O sujeito e a clínica na psicologia histórico cultural:
diretrizes iniciais
Achilles Delari Junior
[email protected]
UFMS-CPAR / PARANAÍBA-MS
AGOSTO DE 2013
Qual o “lugar” de que eu lhes falo?
É o lugar de quem está em busca e não de quem já tem tudo estruturado,
para só “ensinar” o que sabe. Venho para aprender, pois ao dizer o que
penso para vocês, meu próprio pensamento avança. Minha trajetória
desde a graduação e durante a docência no ensino médio e superior,
pautou-se numa busca permanente de montar um quadro teórico geral
em psicologia histórico cultural, uma vez que ela nos chega muito
fragmentada, e gostaria que os mais jovens pudessem ter uma visão do
todo melhor do que eu tive no início, desde 1987.
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Qual o “lugar” de que eu lhes falo?
Mas também trabalhei em clínica com crianças, primeiro num CAPS,
depois num Programa Federal de combate à violência sexual contra
crianças e adolescentes – eu estava em terapia e tinha supervisão.
Nesses lugares a clínica/ psicoterapia individual era o modo oficial de
trabalhar. Eu me perguntava: como fechar a porta do consultório e deixar
para fora minha visão de mundo, e minha concepção sobre a gênese
social da consciência? Não havia como. As crianças demandavam
atendimento e era preciso produzir algo. O trabalho com a brincadeira e
os jogos tornou-se assim a forma material mais tangível de relação
simbólica, sob a luz de uma *interpretação* histórico cultural.
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Qual o “lugar” de que eu lhes falo?
Então falarei como profissional mais experiente no campo da “psicologia
geral” e da “docência”, e iniciante nas práticas clínicas, sobretudo com
crianças.
Vamos aos nossos conteúdos...
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
CONTEÚDOS
1. Algumas palavras iniciais
. A tarefa não é simples
. A psicologia histórico cultural não é hegemônica
. Há o preconceito de que a clínica é algo individual
2. Pode a psicologia histórico cultural servir de base para práticas
clínicas e em saúde mental, de modo geral?
. Vigotski teve experiência prática como clínico
. Para Vigotski a psicologia do indivíduo é social
3. Qual o conceito de sujeito está em jogo na psicologia históricocultural?
. Não é um sujeito cartesiano como de outras psicologias
. É um “sujeito de relações sociais”
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
CONTEÚDOS
4. Quais os principais desafios para desenvolver a teoria histórico
cultural na clínica
. Que a clínica mantenha os princípios histórico culturais gerais
* A consciência/personalidade como objeto de análise
* As relações sociais como princípios explicativo
* A palavra significativa como unidade de análise
* O método genético como modo de proceder a análise
. Que a phc desenvolva saberes necessários à clínica/saúde mental
* 1ª meta: esclarecer detalhadamente cada idade psicológica
* 2ª meta: esclarecer detalhadamente a prática diagnóstica
* 3ª meta: produzir aprofundamento teórico em patopsicologia
* 4ª meta: produzir um avanço no campo da teoria da emoções
* 5ª meta: produzir resposta consistente ao tem do inconsciente
5. Para continuar o diálogo
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
1. Algumas palavras iniciais
. A tarefa não é simples
Cabe dizer que a tarefa de falar sobre o sujeito e a clínica na perspectiva da
psicologia histórico-cultural não é nada simples.
. A psicologia histórico-cultural não é hegemônica
Em primeiro lugar, porque tal modo de conceber o psiquismo humano não é
hegemônico sequer em outras áreas de atuação profissional do psicólogo, muito
menos na clínica. Não é hegemônico nem mesmo tem ainda um forte papel de
contra-hegemonia, mesmo na educação, onde se tomaram as primeiras
iniciativas de diálogo com essa vertente teórica em nosso país, ou na psicologia
social, na qual vez ou outra é citado em iniciativas honrosas.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
1. Algumas palavras iniciais
. A psicologia histórico-cultural não é hegemônica
Isso, evidentemente, tem motivos históricos. Vigotski, apesar do
reconhecimento póstumo como um dos grandes pilares da psicologia do século
XX, tanto da parte de epistemólogos (“Mozart da Psicologia” para Toulmin, 1978/
1984), ou grandes psicólogos (“Titã da psicologia”, ao lado de Piaget e Freud,
para Bruner, 2005), foi um autor proscrito em seu próprio país, durante pelo
menos vinte anos (1936-1956), e fragmentos de sua obra só começaram chegar
a nós no Brasil, a partir dos anos 1980, mais especificamente em 1984.
