A DISTÂNCIA ENTRE INTENÇÃO E FATO
Everardo Maciel
Verso primoroso da música “Fado Tropical” (“é que há
distância entre intenção e gesto”), de Ruy Guerra e Chico Buarque
de Holanda, o desencontro entre intenções e fatos está no cotidiano
da política, por ser ela um solo fértil para a construção de
expectativas,
frequentemente, frustradas,
incompetência.
Dois
episódios
recentes
por demagogia ou
exemplificam
esse
entendimento.
Nada mais republicano que a transparência na vida
pública. Em seu nome, prosperaram, entre outras iniciativas, a Lei
nº 12. 527, de 18 de novembro de 2011, que assegura o acesso a
informações tuteladas pelos poderes públicos, dando concretude a
diversas normas constitucionais. Não há como se contrapor a tal
providencial lei. Minhas inquietações se voltam para sua execução.
O primeiro ato decorrente da lei foi a publicação dos
salários dos servidores. O que, realmente, se pretende com essa
medida? Constranger os servidores? Não seria uma violação do
direito à intimidade, estabelecido no inciso X do art. 5º da
Constituição, norma qualificada como cláusula pétrea? Essas
pessoas não ficariam vulneráveis a atos de chantagem, de
sequestro ou de outras práticas criminosas?
Essas informações já são do conhecimento da
administração pública. É dela a obrigação de corrigir distorções,
quando existentes. O fisco detém instrumentos para apurar
evoluções patrimoniais a descoberto. Em outra seara, a polícia, sem
reprováveis
exibicionismos
e
vazamentos
criminosos,
tem
condições de investigar práticas de corrupção, que envolvam
servidores públicos.
Os servidores já se submetem à ridícula obrigação de
encaminhar dados fiscais para órgãos que não têm vocação ou
competência técnica para examiná-los. É um espetáculo inútil de
promiscuidade fiscal, do qual não se conhece resultado efetivo no
pretenso combate à corrupção.
No templo de Apolo, em Delfos, os gregos, traduzindo
o equilíbrio apolíneo da alma helênica, proclamavam: nada em
excesso. Não pode a transparência ser pretexto para desrespeito a
direitos individuais.
A divulgação dos salários dos servidores, na verdade,
é uma via para dissimular a indisposição para propor uma lei geral
do serviço público, que contemple regras transparentes de
remuneração e promoção, valorize o mérito e a eficiência, elimine
as inúmeras assimetrias e privilégios de tratamento, e desarme as
guerras corporativas.
Pode, por exemplo, um Ministro de Estado ser
remunerado pela via oblíqua da participação em conselhos de
administração de empresas públicas e sociedades de economia
mista? A função exercida não exige dedicação exclusiva? Não há
um enorme potencial de conflitos de interesse entre o exercício de
suas funções e as atividades das empresas?
Não seria o caso de reexaminar, inclusive por meio de
uma Emenda Constitucional, absurdas vantagens pessoais obtidas
por servidores, por descaso dos responsáveis pela defesa do
interesse público?
A transparência poderia, agora sim, ser invocada para
tornar obrigatória a publicação, em balanços de empresas, dos
benefícios fiscais concedidos pelo Estado. O conhecimento da
renúncia fiscal, ainda que sob a forma de anexo à proposta
orçamentária anual, encontra abrigo no § 6º do art. 165 da
Constituição.
As
licitações,
intergovernamentais
e as
as
transferências
dotações
voluntárias
para organizações
não
governamentais deveriam ser acessíveis a todos, pela internet. Não
seria esse um caminho para, ao menos, reduzir a malversação do
dinheiro público?
São inúmeras as possibilidades de recorrer-se à
transparência em bom proveito do interesse público. Atitudes
espetaculosas e grosseiras, entretanto, poderiam ser dispensadas.
O outro episódio diz respeito à solução dada, pela
Resolução nº 13, de 2012, do Senado Federal para “guerra dos
portos” (expressão criada para retratar a concessão de benefícios
fiscais, no âmbito do ICMS, às atividades de importação). Tal
prática, além de ofender a Constituição, gera um desarrazoado
privilégio para os produtos importados vis-à-vis os nacionais.
Essa
insensatez
tributária
mobilizou
lideranças
empresariais e trabalhistas, que cobravam do Governo e do
Congresso Nacional uma solução rápida para o problema. Alguns,
com certa dose de exagero, pretenderam atribuir a esse fato o
processo de desindustrialização que se constata no País. Ninguém
se lembrou de acionar a Justiça, que já dispõe de farta
jurisprudência contrária à guerra fiscal. A justa indignação, todavia,
produziu um monstrengo.
O caminho escolhido para enfrentar o problema foi
recorrer à competência do Senado para fixação de alíquotas
interestaduais (art. 155, § 2º, IV da Constituição). Ocorre, contudo,
que essa competência alcança tão somente a partilha da
arrecadação do ICMS, entre os Estados de origem e destino, nas
operações interestaduais, não se prestando para outras finalidades.
A concessão de incentivos fiscais, em verdade, é
tratada no art. 155, § 2º, XII, g, da Constituição. Nele se esclarece
que somente a lei complementar pode disciplinar a forma pela qual
os Estados deliberarão sobre a matéria. A solução adotada,
portanto, é flagrantemente inconstitucional.
Não bastasse a inconstitucionalidade, a solução
envolve conceitos ambíguos e de difícil operacionalidade, como
certificação de conteúdo de importação, similaridade, processo de
industrialização, etc.
A competência para definir os conceitos é remetida ao
CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária) e à CAMEX
(Câmara de Comércio Exterior). Resolução do Senado não é o
veículo adequado para fixação de competências de órgãos
públicos. Instituiu-se, por conseguinte, uma complicada e esdrúxula
teia de decisões e controles burocráticos.
De resto, a vigência foi estabelecida para o início de
2013, o que nega o caráter de urgência da demanda. Mais uma vez,
os fatos serão, com certeza, a fornalha das intenções.
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