.77 (que lhe alterou vários
dispositivos e outros tantos do Código Penal), pela Lei n.º 6.900, de 14.4.81 (que lhe
acrescentou um parágrafo único ao artigo 20), pela Lei n.º 7.780, de 22.6.89 (que lhe
2
Somente muito recentemente, mediante a Lei n. º 9.043, de 09.5.95, corrigiu-se essa anomalia no que se refere ao
artigo 4.º, passando o texto do referido artigo, a partir de então, a ostentar a palavra “circunscrição”, em lugar de
3
“jurisdição”. Quanto aos outros dois artigos não houve qualquer alteração.
modificou os artigos 325 e 581), pela Lei n.º 8.038, de 28.5.90 (que instituiu normas
procedimentais para processos perante o STJ e o STF), pela Lei n.º 8.072, de 25.7.90,
alterada pela Lei n.º 8.930, de 06.9.94 (que dispõe sobre os chamados crimes hediondos),
pela Lei n.º 8.658, de 16.5.93 (que lhe revogou os artigos 556 a 562), pela Lei n.º 8.699, de
27.8.93 (que lhe acrescentou um parágrafo ao artigo 24), pela Lei n.º 8.701, de 01.9.93 (que
lhe acrescentou um parágrafo ao artigo 370), pela Lei n.º 8.862, de 28.3.94 (que lhe deu nova
redação aos artigos 6.º, incisos I e II; 159, caput e § 1.º; 160, caput e parágrafo único; 164,
caput; 181, caput ; e 189), pela Lei n.º 8.866, de 11.4.94 (que trata da prisão administrativa),
pela Lei n.º 8.906, de 04.7.94 (o Estatuto da Advocacia, que contém dispositivos
processuais), e pela Lei n.º 9.099, de 26.7.95 (que dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis
e Criminais). Tudo isso sem falar no seu Livro IV, que foi totalmente modificado com o
advento da Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210, de 11.7.84);3
-
as profundas mudanças sofridas pela sociedade brasileira desde o longínquo ano de 1942;
-
a evolução do perfil, do volume e da intensidade da criminalidade brasileira durante esse
tempo;
-
a revolução acontecida nos cartórios judiciais com a introdução das telecomunicações e da
informática nos seus afazeres, a partir das duas últimas décadas; e
-
as sensíveis mudanças de concepção verificadas, em todo o mundo, no Direito Penal e na
Processualística Penal, ao longo desses sessenta anos.
Diante dessa inafastável realidade, somente o febril desejo político de se
querer apresentar uma apressurada resposta legal para a enfermiça situação em que se encontra o
processo e a justiça penal no Brasil pode justificar a opção de se inserir, uma vez mais, simples
remendos no vetusto surrão do Código em vigor.
Essa emenda bem pode sair pior do que o soneto, conforme observou com
muita lucidez o processualista pátrio LOPES DA COSTA, citado por BUZAID na anteriormente
mencionada Exposição de Motivos do atual Código de Processo Civil.
Também a esse respeito, o Professor NILZARDO CARNEIRO LEÃO,
conceituado processualista pernambucano, ao comentar, num debate promovido em agosto de
1993 pelo Tribunal Regional Federal da 5.ª Região, uma dessas tentativas de remendar o Código
de Processo Penal feitas pelo Ministério da Justiça, fez um comentário jocoso, mas realista: “o
que se pretende fazer é uma cirurgia plástica num código velho: coloca-se um silicone aqui e ali
e, daqui a pouco, cai tudo”. 4
♦ ♦ ♦ ♦ ♦
3. Sobre a manutenção do inquérito policial
Sempre que se faz uma incursão nos temas que deverão ser objeto de
tratamento e debates no decorrer da reforma – ou, se Deus quiser, da redação de um novo e
moderno Código de Processo Penal para o Brasil – traz-se invariavelmente à colação a questão
da manutenção ou não do inquérito policial como fase preliminar à apreciação do fato criminoso
pela Justiça na ação penal.
3
Cf. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 12.ª ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 38.
CARNEIRO LEÃO, Nilzardo. TRF promove reunião para debater novo Código de Processo Penal, Diário de
4
Pernambuco, Recife, PE (10.ago.1993), p. B 3.
4
Trata-se de assunto antigo e controverso, gerador de intensas e infindáveis
discussões, onde por um lado militam os defensores do chamado juizado de instrução ou
instrução única, que o Brasil, diga-se de passagem, nunca sequer experimentou usar e, por outro,
os adeptos da dupla instrução, entusiasticamente apoiados, dentre vários outros motivos, por
palpáveis interesses corporativistas dos delegados de polícia de carreira.
O tema foi abordado de forma sucinta no texto da Exposição de Motivos
do atual Código de Processo Penal, onde FRANCISCO CAMPOS lhe dedicou o tópico
intitulado “A CONSERVAÇÃO DO INQUÉRITO POLICIAL”.
Naquele tópico, o ilustre expositor justifica a manutenção do inquérito
policial, baseando-se fundamentalmente em dois argumentos: primeiro, a extensão territorial e a
dificuldade das comunicações no Brasil daquela época não recomendavam a adoção do juizado
de instrução; e segundo, o inquérito ou instrução provisória5 seria uma garantia para uma maior
serenidade no julgamento, evitando-se os inconvenientes dos julgamentos apressados que
caracterizam o juizado de instrução, onde os juízes decidem sob o calor da recentidade dos
acontecimentos e “a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata
visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas”.
Sem querer polemizar, pois como se disse mais acima o assunto é muito
controvertido, convém ressaltar que atualmente ambos argumentos não resistiriam a uma análise
ainda que superficial.
No caso do primeiro deles, o Brasil de hoje não é mais aquele de 1942,
pois a globalização e a Internet permitem a qualquer magistrado prescindir do lombo de um
jumento ou do singrar de uma piroga para se comunicar ou receber instantaneamente
comunicações dos mais distantes rincões de sua comarca.
Quanto ao segundo, impende lembrar que, embora o passar do tempo
permita uma decisão mais serena, ele apresenta, em contrapartida, o grave inconveniente de
concorrer para que se apague da memória dos protagonistas do fato delituoso detalhes
importantes para um convencimento mais preciso e um julgamento mais justo por parte do
magistrado, isso sem falar no detalhe de que o tempo sempre favorece e incentiva o
florescimento da negaça, da chicana e até mesmo da fraude processual. Mais modernamente,
com o abarrotamento dos cartórios, ele também contribui para a ocorrência da prescrição,
frustrando assim o ius puniendi do Estado.6
Ante o dilema de julgar emocionalmente contaminado pelo calor e a
repercussão de fatos recentes e sentenciar sobre acontecimentos longínquos reconstituídos com
base em vagas e imprecisas lembranças (borradas da memória graças, quase sempre, a
lentíssimos e intermináveis inquéritos policiais), deve existir um bom meio termo que concilie
essas duas situações tão antagônicas e permita ao juiz uma aplicação mais célere e precisa da
Justiça, como afinal de contas espera a sociedade e, acima de tudo, as vítimas do delito.
Impende também ressaltar que essa tradicional lentidão da Justiça Penal no
Brasil não se deve exclusivamente à exigência legal da existência do inquérito policial.
A gênese desse triste fenômeno reside precipuamente no fato de o Código
em vigor haver conservado o arcaico e burocrático sistema de procedimento escrito, que
vigorava no país desde o tempo colonial, trazido que foi pelas Ordenações Filipinas, as quais,
por sua vez, eram abeberadas no Direito Canônico.
5
Seria mais apropriado que ele houvesse utilizado a expressão instrução preliminar.
É fato cediço nos foros criminais brasileiros que os advogados mais hábeis não estão hoje em dia preocupados
com a apresentação de teses jurídicas mirabolantes para defender os seus clientes: tratam de, mediante intermináveis
recursos e morosas solicitações de diligências, levar o fato delituoso à prescrição, conseguindo dessa forma o
5
desiderato colimado de evitar que o processo resulte numa condenação.
6
A adoção desse sistema foi alvo de severa crítica por parte de
FREDERICO MARQUES, que assim se expressou, verbatim ac litteratim:
"Infelizmente, a comissão que elaborou o projeto que se transformou no atual
Código de Processo Penal não soube dotar o país de um estatuto moderno, à
altura das reais necessidades de nossa Justiça Criminal.
Permaneceu estacionária, por isso, a legislação processual penal, enquanto em
outros setores a renovação legislativa se operava em alto grau. Continuamos
presos, na esfera do processo penal, aos arcaicos princípios procedimentalistas
do sistema escrito. A oralidade ficou reservada apenas para o processo civil.
O resultado de trabalho legislativo tão defeituoso e arcaico está na crise
tremenda por que atravessa hoje a Justiça Criminal, em todos os Estados
brasileiros." 7
Nessas condições, a exemplo do apotegma “vale o que está escrito”,
adotado como lei suprema pelos bicheiros do Rio de Janeiro, o atual código viciou a mentalidade
judiciária brasileira numa absurda produção de papel, mediante a qual todo e qualquer ato ou
fato processual, para servir de suporte à verdade real e gozar de validade plena, tem que estar
escrito, assinado, certificado e invariavelmente carimbado pelos burocratas intervenientes.
O resultado dessa mentalidade foi a inundação dos cartórios e secretarias
das nossas varas criminais com uma quantidade infernal de papéis.
Essa conjuntura tornou-se particularmente dantesca com o recente advento
do computador, que, se por um lado facilitou a tarefa de produção de textos, tornando-a mais
fácil, fluida, amena e impecável, aposentando as hoje superadas máquinas de datilografia, por
outro trouxe consigo o efeito perverso de facilitar ainda mais a produção de papéis dentro da
Justiça.
Enquanto antes as limitações tecnológicas da velha máquina de escrever
inibiam os mais prolixos de enxundiar suas petições, arrazoados e sentenças com longas citações
doutrinárias ou jurisprudenciais, a nova tecnologia lhes põe à disposição um sem-número de
comandos que tornam tais peripécias uma tarefa rápida e fácil, ajudada por obedientes
impressoras, sempre prontas para produzir uma profusão de cópias, transformando em realidade
de tinta e papel os mais ousados sonhos que o redator projetou na telinha do computador.
Outra protagonista bastarda e não menos perniciosa dessa produção
avassaladora de papel foi a máquina fotocopiadora.
Praticamente inexiste inquérito policial ou processo criminal no país que
não esteja entupido de folhas inúteis produzidas por esse meio. É como se nossas autoridades
policiais quisessem demostrar trabalho mediante autos cada vez mais prenhes de fotocópias que
na quase totalidade das vezes não têm absolutamente nenhum valor probante, enquanto que a
prova material, não raro - qual agulha em palheiro - esconde-se no meio de milhares de papéis
que só servem para atrapalhar o manuseio dos autos.
Seria até salutar que os nossos delegados de polícia algum dia se
indagassem como é que as autoridades policiais dos anos 40 e 50 faziam as suas investigações
sem esse cômodo e espúrio recurso da fotocópia.
Essa facilidade e rapidez na produção de papéis veio, por outro lado,
acompanhada de uma maior celeridade nos trâmites, proporcionada pelos recursos da
informática e das telecomunicações, fazendo com que os funcionários de secretaria e juízes não
7
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 124-125, vol. I. 6
consigam dar vazão à incontrolável enxurrada de papéis que entram, tramitam e saem dos seus
escritórios e gabinetes.
A tecnologia incrementou consideravelmente a velocidade de produção de
papéis, mas a Natureza não aumentou, em igual proporção, a capacidade de leitura, assimilação e
análise das pessoas encarregadas de os utilizar.
A teratológica resultante de semelhante realidade pode ser constatada por
quem quer que se dê ao trabalho de entrar no cartório de qualquer vara criminal do Brasil e
observar as estantes, prateleiras, mesas e muitas vezes até cadeiras e pisos atopetados de papéis,
processos, apensos e amarrados, num espetáculo que chega a ser patético, principalmente se se
refletir que, por trás daquela desordenada papelada, está em jogo a liberdade de muitos seres
humanos e se se imaginar que, ainda que pare todos os seus afazeres normais de juiz criminal e
dedique todos os minutos do seu sempre dilatado horário de trabalho à exclusiva tarefa da leitura
de processos, o togado encarregado de decidir nunca irá conseguir ler tudo aquilo.
Assim, ao priorizar a forma sobre a essência, a nossa Justiça Penal
enveredou por uma alucinação monocrômica, que pontapeia a cidadania e os direitos humanos,
pondo em sério risco de naufrágio a ordem democrática.
Diante dessa realidade, seria injusto e até mesmo absurdo querer atribuir
exclusivamente à figura do inquérito policial o estado de morosidade e de falência generalizada
em que se encontra a Justiça Penal no Brasil, mas seria também desonesto deixar de admitir a
ponderável parcela de responsabilidade que ele tem nesse nefando processo de lentidão.
A propósito desse tema, pode-se dizer que o inquérito policial, nos moldes
como é feito hoje pelas polícias brasileiras, constitui-se numa peça gongórica e rebuscada, que
talvez fosse compatível com a “Belle Époque” , vivida no final do século XIX e início do século
XX, mas que nos dias que correm deste Terceiro Milênio, em plena era da computação e das
telecomunicações, na idade da realidade virtual, do raio laser e da fibra ótica, ele não se
compadece com as exigências e as necessidades do nosso tempo.
Observe-se que, na era do custo-benefício e do império da tão invocada
economia processual, o inquérito policial é uma peça meramente informativa, que, para ser
produzida, necessita do concurso mínimo de três pessoas: uma autoridade policial, para dirigir
as investigações; um escrivão, para formalizar (na realidade, pôr no papel) o que vai sendo feito;
e um agente ou detetive, para investigar.
Tal trilogia tem sido invariavelmente utilizada para apurar desde o furto de
uma galinha até o mais intrincado dos chamados crimes do colarinho branco.
O resultado disso é uma perda de tempo com formalismos, consistentes
amiúde em inúteis despachos e termos de movimentação, tudo em nome da desconfiança e da
imposta necessidade de as peças do inquérito passar de mão em mão para a realização de
diligências que, na maioria dos casos, poderiam estar concentradas numa única pessoa.
Alerta e preocupados com essa conjuntura, os dirigentes dos órgãos
policiais têm freqüentemente buscado uma solução na tentativa ilusória de dotar as delegacias
com efetivos cada vez maiores de delegados e escrivães.