Diferentemente de outras correntes de pensamento em psicologia, em livre
circulação há bem mais tempo, mesmo em tempos de ditadura, a psicologia
histórico-cultural não conta ainda com trinta anos de recepção, uma recepção
repleta de dificuldades de cunho editorial – já que pouquíssimas das obras de
Vigotski foram até agora traduzidas para nossa língua.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
1. Algumas palavras iniciais
. A psicologia histórico-cultural não é hegemônica
Dos, pelo menos, 282 títulos escritos por Vigotski, 54 foram publicados nas suas
Obras Escolhidas, ou Reunidas, editadas de 1982 a 1984 na URSS – além de
alguns títulos fora do plano das obras. E no Brasil temos desde 1984 a 2012,
apenas 33 títulos publicados (traduzidos das Obras, ou não), até a minha última
contagem. Ora, somos, coletivamente, ainda iniciantes em Vigotski e na
psicologia histórico cultural no Brasil, e suas possibilidades para a prática
profissional do psicólogo foram muito pouco exploradas, de fato.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
1. Algumas palavras iniciais
. Há o preconceito de que a clínica é algo individual
Em segundo lugar, é um tema difícil, pois no interior dos próprios grupos que
estudam Vigotski em nosso país há resistência em ver essa corrente em
psicologia, que coloca as relações sociais no centro de suas explicações sobre o
homem, adentrando o campo por alguns tido tão “individualista” e “burguês”
quanto a clínica e/ou as práticas psicoterápicas individuais. Como se fosse uma
traição à psicologia histórico cultural, em sua matriz epistemológica marxista,
ocupar-se também da clínica, quando talvez devesse estar voltada
exclusivamente a processos educativos e a práticas sociais preventivas em saúde
mental que, supostamente viessem a evitar ou a abolir as situações traumáticas
que levam um ser humano a buscar ajuda em uma psicoterapia, individual ou
grupal...
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
1. Algumas palavras iniciais
. Há o preconceito de que a clínica é algo individual
Muito na direção de lidar com essa segunda dificuldade, estará orientada a
minha fala hoje, que se subdivide em três partes:
2) Pode a psicologia histórico cultural servir de base para a prática clínica e em
saúde mental, de um modo geral?
3) Qual conceito de sujeito está em jogo na psicologia histórico-cultural?
4) Quais os principais desafios para desenvolver a teoria da clínica histórico
cultural?
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
2. Pode a psicologia histórico cultural servir de base para práticas clínicas e em
saúde mental, de modo geral?
. Vigotski teve experiência prática como clínico
O primeiro ponto a chamar atenção sobre a possibilidade de uma clínica
vigotskiana, e/ou uma clínica histórico-cultural, é o de se esbarrar no fato de que
Vigotski, supostamente, não teria tido uma prática clínica. Contudo,
historiadores da psicologia russa e soviética, nos dizem o contrário:
“Ele [Vigotski] não era um psicólogo infantil, mas um psicólogo que se
tornou cada vez mais interessado no problema teórico do
desenvolvimento, o qual o levou a estudar a diversidade cultural,
patologia cerebral e outras disciplinas. Por inclinação ele era um
psicólogo teórico. Na prática, seu trabalho aplicado dava-se
mais em settings clínicos.” (Valsiner e Van der Veer, 2000, p. 339)
Farei minha crítica a esses historiadores mas manterei o fato histórico.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
2. Pode a psicologia histórico cultural servir de base para práticas clínicas e em
saúde mental, de modo geral?
. Vigotski teve experiência prática como clínico
Alguns estudiosos brasileiros são críticos desses comentadores de Vigotski, eu
também o sou, quando o tentam afastar do marxismo, ou dar pouca ênfase ao
papel do marxismo em sua obra. Ou até quando fazem interpretações teóricas
de outros fatos históricos ou teses teóricas ao seu próprio modo e orientação.
Contudo, eu devo diferenciar o que é material fático do que é interpretação dos
comentaristas, e o material fático não se pode simplesmente negligenciar, pois
também não seria crítico de nossa parte. De fato, Vigotski não era um “psicólogo
escolar”, papel social que nem bem existia na época. Era, sobretudo, um
“metodólogo”, como diz o próprio Elkonin (1984/2006), seu colaborador. Era um
estudioso crítico dos fundamentos do método científico da psicologia, o que
também se chamaria de “psicólogo geral”, no sentido russo para a palavra
“psicologia geral” – em Vigotski também nomeada a “dialética da psicologia”
(Vygotski, 1927/1991, p. 338).
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
2. Pode a psicologia histórico cultural servir de base para práticas
clínicas e em saúde mental, de modo geral?
. Vigotski teve experiência prática como clínico
De fato, Vigotski não apenas trabalhou com crianças como recebia seus pais, e
procedia a entrevistas, elaborava diagnósticos e tinha sua própria posição crítica
quanto a como proceder ao diagnóstico, na época. Além disso, temos registros
de que Vigotski realizou estudos com pacientes histéricas, parkinsonianos,
afásicos, esquizofrênicos e pessoas com a doença de Pick (uma demência). Disso
podemos concluir que não se trata de um autor de gabinete que nenhum
contato teve com o sofrimento humano. Nem alguém que advogasse que a única
e exclusiva saída para tal sofrimento fosse a prevenção, sem que nada se
pudesse fazer uma vez que a dor já estivesse instalada.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
2. Pode a psicologia histórico cultural servir de base para práticas clínicas e em
saúde mental, de modo geral?
