O APRENDIZADO DA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE POR
ALUNOS DO 6º PERÍODO DA FACULDADE DE MEDICINA
NAS ENFERMARIAS DE CLÍNICA MÉDICA DO HUCFF
Profa. ALICIA NAVARRO DE SOUZA
Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal
MARIANA CARAZZA e MAURO DUFRAYER
Alunos de Graduação
Faculdade de Medicina / UFRJ
Na Faculdade de Medicina da UFRJ, durante o
6º período, o jovem estudante passa a integrar o
cotidiano de uma enfermaria clínica no hospital
universitário terciário, vivenciando a experiência
inédita de prestar assistência diária a um paciente.
A experiência de desamparo pelo confronto
com o sofrimento e a morte de seus primeiros
pacientes associado a um saber mais limitado que
possuem constitui uma fase reconhecidamente de
maior intensidade conflitiva e fundamental na
construção de sua identidade profissional.
Neste momento o aluno vivencia uma etapa do
aprendizado da competência clínica exercida na
relação médico-paciente, em meio aos seus pares da
equipe médica tendo, ao mesmo tempo, a
oportunidade de debater na disciplina de Psicologia
Médica a interação com seus primeiros pacientes.
Estudos têm demonstrado a maior importância
para os estudantes do aprendizado da relação médicopaciente através da observação de modelos –
professores e/ou médicos no exercício da clínica –
embora a maioria destes estudos tenha sido realizada
com alunos do Internato, última etapa do curso
médico, ou com médicos residentes.
Os alunos do 6º período ao integrarem pela
primeira vez uma equipe de saúde estão convocados a
participar do exercício da função médica, que não
depende apenas dos conhecimentos calcados na
racionalidade anátomo-clínica, mas também de uma
série de valores que atravessam e constituem a
prática médica permitindo que os médicos se
reconheçam como pertencendo a um grupo social.
Na última década, no Brasil, presenciamos
ações institucionais que expressam um processo de
mudança sócio-cultural que implica o papel social do
médico, paciente e familiares valorizando a
autonomia e o maior respeito à cidadania dos
pacientes. Em abril de 2001, foi instituída a Cartilha
dos Direitos dos Pacientes do Hospital Universitário
Clementino Fraga Filho, marcadamente identificada
com a lei promulgada em 1999, conhecida como “Lei
Mario Covas”, que propiciou que os direitos do
paciente ganhassem destaque e espaço nas discussões
sobre políticas e programas de saúde nacionalmente.
OBJETIVO
Nesta pesquisa buscamos descrever como os
alunos da Faculdade de Medicina da UFRJ, durante o
6º período, quando prestam assistência a seus
primeiros pacientes, percebem sua experiência
clínica e a construção da relação médico-paciente,
numa enfermaria do HUCFF/UFRJ, e se a instituição
da Cartilha de Direitos dos Pacientes, em abril de
2001, criou impacto nesta prática.
METODOLOGIA
Foi aplicado um questionário composto por 18
perguntas estruturadas e 3 perguntas abertas à
totalidade dos alunos que estavam concluindo o 6º
período
em
dezembro/2000,
junho/2001,
dezembro/2006 e junho/2007.
Do universo de 384 alunos, 55.2% questionários
foram respondidos. Considerando-se os 192 alunos de
2000 e 2001 (T1), 60.4% deles responderam, ao passo
que dos 192 estudantes de 2006 e 2007 (T2), 50%
responderam.
METODOLOGIA
As perguntas estruturadas investigavam os
aspectos listados na tabela apresentada a seguir.
As respostas abertas visavam identificar
experiências
marcantes
para
sua
formação
profissional, sugestões caso o aluno estivesse no lugar
de seu ‘staff’ de enfermaria, e sugestões caso ele ou
um de seus familiares fosse paciente de sua equipe de
saúde.
RESULTADOS
T1
T2
2000/2001
2006/2007
Segundo os alunos, seus pacientes que
sabiam seu diagnóstico
72.05%
74.73%
Segundo os alunos, seus pacientes que
sabiam seu prognóstico
36.83%
38.52%
Alunos que acompanharam pelo menos
um paciente que tenha assinado um CI*
15.38%
22.68%
Alunos que não sabem informar se
algum paciente assinou um CI*
56.41%
65.97%
*CI – consentimento informado para a realização de
procedimento diagnóstico ou terapêutico
RESULTADOS
DIAGNÓSTICO
SEGUNDO OS ALUNOS, PACIENTES QUE SABIAM SEU DIAGNÓSTICO
72,05%
74,73%
Turmas 2000/2001
Turmas 2006/2007
22,16%
18,02%
5,79%
Pacientes que sabiam
Pacientes que
não sabiam
7,24%
Pacientes dos quais
não se tem a informação
RESULTADOS
Após seis anos de implantação da Cartilha dos
Direitos do Paciente, que garante ao paciente receber
informações claras, objetivas e compreensíveis sobre seu
diagnóstico, prognóstico e tratamento, os alunos não
informam diferentes percentuais de pacientes conhecedores
de seu diagnóstico ou prognóstico. Segundo os alunos, cerca
de 20% dos pacientes atuais ou de 6 anos atrás, não sabem
seu diagnóstico.