Essa medida não tem dado bons resultados e, o que é pior, não tem
melhorado a qualidade intrínseca dos inquéritos nem diminuído a sua quantidade, pois não ataca
as causas do mal, mas tão-somente os seus efeitos, isto é, o aumento cada vez maior do número
de papéis e de inquéritos nas delegacias.8
8
Nas polícias civis estaduais, essa avalancha de papéis tem gerado nas autoridades policiais a adoção de
comportamentos da mais franca ilegalidade, como é o caso da costumeira praxe dos B.O.s (boletins de ocorrência), 7
O mesmo se diga de uma outra experiência pretensamente salvadora, a
chamada “informatização do inquérito” (que consiste na confecção das peças do inquérito por
meio de computador), adotada por certos organismos policiais melhor aquinhoados de verbas, e
que, como se viu mais acima, somente fez aumentar a velocidade de produção de papéis.
O resultado dessa conjuntura é que os inquéritos se arrastam
interminavelmente por anos nas delegacias9 e cartórios policiais, caindo numa vala comum de
marasmo, onde os casos mais importantes são relegados à mesma condição dos mais singelos,
somente sendo dali recuperados ou tratados com prioridade quando o clamor social, geralmente
ditado pelos veículos de comunicação social, obriga os delegados a uma atitude mais expedita.
Quando chegam finalmente à Justiça, os inquéritos policiais, muitas vezes
constituídos de calhamaços indigeríveis, não se prestam em sua maioria para servir de base para
uma denúncia pelo Ministério Público e, quando esta eventualmente se consuma, servem apenas
de peça informativa para o processo que se inicia, conforme prescrevem a lei, a melhor doutrina
e a mais remansosa jurisprudência.
Caberiam ante essa realidade as seguintes indagações: se é para figurar
como uma mera peça informativa num eventual e hipotético processo criminal, por que tanta
formalidade, tanto bizantismo e tanto rococó na confecção de um inquérito? Por que tanta
demora em levar o fato à apreciação do julgador?
A propósito dessas indagações, um certo chefe de polícia, com bem
vividos anos na atividade de polícia judiciária, revelou em conversa sobre o tema que, no seu
entender, era justamente essa a teleologia da burocracia do inquérito policial: fazer demorar a
apresentação do fato delituoso à Justiça.
Segundo ele, se vigorasse no Brasil um imediatismo de apresentação dos
fatos à Justiça Criminal, esta não daria conta da quantidade de casos que teria para julgar e as
cadeias e penitenciárias não teriam lugar para comportar tanta gente. Ao vigorar a morosa fase
do inquérito, com as suas demoras, formalidades e imperfeições, os elementos de prova
(principalmente testemunhais), vão-se diluindo com o tempo e, ao chegar o relato do fato
delituoso - já desprovido do clamor público e das emoções dos primeiros momentos - nas mãos
do juiz, fatalmente estarão criadas as condições para uma absolvição ou a aplicação de penas
bem mais amenas que permitam ao infrator continuar em liberdade.
Essa tese, apesar do cinismo de seu conteúdo, merece uma reflexão e uma
contestação, ainda que sumárias, porquanto tal política criminal, se porventura existente e tiver
guarida em mentes menos avisadas, esqueceria o detalhe de que, incentivando e fomentando a
impunidade, serviria de estímulo à prática do crime, que passaria a grassar de forma cada vez
mais desenvolta e ensandecida no seio da sociedade.
O crescimento exponencial da criminalidade no Brasil, nos últimos anos,
tem causas variadas e complexas que não cabem ser analisadas nos estreitos limites deste
documento, mas certamente entre elas figura a lendária morosidade da nossa Justiça Criminal,
ajudada em boa parte pela existência do inquérito policial.
segundo a qual as notícias de crimes de menor vulto (e até mesmo algumas de razoável importância, como é o furto
de um automóvel) são simplesmente registradas como uma ocorrência, que é mais tarde arquivada – sem a
correspondente instauração de inquérito policial – se não se constata a possibilidade de identificação da autoria.
9
No caso específico da Polícia Federal, as delegacias especializadas estão praticamente abandonando as suas
atividades operacionais de investigar e acompanhar a evolução da criminalidade relacionada com a sua área
estratégica - aquele clássico trabalho de se antecipar ao crime - porquanto os seus policiais encontram-se, em sua
grande maioria, envolvidos no cumprimento de diligências que não têm nada a ver com o seu ramo de atividade e
são oriundas dos inúmeros inquéritos sobre outros assuntos que estão sendo presididos pelos seus delegados-chefes. 8
Está na hora de repensar esse malfadado e superado instituto,
transformando-o num mero capítulo da história da Justiça Penal no Brasil.
♦ ♦ ♦ ♦ ♦
4. Sobre a função da polícia judiciária
A existência da polícia judiciária é uma necessidade unanimemente aceita
em todos os países onde vigora o Estado de Direito.
Instituição de direito público por excelência, é ela o instrumento que a
Administração Pública põe à disposição do Poder Judiciário para o auxiliar na apuração das
infrações penais antes da instauração do devido processo legal e na realização de diligências
específicas, requisitadas antes, no decorrer ou após o término daquele processo.
No que diz respeito especificamente à apuração dos ilícitos penais, o papel
da polícia judiciária em qualquer país do mundo está reduzido a duas e somente duas atividades:
colher elementos de prova da ocorrência do delito e apontar o seu provável autor.
O Código de Processo Penal em vigor, no seu mal redigido artigo 4.º,
também consagrou essas duas atividades básicas para a polícia judiciária tupiniquim, adotando
com isso a concepção universalmente aceita para definir a missão específica dessa modalidade
de polícia.
Fixadas, estabelecidas e consagradas essas duas – e somente duas –
atividades para a polícia judiciária, verifica-se que tudo o mais que a isso se acresça é supérfluo e
resulta da mentalidade bacharelesca que indevidamente tomou de assalto a polícia brasileira,
especialmente a partir da década de setenta, com a criação dos chamados “delegados de polícia
de carreira”, que, inspirados em doutrinas errôneas concebidas e abeberadas em suas academias,
contribuíram para transformar a investigação policial - videlicet, o inquérito policial – num
autêntico pasticho do processo criminal.
Justiça se faça, esse bacharelismo pernicioso não está nem nunca esteve na
letra do Código atual.
Embora no seu contexto geral, eivado de formalismos típicos da época em
que foi elaborado, o referido diploma legal tenha servido de caldo de cultura para o
florescimento daquele mal, impende reconhecer que nenhum dos seus artigos menciona que a
autoridade encarregada de elaborar os inquéritos policiais tenha que ser um bacharel em Direito.
Nessa ordem de idéias, pelo que se infere do texto legal, o significado de
autoridade policial deve sempre ser entendido como um status, um múnus, que foi conferido a
alguém, pelo Poder Executivo, para realizar inquéritos policiais.
Tanto é verdade tal assertiva que vicejam ainda hoje pelo país afora as
figuras dos chamados “delegados calças curtas”, os quais, bem ou mal, elaboram inquéritos
policiais que têm, perante o Ministério Público e a Justiça, o mesmo valor probante de um
inquérito policial feito pelo mais bacharel, concursado e laureado dos delegados de carreira, isto
é, não passam de meras peças de informação para a futura ação penal.
Ante tal realidade, repetimos a indagação feita linhas atrás: para que então
tanto formalismo inútil numa simples investigação policial?
9
Não se quer aqui, de forma alguma, fazer uma absurda pregação de que a
polícia judiciária brasileira retrograde aos seus primórdios, quando era, na sua maioria,
constituída de homens despreparados, sem profissionalismo e que apenas se prestavam de
esbirros dos poderosos que eventualmente estivessem com as rédeas da política.
Essa época de triste memória felizmente passou e ninguém de bom senso
almeja a sua reedição.
Uma polícia judiciária tecnicamente bem preparada, com uma doutrina de
trabalho adogmática, fundamentada nos cânones da investigação científica e voltada para os dois
objetivos teleológicos primordiais mencionados linhas atrás, é a aspiração legítima de qualquer
sociedade moderna e a garantia de uma eficiente atuação da Justiça frente ao fenômeno do crime.
A experiência diária tem demonstrado que o crime, além de uma
formidável diversificação de suas modalidades, tem ultimamente avançado a passos largos em
tecnologia e sofisticação, exigindo daqueles que são encarregados de o investigar uma formação
universitária especializada e o conhecimento atualizado dos modi operandi dos criminosos. Tudo
isso está a exigir uma polícia judiciária técnica e profissionalmente aprestada para uma resposta
investigativa precisa e exitosa.
Contudo, vai um enorme abismo entre esse anelado ideal e o diário
conviver com uma polícia judiciária emperrada, cheia de leguleios e cacoetes inspirados por um
bacharelismo hipertrofiado, vesgo e oportunista, que tomou de assalto as suas chefias e a sua
doutrina de trabalho, em determinado momento histórico do país.
É evidente que certa familiaridade e desenvoltura com as legislações penal
e processual em vigor são essenciais para uma autoridade policial, mas muito mais importante do
que isso é o saber investigar com eficiência os crimes cuja apuração lhe foi confiada.
Entre o policial jurisconsulto e o investigador eficiente, capaz de elucidar
crimes de alta complexidade e apontar seus autores, o bom senso opta sem qualquer titubeio
pelo segundo.
O estudo e o exame de teses ou doutrinas jurídicas transcendentais é
trabalho do juiz, do Ministério Público e do advogado. O policial que dá prioridade ou perde
tempo com esses assuntos não está na profissão certa ou errou de concurso público.
Pensar de forma diferente é querer desvirtuar as duas finalidades precípuas
da polícia judiciária, frustrando-lhe a perene e exclusiva missão de auxiliar do Poder Judiciário
na investigação das infrações penais.
Chega a dar calafrios na espinha, nos dias que correm, a atitude de certas
correntes de delegados bacharéis - minoritárias, felizmente – que lutam para que o futuro Código
de Processo Penal volte a dar poderes judicantes às autoridades policiais nos casos de crimes de
menor poder ofensivo, a exemplo do que ocorria no tempo do Império, quando vigorava a Lei n.°
261, de 03 de dezembro de 1841, e do seu Regulamento n.º 120, de 31 de janeiro de 1842.
A propósito desse policialismo hipertrofiado, dessa aberração jurídica
indefensável que vigorou no Brasil na segunda metade do século XIX, DUARTE DE MACEDO,
citado por JOSÉ FREDERICO MARQUES, comentou ironicamente que “enquanto na França
eram dadas atribuições policiais aos juizes de instrução, no Brasil se davam atribuições de
judicatura a funcionários policiais”. 10
10
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal. Op. cit. p. 121-122, vol I.
10
5. Inovações propostas
Definido e delimitado o papel da polícia judiciária, cabe agora fazer a
abordagem de alguns assuntos que deveriam ser objeto de exame por parte dos encarregados de
reformar o Código de Processo Penal, oferecendo-lhes sugestões para escoimar aquela
importante atividade das mazelas e desvirtuamentos produzidos pela vetusta legislação em vigor
e pelas intercorrentes filigranas oitocentistas do bacharelismo.
Antes de mais nada, importa ressaltar que qualquer inovação relevante da
nossa Justiça Penal passa necessariamente pela aprovação e implantação do juizado de
instrução no país.
Tudo o mais, sem essa inovação fundamental, não passará de um simulacro
de reforma ou de simples remendos ao deteriorado status quo vigente e retratará uma atitude
legiferante acomodada e tímida, consistente em trocar o roto pelo esfarrapado.
Os que ainda crêem na velha dupla instrução estão, como escreveu um
certo estadista europeu sobre os que acreditavam na finada República de Weimar, “caminhando
ao lado de um cadáver e enxergando nos sinais de decomposição indícios de uma ressurreição”.
O determinismo histórico rumo à instrução única no Brasil, seguindo o
bom exemplo da quase totalidade dos países do mundo, é inarredável e o seu adiamento somente
servirá para prolongar a longa agonia de nossa Justiça Penal e o sofrimento ingente daqueles que
dela dependem.
A recente busca de paliativos que se assemelhem a essa forma unitária de
instrução, como é o caso da Lei n.º 9.099/95, que criou os Juizados Especiais Cíveis e Criminais,
é uma prova incontestável da sua necessidade.
Somente um exagerado misoneísmo, um infundado receio de mudanças
drásticas na legislação, um inexplicável apego a usanças jurídicas ultrapassadas ou um malévolo
interesse em que a Justiça Criminal no Brasil continue lerda e ineficiente é que podem justificar
uma repulsa à adoção daquela solução salvadora.
Recusar a implantação do juizado de instrução no Brasil é querer marchar
na contramão das nossas necessidades atuais e pretender perenizar o caos e o clima de
insegurança pública que hoje avassala o país.
A implantação de programas como o “mani pulite” da Itália e a chamada
“tolerância zero” (remédio heróico e eficaz utilizado pela cidade de Nova Iorque e outras
comunidades americanas para combater a impunidade e assim neutralizar o avassalador
crescimento da criminalidade), somente é possível mediante uma célere aplicação da justiça e
isso só é viável com o juizado de instrução.
É de se reconhecer, contudo, que a criação desse juizado no Brasil deverá
inicialmente trazer algumas dificuldades de ordem prática, decorrentes principalmente do fato de
ser uma experiência processual inteiramente nova para o país e de o nosso aparelhamento
jurídico e forense não estar preparado – principalmente por haver convivido por quase um século
com a vigência da instrução preliminar – para exercer com desenvoltura essa nova práxis.
Entretanto, a total adaptação à nova sistemática deverá ocorrer em muito
menos de um lustro.
Devido a essas inevitáveis dificuldades iniciais, seria recomendável que
houvesse um período (de dez anos, talvez), em que convivessem os dois sistemas, aplicando-se o
11
juizado de instrução para os crimes mais simples e se mantivesse o sistema de instrução
preliminar para os crimes mais complexos.
O inquérito policial desde logo desapareceria, excomungado por sua
excessiva burocracia e seu gongórico formalismo, sendo substituído por uma investigação
policial de perfil inteiramente diferente, conforme será explicado mais adiante.
Sugere-se, como premissa inafastável para essa mudança, uma maior
interação entre a polícia e o Ministério Público na condução dessa novel investigação policial.
E não poderia ser de outra forma.
O nosso sistema processual penal, seguindo a tradição da maioria dos
países civilizados, erigiu o Ministério Público à condição de dono da ação penal pública, isto é, o
domus litis, que exerce a chamada pretensão punitiva perante o Poder Judiciário, prerrogativa
essa que lhe é assegurada pelo inciso I, do artigo 129 da Constituição Federal.
Ora, sendo ele o dono da ação penal, nada mais lógico do que se aceitar a
sua interferência direta nas investigações que servirão de base àquele procedimento.
Tal entendimento é corolário do citado princípio constitucional e admitir o
contrário é afrontar a Lei Maior e atentar contra um eficiente exercício da pretensão punitiva.
Como pode o “parquet” atuar com celeridade e eficiência se a
investigação de que depende o seu trabalho forense está sujeita ao arbítrio ou poder
discricionário da autoridade policial e qualquer mudança de rumo ou complementação essencial
está a depender de uma decisão do juiz?