. Vigotski teve experiência prática como clínico
Evidentemente, sua franca aposta na educação intencionalmente organizada
para a formação integral de uma personalidade saudável para todos era
fundamental e programática – no interior de sua visão socialista sobre a
formação do “novo homem” (Vygotsky, 1930/1934). Mas quem busca entender
como se forma o ser humano de forma integral, se for um pesquisador honesto,
também se aproximará das situações limite em que ocorrem “desintegrações”
(ou “dissoluções”, conforme a tradução), das funções psíquicas superiores, da
consciência e da personalidade como um todo. Até porque, parafraseando
Vigotski, “nenhum edifício desaba senão de acordo com as próprias leis pelas
quais foi construído”.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
2. Pode a psicologia histórico cultural servir de base para práticas clínicas e em
saúde mental, de modo geral?
. Para Vigotski a psicologia do indivíduo é social
O segundo ponto a chamar atenção sobre a possibilidade de uma clínica
vigotskiana, e/ou uma clínica histórico-cultural, é o de se esbarrar na
compreensão equivocada de que Vigotski, por enfatizar as relações
sociais como fonte do desenvolvimento, deixe de ter uma concepção
que contemple o psiquismo individual. Já em seu trabalho de 1925,
Psicologia da arte (Vigotski, 1925/1999), mostra-se que não há uma
dicotomia entre o social e o individual em sua concepção, tampouco
um reducionismo do segundo ao primeiro. Ocorre que Vigotski não
diferencia a “psicologia individual” da “psicologia social”, mas sim da
“psicologia coletiva”, sendo tanto a individual quanto a coletiva sociais
em sua origem e funcionamento. Uma passagem emblemática é a que
se segue:
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
2. Pode a psicologia histórico cultural servir de base para práticas clínicas e em
saúde mental, de modo geral?
. Para Vigotski a psicologia do indivíduo é social
“A arte é o social em nós, e, se o seu efeito se processa em um indivíduo isolado,
isto não significa, de maneira nenhuma, que as suas raízes e essência sejam
individuais. É muito ingênuo interpretar o social apenas como coletivo, como
existência de uma multiplicidade de pessoas. O social existe até onde há apenas
um homem e suas emoções pessoais. Por isto, quando a arte realiza a catarse e
arrasta para esse fogo purificador as comoções mais íntimas e mais vitalmente
importantes de uma alma individual a sua ação é uma ação social. A questão não
se dá de maneira como representa a teoria do contágio, segundo a qual o
sentimento que nasce em um indivíduo contagia a todos, torna-se social; ocorre
exatamente o contrário. A refundição das emoções fora de nós realiza-se por
força de um sentimento social que foi objetivado, levado para fora de nós,
materializado e fixado nos objetos externos da arte, que se tornaram
instrumento da sociedade.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
2. Pode a psicologia histórico cultural servir de base para práticas
clínicas e em saúde mental, de modo geral?
. Para Vigotski a psicologia do indivíduo é social
A peculiaridade essencialíssima do homem, diferentemente do animal,
consiste em que ele introduz e separa do seu corpo tanto o dispositivo da
técnica quanto o dispositivo do conhecimento científico, que se tornam
instrumentos da sociedade. De igual maneira, a arte é uma técnica social do
sentimento, um instrumento da sociedade através do qual incorpora ao ciclo da
vida social os aspectos mais íntimos e pessoais do nosso ser. Seria mais correto
dizer que o sentimento não se torna social mas, ao contrário, torna-se pessoal,
quando cada um de nós vivencia uma obra de arte, converte-se em pessoal sem
com isso deixar de continuar social.” (Vigotski, 1925/1999, p. 315)
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
2. Pode a psicologia histórico cultural servir de base para práticas
clínicas e em saúde mental, de modo geral?
. Para Vigotski a psicologia do indivíduo é social
Tenho identificado pelo menos cinco modos de ser da vida social, aos
quais caberia dedicar alguma atenção desde o ponto de vista da
psicologia histórico cultural:
(1) a luta de classes no seio das relações de produção;
(2) as instituições;
(3) os grupos;
(4) a inter-subjetividade; e
(5) o indivíduo como ser social.
Podemos dizer que os campos que mais estão a descoberto nas obras
de Vigotski, às quais tivemos acesso até o momento, são os “grupos” e
as “instituições”...
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
2. Pode a psicologia histórico cultural servir de base para práticas
clínicas e em saúde mental, de modo geral?
