Marco conceitual e legal de povos e
comunidades tradicionais no Brasil
Prof. Dr. Aderval Costa Filho – UFMG
Povos e Comunidades Tradicionais:
 Constatações: boa parte dos povos e comunidades
tradicionais encontra-se ainda na invisibilidade,
silenciados por pressões econômicas, fundiárias,
processos
discriminatórios
e
de
exclusão
sociopolítica.
 boa parte dos territórios tradicionais
expropriados,
sofreram/sofrem
esbulho,
impactados por obras e empreendimentos.
 Mas quem
tradicionais?
são
os
povos
e
foram
estão
comunidades
“Povos e Comunidades Tradicionais são entendidos
como grupos culturalmente diferenciados e que se
reconhecem como tais, que possuem formas próprias
de organização social, que ocupam e usam territórios
e recursos naturais como condição para sua
reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e
práticas gerados e transmitidos pela tradição.”
(Art. 3º do Decreto 6.040, de 7/2/07)
Sociobiodiversidade brasileira
Sociodiversidade – Comunidades Tradicionais
Povos Indígenas – 734.127 hab. (225 etnias, 180 línguas) – 110 milhões de ha.
Quilombolas – 2 milhões de hab. – 30 milhões de ha.
Seringueiros – 36.850 hab. – 3 milhões de ha.
Seringueiros e Castanheiros – 815.000 hab. – 17 milhões de ha.
Quebradeiras de coco-de-babaçu – 2 milhões hab. – 18 milhões de ha.
Atingidos por barragens – 1 milhão de pessoas expulsas de suas terras e
territórios.
Fundo de pasto – 140 mil pessoas.
Além desses, constam os povos de terreiro, os povos ciganos, caatingueiros,
geraizeiros, vazanteiros, veredeiros, ilhéus, cipozeiros, catadoras de mangaba,
faxinalenses, pescadores artesanais, caiçaras, ilhéus, açorianos, campeiros,
varjeiros, pantaneiros, dentre outros, dos quais ainda não temos dados
confiáveis.
Aproximadamente: ¼ do território nacional - 5 milhões de famílias - 25 milhões
de pessoas (Prof. Alfredo Wagner Berno de Almeida)
Vínculo Territorial
Acesso ao território  Possibilidade de reprodução
social nos
moldes tradicionais
Dimensões simbólicas do território:
• Nele estão impressos os acontecimentos ou fatos históricos
que mantém viva a memória do grupo
• Nele estão enterrados os ancestrais e estão os sítios
sagrados
• Ele determina o modo de vida e a visão de homem e de
mundo
• Ele é apreendido e vivenciado a partir dos sistemas de
conhecimento locais
Outros aspectos ligados ao território:
Noção de pertencimento a um território
(lugar específico que é “nosso”)
 Condutas de territorialidade (demarcação,
defesa, critérios de inclusão e exclusão etc.)
 Identificação
com
um
ecossistema
específico (Cerrado; Caatinga; Mata Atlântica;
Pantanal etc)
 Povos e comunidades cujos territórios
foram expropriados e se refugiaram no plano
da memória
 Povos nômades e transumância
 Comunidades
cidade
que
foram
engolidas
pela
Produção:
A produção em contextos tradicionais
está na contra-marcha do agronegócio
(troca e reciprocidade)
Produção  coesão social
 Vender para o mercado não é o único fim da produção
 Parte da produção é destinada às práticas sociais (festas,
ritos, etc.) e parte é destinada ao consumo
 Uso comunitário de recursos naturais renováveis
 Uso de tecnologias de baixo impacto ambiental
 Sobreposição do calendário religioso e agrícola
 Ritmo e lógica próprios
Organização social
• Importância da família extensa ou ampliada na
organização da comunidade
• Relações produtivas baseadas na unidade doméstica
ou familiar
• Distintas modalidade de família e de organização
social
Expressões culturais
Expressões
culturais
próprias
(expressões lingüísticas, festas, rezas,
comidas, modo de fazer as casas,
roupas, etc.)
Mitos
e
ritos
associados
atividades
de
pesca,
caça
extrativismo
às
e
Transmissão
oral de geração em
geração dos conhecimentos culturais
e ambientais
Importância (papel) dos guardiões
da memória

Geopolítica
• A comunidade mantém inter-relações com outros
grupos similares na região (troca e comércio, encontros;
associações; intercasamentos; festas; etc.)