Por uma histórica timidez do Ministério Público perante o Poder
Legislativo, nunca se corrigiu esse absurdo legal no Brasil e, dessa maneira, tudo o que ocorre no
inquérito policial esteve sempre a depender da vontade da autoridade policial e de uma
manifestação do Poder Judiciário, até mesmo quando se trate das mais legítimas aspirações de
quem vai ser dono da ação penal.
O resultado dessa cosmovisão caolha é a sobrecarga desnecessária do
Poder Judiciário e a castração do Ministério Público, além das delongas que esse tipo de conduta
acarreta, fazendo com que o inexorável passar do tempo transforme os inquéritos policiais em
tardias reconstituições morféticas da verdade e que pouco servem à instrução da ação penal.
Não se pode negar ao Poder Judiciário um certo controle sobre o que está
sendo feito numa investigação policial, mas esse controle deve se limitar apenas à legalidade
dos atos praticados, nunca se envolvendo com problemas menores, como é o caso da concessão
de prazos ou da autorização de diligências rotineiras de exclusivo interesse de quem vai
promover a ação penal porventura resultante das investigações.
A sugestão inicial que aqui se faz à douta Comissão de Notáveis é de que
resgate a autonomia do Ministério Público com relação às investigações, permitindo-lhe orientar
e determinar o rumo daquele trabalho policial, controlando-lhe os prazos e deixando a consulta
ao Judiciário reduzida às situações em que estiver em jogo os direitos e as garantias
fundamentais das pessoas que estão sendo investigadas.
Sugere-se que, uma vez terminada a investigação, esta seja
obrigatoriamente levada ao juiz, que somente então avaliaria o trabalho executado, determinando
as correções necessárias e responsabilizando aqueles que atuaram, nos casos de cometimento de
eventuais omissões, desídias ou abusos.
De resto, não há nenhuma novidade nesta sugestão, pois é exatamente isso
o que o ocorre na prática. Não há, hoje em dia, nenhum controle do juiz sobre os inquéritos em
tramitação na polícia, verificando-se que, nas inúmeras vezes que esses procedimentos passam 12
pelas varas criminais em busca de novo prazo para conclusão das diligências, cumpre-se apenas
uma velha e desnecessária rotina prevista no Código em vigor, porquanto o magistrado, mediante
um despacho que já lhe vem às mãos preparado pela secretaria (ou cartório) da vara criminal,
apenas se limita a apor a sua assinatura, concedendo o novo prazo.
Com as sempre existentes raríssimas exceções, atualmente nenhum juiz
criminal se dá ao trabalho de ler um inquérito policial antes que ele esteja devidamente relatado e
concluído.
Na atual conjuntura, um ou outro representante do Ministério Público,
quando um inquérito mais antigo lhe passa pelas mãos para opinar sobre uma concessão de
prazo, permite-se uma rápida leitura sobre o que está sendo feito e se arrisca – muitas vezes sem
o mínimo conhecimento da realidade e das condições de trabalho vividas pela autoridade policial
encarregada da investigação – a rabiscar uma crítica mais ou menos contundente sob a forma de
cota, que é placidamente acolhida pelo juiz, devolvendo-se em seguida os autos à polícia.
A orientação, a fiscalização e a concessão de prazos das investigações ao
ser feita diretamente pelo Ministério Público aproximará este da polícia, afastando as muitas
mazelas do atual distanciamento e, a fortiori, contribuirá consideravelmente para a preservação
de uma boa quantidade de nossas árvores, evitando o colossal desperdício de papel que ocorre
diariamente no Brasil, ao se repetir milhares de vezes nos cartórios criminais a cediça rotina
burocrática entre autoridade policial/juiz/ministério público/juiz/autoridade policial (cada
um desses funcionários proferindo o seu indefectível despacho), todas as vezes que um inquérito
precisa de prazo para prosseguimento das investigações.
Essa rotina burocrática para conseguir um prazo para dar continuidade às
investigações seria patética se não fosse ridícula.
Quem não a conhece na prática não calcula o nível de insensatez a que
podem descer os funcionários públicos quando adotam a desconfiança mútua como a sua
suprema lei.
Para que o leitor tenha uma idéia aproximada do ridículo desse trâmite,
segue adiante uma transcrição detalhada de suas seqüências, sob a forma de uma minicomédia
em um ato, intitulada “O PRAZO”, escrita especialmente para esta ocasião, com o objetivo
retratar fielmente as peripécias da referida burocracia.
Os que abominarem esse gênero literário poderão omitir a leitura do texto,
que foi adrede escrito em itálico e com fonte gráfica de menor tamanho.
O PRAZO
(Comédia em um ato)
PERSONAGENS: O Juiz, o Representante do Ministério Público, o Delegado de Polícia, o
Escrivão do Juiz, o Escrivão do Delegado e as Almas dos Criadores do Direito Romano).
O ESCRIVÃO DO DELEGADO (com expressão de espanto): ”Senhor Delegado, acabou-se o prazo.”
O DELEGADO (com ares de autoridade): “Senhor Escrivão, mande os autos para o Juiz, pedindo prazo.”
O ESCRIVÃO DO DELEGADO: “Recebo nesta data estes autos e em seguida os remeto ao Senhor Juiz”
O ESCRIVÃO DO JUIZ (recebendo os autos vindos da polícia): “Recebo nesta vara criminal estes autos e os
entrego agora ao Senhor Juiz”.
O JUIZ (com visível enfado): “Senhor Escrivão, mande estes autos para o Senhor Representante do Ministério
Público, para que ele opine se eu devo ou não devo conceder novo prazo ao Senhor Delegado”.
O ESCRIVÃO DO JUIZ (recebendo do juiz os autos): “Recebo nesta data estes autos e em seguida os remeto ao
Senhor Representante do Ministério Público”.
13
O REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO (recebendo os autos da Justiça): “Nada tenho a opor, voltem
os autos para o Senhor Juiz”.
O ESCRIVÃO DO JUIZ (com visível e renovada paciência, recebendo outra vez os autos): “Recebo nesta data
estes autos e os entrego agora ao Senhor Juiz”.
O JUIZ (interrompendo uma complicada sentença que está redigindo, e após dar uma rápida olhada no despacho
do Ministério Público e matutar pela enésima vez por que cargas d’água este tem agora que se sentar ao seu lado
nas audiências):”Concedo um novo prazo, napoleônico, de cem dias”.
O ESCRIVÃO DO JUIZ (com a paciência já esgotando e recebendo outra vez os autos): “Recebo nesta data estes
autos e os envio à polícia”.
O ESCRIVÃO DO DELEGADO (com a eterna paciência dos escrivães de polícia e rezando para que no seu plantão
de hoje não ocorra nenhuma prisão em flagrante): “Recebo nesta data estes autos e os entrego ao Senhor
Delegado”.
O DELEGADO (com ares de quem acaba de receber uma má notícia): “Já?!”.
Fecham-se rapidamente as cortinas, para logo abrir com um cenário celestial, onde um grupo de homens, vestidos
de branco, representando as Almas dos Criadores do Direito Romano, que já tiveram rebentos jurídicos de melhor
qualidade do que o Código de Processo Penal Brasileiro - como é o caso do “Corpus Iuris Civilis” e o “Código de
Napoleão” - põem-se a entoar a ária “DELENDA EST BRASILIA”, ao som de um “Leitmotiv” da ópera
“Crepúsculo dos Deuses”, de Richard Wagner.
Desce o pano. A orquestra ainda segue com o tema por alguns segundos.
F IM
Essa pantomima, que parece fruto dos exageros de algum teatro de
comédia mambembe, por mais incrível que possa parecer, repete-se diariamente na vida real
pelo Brasil afora, protagonizada por homens, todos eles com formação universitária, ingressados
no serviço público mediante disputado concurso e em pleno gozo de suas faculdades mentais.
Sejamos sensatos, ora bolas!
O futuro Código poderá perfeitamente prever que caberá ao representante
do Ministério Público, como dominus litis, passar diariamente nas delegacias de polícia e
verificar quais as investigações policiais que estão necessitando de uma renovação de prazo e,
mediante um simples despacho - carimbo, comando em computador, ou seja lá o que for –
assinar um novo prazo para aquela investigação, examinando-a in loco e orientando os seus
condutores no sentido que for mais compatível com a futura ação penal.
Ao deferir esse múnus ao Ministério Público, o futuro Código estaria
implementando de uma forma efetiva, e consentânea com a mens legis, o tão discutido controle
externo da atividade policial exigido pelo inciso VII, do artigo 129 da Constituição Federal.
Isso porque esse controle externo – que muitos policiais chegam até a
temer que consista em verificar se os investigadores de rua estão efetivamente trabalhando ou
aproveitando a oportunidade para eventuais escapulidas – na realidade se refere ao controle
daquele conjunto de interseção (desculpe-nos a linguagem matemática), representado
principalmente por aquela área onde o trabalho da polícia interfere com os direitos e garantias
individuais, a proteção do patrimônio público e social e com os chamados direitos difusos e
coletivos, entre outros.
A toda evidência, a área de atuação da polícia que apresenta maior
interseção ou interface (usando agora o jargão da informática) com o Ministério Público é
justamente na investigação policial, pois é esta que vai servir de suporte a uma das principais
funções do "parquet”, que é promover a ação penal pública.
Nessa ordem de idéias, por que não aceitar a inovação ora proposta de
conferir definitivamente àquele órgão as tarefas de orientar e fiscalizar as investigações
policiais?
14
Não se trata de uma subordinação da polícia ao Ministério Público, mas de
uma harmonização de tarefas em prol do produto final do trabalho comum, que é a denúncia.
Essa salutar medida, sem dúvida alguma, enxugará as investigações de
trâmites e diligências inúteis, tornando-as mais céleres, objetivas e consentâneas com o seu
escopo de servir de suporte para eventuais ações penais públicas.
Outra novidade que se sugere que a douta Comissão de Notáveis introduza
no processo penal pátrio é a oralidade.
Sem ela, as vantagens que seriam proporcionadas pelo advento do juizado
de instrução ficariam diminuídas ou até inibidas.
Sem ela, não há como nos livrarmos dos papéis e da burocracia e,
conseqüentemente, celerizar a Justiça Criminal.
Sem ela, enfim, é impossível haver avanços.
E a oralidade deverá ser radicalmente plena, tendo as suas bases
doutrinárias firmadas nos modernos princípios da imediatidade, da concentração da prova e da
identidade física do juiz, os quais norteiam o processo oral nos países com tradição nessa
modalidade específica de atuação da Justiça.
Destarte, de lege ferenda, deverão ser sumariamente vedados quaisquer
sucedâneos para a oralidade plena, como são o caso, por exemplo, da substituição dos debates
orais em audiência pela apresentação de memoriais que serão posteriormente lidos pelo
magistrado e da mania burocratizante de se querer reduzir a termo, palavra por palavra, as
manifestações da acusação e da defesa durante a audiência.
Isso porque abrir exceções, por menores e insignificantes que sejam,
significará deixar brechas por onde penetrarão, com ímpeto cada vez maior, os miasmas da
recalcitrante burocracia forense.
A grandes males, grandes remédios.
Somente com a total erradicação da burocracia e da papelada poderá o
futuro Código sanear a Justiça Criminal brasileira dos malefícios acumulados nesses quinhentos
anos de processo escrito.
À primeira vista, poderá parecer aos menos avisados que a praxe forense
brasileira não se adaptará à oralidade plena.
É a síndrome do passarinho que nasceu na gaiola: mesmo livre, dela não
consegue se afastar.
Acostumados desde o nascedouro à obrigatoriedade do processo escrito
imposta pelos nossos avoengos lusitanos, parece-nos quase impossível conseguir singrar com
segurança os mares nunca dantes navegados da processualidade oral.
Ledo engano.
DEMERCIAN, a propósito dessa temida inadaptação do foro brasileiro à
sistemática da oralidade, faz este lúcido comentário:
"O argumento de que o foro brasileiro, pela origem de nosso direito, não se
adapta ao processo oral não pode prosperar. Essa tese também era utilizada na
Itália no início do século e, como se sabe, o processo penal italiano é plasmado
num sistema acusatório puro e eminentemente oral.
Além disso, é no mínimo curioso falar-se em adaptação a um modelo que, como
se procurou demonstrar, não chegou a ser implantado. A experiência haurida no
direito estrangeiro e, no Brasil, de maneira tímida, no procedimento dos crimes 15
dolosos contra a vida e nos Juizados Especiais Criminais, demonstra que esse
método pode ser adotado com grandes perspectivas de sucesso." 11
Chega a ser até patética essa oposição intransigente de consideráveis
setores do mundo jurídico tupiniquim com relação à salvadora adoção do processo oral.
À primeira vista, parece que esses conservadores mal-avisados preferem
continuar a ver os nossos cartórios criminais explodir com tantos papéis a concordar com a
adoção de uma experiência que deu certo em tantos países do mundo.
Cabe aqui e agora efetuar algumas considerações sobre como deverá o
futuro Código de Processo Penal tratar a investigação policial, ou seja, que inovações deverão
ser nele introduzidas para aprimorar o trabalho da polícia judiciária na sua dupla missão de
colher elementos de prova da ocorrência do delito e apontar o seu provável autor.
A primeira cousa que vem à baila ao se examinar o perfil da novel
investigação policial que sucederá o carcomido e decadente inquérito é a necessidade de se
instituir uma gradação das investigações policiais, segundo a dimensão ou a complexidade do
que vai ser investigado.
O bom senso e a experiência nos ensinam que em todos os ramos da
atividade humana a solução de problemas se baseia num processo de resposta que é compatível e
proporcional ao nível de complexidade do assunto tratado ou examinado.
Somente para exemplificar, cite-se o caso das ciências matemáticas, onde
problemas há que são resolvidos pelo simples uso da aritmética elementar, outros mais
complexos cuja resolução somente é possível pela álgebra clássica e outros, mais complicados
ainda, onde se faz necessário o emprego da álgebra superior ou da alta matemática.
Nessa mesma linha de raciocínio, há problemas de saúde que podem ser
solucionados em ambulatórios ou consultórios médicos, outros – mais graves - que demandam
um atendimento hospitalar e outros cuja gravidade enseja um atendimento hospitalar dotado de
um grau de especialização e sofisticação ainda maior.
Assim é o processo de solução de problemas tanto nas ciências exatas
como nas ciências médicas, e assim também deve ser nas ciências humanas e, mais
especificamente, na ciência do direito.
Na atividade de polícia judiciária no Brasil, infelizmente, não tem sido esse
o critério de resposta.