. Para Vigotski a psicologia do indivíduo é social
Por certo, a existência social de um ser humano concreto é sempre
atravessada por estes cinco modos de articulação, aos quais
poderíamos complexificar com eixos igualmente importantes como
gênero e etnia, entre outras formas culturais de relação entre as
pessoas que lhes confiram algum tipo de identidade e/ou distinção com
relação aos demais seres humanos.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
2. Pode a psicologia histórico cultural servir de base para práticas
clínicas e em saúde mental, de modo geral?
. Para Vigotski a psicologia do indivíduo é social
Qualquer prática clínica histórico-cultural que desconsidere a integração dessas
diferentes dimensões tende ao fracasso, tanto quanto qualquer prática
psicológica coletiva que desconsidere o ser humano individual como ser social
também ficará desfalcada. Não há como atuarmos sem ter o homem (pessoa tchelovek) como a unidade viva para nossa intervenção, visto que díades, grupos,
instituições e classes são conjuntos dinâmicos não antropomórficos, não têm
“consciência própria”, como é mostrado por Vigotski no primeiro capítulo de sua
Psicologia da Arte (Vigotski, 1925/1999). Ao intervir no movimento destes
planos diferenciados, tendo potência para fazê-lo, se atingirá o diálogo com
alguém singular, com sua história, suas lutas, seus limites e suas potencialidades.
Este tópico nos direciona agora para o nosso próximo item de discussão que é
relativo ao conceito de sujeito que se deduz das formulações teóricas da
psicologia histórico-cultural.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
CONTEÚDOS
3. Qual o conceito de sujeito está em jogo na psicologia histórico cultural?
. Não é um sujeito cartesiano como de outras psicologias
O fato de Vigotski dar ênfase à consciência como objeto da psicologia,
por ser o modo de funcionamento psíquico que nos diferencia de outros
animais, não implica em que o sujeito de Vigotski seja “cartesiano”, ou seja,
aquele que se garante enquanto tal, tão somente pelo fato de que não pode
negar que pensa (cogito ergo sum). Não se trata de um sujeito cartesiano,
porque esta consciência não é uma descoberta individual pelas leis da razão auto
exercidas mediante a dúvida metódica. Esta consciência é um processo que não
nasce conosco e se constitui historicamente ao longo do nosso processo de
desenvolvimento. Sou consciente de mim mesmo porque passo a atuar com
relação a mim, tal como antes atuava com relação ao outro, torno-me
consciente de quem sou, sendo um outro para mim mesmo. Existe uma relação
duplicada na definição de “consciência” por Vigotski: “a ideia do duplo é a mais
próxima da ideia real da consciência” (1925/1991, p. 57).
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
3. Qual o conceito de sujeito está em jogo na psicologia histórico cultural?
. Não é um sujeito cartesiano como de outras psicologias
Desde os seus primeiros trabalhos em linguagem reflexológica: a consciência não
aparece como um simples reflexo condicional, nem mesmo apenas como um
sistema de reflexos, mas como um “mecanismo de transmissão entre sistemas
de reflexos” (Vygotski, 1924/1991, p. 11 – itálico na fonte), ou, para abreviar,
como “reflexo de reflexos” (Vygotski, 1924/1991, p. 18; 1925/1991, p. 59). Outra
“duplicação” aparece, na linguagem da velha psicologia, propondo que a
consciência é: “vivência de vivências” (Vygotski, 1925/1991, p. 50). E também,
segundo relato de Leontiev (1982/1991), Vigotski gostava de ver a consciência
como “co-conhecimento”, conhecimento do conhecimento. Além desse caráter
duplicado e social da consciência, cabe lembrar que Vigotski não tem uma visão
racionalista da consciência, trata-se de um processo ao mesmo tempo cognitivo
e afetivo, que reflete a realidade objetiva, mas também a refrata, em função das
necessidades e motivos do sujeito. Ou seja, a consciência aqui não é apenas
consciência de algo (aspecto cognitivo), mas sempre consciência de alguém com
relação a algo (aspecto afetivo).
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
3. Qual o conceito de sujeito está em jogo na psicologia histórico
cultural?
. É um “sujeito de relações sociais”
O melhor modo que até hoje encontrei para definir o “sujeito” em
Vigotski, embora ele mesmo não o tenha definido com tal termo, é
aquele enunciado pelo estudioso de sua obra, professor Angel Pino
(1996). Para este pensador, o sujeito em Vigotski é “sujeito de relações
sociais”. Não é nem um sujeito hipostasiado (cartesiano, que funda
tudo o que existe ao seu redor), nem um sujeito inexistente
(assujeitado, que apenas espelha o que existe ou existiu ao seu redor).