RESULTADOS
A Cartilha também define ainda que o paciente deve
“consentir ou recusar de forma livre, voluntária e
esclarecida, com adequada informação, procedimentos
cirúrgicos, diagnósticos e/ou terapêuticos a que será
submetido, para os quais deverá conceder autorização por
escrito”.
A implantação desses consentimentos informados
pelos vários Serviços do HUCFF deveria ter possibilitado ao
aluno observar esta prática de forma bem mais freqüente. No
entanto, este crescimento foi de apenas 7.3% e, ainda, houve
um aumento de 9.5% no percentual de alunos que não sabem
informar.
RESULTADOS
CONSENTIMENTO INFORMADO
ALUNOS QUE ACOMPANHARAM PELO MENOS UM PACIENTE QUE
TENHA ASSINADO UM CONSENTIMENTO INFORMADO
65,97%
56,41%
Turmas 2000/2001
Turmas 2006/2007
27,35%
22,68%
15,38%
7,21%
0,85% 3,09%
Acompanharam pelo
menos um paciente
Não acompanharam
nenhum paciente
Não sabem informar se
algum paciente assinou
Não informaram
RESULTADOS
É importante destacar que quando os alunos se
colocam no lugar de pacientes, a maioria sugere mais
informação, atenção e respeito.
RESULTADOS
T1
T2
2000/2001 2006/2007
Alunos que dedicaram diariamente uma
hora ou mais ao seu paciente
67.52%
62.88%
Alunos que acompanharam pelo menos
um de seus pacientes na realização de
um procedimento complementar fora do
espaço da enfermaria
72.65%
45.36%
Alunos que acompanharam pelo menos
um paciente que faleceu
64.96%
55.67%
RESULTADOS
ALUNOS QUE ACOMPANHARAM PELO MENOS UM DE SEUS PACIENTES NA
REALIZAÇÃO DE UM PROCEDIMENTO FORA DO ESPAÇO DA ENFERMARIA
72,65%
Turmas 2000/2001
Turmas 2006/2007
50,64%
45,36%
27,35%
Alunos que acompanharam
Alunos que não acompanharam
RESULTADOS
T1
T2
2000/2001 2006/2007
Alunos que assistiram a comunicação
diagnóstica
65.81%
31.95%
Alunos que pelo menos uma vez
assistiram e/ou participaram do processo
de tomada de decisão sobre a conduta
terapêutica
83.76%
67.01%
RESULTADOS
COMUNICAÇÃO DIAGNÓSTICA
ALUNOS QUE TIVERAM A OPORTUNIDADE DE
ASSISTIR A UMA COMUNICAÇÃO DIAGNÓSTICA
65,81%
62,98%
Turmas 2000/2001
31,95%
32,48%
Turmas 2006/2007
1,71%
Assistiram
Não assistiram
3,09%
Não informaram
RESULTADOS
T1
T2
2000/2001 2006/2007
Alunos que interagiram com
ENFERMAGEM
70.09%
62.88%
Alunos que interagiram com a equipe de
NUTRIÇÃO
23.93%
30.92%
Alunos que interagiram com ASSISTENTES
SOCIAIS
9.09%
6.18%
Alunos que assistiram ou interagiram com
a FAMÍLIA
92.31%
86.59%
RESULTADOS
T1
T2
2000/2001 2006/2007
Alunos que apresentaram relato oral do caso
do seu paciente em reuniões com o ‘STAFF’
visando o aprendizado
97.43%
93.81%
Alunos que apresentaram o relato oral do caso
do seu paciente em reuniões da EQUIPE
MÉDICA visando a discussão da conduta
terapêutica
63.24%
27.83%
Alunos que participavam no relato oral do
caso de seu paciente em reuniões com
ESPECIALISTAS MÉDICOS que não integram a
equipe de rotina da enfermaria
21.37%
11.34%
Alunos que participavam no relato oral do
caso de seu paciente em reuniões com a
EQUIPE DE SAÚDE MULTIPROFISSIONAL
0.85%
1.03%
RESULTADOS
T1
T2
2000/2001 2006/2007
Alunos que freqüentemente ou sempre
participavam do REGISTRO DA ANAMNESE
no prontuário de seus pacientes
24.79%
15.46%
Alunos que freqüentemente ou sempre
participavam do REGISTRO DA EVOLUÇÃO
no prontuário de seus pacientes
73.50%
24.73%
Alunos que regularmente participaram de
RODÍZIO na enfermaria
53.84%
49.48%
RESULTADOS
REGISTRO NO PRONTUÁRIO
ALUNOS QUE FREQÜENTEMENTE OU SEMPRE PARTICIPAVAM DO
REGISTRO NO PRONTUÁRIO DE SEUS PACIENTES
73,50%
Turmas 2000/2001
Turmas 2006/2007
24,79%
24,73%
15,46%
Alunos que participavam do
registro da ANAMNESE
Alunos que participavam do
registro da EVOLUÇÃO
RESULTADOS
T1
T2
2000/2001 2006/2007
Principal fonte de aprendizado da RMP* –
‘staff’ e médicos
14.52%
18.55%
Principal fonte de aprendizado da RMP* –
residentes e internos
31.62%
15.46%
Principal fonte de aprendizado da RMP* –
professores de Psicologia Médica
7.69%
11.34%
Principal fonte de aprendizado da RMP* –
ambiente profissional fora da UFRJ
1.70%
4.12%
Principal fonte de aprendizado da RMP* –
experiência pessoal (amigos, familiares)
18.80%
28.86%
* RMP – relação médico-paciente
RESULTADOS
EXPERIÊNCIA MARCANTE...