Não importa o grau de complexidade do delito a ser investigado, a resposta
da polícia tem sido sempre a mesma, isto é, a instauração de um inquérito policial, com a
sempiterna mobilização de um delegado, um escrivão e um ou mais agentes para as
investigações de campo. É essa tríade de ouro que é posta sempre a funcionar, seja nos casos
mais simples ou nos mais intricados, como uma autêntica panacéia para a solução miraculosa de
todos os problemas de polícia judiciária que aconteçam no país.
Tal postura, que decorre de uma anacrônica exigência legal, torna a
resposta excessiva para os casos mais simples e insuficiente para os mais complexos.
Seria, mutatis mutandis, como utilizar sempre a dupla de médico e
enfermeira para, no campo da saúde, cuidar de uma escoriação, de uma pneumonia ou de uma
complicada operação de transplante cardíaco.
11
DEMERCIAN, Pedro Henrique. A oralidade no processo penal brasileiro. São Paulo: Atlas, 1999, p. 107.
16
A criminalidade, e com ela o Direito Penal, sofreram avanços descomunais
nas últimas décadas do século que recentemente findou e seria do mais pueril entendimento
admitir-se que um bacharel em direito investido na condição de delegado de polícia seja dotado
de conhecimentos onímodos, capazes de o habilitar a, sozinho, proceder com eficiência e
eficácia uma investigação sobre qualquer tipo de delito.
No entanto, essa tem sido a reiterada postura de nossa polícia judiciária, ao
jogar no colo de muitas autoridades policiais inquéritos sobre temas que elas simplesmente não
sabem como investigar, pelo simples fato de que ninguém pode ser especialista em tudo.
Nessas condições, a gradação das investigações policiais impõe-se como
uma necessidade inafastável a ser considerada pela Comissão de Notáveis que ora tem a
incumbência de criar um novo Código de Processo Penal ou de reformar o já existente.
Propõe-se aqui que haja três tipos de investigação policial.
Em primeiro lugar, uma investigação mais simples, de baixa
complexidade, cuja condução – absolutamente desprovida de formalismos – seria
individualmente entregue a um policial.
Esse policial apuraria sozinho a notícia de crime e, ao terminar, faria um
relatório sucinto dirigido ao Ministério Público.
No caso de esse tipo de investigação ensejar a realização de diligências que
envolvessem interferências com direitos e garantias individuais dos investigados, o investigante
as solicitaria ao juiz competente, sempre sendo ouvido o Ministério Público.
O investigante também teria, evidentemente, o poder de requerer os
exames periciais que se fizessem necessários, assim como entrevistar testemunhas e suspeitos
acerca do caso.
Nesse tipo de investigação poderia inclusive ser dispensada a inquirição
formal de testemunhas, limitando-se o investigante a entrevistá-las e a indicar seus nomes e
endereços no relatório final, conforme prevê o hoje praticamente em desuso § 2.° do artigo 10 do
código em vigor.
Impende ressaltar que esse primeiro tipo de investigação policial não se
destinaria, obviamente, aos casos das infrações penais de menor potencial ofensivo de que se
ocupa a Lei n.° 9.099/95, a qual, de uma forma moderna e avançada, já dispensa um tratamento
célere e econômico às contravenções penais e aos crimes cuja previsão de pena máxima não
ultrapasse 1 (um) ano, aproximando-se bastante do juizado de instrução abordado no início deste
tópico.
O segundo tipo de investigação seria destinado a apurar casos de
complexidade mediana, em que se fizesse necessária a participação de uma equipe de policiais,
tanto da área de investigação propriamente dita, como da pericial.
Nesse caso, um determinado policial seria indicado como condutor ou
presidente da investigação e, sempre em equipe, tomaria as decisões adequadas à condução das
diligências, orientando-se, sempre que necessário, com o representante do Ministério Público.
Ao final do caso, cada um dos policiais participantes da investigação
produziria um relatório pertinente à parte que lhe coube diligenciar, ficando o condutor da
investigação encarregado de produzir um relatório maior, sintetizando as conclusões gerais do
trabalho produzido pela equipe que chefiou.
Essa modalidade de investigação em equipe põe em prática uma eficiente
metodologia de trabalho que os norte-americanos denominam de “think tank”, cuja indiscutível
17
eficiência tem sido demonstrada na excelência dos trabalhos freqüentemente executados pelo
FBI e outras agências federais de natureza policial.
Adotando-se-a no Brasil, seríamos obrigados a abandonar a postura do
delegado sabe-tudo e da autoridade policial pernóstica adepta do “moi et mon droit”,
enveredando-nos definitivamente pelos modernos caminhos do trabalho em equipe, da crítica e
autocrítica, e da divisão de trabalho.
O terceiro tipo de investigação destinar-se-ia aos casos de grande
complexidade (denominados "major cases", pelos norte-americanos), onde se exigisse a
participação de uma equipe multidisciplinar, integrada não apenas por policiais, mas também por
especialistas de outras áreas como, por exemplo, do fisco, da aduana, sistema financeiro, do
mercado de capitais, da saúde ou do meio ambiente, a depender na natureza da investigação em
curso, formando aquilo que os norte-americanos chamam de “task force”, também conhecida
entre nós como força-tarefa.12
A exemplo do que ocorreria com as investigações dos casos de
complexidade mediana, os casos de grande complexidade seriam encerrados com a apresentação
de relatórios setoriais produzidos pelos representantes de cada área especializada, os quais
dariam respaldo a um relatório global produzido pelo condutor-geral da investigação.
Essa gradação das investigações segundo a sua complexidade ainda não é
tudo.
Embora ela deva contribuir decisivamente para uma melhoria na qualidade
do trabalho da polícia judiciária, passa ao largo de um outro mal – muito mais grave – que é o
excesso de formalismo e de burocracia hoje vigente na polícia judiciária brasileira e que foi, “en
passant”, abordado de forma incisiva e até jocosa, linhas atrás.
Apresentar a resposta policial adequada à natureza e ao grau de
complexidade da investigação produzirá, sem dúvidas, resultados excelentes para a essência do
trabalho de polícia judiciária, mas não terá, de forma alguma, o condão de o tornar mais célere e
desenvolto, caso continue a imperar o formalismo caolho e anacrônico que hoje viceja no
inquérito policial.
Esse formalismo excessivo, inventado no início dos anos quarenta pela
polícia judiciária do Rio de Janeiro, ao tempo em que aquela cidade era a Capital da República,
foi docilmente imitado pelo país afora, não havendo os sarrafaçais imitadores – especialmente os
chamados delegados de polícia de carreira surgidos na década de setenta - se dado sequer ao
trabalho de refletir que não estava na letra do Código de Processo Penal nem na mentalidade dos
nossos tribunais a frívola e vaidosa intenção de transformar o inquérito policial num autêntico
pasticho do processo criminal produzido pela Justiça.
Vejamos, à guisa de exemplos, algumas pérolas desse formalismo
excessivo que viceja naquele encadernado que alguns corporativistas menos avisados e de gosto
duvidoso passaram recentemente a chamar de "produto nobre da polícia".
Comecemos com o ato que o inaugura, a portaria.
De início, impende frisar que em nenhum artigo do CPP há menção ao fato
de que o inquérito policial deva se iniciar com uma portaria da autoridade policial.
12
A Alemanha, diga-se de passagem, encontra-se um passo à frente nesse particular. Em vez das transitórias “task
forces” dos americanos, constatamos pessoalmente, no ano de 1993, em Berlim, que o fisco e a polícia trabalhavam
o tempo todo juntos, numa mesma sala e até em operações de rua. Ou seja, determinados funcionários do Ministério
da Fazenda especializados em investigações financeiras ficavam permanentemente à disposição da polícia,
18
trabalhando dentro da própria repartição policial, nos setores incumbidos daqueles tipos de investigação.
O artigo 5.º daquele diploma legal, ao tratar do assunto, estabelece que o
inquérito policial será iniciado de três maneiras: de ofício; mediante requisição da autoridade
judiciária ou do Ministério Público; e a requerimento do ofendido ou de quem tiver qualidade
para representá-lo.
Não menciona, como se vê, a palavra portaria.
Entretanto, para começar o seu trabalho investigatório, as autoridades
policiais brasileiras acharam por bem o fazer mediante esse ato administrativo de caráter formal,
transformando o início de uma investigação banal num fato tão solene quanto a nomeação de um
funcionário público, a concessão de uma medalha de honra ao mérito, ou a proibição de usar
“topless” nas areias de Ipanema.
Utilizar um ato formal de tal magnitude para começar a fazer o seu
trabalho de rotina deveria ser para a autoridade policial algo tão bizarro e estapafúrdio quanto,
por exemplo, seria o fato de um diretor de hospital baixar uma portaria para a internação de um
determinado paciente, ou de um médico que edite uma portaria ao iniciar o tratamento de cada
cliente que o procure em seu consultório para seus serviços profissionais.
Deveria, mas não o é.
A verdade é que os nossos bacharéis não se aperceberam ainda do ridículo
de tal procedimento e continuam impavidamente, pelo Brasil afora, a instaurar seus inquéritos
mediante um instrumento que parece haver sido extraído das páginas de uma devassa promovida
na vigência das Ordenações Manoelinas, no tempo de Martim Afonso de Souza.
Essas portarias, quando examinadas nas suas expressões sacramentais,
chegam a beirar as raias do grotesco, apresentando raridades do tipo “o Delegado Fulano, lotado
e em exercício na Delegacia Tal, no uso de suas atribuições” ,13 “procedendo-se à oitiva de
todas as pessoas que saibam ou possam saber a respeito do ocorrido”14 e finalmente o
desnecessário “CUMPRA-SE”,15 invariavelmente colocado ao final do texto.
Examinado o caso da portaria, passemos a outro exemplo típico do excesso
de formalismo do famigerado inquérito policial.
O CPP, em seu artigo 6.º, inciso III, menciona que a autoridade policial,
logo que tiver conhecimento da infração penal, deverá “colher todas as provas que servirem
para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias”.
Embora a palavra “provas” esteja mal-empregada naquele vetusto texto,
porquanto seria melhor que houvesse sido utilizada a expressão “elementos de prova”, eis que a
coleta e a produção de provas é tarefa exclusiva do Judiciário, mediante o exercício do
contraditório e da ampla defesa, não é preciso um grande esforço de exegese para entender que
aquele mal redigido dispositivo dá à autoridade policial a faculdade de inquirir testemunhas,
mormente se se atentar para o que dispõe o § 2.º do artigo 10 do mesmo código.
Pois bem.
Os burocratas e bacharéis aproveitaram esse dispositivo legal para criar
uma das mais absurdas indústrias de papelório da polícia judiciária brasileira, que é a chamada
oitiva de testemunhas.
13
Como dizem os portugueses, quem não tem competência não se estabelece. Como é pois que alguém iria editar
um ato administrativo, no caso, uma portaria, se não estivesse no uso de suas atribuições?
14
Expressão ao mesmo tempo inútil e cômica. Inútil por ser redundante, eis que um dos métodos da investigação é
justamente ouvir todas as pessoas que saibam do ocorrido. Cômica porque o delegado está dando uma ordem para si
mesmo, porquanto é ele quem, ex vi legis, vai ouvir as pessoas.
15
19
Seria de se indagar se sem essa expressão sacramental a portaria deixaria de ser cumprida.
Senão vejamos.
Inicialmente, inventou-se que a testemunha que vai prestar declarações à
polícia tem que ser previamente intimada por escrito, uma formalidade que não está na letra da
Lei Processual, mas que, mercê de uma reiterada praxe baseada num dispositivo legal criado
para uso dos juízes (videlicet, o artigo 218 do CPP), tornou-se de uso corrente na polícia, sendo
hoje praticamente indiscutível.
Em outras palavras, ao invés de Maomé ir à montanha – como fazem os
policiais americanos, pois quem tem interesse de esclarecer os fatos é a polícia e não a
testemunha – preferiu-se, de uma forma até mandriã, a cômoda postura de fazer a montanha vir
a Maomé, isto é, obrigar a testemunha a deixar os seus afazeres e – às suas próprias custas –
deslocar-se até uma delegacia de polícia para, conforme indefectivelmente reza nos textos das
intimações, “prestar esclarecimentos no interesse da Justiça”, esclarecimentos esses que ela terá
depois que repetir perante um juiz, pagando mais uma vez do próprio bolso o ônus desse
segundo deslocamento.16
A tal intimação, por sua vez, é uma delícia de exemplo da folclórica falta
de bom senso da nossa polícia judiciária.
Para começo de conversa, ela é lavrada por um escrivão em duas ou três
vias (a depender, evidentemente, do alvedrio e da suspicácia do burocrata de plantão), recebendo
depois a assinatura de um delegado para somente então ser entregue a um agente ou
investigador, que fica encarregado da entrega, deslocando-se até o domicílio da testemunha
numa viatura com combustível pago pelos cofres públicos, como se fosse um carteiro de elite.
Como pode se ver, na intimação, como infelizmente em todo produto de
nossa polícia judiciária, há que sempre intervir a onipresente trindade de que se tratou no início
deste trabalho: o escrivão que formaliza, o delegado que “preside” e o agente que faz as
diligências.
Essa forma curiosa de proceder deixa a nítida impressão de que as nossas
autoridades policiais sofrem paradoxalmente de uma crônica crise de poder de polícia, pois até
para chamar alguém para comparecer à sua repartição necessitam que o documento que veicula a
ordem seja assinado também por um escrivão.
O pior de tudo é que essa tal de intimação tem quase que invariavelmente o
mesmo destino, isto é, a cesta do lixo, pois com o comparecimento do intimado à polícia, aquele
formalíssimo pedacinho de papel perde automaticamente a sua razão de ser.
Somente em raríssimos casos, quando a testemunha regularmente intimada
e novamente intimada deixa injustificadamente de comparecer é que a papeleta de intimação
pode servir de eventual comprovação do cometimento de um crime de desobediência.
De vez em quando, algumas instituições policiais alarmadas com os gastos
realizados com essa desnecessária entrega de intimações decidem pelo envio desses papéis por
16
Para os brasileiros, acostumados que estamos a pagar do próprio bolso despesas que são um dever do Estado, é
interessante saber que, na Alemanha, as testemunhas são pagas para prestar depoimento, sendo a respectiva
remuneração igual à quantidade de horas que durou o procedimento multiplicada pelo valor da hora trabalhada que
a testemunha recebe no emprego que ocupa na ocasião. O pagamento inclui, além disso, as despesas de
deslocamento. O mais interessante é que esse pagamento é feito de uma forma imediata e em dinheiro: ao sair da
sala de audiências, a testemunha já passa por um guichê existente no interior do fórum, onde recebe o que lhe cabe.