• A comunidade se define e se constrói por contraposição
a outros segmentos ou grupos sociais da região
• Há termos utilizados pelos seus membros para se referir
ao seu próprio grupo (auto-identificação)
• Cisões e facções políticas internas ao grupo (tensões
intrasocietárias)
• Povos e comunidades inimigos tradicionais (tensões
intersocietárias)
• Nem sempre a distribuição demográfica tradicional das
comunidades se coaduna com divisões políticoadministrativas
Processos de territorialização
 contextos em que houve expropriação de terras e de
recursos naturais
Estratégias de expropriação  ameaças e pressões para
entrega das terras, aquisição e venda, cercamento,
adjudicação de terras, obras e empreendimentos, etc.
Agravante  desconhecimento das leis e do processo de
cartorização (analfabetismo).
 Presença de jagunços, destacamentos da polícia,
oficiais de justiça e juízes, advogando interesses de
terceiros, ilustram a desigualdade na correlação de forças
entre invasores e povos tradicionais : orality X literacy
(Ong, 1982).
Ambivalência teórico-conceitual (territorialização /
desterritorialização).
Dimensões: a dimensão espacial concreta - o
território
a dimensão cognitiva – ordenamento territorial e
uso de recursos
a dimensão sociopolítica – o conjunto de
relações sociais associadas ao território
a dimensão representacional – representações
sobre o espaço em que se deram e se dão essas
relações
a dimensão moral - relação estabecida pela ordem
moral entre Deus - Homem - atureza no território
Dimensão cognitiva:
Profundo conhecimento e uso das unidades de
paisagem

conjuga
elementos
climáticos,
vegetação, tipos de solos com estratégias produtivas
(cultivo, criação, caça, coleta e extrativismo)
A lógica da ocupação dos terrenos segue uma
estratégia de multiusos das diferentes unidades da
paisagem, explorando potencialidades, respeitando
limites.
Dimensão sociopolítica:
O domínio cognitivo do território + formas de sociabilidade
(categorias locais de ordenamento e uso territorial articulamse com formas de interação entre famílias e grupos locais,
formas de solidariedade e cooperação).
Oliveira (1998)  “processos de territorialização” estão
relacionados a contextos intersocietários de conflito.
“Nesses contextos, a conduta territorial surge quando as
terras de um grupo estão sendo invadidas numa dinâmica em
que internamente a defesa do território torna-se um
elemento unificador do grupo e, externamente, as pressões
exercidas por outros grupos ou pelo governo da sociedade
dominante moldam e, às vezes, impõem outras formas
territoriais.”
Almeida (2006) também enfatiza a dimensão
política do processo de territorialização:
“A territorilização se dá também por certo grau
de coesão e solidariedade obtido face a
antagonistas e em situações de extrema
adversidade e de conflito, que reforçam
politicamente as redes de solidariedade.”
Dimensão representacional:
Quando a materialidade está comprometida  plano das
“representações” (Durkheim, 1996); plano da memória
social.
Período-âncora vívido na memória  idealização do
passado (liberdade no domínio e uso do território, fartura cultivo, criação, caça e extrativismo -, práticas produtivas
ecologicamente adaptadas) e construção do
presente/futuro.
Ambivalência entre dificuldades no uso dos recursos
naturais e do território e fartura.
Tempo intimamente relacionado à identidade do grupo –
“tempo da comunidade” (Zonabend, 1980).
Dimensão moral:
No território há comumente uma visão relativamente
fechada, onde a quantidade de força, de riqueza e de
terra é constante desde a criação do mundo,
refletindo-se na perspectiva moral de que o homem
deve saber usar o que Deus deixou na terra, sem
abusar da Natureza (Woortmann K., 1990).
O senso de comunidade é explicitado pelo caráter
holístico da realidade, com ênfase nos diacríticos ou
elementos mais representativos do universo social.
Diferentemente de nosso modelo individualizante de
pessoas, coisas e saberes (indivíduo moral de
Dumont, 1992).
Territorialização e “terras tradicionalmente
ocupadas”:
Processo de territorialização  subsidiário da noção
de terras tradicionalmente ocupadas - o controle
dos recursos não é exercido individualmente, mas
por grupos familiares que compõem uma unidade
social (Almeida, 2006: 24).