Mas um sujeito emergente nas relações nas quais a pessoa concreta
necessita colocar-se como tal, assumindo um determinado papel social,
o sujeito como pai na relação com seu filho, o sujeito como filho na
relação com seu pai, o sujeito como aluno na relação com seu
professor, o sujeito como professor na relação com seus alunos.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
3. Qual o conceito de sujeito está em jogo na psicologia histórico cultural?
. É um “sujeito de relações sociais”
Então, não se trata de uma postura relativista, de que somos
totalmente outros conforme as condições que se apresentam, a saída
conceitual para isto está em que se trata de uma mesma pessoa
(homem - tchelovek), de um mesmo ser humano, que vive diferentes
situações, e estas diferentes situações deixam suas marcas, têm sua
história e sua memória para cada um, não desaparecem no mesmo
instante em que as circunstâncias mudam. Ao mesmo tempo a pessoa,
o ser humano, vive o choque de assumir seus diferentes papéis sociais
alguns nem sempre conciliáveis com os outros. Como pai desejo estar
próximo ao meu filho, como pesquisador preciso concluir meu próximo
livro; como filho desejo estar perto de meus pais e cuidar deles, como
enamorado desejo mudar-me para longe deles e estar mais perto dela.
O conflito entre os papéis coloca o sujeito diante de uma situação de
escolha, que é tensa, conflitiva, à qual Vigotski chamou de “drama”.
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3. Qual o conceito de sujeito está em jogo na psicologia histórico cultural?
. É um “sujeito de relações sociais”
Nosso “sujeito de relações sociais” é um sujeito de relações
“dramáticas”, não cômicas (como quando a mimese é de animais e
seres inferiores), não trágicas (como quando a mimese é de heróis e
deuses), mas uma mistura das duas coisas (a vida humana, como ela é).
Pois o que une a tragédia e a comédia para Aristóteles é que são ambas
ação, diferentemente da epopeia e da lírica. Trata-se de uma ação de
escolher, ou o que Vigotski chama de ato volitivo, ato de vontade. Todo
ato de vontade é um ato de escolha, e toda escolha envolve uma perda,
nisso a tensão – a qual como tal é necessária, constitutiva da
personalidade humana, é tanto limite quanto potência. O exemplo
fictício dado por Vigotski é o do juiz que deve julgar a própria esposa:
como juiz deve condená-la, como marido fiel a perdoa: o que vencerá?
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
3. Qual o conceito de sujeito está em jogo na psicologia histórico cultural?
. É um “sujeito de relações sociais”
Exemplos da literatura podem ser dados, como quando Orestes deve
matar sua mãe Clitemnestra, para vingar a morte de Agamemnon, mas
não deve fazê-lo, pois sentirá a fúria das Eríneas. Ou o próprio
Agamemnon que fica entre sacrificar sua filha Efigênia, ou perder a
oportunidade de ir guerrear contra Tróia, como comandante supremo
das forças gregas. E ainda Hamlet, que hesita entre dar fim a tudo com
um punhal, já que a morte é apenas um sono, e continuar vivendo já
que não se sabe os sonhos que pode trazer o sono da morte. Posso
dizer, com base em Rubinshtein (1946/1967): que toda escolha envolve
um ganho e uma perda; contudo essa perda pode ficar ainda na
memória como maior ou menor intensidade, o ato volitivo, o ato de
escolher, não necessariamente esgota de todo o conflito, a tensão.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
3. Qual o conceito de sujeito está em jogo na psicologia histórico
cultural?
. É um “sujeito de relações sociais”
Tenho um exemplo real, relatado numa dissertação de Melo (2001), sobre
mulheres sem terra. Uma das entrevistadas diz ter sido consultada pelos pais,
ainda criança, quanto a participar ou não da luta pela terra. Ela deveria decidir
entre (a) ir para a zona rural com seus pais e (b) ficar na cidade com outros
familiares; porém seu real desejo era continuar na cidade e junto com os pais.
“(...) ela é consultada sobre a adesão e cogita não concordar, mas não suporta
não acompanhar a família e então adere” (Melo, 2001, p. 141-142). Ou seja, uma
decisão no sentido mais completo da palavra “decidir”, pois qualquer opção
envolvia uma perda. Minha hipótese é a de que a dor da ausência daquilo que
não foi escolhido continua marcando os sentidos sociais do que foi escolhido,
assim como o que calamos compõe o sentido do que pronunciamos.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
3. Qual o conceito de sujeito está em jogo na psicologia histórico cultural?
. É um “sujeito de relações sociais”
Não se trata de uma escolha totalmente “livre”, no sentido de que o homem está
“condenado a ser livre”, mas também não se trata exatamente de uma
imposição convencional, como se estivéssemos “condenados a nos submeter”.