Seria da mais salutar justiça que o futuro Código de Processo Penal contivesse um dispositivo obrigando o
imediato ressarcimento das despesas de transporte efetuadas pelas testemunhas nos seus deslocamentos entre sua
residência e o fórum, pois é fato cediço que, especialmente nas grandes cidades, as passagens de ônibus gastas com
cada um desses deslocamentos têm um preço equivalente ao de um litro de leite e ao de dez pãezinhos do tipo
20
francês, itens que constituem a ração alimentar noturna e matinal de aproximadamente 70% das famílias do país.
intermédio do correio, mas essa solução também não tem se revelado tão barata, eis que, se a
correspondência não estiver acompanhada de um aviso de recebimento (que evidentemente onera
o preço da postagem), não há posteriormente como comprovar que ela foi entregue.
O consectário principal dessas formalíssimas oitivas de testemunhas é que,
amiúde, com as eventuais faltas de comparecimento, a autoridade e o escrivão ficam com um
horário vago, sem ter o que fazer, perdendo um precioso tempo. Tudo isso poderia ser evitado se,
a exemplo de como agem as polícias americanas, o investigador fosse até a residência ou local de
trabalho da testemunha e a entrevistasse, anotando os dados mais importantes num pedaço de
papel ou num caderninho para posterior transcrição num relatório de diligência, que seria
integrado ao corpo da investigação, quer se tratasse de um caso de primeiro, segundo ou
terceiro grau, consoante a classificação anteriormente proposta.
No entanto, é importante frisar que não se pretende aqui que se acabe
definitivamente com coleta de depoimentos de testemunhas na repartição policial.
Ela deve continuar, desde que restrita apenas a casos de real necessidade.
Na maioria esmagadora das vezes, a presença de uma testemunha na
polícia poderá ser substituída por uma entrevista – em sua residência ou em seu local de trabalho
– realizada pelo policial encarregado da investigação, ou por qualquer outro policial devidamente
orientado por aquele encarregado.
Nas poucas vezes em que a presença da testemunha na repartição policial
for necessária, o seu depoimento deverá ser colhido da forma mais informal possível, evitando-se
no texto então produzido fórmulas sacramentais e dizeres inúteis, tais como “aos tantos dias”,
“presente em cartório Fulano de Tal”, “na presença do Delegado de Polícia Beltrano”,
“comigo seu escrivão ao final declarado e assinado”, “aos costumes disse nada”,
“compromissado na forma da lei”,17 e outras sandices de igual jaez.
Especialmente nas investigações de segundo e terceiro graus, onde
trabalharão simultaneamente mais de um investigador, seria conveniente que se adotasse a
sistemática empregada pela polícia alemã, permitindo-se, num mesmo termo de declarações, que
mais de um policial faça perguntas à testemunha.
Ainda segundo esse método alemão de coleta de declarações,
desnecessário se faria consignar no texto o nome de quem está formulando as perguntas, pois o
que interessa ao esclarecimento dos fatos numa fase inquisitorial é o que a testemunha disse e
não o nome e o cargo de quem fez as perguntas.
Essa mesma metodologia de trabalho deveria ser empregada com relação
aos suspeitos da prática do delito em apuração: entrevistas em sua residência ou local de trabalho
e somente em casos muito especiais ou de grande complexidade proceder-se-ia a tomada de
declarações na repartição policial.
Com respeito especificamente ao suspeito da autoria do delito investigado,
vale a pena, por oportuno, fazer aqui algumas observações críticas à sistemática atualmente em
vigor.
Estabelece o artigo 6.°, inciso V do CPP que a autoridade policial, logo que
tiver conhecimento da prática de infração penal, deverá “ouvir o indiciado, com observância, no
17
Não há exemplo mais perfeito e acabado de expressão inútil do que essa de “compromissado na forma da lei”
(ou sua equivalente “prestado o compromisso legal de dizer a verdade”). Qualquer delegado de polícia que seja
bacharel em Direito sabe que a testemunha, tenha ou não prestado esse tal compromisso, está obrigada a falar a
verdade. Mesmo quem esteja legalmente desobrigado de depor, se porventura abre mão dessa prerrogativa, está
obrigado a dizer a verdade. Não obstante tudo isso, a nossa polícia judiciária continua a empregar a tal expressão no
21
texto dos depoimentos, por amor ao rococó, por misoneísmo, ou por pura teimosia.
que for aplicável, do disposto no Capítulo III do Título VII deste Livro,18 devendo o respectivo
termo ser assinado por 2 (duas) testemunhas que lhe tenha ouvido a leitura”.
Esse dispositivo mal redigido – e o é pelo simples fato de conter a
preguiçosa e vaga expressão “no que for aplicável”, onde o legislador deixou ao arbítrio da
polícia a interpretação do que é e do que não é aplicável – deu azo a um dos maiores absurdos e a
uma das mais supremas injustiças de que a processualística penal tem conhecimento.
Graças a esse mostrengo jurídico, a praxe policial criou um instituto
jurídico denominado de “indiciação”, cujo rito tem traços do mais autêntico ranço medieval.
Essa chamada “indiciação”, que não está prevista em nenhum rincão do
código em vigor, consiste num ato de autoridade formal e discricionário em que o delegado de
polícia decide, do alto de sua sapiência, que determinada pessoa foi o autor do delito investigado.
Se essa decisão se limitasse apenas à tarefa de apontar ou indigitar o autor
de um delito, até que não haveria nada de mais, pois conforme ficou dito alhures uma das
missões precípuas da polícia judiciária é justamente apontar à Justiça os autores dos delitos.
Contudo, o pior é que, com base nessa “indiciação” – que algumas
correntes jurídicas vernáculas mais modernas chegam até a apontar como um ato típico de
jurisdição, opinião essa de que discordo – a polícia criou uma série de violações e maus tratos
aos direitos individuais que se constituem num autêntico absurdo.
Ser indiciado, no Brasil de hoje, significa ser submetido a um auto de
qualificação e interrogatório criado especificamente para isso,19 pontapeando-se a própria letra
da lei, que se refere claramente a um “termo”, e não a um “auto”, conforme se verifica no
dispositivo legal acima citado, que especificamente trata do tema.
Ser indiciado significa, antes de ser condenado pela Justiça e até mesmo
sem uma acusação formal, ter o seu nome e qualificação completa incluídos numa lista de
duvidosa utilidade elaborada pelo Instituto Nacional de Identificação, dali saindo somente no
caso de uma absolvição e, mesmo assim, depois de um cansativo e vexatório trâmite burocrático.
Ser indiciado significa, por fim, submeter-se a uma série de perguntas
indiscretas e constrangedoras sobre sua vida pessoal, por ocasião da elaboração de um
famigerado “boletim de vida pregressa”, que não está previsto na Lei, mas que é fruto de uma
macaqueada interpretação do inciso IX do artigo 6.° do CPP, que determina que a autoridade
policial averigúe a vida pregressa do indiciado, diligência essa que, por segnícia ou falta de
meios, foi com o passar do tempo sendo substituída por aquele iníquo “boletim”.
Há, contudo, luz no final do túnel.
Ser indiciado no Brasil já significou passar por cousas muito piores, como
é o caso, por exemplo, de ser fotografado de frente e de perfil com uma humilhante tabuleta
pendurada no pescoço; de ser identificado pelo processo datiloscópico mesmo quando fosse
civilmente identificado; e de ter a sua condição de mero indiciado declinada em eventuais
certidões de antecedentes criminais que fossem requeridas à repartição policial com o fim de
atender exigências de outras burocracias não menos absurdas existentes pelo país afora.
A Constituição Cidadã de 1988 e leis de conteúdo mais humanista como é
o caso da Lei n.º 6.900/81, que acrescentou um parágrafo único ao artigo 20 do CPP demonstram
18
É a parte do CPP compreendida entre os artigos 185 e 196, que trata do interrogatório do acusado pela autoridade
judiciária, no curso do processo penal.
19
Algumas instituições chegam ao requinte de redigir esse auto em papel de cor berrante, distinta do restante dos
22
autos do inquérito.
que realmente há luz no final do túnel e que outros avanços poderão ser conseguidos, sendo a
edição de um novo código de processo penal uma ocasião azada para isso.
O futuro código processual deverá olhar a figura do indiciado à luz dos
novos tempos, inclusive tratando o seu interrogatório ou entrevista pela polícia de uma forma
mais humana, sensata e eficaz.
Sendo o interrogatório do indiciado uma diligência de caráter puramente
facultativo, eis que a própria Constituição Federal lhe concede o direito de ficar calado, é
realmente uma falta de bom senso que, quando ele opte por falar, a sua versão provisória dos
fatos tenha que ser, conforme exige o Código atual, assinada por cinco ou seis pessoas, scilicet:
ele próprio, o delegado, o escrivão, duas testemunhas e o advogado que porventura o
acompanhe.
Continuar a adotar semelhante procedimento para uma diligência de caráter
meramente provisório e essencialmente informativo é uma perda preciosa de tempo e significa
gastar muita pólvora com pouca caça, demonstrando, a fortiori, uma visível falta de consciência
ecológica, porquanto nossas árvores muito agradeceriam se gastássemos menos papel com tanta
bobagem.20
O perfil dramático dessa estranha realidade - que parece extraída de
alguma peça do chamado "teatro do absurdo", do genial IONESCO - é melhor percebido quando
ela é comparada com situações semelhantes, vividas na prática diária por profissionais de outras
áreas do conhecimento científico, como é o caso, por exemplo, da medicina.
As vivências enfrentadas pelos profissionais da área médica, num hospital,
guardam, em sua dinâmica, uma certa semelhança com aquelas experimentadas pelos integrantes
da polícia judiciária dentro de uma repartição policial, porquanto todos os casos tratados em
ambas essas atividades têm um início, uma evolução e um fim.
No âmbito policial, essas três fases seriam representadas, respectivamente,
pela notitia criminis, pelas investigações e pelo relatório final do inquérito. Na área médica, elas
poderiam, mutatis mutandis, estar identificadas na apresentação do paciente no hospital, no
subseqüente tratamento e na alta (ou, no pior dos casos, no óbito).
As semelhanças entre essas duas atividades humanas são tão acentuadas,
que se poderia até - num esforço generoso de imaginação - comparar a mobilização causada num
atendimento de emergência de um hospital àquela provocada numa delegacia de polícia para a
lavratura de um auto de prisão em flagrante delito.
Contudo, as similitudes param por aí.
Embora lidem com bens jurídicos infinitamente mais valiosos (no caso a
vida e a saúde humanas), a forma como os profissionais de branco tratam os casos trazidos às
suas apreciações profissionais é muito mais célere e desenvolta do que aquela com que os
chamados homens da lei reagem aos casos que lhes incumbe solucionar.
De início, como foi já mencionado alhures, o médico não precisa baixar
uma portaria para internar um paciente, não necessita lavrar um despacho para que a enfermeira
faça o que deve fazer, e nem esta precisa "certificar e dar fé" de que as ordens do médico foram
rigorosamente cumpridas.
20
A volúpia pela produção de papel chega a ser tamanha que, até bem recentemente, em algumas instituições
policiais, os autos de inquérito policial eram produzidos em duplicata, apesar de o artigo 9.º do CPP estabelecer que
eles sejam produzidos num único processado. O fútil motivo para esse desperdício era que os autos poderiam se
extraviar (na polícia ou na Justiça), e a existência prévia de uma duplicata facilitaria um eventual trabalho de
23
restauração. Mais uma vez, a desconfiança como suprema lei.
Por seu turno, o delegado bacharel, para dar início ao seu trabalho, precisa
redigir uma portaria ridícula não prevista no Código de Processo Penal, a qual, depois de editada
no computador pelo escrivão, retorna às suas mãos, para que a confira e assine. Só a partir daí é
que ele começa oficialmente a trabalhar, isso sem falar em outras invencionices burocráticas,
como é o caso, por exemplo, de inscrever num cartapácio chamado de livro tombo todos os
dados da portaria e depois incluir novamente aqueles mesmos dados numa rede de computador
para que os escalões superiores tenham conhecimento de que a montanha pariu um rato, isto é,
foi instaurado um inquérito policial.
Começando dessa forma bizarra o seu trabalho de rotina, o delegado
bacharel precisa, a partir daí, transmitir as suas ordens por intermédio de um termo formal
denominado despacho. E o pobre do escrivão, depois que executa o que foi mandado no
despacho, exara uma certidão, informando oficialmente que cumpriu o que o delegado lhe
mandou fazer.
Qualquer pessoa que saiba ler, ao examinar as folhas dos autos que se
seguem a um desses despachos de inquérito, poderá facilmente constatar se o escrivão cumpriu
ou não cumpriu a ordem que lhe foi dada, mas mesmo assim ele tem que expedir aquela inútil
certidão para dar fé de que fez o que deveria fazer.
E assim, de despacho em despacho, e de certidão em certidão - isso sem
falar em inúmeros outros termos intermediários, tecnicamente denominados de termos de
movimentação (cujas espécies mais conhecidas são o de data e o de conclusão), que são
inseridos antes e depois de cada despacho - o inquérito chega finalmente ao seu termo, meses e
meses depois da edição da portaria instauradora.
Seriam aqui oportunas pelo menos duas perguntas.
Por que o médico não exige que a enfermeira certifique que ministrou o
medicamento ao paciente internado? Não é a vida humana, por acaso, um bem muito mais
valioso e juridicamente relevante do que a investigação de um crime qualquer?
A resposta a essas pertinentes indagações está no fato de que o médico
confia na enfermeira.
Ele sabe que ela, como profissional que é, cumprirá o seu dever. E se
algum eventual descumprimento ocorrer, será uma exceção que receberá os tratamentos técnico,
administrativo e jurídico adequados.
Entre aqueles dois profissionais de saúde, por razões históricas,
deontológicas e de doutrina de trabalho, não se estabeleceu a desconfiança como suprema lei,
como sói ocorrer entre os profissionais que militam nas repartições policiais, onde só vale o que
está escrito.
É a desconfiança que exige que se faça um documento chamado portaria, a
fim de mais tarde se poder provar que um inquérito foi instaurado.
É a desconfiança que exige que tal portaria seja registrada num livro "sem
emendas nem rasuras" porque, se algum dia a portaria sumir, o livro possa provar que ela
existiu, sendo que, ultimamente, outros burocratas não menos desconfiados acharam que os
dados da portaria deveriam também ser inseridos num programa de computador, para "futuras
verificações e estatísticas".
É a desconfiança que faz com que os autos contenham despachos para
mostrar que algum delegado mandrião não ficou o tempo todo ocioso e que realmente trabalhou,
dando ordens escritas para que se fizesse alguma coisa na investigação.
Et sic de similibus...