na sua formação profissional
A experiência marcante relatada pelos alunos é
a primeira experiência de assunção de um paciente
possibilitada pelo acompanhar diário do paciente e,
não raro, de seu familiar, desenvolvendo uma relação
estudante-paciente continuada.
A “confiança” estabelecida, a “profundidade”
desta relação que possibilita “segredos” relatados
exclusivamente ao aluno, o “agradecimento” dos
pacientes e familiares, a “surpresa” muitas vezes
pelo óbito de seu paciente, são aspectos referidos
com freqüência, indicando o ineditismo e “a
importância de ser médico”.
RESULTADOS
EXPERIÊNCIA MARCANTE...
na sua formação profissional
Alguns alunos tiveram de lidar com conflitos e
ativamente buscar uma aliança terapêutica.
Uma paciente e sua filha são surpreendidas
pelo aluno no momento em que desobedeciam as
ordens médicas, e ele foi capaz de transformar uma
disputa em um acordo, uma sabotagem em um
entendimento, ao não se sentir atacado pelo gesto
delas, mas o aluno conclui o semestre sem saber se
agiu certo!
RESULTADOS
EXPERIÊNCIA MARCANTE...
na sua formação profissional
“Uma experiência marcante para mim foi a
demonstração de que construí uma boa relação com uma
paciente.
Era uma senhora que tinha dieta restrita e que eu
surpreendi prestes a comer misto quente e coca-cola,
trazidos pela filha. Eu tentei conversar com a filha,
explicando porque não podia, mas ela me disse que sabia de
toda a situação da mãe e que não iria privá-la de comer o
que ela quisesse.
Achei que não poderia guardar a informação para
mim, mas também não queria “dedurar” a paciente e perder
toda a confiança que havia conquistado.
RESULTADOS
EXPERIÊNCIA MARCANTE...
na sua formação profissional
No dia seguinte fui conversar com ela e expliquei que
não queria contar a ninguém, mas que gostaria que ela
decidisse se ela mesma deveria contar ou não, já que todos
os médicos achavam que a dieta estava sendo seguida.
Na mesma hora ela pediu que eu chamasse um
residente e contou a ele.
Não sei se agi certo, mas funcionou como eu queria. E
mesmo parecendo uma coisa simples, foi muito importante
pra mim e certamente contribuiu para a minha formação
profissional.”
RESULTADOS
EXPERIÊNCIA MARCANTE...
na sua formação profissional
Inferimos que o aluno não pode aprender com
seus professores, porque isto não deve ser um assunto
autorizado no diálogo professor-aluno. Se nossa
hipótese é correta, se este diálogo foi suposto não ser
pertinente, o aluno perdeu também a oportunidade,
provavelmente, de ensinar.
RESULTADOS
Se VOCÊ fosse o ‘STAFF’
com atribuições docentes e assistenciais...
Vários alunos sugerem que o ‘staff’ deveria ter
mais contato com os pacientes, dar a eles mais
informações sobre sua situação clínica, examinar o
paciente com os alunos, e se colocar como “o
médico”, “o responsável” pela enfermaria de forma a
assim ser identificado.
Solicitam maior participação no cotidiano da
assistência médica na enfermaria através de maior
integração com toda a equipe médica e participação
nas reuniões de discussão de casos.
RESULTADOS
Se VOCÊ fosse o ‘STAFF’
com atribuições docentes e assistenciais...