Para Vigotski a liberdade é uma meta do desenvolvimento humano, não um
pressuposto. Por isso ele diz que “uma grande imagem do desenvolvimento da
personalidade: [é] um caminho para a liberdade. Renascimento do espinosismo
na psicologia marxista” (1932/2010, p. 92-93). Um caminho para uma vida mais
saudável, mais autônoma, em meio à contradição envolvida no ato volitivo,
contradição dialética entre ser e não ser, que, no meu entendimento, é imanente
ao “salto para adiante, do reino da necessidade para a esfera da liberdade, como
descrito por Engels” (Vigotski, 1930/1994, p. 182) - o que se faz necessário tanto
para “toda a sociedade quanto para a personalidade individual”.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
4. Quais os principais desafios para desenvolver a teoria histórico cultural na
clínica
. Que a clínica mantenha os princípios histórico culturais gerais
(1) O primeiro princípio a ser mantido é o de que a psicologia históricocultural toma a consciência, em sua unidade psicofísica, como seu
objeto de estudo e, portanto, de trabalho, tendo em vista algumas
considerações que já fizemos anteriormente sobre qual conceito de
consciência se trata;
(2) O segundo princípio a ser mantido é o de que a consciência para
Vigotski, não explica a si mesma, ela demanda um princípio explicativo,
um “estrato da realidade” do qual a consciência é função. Tal estrato,
pela minha leitura são as “relações sociais”. É nas relações sociais e
somente nelas que o homem pode se tornar consciente de si mesmo,
tais relações são ativas, mas não simétricas, a redução da assimetria
das relações se dá com o desenvolvimento
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
4. Quais os principais desafios para desenvolver a teoria histórico
cultural na clínica
. Que a clínica mantenha os princípios histórico culturais gerais
(3) O terceiro princípio a ser mantido é o de que além do objeto de estudo, ou
objeto de análise, da psicologia, nossa teoria elege ainda uma “unidade de
análise” de natureza também material que permite a conexão entre estes dois
primeiros, até o momento encontramos pelo menos duas unidades de análise
para a consciência em Vigotski: “o significado da palavra” (como unidade
pensamento e fala); e a “vivência” [perejivanie] (como unidade personalidade e
meio) (cf. Vygotski, 1933-34/2006)
(4) O quarto princípio a ser mantido, de extrema importância, incorporando os
três primeiros princípios, o “método genético ou histórico”. Isto é, a consciência
com função das relações sociais se desenvolve, evolui, involui, revoluciona-se,
não é dada a priori, assim como se desenvolvem as unidades que permitem
estuda-la: a vivência, e o significado da palavra ou palavra significativa.
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4. Quais os principais desafios para desenvolver a teoria histórico cultural na
clínica
. Que a phc desenvolva saberes necessários à clínica/saúde mental
* 1ª meta: esclarecer detalhadamente cada idade psicológica
Há de se esclarecer detalhadamente o que a psicologia histórico-cultural
endente por cada período do desenvolvimento humano, desde o período pósnatal à vida adulta. Neste desenvolvimento entrelaçam-se dialeticamente as
linhas biológica e cultural, os recursos sociais e a dinâmica neurofuncional, pelo
princípio da “unidade psicofísica” (cf. Rubinshtein, 1946/1972, p. 40). Vigotski
(1932-34/2006) fala de “idades psicológicas”, não “cronológicas”, mas
“cronogênicas”, definidas por neoformações dominantes ou “guia”, as quais, por
sua vez emergem de específicas situações sociais de desenvolvimento, em
momentos críticos na ontogênese. O que é válido inclusive para a idade adulta,
porém, por não ser seu objetivo, no campo da pedologia (estudo da criança) não
se coloca a tarefa de detalhá-la. Tais “idades”, evidentemente, serão histórica e
culturalmente contextualizadas – irão variar em função de tempo e espaço, mas,
ao mesmo tempo, sem seguir à deriva, em total aleatoriedade. Ou seja, para
pensar o sofrimento humano e a lida intencional para diminuí-lo, é preciso ter
uma base sólida sobre o desenvolvimento da personalidade tal como pudera se
dar da forma mais saudável possível.
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4. Quais os principais desafios para desenvolver a teoria histórico cultural na
clínica
. Que a phc desenvolva saberes necessários à clínica/saúde mental
* 2ª meta: esclarecer detalhadamente a prática diagnóstica
Há de se esclarecer detalhadamente a concepção de diagnóstico própria da
psicologia histórico-cultural, que se encontra já desenhada de modo
programático no livro “Diagnóstico do desenvolvimento e clínica pedológica da
criança difícil” (Vygotski, 1931/1997), publicado na íntegra no Tomo V de suas
“Obras escolhidas” (ou reunidas). Não poderei detalhar aqui, mas ali o autor
traça uma discussão crítica sobre o processo de diagnóstico, orientando-nos
sobre como (não) proceder, num esquema que contém as seguintes etapas: (a)
“queixas dos pais, da própria criança e da instituição educacional”; (b) “história
do desenvolvimento da criança”; (c) “sintomatologia do desenvolvimento”; (d)
“diagnóstico pedológico”; (e) “descobrimento das causas”; (f) “prognóstico”; e
(g) “prescrição pedagógica e pedagógico-terapêutica”.