24
A propósito dessas invencionices de nossa polícia judiciária, nunca é
demais lembrar o profícuo magistério de FREDERICO MARQUES, ao tratar do tema:
"O inquérito, como instrumento de denúncia, não está sujeito a formas
indeclináveis, tanto que, a não ser para o interrogatório e para o auto de prisão
em flagrante, norma alguma está traçada, pelo Código de Processo Penal, no
tocante ao assunto. Tudo o que vem disposto sobre as atividades da autoridade
policial, no texto do Código, constitui uma série de preceitos ditados em razão da
eficiência investigatória da autoridade policial, e não como procedimento ou
modus faciendi obrigatório." 21
O pior de tudo é que, seguindo aquela fatalista advertência bíblica de que
abismo invoca abismo, a invenção desnecessária desses trâmites e filigranas burocráticos na
confecção dos inquéritos policiais propiciou a geração em cadeia de outros e outros mais, que se
apoiam mutuamente, numa ilusória e sofismática rede de aparente necessidade.
É esse o caso das chamadas corregedorias policiais.
Criadas com a dupla missão de controlar a qualidade dos trabalhos
cartorários das polícias judiciárias e investigar eventuais desvios disciplinares dos policiais em
geral, essas tais corregedorias não passam de mais uma burocracia anichada nas já
excessivamente burocratizadas polícias brasileiras, ataviada com todos os seus inevitáveis
mecanismos de controle de duvidosa eficácia, consistentes nos onipresentes livros, registros,
comunicações, relatórios e pareceres sub censura, indefectivelmente produzidos por funcionários
policiais mais afeitos aos leguleios do bacharelismo do que às asperezas dos trabalhos de rua.
Com a honrosa exceção da atividade disciplinar, que tem geralmente dado
ótimos resultados na apuração e punição dos desvios de conduta dos policiais, essas tais
corregedorias policiais são o exemplo acabado de como uma burocracia inútil pode ensejar a
criação de outra, mais inútil ainda, para a fiscalizar.
Para se ter uma idéia da verdade dessa assertiva, vejamos como é feito esse
controle de qualidade dos inquéritos policiais por essas corregedorias.
Vez por outra, mediante um trabalho chamado de "correições", os policiais
burocratas das corregedorias examinam os inquéritos que tramitam em determinada unidade
policial e, ao final, alertam as autoridades policiais responsáveis pela condução daqueles feitos
para eventuais erros ou omissões de natureza formal percebidos durante o exame, com
observações do tipo: "Falta uma assinatura aquí", "Falta um carimbo ali", "Houve demora para
proferir o despacho tal", "Esqueceu-se de compromissar a testemunha de fls x", "O termo de
autuação da capa do inquérito está incompleto", etc.
Ou seja, trata-se de uma burocracia zelando pelo cumprimento das regras
inúteis de outra burocracia.
No que tange ao mérito do trabalho que estiver sendo feito naquele
inquérito examinado o burocrata corregedor guarda o mais absoluto silêncio, mesmo porque ele
não chega sequer a examinar esse aspecto.
E não o faz ao bisonho argumento, de duvidosa ética, de que uma
autoridade policial não deve interferir no mérito do trabalho da outra, que é livre para conduzir a
investigação como melhor lhe aprouver, desde que observe os preceitos legais que regem a
espécie. Tudo em respeito àquela máxima "le style est l'homme même" (ou seja, "o estilo é o
homem"), celebrizada por BUFFON no seu famoso "Discurso sobre o Estilo", proferido na
Academia Francesa, em 1753.
21
MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal. Op. cit. p. 192-193, v. I.
25
Ora, se é para ficar restrita ao exame dos penduricalhos do inquérito
policial, sem examinar o mérito do trabalho do delegado, para que então essa correição? Para que
então essas burocratizadas corregedorias, constituídas geralmente de funcionários de bom perfil
disciplinar e intelectual, desviados de seus afazeres normais de policiais para o exercício daquela
inútil tarefa de correição?
Bem melhor teria sido se os bacharéis não houvessem inventado tantas
formalidades e adereços para o inquérito policial - que, de resto não estão na lei nem no espírito
desta - e humildemente houvessem deixado o trabalho de controle de qualidade para ser feito
diretamente pelo dono da ação penal, o Ministério Público, que é quem possui legitimamente o
poder de corrigir os desvios de rota porventura cometidos no curso das investigações pelos seus
encarregados.
Bem melhor ainda será quando se abolir de uma vez por todas do universo
jurídico brasileiro a famigerada figura do inquérito policial, o que sinceramente se espera que
seja feito pela douta Comissão de Notáveis ora encarregada de elaborar um novo Código de
Processo Penal para o Brasil.
O que se propõe aqui é que o novo Código preveja uma investigação
policial enxuta e escorreita, livre de autuações, despachos, termos e quaisquer atos e fórmulas
inúteis. Livre de delegados e de escrivães22 e executada por policiais profissionais integrantes de
uma carreira única,23 que sejam eficientes e especializados na difícil tarefa de investigar.
Em suma, uma investigação que seja orientada com sabedoria e
objetividade pelo Ministério Público, visando, acima de tudo, a descoberta da verdade e não uma
cega caça às bruxas, que a transforma nos dias que correm numa autêntica fogueira de vaidades
consumidas naqueles segundos de fama vividos à luz dos holofotes dos meios de comunicação
desta pátria do rigoroso inquérito.
♦ ♦ ♦ ♦ ♦
6. Por uma justiça mais célere
Além das inovações propostas no tópico anterior é também importante se
registrar algumas outras sugestões, que embora não digam respeito diretamente à investigação
policial, são aqui inteiramente oportunas, porquanto buscam contribuir para o aperfeiçoamento
do processo penal como um todo.
Como ficou dito anteriormente, embora o inquérito policial tenha uma
considerável e ponderável contribuição para as mazelas e o estado de morosidade e falência
generalizada em que se encontra a Justiça Penal no Brasil, seria de todo injusto lhe querer
atribuir, de forma exclusiva, a responsabilidade por essa situação.
22
Com todo o respeito e a reverência que, de coração, merece essa laboriosa categoria de policiais, não posso deixar
de nela enxergar o grande vetor da propagação da burocracia e da papelada pelas repartições policiais brasileiras.
Dificilmente se converteriam em realidade muitos dos delírios inventados pelos delegados bacharéis para o inquérito
policial se não houvesse escrivães para realizar a árdua tarefa de os pôr no papel, pois uma cousa é inventar um
trâmite para outrem ficar encarregado de fazer, enquanto que outra - bem mais rara e difícil - é criar mais trabalho
para si mesmo. O advento dos processadores de texto está a indicar que a categoria de escrivães de polícia está com
os dias contados e que, num futuro bem próximo, os próprios encarregados das investigações fiquem com a
incumbência de produzir os poucos papéis que se fizerem necessários à realização daquele trabalho.
23
26
Assim o é a melhor polícia judiciária do mundo, o FBI.
A nossa Justiça e o nosso Ministério Público também têm a sua cota de
culpa nesse cartório.
Um novo código de processo penal que não cuide de uma renovação da
metodologia de trabalho daquelas duas instituições estará fadado a repetir o fracasso
experimentado pelo atual.
Para um policial como o que escreve estas reflexões seria querer ir além do
sapato (“ultra crepidam”, como diriam os romanos), e trair o rigor da metodologia do trabalho
científico, tentar enveredar com profundidade e autoridade por uma seara onde nunca militou,
como é o caso da judicatura e do exercício das funções de “parquet”.
Contudo, olhando a situação sob o prisma policial, especialmente naquele
conjunto intercessão, onde as atividades da polícia, do Ministério Público e da Justiça
apresentam coincidências e até se complementam, é do melhor alvitre aventurar algumas
sugestões que são fruto de constatações verificadas na prática diária.
Em primeiro lugar, falemos da morosidade.
Com relação a essa praga – e mais especificamente com respeito à
principal causa por que ela sempre vicejou em nossa Justiça – RUI BARBOSA já denunciava em
sua célebre “Oração aos Moços”, no longínquo ano de 1921:
“Nada se leva em menos conta, na judicatura, a uma boa fé de ofício que o vezo
de tardança nos despachos e sentenças. Os códigos se cansam debalde em o
punir. Mas a geral habitualidade e a conivência geral o entretêm, inocentam e
universalizam. Destarte se incrementa e desmanda ele em proporções
incalculáveis, chegando as causas a contar idade por lustros, ou décadas, em vez
de anos.
Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta.
Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das
partes, e, assim, as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juízes tardinheiros
são culpados, que a lassidão comum vai tolerando. Mas a sua culpa tresdobra
com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o
delinqüente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente.
Não sejais, pois, desses magistrados, nas mãos de quem os autos penam como as
almas do purgatório, ou arrastam sonos esquecidos como as preguiças do
mato.”24
Nos dias de hoje, esse alerta do insigne civilista pátrio é de uma atualidade
inconteste e cai como bem ajustada carapuça não somente sobre as cabeças de certos juízes
criminais mandriões, mas também sobre as de alguns modorrentos representantes do Ministério
Público, que recebem os inquéritos policiais findos e demoram excessivamente a oferecer uma
denúncia ou solicitar um arquivamento, desrespeitando de forma flagrante o prazo estabelecido
no artigo 46 do atual CPP.
Essa mazela será consideravelmente diminuída com a adoção da oralidade
processual plena e poderá ser totalmente remediada se o novo código contiver um dispositivo
que faça incorrer em responsabilidade criminal os representantes do “parquet” que
injustificadamente desrespeitarem o prazo que lhes seja estipulado por Lei para agir.
Outra medida que contribuiria para a celeridade da Justiça Criminal seria a
criação de um dispositivo que, na medida do possível, obrigasse os representantes do MPF a
oferecer denúncias em casos onde houvesse evidências da desnecessidade de uma prévia
investigação policial.
24
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 5.ª ed., Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1999.
27
Somente para exemplificar, as autoridades policiais estão fartas de mandar
instaurar inquéritos para apurar fatos delituosos praticados por funcionários públicos e já
detalhadamente investigados mediante processo administrativo disciplinar nas repartições de
origem.
Os representantes do Ministério Público, quase que de uma forma
unânime, ao receberem cópias daqueles processos para adoção de medidas no âmbito penal,
preferem as mandar para a polícia instaurar inquérito do que capeá-las com uma denúncia e
endereçá-las ao juízo competente.
Resultado: torna-se a repetir na polícia a mesma lengalenga de portaria,
inquirições, despachos e quejandos já produzidos durante a instância administrativa, perdendo-se
precioso tempo para depois reproduzir tudo, pela terceira vez, perante o togado.
O pranteado cineasta italiano FELLINI teria feito um memorável filme se
desse inusitado proceder houvesse tido ciência.
Como ainda temos o correto argentino HECTOR BABENCO, não estamos
de todo livres de, algum dia, ver essa ridícula pantomima jurídica exibida nas nossas telas de
cinema.
Outra observação que cabe aqui ser feita diz respeito à qualidade do
trabalho do Ministério Público e da Justiça.
Essa qualidade é função do preparo profissional dos funcionários que
desempenham aqueles encargos.
Acabou-se a época do juiz e do promotor sabe-tudo.
A complexidade das relações humanas não mais se compadece com a falta
de especialização daqueles que estão encarregados de defender os interesses da Sociedade e dos
que estão incumbidos de julgar os atos e fatos decorrentes dessas relações.
A criação das escolas da magistratura foi um avanço considerável que
necessita ser imitado pelo Ministério Público.
Saber julgar e saber promover a justiça não consiste apenas em conhecer os
meandros e detalhes da liturgia processual nem ter de memória o último grito da doutrina e a
derradeira jurisprudência sobre tema polêmico saída dos fornos dos tribunais.
Os funcionários encarregados desses dois sublimes ministérios hão que
conhecer, pelo menos com uma razoável profundidade, a essência dos temas que estão sob suas
responsabilidades.
Daí se infere que as escolas de magistratura e as futuras escolas do
Ministério Público não deverão se limitar apenas a preparar os futuros juízes e promotores, mas
também buscarão aperfeiçoar e especializar os que já desempenham esses misteres.
Cursos sobre legalização de ativos provenientes de atividades ilícitas,
mercados de capital, fraudes alfandegárias e cambiais, fraudes contábeis, crimes cometidos por
computador, além de outros temas de igual complexidade e atualidade devem ser incentivados e
ministrados a representantes do Ministério Público e da magistratura, para que esses funcionários
se capacitem a melhor executar as suas missões.
É um espetáculo às vezes até constrangedor, quando se está como
testemunha ou advogado numa audiência e se constata que o julgador não entende quase nada do
assunto em julgamento e, de uma forma tímida, como um cordeiro diante de vorazes lobos,
começa a formular perguntas pueris para se situar num universo que lhe é inteiramente estranho.
28
A posição de um magistrado, que por si só já é de inferioridade com
relação às partes que diante de si estão sentadas – pois todas elas sabem pelo menos uma parte da
verdade – fica verdadeiramente patética quando ele desconhece completamente a natureza do
tema que lhe está sendo apresentado para julgar.
Uma especialização dos magistrados e promotores promovida por suas
escolas e materializada em varas especializadas no julgamento de determinados tipos de delitos
contribuirá de forma decisiva para uma melhor aplicação da Justiça e, sem dúvida alguma,
evitará a absolvição de muitas ratazanas rabilongas com base na clássica “falta de provas”.
Tudo isso sem falar na conseqüente celeridade de julgamento que essa
especialização acarretará, porquanto não é exagero imaginar que a raiz da demora da prolação de
muitas sentenças criminais possa estar no fato de os juízes estarem estudando de última hora, em
livros especializados, o assunto que lhes está sendo submetido a julgamento.
Como corolário dessa última proposta, que afinal muito pouco tem a ver
com a essência do futuro código de processo penal, salvo figurar em alguma disposição geral e
transitória, a exemplo do que ocorre com a hoje letra morta do artigo 44 da Lei n.º 6.368/76, é
preciso também que se especializem os policiais para que a celeridade da prestação jurisdicional
não seja enfraquecida no primeiro dos seus elos.
Para conduzir uma investigação é indispensável conhecer o assunto que se
está investigando, sob pena de conduzir os trabalhos ao mais rotundo fracasso.
Esse conhecimento do assunto, por outro lado, é também um importante
fautor da celeridade e da desenvoltura dos trabalhos investigatórios.
A Polícia Federal, no que tange à especialização do seu pessoal, tem feito
notáveis avanços.
Assim sendo, ao exigir como pré-requisito de ingresso nos seus quadros
que o candidato seja diplomado por uma universidade, ela investiu pesadamente no processo de
seleção, possibilitando o recrutamento de pessoas com formação e habilidades consentâneas aos
desafios hoje enfrentados pela polícia judiciária no combate e na investigação da criminalidade
deste Terceiro Milênio.
Além disso, a referida instituição criou no seu organograma uma divisão
especializada em crime organizado e na condução de inquéritos especiais, onde militam policiais
treinados e capacitados a investigar os chamados crimes do colarinho branco e as fraudes
financeiras de grande envergadura.
