Jornal do Commercio •B-7
Segunda-feira, 23 de novembro de 2015
» ISABELA DE OLIVEIRA
remoção completa da
laringe e das cordas vocais pode ser a única
saída para pacientes
com câncer ou lesões graves
no órgão humano que produz
o som. A cirurgia, portanto,
acarreta a perda da voz, um
efeito colateral que nem sempre pode ser revertido com os
tratamentos disponíveis. Pesquisadores da Universidade
de Wisconsin-Madison, nos
Estados Unidos, sinalizam um
avanço importante para vencer essa limitação. Na última
edição da revista Science
Translational Medicine, eles
descrevem a bioengenharia
inédita de um tecido que imita a mucosa de cordas vocais
nativas tanto em estrutura
quanto em funcionalidade.
Além do potencial para recuperação da fala, o tecido transplantável auxiliará no desenvolvimento de meios que prevejam respostas orgânicas a
medicamentos.
Coordenados por Nathan
Welham, pesquisadores de
várias disciplinas desenvolveram, em laboratório, a mucosa das cordas vocais, tecidos
especializados em vibrar e,
até então, criados com exclusividade pela natureza. O
“monopólio” deve-se às especificações do material, cuja
receita difícil de cumprir inclui flexibilidade suficiente
para vibração e resistência
exata para suportar centenas
de movimentos por segundo.
“É um sistema requintado e
uma coisa difícil de replicar”,
diz Welham.
A
Coleta de tecidos
Para chegar a um produto
próximo do original, os cientistas coletaram tecidos da laringe de uma pessoa saudável
imediatamente após ela morrer. Com isso, garantiram
amostras ainda ativas. Outros
quatro pacientes saudáveis
que tiveram as laringes removidas por motivos variados
também concordaram em
doar o material. “Como as cordas vocais são muito sensíveis
e não se regeneram facilmente, não podíamos simplesmente pegar partes das laringes de qualquer pessoa sem
que isso trouxesse consequências para ela. Precisávamos,
portanto, desses doadores”,
explica Welham.
As células doadas foram isoladas, purificadas e cultivadas
Tecido criado a partir de células humanas
imita a estrutura e as funções das
cordas vocais. Método criado nos
Estados Unidos poderá ajudar pacientes
com câncer ou fibrose na laringe
Voz recuperada
com transplante
em um meio semelhante ao
do corpo humano. Crescidas,
foram colocadas em um suporte de colágeno em 3D que
as permitiu crescer no formato e na estrutura de uma mucosa natural. Após duas semanas, o aglomerado já constituía um tecido flexível, mas
sobretudo resistente. O material também compartilhava
muitas proteínas com cordas
vocais nativas, com as quais se
assemelhavam ainda em viscosidade e elasticidade.
Uma vez transplantado para um dos lados da laringe de
cães sacrificados, o tecido artificial não apenas manteve o
bom estado físico, como também vibrou com o tecido nativo do lado oposto. A análise
acústica revelou que as mucosas artificiais e naturais apresentavam características sonoras semelhantes. Camundongos programados para ter
o sistema imunológico humano também aceitaram bem o
novo revestimento. “Parece
que o tecido das cordas vocais
pode ser projetado como o tecido da córnea, pois também é
imunoprivilegiado, o que significa que ele não desencadeia
reação imunológica no hospedeiro, que, nesse caso, foram
os ratos”, conta Welham, acrescentando que estudos anteriores haviam sugerido isso.
Vice-presidente da Academia Brasileira de Laringologia
e Voz (ABLV ), Luciano Rodrigues Neves diz que os achados
dos pesquisadores da Wisconsin-Madison constituem avanços inéditos. Com trabalhos
desenvolvidos na mesma linha, Neves diz que não conhece, no Brasil, estudos tão refinados. “Esses pesquisadores
são muito fortes em bioengenharia e dedicados. Além disso, recebem recursos que os
permitem desenvolver essas
tecnologias inéditas. Montar a
estrutura que eles têm custa
caro em termos de dinheiro e
de tempo, e poucos espaços
no mundo têm pesquisas de
ponta como a deles”, diz o também professor do curso de medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e da
Universidade Nove de Julho
(Uninove).
Limitações
Neves destaca pontos que
precisam ser resolvidos antes
de o método chegar à prática
clínica. Segundo ele, o tecido
artificial é menos complexo
do que as pregas vocais naturais, que continuam se desenvolvendo por pelo menos
13 anos após o nascimento
de um indivíduo. Além disso,
diz, as células que deram ori-
gem ao tecido artificial provêm de cordas vocais reais, o
que, na prática, seria impossível porque não há como coletar amostras saudáveis sem
deixar sequelas no doador. “E
de uma pessoa doente, com
fibrose ou câncer, muito menos. Isso poderia colocar a
saúde do paciente em risco
maior, pois o câncer pode
reincidir com o transplante
de células doentes”, explica o
médico.
Welham reconhece que,
antes de ir pro consultório, a
técnica criada por eles precisa de testes adicionais para
verificar os resultados a longo prazo, inclusive em ani-
mais maiores. “Precisamos
fazer um levantamento de
quais células são terapeuticamente apropriadas para o
procedimento e saber se poderíamos armazená-las e
transportá-las. Muito importante também é atender as
considerações regulatórias.
Até lá, é um longo caminho”,
considera.
Medula óssea
No futuro, acredita Neves,
talvez seja possível utilizar
células da medula óssea e até
gordura. “No entanto, nada
disso tira o mérito dos cientistas. É um trabalho que po-
de parecer humilde, mas é assertivo e apenas a ponta da
lança, tendo muito impacto
em quem trabalha com isso”,
ressalta. O médico acredita
que, além do uso terapêutico
do novo tecido, a técnica tem
potenciais aplicações no desenvolvimento de sistemas in
vitro para modelar a mucosa
em doenças e testes pré-clínicos. “Ou seja: não será possível apenas reconstruir as
cordas vocais, como também
simular enfermidades. Em
vez de testar drogas diretamente no paciente, poderíamos conhecer sua ação e resultados antes mesmo de serem usadas”, cogita.
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Tecido criado a partir de células humanas imita a estrutura e as