Sobre o trabalho assistencial estão em destaque
a preocupação dos alunos com a atenção dos
profissionais à mudança de decúbito dos pacientes
para prevenção de escaras; o sol que não deveria
incidir sobre os pacientes que estão mais próximos
das janelas; atendimento fisioterápico; assistência aos
familiares através de reuniões regulares com
assistentes sociais e psicólogas; maior agilidade na
realização dos procedimentos e menos burocracia
para tornar mais breve e digna a internação dos
pacientes.
RESULTADOS
Se VOCÊ ou um de SEUS FAMILIARES
fosse o PACIENTE...
Ao serem solicitados a se identificarem com a
condição de paciente ou familiar, os alunos
destacaram expressivamente a necessidade dos
pacientes de receberem informação e de serem
tratados com atenção e respeito. A importância de
informar de maneira explícita ao paciente e seus
familiares o que se passa com ele a cada dia, os
procedimentos que devem ser realizados, seu
diagnóstico, seu prognóstico, e a terapêutica foram
muito enfatizados.
RESULTADOS
Se VOCÊ ou um de SEUS FAMILIARES
fosse o PACIENTE...
A atenção e o respeito, tanto de médicos
quanto de enfermeiros, foram enfatizados pelos
alunos, muitas vezes referidos através do tempo
dedicado, interesse, solidariedade, respeito à
privacidade, atenção ao estado emocional do
paciente, etc.
CONCLUSÃO
Os resultados indicam a importância para
os estudantes do 6º período do aprendizado da
experiência clínica e da construção da relação
médico-paciente
através
das
atividades
práticas.
No entanto, é claramente insuficiente,
por exemplo, o aprendizado da comunicação
diagnóstica, a apresentação oral do caso clínico
do seu paciente para a equipe médica em
reuniões da rotina assistencial, visando à
discussão da conduta terapêutica, o que nos
CONCLUSÃO
faz supor que os principais responsáveis por
esta prática não conhecem todas as dimensões
implicadas no ensino que empreendem
cotidianamente, nem sua importância.
Nos últimos seis anos, houve um
decréscimo significativo no relatar oralmente
os casos clínicos de seus pacientes, o que é
reconhecidamente uma prática formativa.
CONCLUSÃO
Como nos apontam Good, B. & Good, M.
(1994), a construção do paciente como caso
clínico, como um projeto médico – a seleção
de informações apreciadas como relevantes
para a elaboração do diagnóstico e das
decisões terapêuticas – são práticas
formativas, que não descrevem meramente a
realidade, mas constituem formas de
construí-la.
CONCLUSÃO
É importante também destacar que os
alunos atualmente pensam aprender menos a
relação médico-paciente com os professores,
médicos e internos nas enfermarias do HUCFF
do que em ambiente profissional fora da UFRJ
e, em âmbito pessoal, com amigos, e
familiares.
CONCLUSÃO
Por fim, a introdução da Cartilha dos
Direitos do Paciente não parece ter tido
nenhum impacto maior na construção da
experiência clínica exercida na relação
médico-paciente,
se
considerarmos
os
percentuais
relativos
ao
conhecimento
diagnóstico, prognóstico, a participação em
consentimentos informados, e as apreciações
dos alunos colhidas nas perguntas abertas.
COMUNICAÇÃO DA VERDADE DIAGNÓSTICA
UM ESTUDO SOBRE ASPECTOS DA
CULTURA MÉDICA AMERICANA
OKEN, D. What to tell cancer patients: a study of medical attitudes.
JAMA 175:1120-8, 1961.
NOVACK DH, PLUMER R, SMITH RL, OCHITILL H, MORROW GR &
BENNETT JM. Changes in physicians' attitudes toward telling the
cancer patient. JAMA 241 (9):897-900, 1979.
EUA
1960, enquete postal
500 médicos
1961, OKEN
219 médicos
1977, NOVACK et al
278 médicos
INFORMAM
NÃO
INFORMAM
16 %
84 %
12 %
88 %
98 %
2%
1ª QUESTÃO
Novack D e cols
JAMA 241 (9): 897-900, 1979
A mudança de atitude
estará sendo acompanhada
do suporte emocional que o paciente,
ao conhecer seu diagnóstico,
pode precisar de seu médico?
2ª QUESTÃO
Agora que dizemos mais
aos nossos pacientes,
estamos também
ouvindo-os mais?
3ª QUESTÃO
100 % dos médicos pesquisados afirmaram
que os pacientes tem o direito de saber:
• Estarão os médicos abdicando, algumas
vezes, da responsabilidade de fazer
sutis julgamentos nos casos individuais?
• Devem os pacientes ter também o
direito a não saber?
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O aprendizado da relação médico-paciente por