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4. Quais os principais desafios para desenvolver a teoria histórico cultural na
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. Que a phc desenvolva saberes necessários à clínica/saúde mental
* 3ª meta: produzir aprofundamento teórico em patopsicologia
Há de se produzir uma leitura mais aprofundada sobre a Patopsicologia
soviética, na qual se especializou Zeigarnik (1962/1965; 1969/1972),
uma vez que tal ciência se configura num paradigma distinto daquele
da psicopatologia ocidental, por ser: (a) uma proposta científica que
toma as caraterísticas qualitativas como prioritárias com relação às
quantitativas; (b) uma proposta científica prioritariamente explicativa e
não apenas descritiva; (c) uma proposta científica pautada na
metodologia da experimentação e não apenas na observação e coleta
de material introspectivo; e (d) uma proposta científica não pautada
prioritariamente em classificações de quadros patológicos tipificados,
mas antes no caráter disfuncional de sistemas psicológicos integrais e
dinâmicos, focando não apenas em “doenças” específicas, mas nas
funções psíquicas superiores que, por algum motivo, entram em
colapso.
Slides disponíveis em: www.vigotski.net/phc_uem_2013.ppt
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4. Quais os principais desafios para desenvolver a teoria histórico cultural na
clínica
. Que a phc desenvolva saberes necessários à clínica/saúde mental
* 4ª meta: produzir um avanço no campo da teoria da emoções
Há que se produzir um avanço na teoria das emoções de Vigotski, mais voltada a
questões de cunho filosófico e metodológico (Vygotsky, 1931-33/1999), que
devem ser preservadas, para os caminhos indicados por ele mesmo quando
elogia Chabrier. Convidando-nos a construir uma teoria dos sentimentos
humanos que tenha como algumas de suas categorias principais: a consciência, a
cultura, a ideologia, a história e a personalidade humana, em suas relações interconstitutivas. Teoria que complemente as críticas ao dualismo, com o conteúdo
sensível de episódios em que se nos apresentem as emoções de seres humanos
reais, amando, indignando-se, entristecendo-se, lutando por sua própria
emancipação.
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4. Quais os principais desafios para desenvolver a teoria histórico
cultural na clínica
. Que a phc desenvolva saberes necessários à clínica/saúde mental
* 5ª meta: produzir resposta consistente ao tem do inconsciente
Há que se dar uma resposta consistente ao problema dos
processos psíquicos inconscientes e não conscientes em sua
dialética com a consciência humana. Este tema é um problema
metodológico para a psicologia histórico-cultural (Vygotski,
1930/1991a). A consciência não é um processo absoluto, ela
tem caráter sistêmico e construção semântica, relativa ao
sentido do que dizemos/pensamos. Tal sentido não é definido só
por nós, mas por nossas relações com outras pessoas.
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4. Quais os principais desafios para desenvolver a teoria histórico cultural na
clínica
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* 5ª meta: produzir resposta consistente ao tem do inconsciente
Lembre-se que o foco da consciência nunca pode abarcar toda a
realidade num só ato, mas, como diz Vigotski: “a atividade da
consciência pode seguir rumos diferentes” (1934/1989, p. 78).
Mudanças de rumo nem sempre são planejadas. E podemos agir
conscientemente sem ter consciência de nossos motivos para agir
assim. Não se estabelecerá uma consciência paralela no interior da
consciência, “império dentro do império”, como critica Espinosa. Mas
temos um problema de investigação, já levantado na história da
psicologia, para o qual não há respostas sociais satisfatórias, sob os
critérios do materialismo histórico e dialético, embora Uznadze
(1961/1966) e Bassin (1968/1981) tenham lançado bases importantes.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
5. Para continuar o diálogo
Em primeiro lugar cabe dizer que já há várias correntes em psicoterapia,
inspiradas em obras de Vigotski, Luria, Leontiev, Bojóvitch, Rubinshtein,
entre outros grandes nomes da psicologia russa e soviética. Temos
colegas nossos trabalhando numa linha “cubana”, numa linha “norteamericana”, numa linha “portuguesa”, e, como não, também em linhas
“russas”. Nada do que estes grupos fazem partiu do nada. E a lugar algum
chegaremos sem saber por onde passaram. Entretanto, o modo de
articular as coisas que apresentei aqui é de minha inteira
responsabilidade. Foi que fui sistematizando desde que me coube a
tarefa social de trabalhar com aquelas crianças de que lhes falei, num
contexto da clínica individual. Vocês, com toda a razão, podem desejar
me perguntar: como era feito? Não posso apresentar os casos, não tenho
autorização para fazê-lo. Mas também não posso responder nem com o
evasivo “caminhante não há caminho, caminho se faz ao caminhar”, nem
com um falso “tudo está planejado e estruturado desde o início”...