Esse trabalho tem sido complementado pela modernização de outras
divisões especializadas, como é o caso da Divisão de Repressão a Entorpecentes, que hoje adota
uma metodologia investigatória calcada nos parâmetros de suas congêneres nos países mais
avançados e com maior tradição no combate a essa modalidade específica de criminalidade.
♦ ♦ ♦ ♦ ♦
7. Por uma justiça definitiva
O futuro código necessitará também sanear um dos males existentes no
sistema atual, que se constitui num dos maiores atravancos à celeridade e à desenvoltura da
Justiça Criminal no Brasil.
Trata-se da chamada indústria do provisório.
29
Coarctada em seus anelos de justiça célere por um sistema
tradicionalmente lento e emperrado, a sociedade brasileira, especialmente a partir da vigência da
Constituição de 1988, passou a se socorrer de decisões provisórias para fazer valer os seus
pretendidos direitos.
Surgia então a chamada indústria das liminares, que, ainda nos dias que
correm, funciona a plenas chaminés.
Nunca, nesta Terra de Santa Cruz, se reconheceu tanto a existência de
"fumaça do bom direito” e de “perigo de mora”. É tanta fumaça e tanto perigo, que se tem a
impressão de que o país é um autêntico monturo pegando fogo.
Escorada na muleta das liminares, a aplicação da Justiça vem capengando
ao longo dos últimos anos, deixando o exame do mérito e as decisões definitivas para as calendas
gregas e estabelecendo uma realidade jurídica provisória, que, de tanto ser invocada e aplicada
com a urgência de quem pressiona a válvula de um extintor durante um incêndio, leva os
magistrados, premidos pelas circunstâncias – e não com pouca freqüência – a acumular trabalho
desnecessariamente e a descuidar da aplicação do Direito em sentenças definitivas para atender
às instâncias do liminar e do interino.
Essa realidade da Justiça Civil contaminou também a Justiça Criminal.
De tanto enxergar nas ruas e clubes elegantes de suas cidades criminosos
impavidamente impunes – mercê de um código anacrônico e, sob o aspecto de recursos e
escapatórias legais, até permissivo – a sociedade, por intermédio dos seus segmentos formadores
de opinião e de suas lideranças mais comprometidas com a aplicação da Justiça, pressionou a
classe política em busca de soluções para aquela acintosa situação.
Daí resultou que, a partir do final dos anos oitenta, seguindo-se uma
política criminal de afogadilho, procedeu-se a edição de uma enxurrada de leis cujo espírito é
voltado, basicamente, à colocação de gente na cadeia, ainda que provisoriamente.
Para arrefecer a sanha dos noticiários noturnos e dar à população a falsa
impressão de que existe alguma justiça neste país, a política criminal do legislador pátrio passou
a ser baseada no lema “prenda-se, ainda que provisoriamente, mas que se prenda”.
Dentro dessa cosmovisão equivocada, verificou-se que, apesar de o CPP
prever no seu artigo 311 a prisão preventiva, foi sancionada a Lei n.º 7.960/89, que instituiu a
prisão temporária.25
Depois, a Lei n.º 8.072/90, que dispõe sobre os crimes hediondos,
engrossou as fileiras dos presos provisórios, ao determinar que esse tipo específico de crime
fosse insuscetível de liberdade provisória.
O mesmo aconteceria cinco anos mais tarde com a Lei 9.034/95, cujo
artigo 7.° vedou a concessão de liberdade provisória aos participantes de organizações
criminosas.
25
Nunca entendi a ontologia dessa tal prisão temporária inventada pela Lei n.° 7.960/89, até mesmo porque o CPP
considera a prisão preventiva como uma espécie de prisão provisória (ao lado da prisão em flagrante e da prisão
administrativa), tanto é que tratou das três em distintos capítulos do Título IX do Livro I, sugestivamente
denominado “DA PRISÃO E DA LIBERDADE PROVISÓRIA”. A toda evidência, essa prisão temporária criada
por aquela lei apresenta, desde o seu nascedouro, um autêntico paradoxo de identidade, porquanto pela sua essência
ela há de ser inevitavelmente considerada dentro da sistemática processual penal tupiniquim como uma espécie de
prisão provisória. Ou seja: por incrível que pareça, a malfadada lei criou uma prisão provisória que nada mais é do
que uma modalidade de prisão provisória, eis que inexiste diferença ontológica entre o temporário e o provisório.
Isso é o que se poderia chamar de um burdo atentado à boa técnica legislativa, que o futuro Código de Processo
30
Penal precisará sanear.
Dois anos mais e a Lei n.º 9.455/97 daria a sua contribuição para o
aumento de presos provisórios ao tornar o crime de tortura inafiançável.
Finalmente, em 1998, a Lei n.º 9.613 foi também caudatária dessa litania,
ao estabelecer em seu artigo 3.º que os crimes de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e
valores são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória.
Em suma: prenda-se gente, ainda que provisoriamente, mas que se prenda.
Os resultados de semelhante política não tardaram em aparecer.
Presídios e cadeias superlotados, graças a uma quantidade incrível de
pessoas que ainda não foram a julgamento e a uma parcela não desprezível de outras que, apesar
de haverem cumprido suas penas, não foram ainda libertadas porque o Judiciário, de tão
assoberbado que está com a solução de problemas provisórios, não teve sequer tempo de soltar
quem já cumpriu pena e que, por ser pobre, não pôde pagar um advogado que exigisse do
sistema o cumprimento de sua obrigação legal.
Tal conjuntura revelou que os sistemas judiciário e carcerário do Brasil não
estavam preparados para a infeliz novidade, deixando bem visíveis as suas falhas e o seu cruel
modus operandi, fazendo explodir, qual válvulas de segurança de uma caldeira em descontrole,
rebeliões quase diárias – e às vezes até simultâneas - em todos os presídios de todos os Estados
da Federação.
Essa triste realidade deve ser encarada corajosamente pelo futuro Código
de Processo Penal, mediante dispositivos que busquem numa Justiça Penal mais célere e de
resultados definitivos o mais rapidamente possível.
A sociedade não pode continuar a ser ludibriada pela cortina de fumaça de
uma justiça baseada em prisões provisórias e em sentenças de mérito que, de tantos recursos e
embargos que ensejam, nunca chegam a ser definitivas.
♦ ♦ ♦ ♦ ♦
8. Por uma justiça mais humana
Uma justiça criminal que busque unicamente satisfazer a ânsia de vingança
da sociedade, suscitada quando esta é atingida pelo fenômeno do crime, não pode ser
considerada como justa, e muito menos como eficaz ou humana.
A justiça criminal não encerra a sua missão com a mera aplicação de uma
pena ao infrator.
Pretender que ela floresça sem uma correspondente política criminal é
querer plantar sem adubo, nutrir sem alimento ou educar sem o exemplo.
A prestação jurisdicional no campo penal, ao contrário do que sucede no
âmbito civil, não se encerra com uma sentença transitada em julgado.
Muito pelo contrário: a sentença condenatória no âmbito penal é apenas o
começo, conforme preconiza a mais moderna doutrina penal.
As prisões não podem ser entendidas como depósitos de gente, onde
devem ser largados e esquecidos os condenados por crimes cuja gênese nem sempre está nas
deformidades de caráter do apenado, mas antes nos fios, pontos e pespontos de um tecido social
carcomido que está em vias de se romper.
31
Nessa ordem de idéias, ao se falar ou refletir sobre a reforma do Código de
Processo Penal, não se pode deixar de ir um pouquinho mais além para tecer considerações,
ainda que abreviadamente, sobre a problemática da política criminal e, mais especificamente, a
execução penal, que, no Brasil, desde o advento da Lei n.º 7.210/84, deixou de ser tratada
naquele codex.
Perfilhando as tendências políticas e doutrinárias da Criminologia mais
moderna, deverá o novo código abster-se de tratar do assunto da execução penal em seu texto,
embora seja de se reconhecer que o tema da execução guarda fortes vínculos com o processo que
a precede.
Apesar desse parentesco – na verdade, filiação – inegável, significará um
retrocesso, principalmente em termos de política criminal, voltar a deixar a execução penal
amarrada ao texto do código, porquanto é fato cientificamente reconhecido que esta está muito
mais relacionada com a maleabilidade da Criminologia do que com a rigidez de rito do processo.
Nesse particular, a chegada da nossa Lei de Execução Penal, em 1984, foi
um marco de considerável progresso no tratamento da questão penitenciária.
Contudo, muito há por se fazer nessa seara.
O tratamento científico que a doutrina vernácula vem dando à execução
penal é ainda muito tímido, quando comparado ao de outros países com tradição de legislação
codificada.
Para se ter uma idéia dos avanços que vêm ocorrendo nesse campo, basta
dizer que, em muitos países da Europa (Alemanha e Espanha entre eles) a execução penal já
adquiriu status de ciência independente, sendo inclusive disciplina destacada nos cursos de
formação jurídica nas faculdades de direito.
Dessarte o Direito Penitenciário – ou, como querem alguns, o Direito da
Execução Penal – é hodiernamente considerado um ramo autônomo da ciência penal, uma tese
que já era defendida na Alemanha há mais de trinta anos, em 1969, por H. MÜLLER-DIETE, na
sua lapidar obra intitulada “Strafvollzugskunde als Leherfach und wissenschaftliche Disziplin”
(“Execução penal como matéria especializada de ensino e disciplina científica”).26
Essa evolução é resultante de um processo científico inevitável.
Desde os seus primórdios, a prestação jurisdicional no âmbito do Direito
Penal sempre se caracterizou pela existência de duas fases distintas: a declarativa, que se
encerra com o trânsito em julgado da sentença condenatória; e a executiva, que tem lugar a partir
do momento em que se verifica aquele fato jurídico.
Por uma infeliz cosmovisão da política criminal brasileira - freqüentemente
até confundida com política de segurança - o interesse dos juristas, dos doutrinadores e dos
legisladores em matéria penal sempre esteve voltado exclusivamente para a primeira fase da
prestação jurisdicional criminal, a ela dedicando as mais belas páginas e decisões do saber
jurídico pátrio, à medida que deixava a segunda – de igual e talvez superior importância –
relegada à mais ignominiosa indigência.
A melhor prova disso é hoje a escassa jurisprudência dos nossos tribunais
sobre a temática penitenciária, que ficou reduzida a uma mera atividade administrativa, entregue
quase que exclusivamente ao arbítrio de repartições penitenciárias ligadas ao Poder Executivo,
sob os olhares tolerantes dos juízes de execução.
26
Apud ANABELA MIRANDA RODRIGUES, in “Novo olhar sobre a questão penitenciária”, São Paulo,
32
Revista dos Tribunais, 2001, p. 7.
É como se os nossos doutos estudiosos e legisladores em matéria penal
houvessem lido pela metade as imortais lições de CESARE BECCARIA, ministradas no livro
“Dos Delitos e das Penas”, cuidando apenas das garantias do cidadão no curso do processo até a
prolação da sentença, mas deixando-o entregue à própria sorte a partir de quando é condenado.
Vive, portanto, a sociedade brasileira um inegável paradoxo humanitário:
enquanto a Constituição Federal e as adocicadas leis processuais garantem ao cidadão o direito
de não ser transformado num Josef K* (o protagonista da imortal obra “O Processo”, de
FRANZ KAFKA), permitem, por outro lado, que proliferem em nossos cárceres e ruas27
autênticos clones de Jean Valjean, como se fossem réplicas daquela sofrida personagem da obraprima “Os Miseráveis”, de VICTOR HUGO.
Nessas condições, de que valerão o advento de um código de processo e
uma justiça tecnicamente avançados se também não se cuidar da questão penitenciária?
Sem demagogias, é indispensável fazer desaparecer de uma vez por todas
do cenário nacional essa nódoa, até agora indelével, vivenciada diuturnamente por esses sofridos
“misérables” de hoje, nos nossos presídios, casas de custódia e de correção, conforme muito
bem retratou o médico DRÁUZIO VARELLA, no seu livro “Estação Carandiru”, uma leitura
indispensável para quem queira bem conhecer o lado humano e pouco comentado desse
abominável problema.
O último parágrafo daquela obra é, no mínimo, um patético alerta e bem
retrata o pouco caso que neste país se faz das vidas dos que estão por trás das grades:
"No dia 2 de outubro de 1992, morreram 111 homens no pavilhão Nove, segundo
a versão oficial. Os presos afirmam que foram mais de duzentos e cinqüenta,
contados os que saíram feridos e nunca retornaram. Nos números oficiais não há
referência a feridos. Não houve mortes entre os policiais militares." 28
Como policial que há mais de doze anos – em razão de especialização em
matéria de gerenciamento de crises e de negociação em delitos com tomadas de reféns – vem
acompanhando esse sem-número de rebeliões que ocorrem quase que diariamente nos presídios
brasileiros, tenho observado que, na esmagadora maioria das vezes, as exigências dos rebelados
não estão enfocadas na obtenção de fuga, mas na consecução de elementares melhorias das
condições carcerárias ou na adoção de simples medidas administrativas como o afastamento de
um diretor ou funcionários cruéis e intolerantes, a transferência de presos de reconhecida
periculosidade que estejam perturbando a tranqüilidade dos demais detentos e reclusos e, por
incrível que pareça, a soltura de presos que já cumpriram as suas penas.
Somente mediante uma concepção jurisdicionalizada da pena, que faça
desaparecer a medieval idéia de que cadeia é lugar de sofrimento, expiação e dessocialização do
homem, poderá ser promovida a proscrição sumária dessas fábricas de criminosos em que se
transformaram os estabelecimentos prisionais do Brasil e ser alcançado, em sua plenitude, o
modelo de sociedade “fraterna, pluralista e sem preconceitos” sonhada no Preâmbulo de nossa
Carta Magna.
27
Nelas deambulam tanto os foragidos do cruel sistema carcerário como os que já cumpriram suas penas e nada
mais devem à sociedade, mas que, graças ao preconceito, à dessocialização e à estigmatização social, aliados a um
sistema de reabilitação ineficaz, muitas vezes não conseguem um trabalho honesto e digno para ganhar o pão de
cada dia.
28
VARELLA, Dráuzio. Estação carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 295.
33
Um grande passo para que isso possa ser materializado será, com toda
certeza, a elaboração de um novo e moderno Código de Execução Penal abeberado nessas
concepções e que atue como um perfeito irmão gêmeo do futuro Código de Processo Penal.
O Código de Execução Penal terá a obrigação de estabelecer normas que
coíbam, de forma terminante, o atual descaso de nossos governantes e juízes para com os
cidadãos que estão presos.
Esse descaso tem sido tão calamitoso nos últimos tempos que muitos e
muitos presos - sejam eles condenados ou não - vêm sendo paulatinamente confinados nos
apinhados locais de custódia das delegacias de polícia, hoje transformados em autênticos
substitutos dos superlotados presídios e penitenciárias do país.
É fato cediço que muitas unidades de polícia judiciária estão sendo
forçadas a deixar de exercer as suas atividades de investigação criminal determinadas pela
Constituição Federal para se transformar em canhestras polícias penitenciárias, funcionando
como guardiãs dos presos das mais diversas origens e naturezas que superlotam os seus xadrezes.
O resultado desse absurdo desvio de funções é que, pelo país afora,
verdadeiras legiões de pessoas presas - tanto homens como mulheres, da jurisdição federal ou
estadual - são guardadas por funcionários policiais sem o mínimo de experiência, aptidão ou
treinamento para esse tipo específico de atividade.
Não raro são os próprios policiais que participaram das investigações que
resultaram na prisão daqueles custodiados os encarregados de prover alimentação, assistência e
vigilância às celas onde é aguardado o julgamento ou é cumprida a pena imposta pela Justiça.
Esse insólito convívio é essencialmente muito maléfico, ensejando um
contubérnio e uma promiscuidade que é prejudicial tanto para os presos como para os policiais,
não sendo incomuns a ocorrência de gravidezes indesejadas de presas, resultantes de
relacionamentos amorosos com policiais de menos escrúpulos, porquanto a eterna falta de
estrutura, de verbas e de pessoal sofrida pelas repartições policiais faz com que as
administrações, num flagrante desrespeito ao inciso XLVIII do artigo 5.º da Constituição
Federal, limitem a policiais do sexo masculino a missão de cuidar tanto de homens como de
mulheres, separados entre si por celas cuja privacidade quase sempre é assegurada apenas por
lençóis que as presas mais recatadas costumam amarrar nas grades.
Mas isso não é tudo.
Sabe-se que a efetuação de uma prisão é sempre um ato desagradável, para
não dizer chocante, que nunca deixa de guardar seqüelas e ressentimentos mútuos entre quem
prende e quem é levado preso.
Essa situação é especialmente agravada quando o policial que efetua a
prisão é o mesmo que participou das investigações, das diligências e das intermináveis horas de
trabalho que culminaram com aquele desenlace.
Como se pode então admitir que seja dado justamente a esse policial o
encargo de fiscalizar o cumprimento de uma eventual pena prisional do investigado?
Onde a neutralidade? Onde a isenção de ânimo? Onde a fleuma e a
reflexão para perceber que o condenado é um ser humano que, apesar de estar pagando com a
própria liberdade a sua dívida para com a sociedade, necessita de recuperação e de orientação
para ser mais tarde reintegrado ao convívio social, sob pena de se livrar solto um criminoso
profissional? Como atingir o colimado desiderato de reeducação e ressocialização com um
carcereiro que foi especificamente treinado para investigar e efetuar prisões, enxergando sempre
34
nos criminosos - alvo único do seu trabalho - os grandes inimigos da sociedade e dos homens de
bem?
Também da parte do custodiado o clima psicológico vivido no interior das
cadeias de repartições policiais não deixa de ser menos tenso e eivado de ressentimentos ou
desconfianças, pois tenderá a ver nos seus carcereiros não apenas os homens encarregados de o
vigiar dia e noite, mas também os principais responsáveis por aquela situação em que ele se
encontra.
Apesar desses gravíssimos inconvenientes, a grande verdade é que, a partir
dos anos oitenta, devido a causas conjunturais que não cabem ser analisadas neste documento, os
acanhados e improvisados ergástulos das nossas polícias judiciárias passaram a funcionar cada
vez mais como sucedâneos das penitenciárias do país.
Concebidos originalmente para a custódia de pessoas por curto prazo, os
xadrezes e celas das repartições policiais (superintendências, delegacias e comissariados)
destinavam-se tão-somente a casos de presos em trânsito, que geralmente ali permaneciam
enquanto se aguardava, entre outras cousas, uma eventual confirmação de identidade, a
realização de diligências necessárias à instrução de um auto de prisão em flagrante, o
recolhimento ou o arbitramento de alguma fiança.
Tradicionalmente, até antes da vigência da Constituição de 1988, essas
acomodações prisionais eram largamente utilizadas para trancafiar - ilegalmente, diga-se de
passagem - ébrios e arruaceiros, durante o carnaval, feriados e finais de semana prolongados,
para evitar que eles perturbassem a ordem pública durante aqueles dias de lazer coletivo. Era o
que, no jargão policial da época, se chamava de prisão correcional (ou "corró", como diziam
os mais antigos).
Durante o regime militar, muitas delas tiveram seus momentos históricos,
qual Pilatos no Credo, ao se revesarem no sombrio papel de servir de esconderijos provisórios
para presos políticos desesperadamente procurados por familiares e advogados munidos de
inúteis mandados judiciais de soltura.
De qualquer forma, esse tipo de celas e xadrezes - geralmente construídos
com um mínimo indispensável de estrutura e de segurança - nunca foram concebidos para servir
de prisões provisórias de médio ou longo prazo e, muito menos ainda, como locais destinados ao
cumprimento de penas.
Por mais que se lute para acabar com essa aberração, não se tem
conseguido resultados satisfatórios, pois se trata de uma praxe que vem sendo placidamente
aceita até mesmo por consideráveis setores da magistratura nacional, dotados de um
comportamento omisso, conivente e pouco comprometido com a aplicação da Justiça depois da
sentença, que chegam muitas vezes até a exigir que determinados condenados não sejam
encaminhados às penitenciárias.
Uma justiça que pretenda ser humana não pode ignorar essa triste e
constrangedora realidade, que faz o país descer, no tange ao respeito dos direitos humanos, a
níveis comparáveis aos dos países mais miseráveis da África.
É, portanto, um dever primordial e uma obrigação inarredável da Comissão
de Notáveis refletir profundamente sobre a questão penitenciária brasileira, bridando-a com um
tratamento legal que seja humanamente eficaz, mediante a elaboração de um moderno Código de
Execução Penal.
♦ ♦ ♦ ♦ ♦
35
9. Conclusão
“Opus iustitiae pax”, diziam os romanos.
A grande obra da justiça é justamente a paz. Paz que certamente os
brasileiros não estamos a encontrar em nossas ruas nem em nossos lares e negócios, graças a
uma Justiça Penal que não funciona com a eficiência e a celeridade adequadas à época em que
vivemos, principalmente pelo fato de estar manietada por um código de procedimento
anacrônico desde o próprio nascedouro e cuja mudança muitos insistem cavilosamente em
procrastinar.
A exemplo do bardo pátrio, que em verso memorável clamou que a
Liberdade abrisse as asas sobre nós, os que hoje temos a liberdade outorgada pela Constituição
Cidadã, mas que não a podemos desfrutar em toda sua plenitude devido ao espectro da
insegurança social, bradamos aos que detêm o poder que mudem – o quanto antes, e para melhor
– a nossa esfarrapada Justiça Penal.
Essa mudança, contudo, não nos virá graciosamente, caída dos céus, como
uma dádiva divina.
Ela exigirá muita luta, dedicação e perseverança de nossa parte, pois
qualquer processo de mudança é sempre muito difícil, conforme sabiamente já alertava
MAQUIAVEL, no Capítulo VI, de sua obra “O Príncipe”, verbis:
“Vale lembrar que não há nada mais difícil de executar e perigoso de manejar (e
de êxito mais duvidoso) do que a instituição de uma nova ordem de coisas. Quem
toma tal iniciativa suscita a inimizade de todos os que são beneficiados pela
ordem antiga e tem o apoio apenas tíbio de todos aqueles que seriam
beneficiados pela nova ordem.” 29
Assim sendo, é de se esperar que a almejada confecção de um moderno
código de processo penal, acompanhado de um avançado código de execução penal, será fruto de
uma luta árdua e longa.
Interesses subalternos e conservadores, aliados a mentalidades arcaizantes,
certamente se oporão – como de fato já se estão opondo – a esse sonhado desiderato dos
defensores de ideais de vanguarda, para isso fazendo valer os seus “lobbies”, as suas influências
e o seu considerável poder de mobilização com vistas a conseguir a neutralização total das
mudanças propostas ou, se isto não for possível, a sua desfiguração e descaracterização, a tal
ponto de as tornar inteiramente anódinas.
O apego a rotinas seculares é um vício que, a exemplo do cachimbo com
relação à boca dos seus fumantes, entorta de forma indelével a mente dos burocratas que
simplesmente não conseguem mais se livrar delas, mesmo quando isso lhes signifique um pouco
mais conforto e menos trabalho.
Recordo-me de que, no ano de 1991, ao fazer correições em determinada
unidade descentralizada do DPF, notei que os escrivães ainda mantinham a praxe de elaborar
todos os atos dos inquéritos policiais em duas vias, apesar da entrada em vigor, meses antes, da
Instrução Normativa n.º 01/90, do Diretor-Geral da Polícia Federal, que havia definitivamente
abolido aquela prática inútil e custosa.
29
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 51.
36
Mesmo com meus insistentes argumentos para que abandonassem aquela
prática, alguns escrivães ponderaram que, inobstante o conteúdo da referida norma, iriam
continuar a fazer os inquéritos em duas vias porque era mais seguro.
Resultado: para convencer aqueles profissionais a passar a trabalhar de
acordo com a nova ordem, tive que adotar uma postura iconoclasta e, diante deles, passei cerca
de duas horas rasgando as duplicatas de autos de inquéritos policiais arquivadas naquela unidade
policial, ante uma chorosa escrivã, que ainda argumentava: "Mas chefe, essas cópias me deram
tanto trabalho para fazer e estavam tão bem feitinhas. Por que o Sr. as rasgou?"
O grande mestre de Besançon, com a grandiloqüência que lhe era peculiar,
esfuzilou essas mentalidades de ranço saudosista e teimosamente refratárias a mudanças, no
seguinte trecho de "Os Miseráveis":
"Parece estranho haver quem sonhe com a prolongação ilimitada das coisas
defuntas e com o governo dos homens por embalsamação, quem queira restaurar
os dogmas em mau estado, dourar novamente os retábulos, remoçar os claustros,
tornar a benzer os relicários, remobiliar as superstições, reabastecer os
fanatismos, pôr cabos novos nos hissopes e nas espadas, reconstituir o
monaquismo e o militarismo, quem acredite na salvação da sociedade pela
multiplicação dos parasitas, quem pretenda impor o passado ao presente. Há
teóricos, todavia, que professam essas teorias. Esses teóricos, aliás homens de
espírito, usam de um expediente muito simples; eles aplicam sobre o passado uma
roupagem a que dão o nome de ordem social, direito divino, moral, família,
respeito aos antepassados, autoridade antiga, tradição santa, legitimidade,
religião e vão gritando: 'Vejam! Aceitem isto, homens de bem!' Essa lógica
também era conhecida dos antigos. Os arúspices a praticavam. Esfregavam giz
numa novilha preta e diziam: 'Ela é branca.' Bos cretatus.
Quanto a nós, respeitamos uma ou outra coisa do passado, e o poupamos como
um todo, contanto que ele consinta estar morto. Se quiser ser uma coisa viva, nós
o atacamos e nos encarregamos de o matar." 30
E é com aquele velho truque do bos cretatus, lembrado no trecho acima
pelo grande escritor francês, que os empedernidos bacharéis delegados (ou delegados bacharéis)
procurarão convencer os integrantes da douta Comissão de Notáveis encarregada da reforma do
atual Código de Processo Penal, buscando garantir uma sonhada sobrevida ao defunto inquérito
policial.
Proporão, certamente, um novo e radiante inquérito policial, diminuído em
formalismos, apequenado em despachos e enxugado de termos e portarias.
Um inquérito pretensamente modernizado, enfim.
Modernizado qual um remoçado e elegante Conde Drácula da Hollywood
do século XXI, a vagar impávido e airoso por entre as mesas e armários de nossas repartições
policiais, com os caninos aparados e limados, como se somente nestes residisse a essência do seu
mal.
Não!
Da mesma forma que o mal daquela lendária personagem dos Cárpatos não
está restrito ao tamanho dos seus afiados dentes, o mal do inquérito policial - como à saciedade
ficou demonstrado ao longo deste documento - não reside apenas no seu excesso de formalismo,
muito embora este dilacere e desfigure o trabalho policial mais do que as mais afiadas das presas.
30
Tradução livre do autor. Cf. Les misérables. Paris: Flammarion, 1967, vol. II, pág. 42.
37
O mal maior do inquérito está na sua essência. O mal maior do inquérito
está na dupla instrução. O mal maior do inquérito está na inútil repetição de atos cartorários num
país pobre que mui sacrificadamente se pode dar ao luxo de pagar por apenas um deles.
O mal maior está na lentidão de resposta ao crime. O mal maior está no
vezo cartorário de se adotar a desconfiança como suprema lei sem enxergar que a quantidade de
papel decorrente dessa nefanda prática retarda a Justiça, além de agredir a natureza que hoje já
pede socorro em face da colossal derrubada de árvores.
O mal maior está nas desconfortáveis ante-salas das repartições policiais
apinhadas de testemunhas, que perdem o seu precioso tempo e o seu sacrificado dinheiro à
espera de depoimentos inúteis que mais tarde serão repetidos.
O mal maior está, enfim, nessa visão errônea de polícia judiciária daqueles
que pretendem sonegar ao Ministério Público uma importante parcela daquilo que é uma das
suas mais sagradas missões: a de livremente colher elementos de prova para promover a ação
penal pública.
Assim sendo, deverá a douta Comissão de Notáveis manter-se alerta para
evitar a aceitação de qualquer bos cretatus, ou Lobo Mau travestido de vovozinha, que os
interesses corporativistas certamente lhe quererão impingir, com o objetivo de que uma versão
edulcorada e recauchutada do inquérito policial seja mantida no texto do futuro Código de
Processo Penal.
Por outro lado, contrapondo-se a essas forças reacionárias e bizantinas –
para não dizer fisiológicas e oportunistas – é mister que os homens de boa vontade, a começar
pelos policiais de espírito profissional autocrítico e independente, passando pelos juristas de
pensamento científico moderno e humanista, e desembocando nos legisladores comprometidos
com a efetiva implantação de uma nova Justiça Criminal no Brasil, dêem-se as mãos e, aliados a
outros segmentos sociais de tendência inovadora, partam decididamente em busca das tão
almejadas mudanças, não pela força nem pela intolerância, mas pelo debate sadio e criador.
Curitiba, outubro de 2001.
♦ ♦ ♦ ♦ ♦
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BIBLIOGRAFIA
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VARELLA, Dráuzio. Estação carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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REFLEXÕES SOBRE A REFORMA DO CÓDIGO DE PROCESSO