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
5. Para continuar o diálogo
Devo apresentar algo entre esses dois extremos: duas orientações de
base irredutíveis; e três momentos (psico)operacionais necessários,
interligados de modo flexível. As duas orientações que tomei como
básicas advieram de dois pensadores de tempos muito diferentes. O
primeiro o grego Hipócrates: “Aliviar sempre, curar se possível, ao menos
não danar”; pois há tratamentos que causam mais doença do que curam,
é o que se denomina dentre os fatores patogênicos de: “hiatrogenia”
(patologias geradas pelo próprio tratamento). Assim: se não se sabe por
onde chegar, tenha-se a honestidade de não forçar situações de
intervenção que não sejam seguras.
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5. Para continuar o diálogo
O segundo o alemão Adorno, de quem meu amigo Luiz Lastória extrai a
máxima “Se ainda não há cura, aprofunda o diagnóstico”. O que
complementa a primeira orientação, tanto mais quando se trata de
crianças supostamente vítimas de abusos físicos, morais, sexuais, ou
negligência, às quais um programa público federal e um conselho tutelar
se dirigem equivocadamente como que a testemunhas a serem
policialmente interrogadas. Era necessário resistir a tal demanda
institucional. As crianças não vinham por vontade própria, os pais não as
traziam por vontade própria, de quem era o desejo de tanto lhes fazer o
bem? Era preciso números, estatísticas, eram demandadas denúncias e
culpados. Então, entendamos estas coisas historicamente, como nos
recomenda Vigotski.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
5. Para continuar o diálogo
Os três momentos interligados a que me referi, retirei do próprio bomsenso quanto às práticas terapêuticas em geral, o qual não pertence a
uma abordagem ou outra. Mas são patrimônio cultural geral. É preciso
uma boa acolhida, é preciso diagnóstico mais preciso possível, e é preciso
intervir. Eis que de um ponto de vista histórico-cultural, já acolher é uma
intervenção, já diagnosticar é intervir, e intervir mais agudamente exige
que não se perca ainda a acolhida, e que não se deixe de retomar
seguidamente o próprio diagnóstico. Pois somos o que somos em relação
social, e em relação nos potencializamos, nos tornamos outros no
próprio processo.
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5. Para continuar o diálogo
Que recursos simbólicos, semânticos podiam ser utilizados, já que a
consciência se constrói semanticamente? A brincadeira era um deles,
mas a palavra seguia sendo central, escutando a brincadeira, lendo a
brincadeira, conversando com ela, pedindo para participar, aceitando
participar quando pedido... Como diz o próprio Vigotski: “a palavra
[significativa] é o microcosmo da consciência humana” (1934/2001, p.
486), e ao terapeuta cabe tanto pronunciá-la em sua modalidade
dialógica quanto interpretá-la nesta mesma modalidade..
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5. Para continuar o diálogo
A arte do diálogo não foi criada por nenhuma psicologia. É uma prática
milenar que remonta aos “diálogos socráticos de rua”, analisados por
Bakhtin (1963/1997), e ainda antes quando os antigos sábios gregos se
desafiavam constantemente por enigmas que deviam proferir e decifrar
(Colli, 1988). A fala não é de nenhuma corrente psicológica, a fala é o
que nos faz humanos, e dentro da psicologia histórico-cultural temos
nossa própria interpretação sobre como ela funciona no campo
interpsicológico e intrapsicológico. Sendo assim, não nos cabe reinventar
a roda, mas pensar em que direção deve ir a carruagem, tomar as suas
rédeas e sermos, juntamente com as pessoas a quem atendemos, atores
de nossa própria história. Isto é o que estamos procurando aprender a
fazer, inclusive ao estar aqui hoje com vocês.
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O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural: diretrizes iniciais
Referências
Bakhtin, M. M. (1963/1997). Problemas da poética de Dostoiévski. 2.a ed.
revista. Rio de Janeiro: Forense. 275 p.
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da atividade nervosa superior. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 427 p.
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Delari Junior. Mimeo. Umuarama - PR. 9 p. Disponível em:
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Referências
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Vygotski, L. S. (1932-34/2006) El problema de la edad. In: ______. Obras
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Vygotski, L. S. (1933-34/2006) La crisis de los siete años. In: ______. Obras
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Referências
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Fontes. 135 p.
Vigotski, L. S. (1934/2001) A construção do pensamento e linguagem. São Paulo:
Martins Fontes. 496 p.
Zeigarnik, B. V. (1962/1965) The pathology of thinking. New York: Consultants
Bureau. 211 p.
Zeigarnik, B. V. (1969/1972) Experimental abnormal psychology . [Vvdenie v
patopsikhologuiiu] New York; London: Plenum Press. 158 p.
*
A. N. Leontiev morreu em 1979, mas foi colocado o ano da primeira publicação em russo,
não temos a data em que foi originalmente escrito.
**
Dmitri Nikolaevitch Uznadze viveu de 1886 a 1950. 1961 é a data da primeira publicação
do livro, não temos a data da produção dos manuscritos originais.
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Muito obrigado!
Achilles Delari Junior
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