Segundo Little (2002), do ponto de vista fundiário ou
territorial, no regime de propriedade comum, o
sentido de pertencimento a um lugar específico e a
profundidade histórica da ocupação guardada na
memória social são fatores que conformam
similaridades entre todos os povos tradicionais.
Blakie e Brookfiel (1987) abordam o sistema de posse
comunal na perspectiva dos recursos naturais de
propriedade comum:
 os recursos são de uso, mas não de posse
individual/familiar;
 tem um número de usuários com direitos
independentes;
 os usuários constituem uma coletividade com o
direito a excluir quem não seja membro desta;
 os recursos de propriedade comum distinguem-se
dos bens de consumo coletivo e privado, que são
objeto de uso exclusivo e posse, mesmo que restritos
aos interesses de toda a sociedade.
O estatuto das terras tradicionalmente ocupadas
Direitos territoriais indígenas
Direitos territoriais de Comunidades Quilombolas
Direitos territoriais de Povos e Comunidades
Tradicionais
?
A Comissão e a Política
Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais
I Encontro Nacional de
Comunidades Tradicionais
- Luziânia (Ago/2005)
Mais de 80 lideranças
Proposta
de
reformulação
da
Comissão:
15 representações eleitas para
participar da Comissão
12 demandas prioritárias
Comissão Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos
e Comunidades Tradicionais - 13 DE JULHO DE 2006
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
M. Desenvolvimento Social
(Presidente da Comissão)
•
M. Meio Ambiente (Secretaria
•
Executiva da Comissão)
•
M. Desenvolvimento Agrário
M. Cultura
SPU - MPOG
•
M. Educação
•
M. da Ciência e Tecnologia
Ministério da Pesca e Aquicultura•
Sec. Prom. Igualdade Racial
•
Fundação Palmares
•
FUNAI
MS/FUNASA
•
CONAB
•
IBAMA
INCRA
•
•
Convidados Permanentes: SEDH /
•
MPF – 6ª Camara / Movimento
das Catadoras de Mangaba-SE
•
Geraizeiros – Rede Cerrado – Art. Pacari
Retireiros – ARA
Extrativistas – CNS
Com. Fundos de Pasto – Coordenação de
F. Pasto BA
Quilombolas – CONAQ
Agroextrativistas – GTA
Faxinais – Articulação Puxirão
Pescadores Art. - AMONAPE
Povos de Terreiro – ACBANTU e Rede
KÔDYA
Pomeranos – APOP e ACA
Povos Indígenas – COIAB e APOINME
Pantaneiros – Rede Com. Pantaneiras
Quebradeiras – MIQCB
Caiçaras – Rede Caiçara e U.M Juréia
Ciganos – APRECI e CEDRO
Oficinas Regionais Para construção da PNPCT
(14 a 23 de setembro de 2006):
• Rio Branco – AC, AM, RO, RR
• Belém – AP, PA, MA, TO
• Curitiba – ES, RJ, SP, PR, SC, RS
• Cuiabá – MT, MS, GO e DF
• Paulo Afonso – PI, CE, PB, PE, AL, SE, BA, RN e MG
350 participantes – lideranças PCT
 Decreto 6040, de 7 de fevereiro de 2007
Decreto 6.040, de 7 de fev. De 2007:
Eixo estratégico 1 - Acesso aos Territórios
Tradicionais e aos recursos naturais:
– Garantia e efetivação do acesso de povos e
comunidades aos seus territórios e aos recursos
naturais;
– Interação entre territórios tradicionais e o
Sistema Nacional de Unidades de Conservação
da Natureza.
Eixo estratégico 2 – Infra-estrutura:
• Infra-estrutura básica ;
• Implementação de projetos com
impactos diretos e/ou indiretos
em territórios tradicionais.
Eixo Estratégico 3 - Inclusão Social:
• Educação diferenciada.
• Reconhecimento, fortalecimento e formalização da
cidadania.
• Atenção diferenciada à saúde.
• Adequação do sistema previdenciário.
• Acesso às políticas públicas de inclusão social.
• Gênero.
• Acesso e gestão facilitados para recursos públicos.
• Segurança pública e direitos humanos.
Eixo estratégico 4 – Fomento e Produção
Sustentável:
• Proteção e valorização das práticas e
conhecimentos tradicionais;
• Reconhecimento e fortalecimento das
instituições e formas de organização social;
• Fomento e implementação de projetos de
produção sustentáveis.
Construção do Plano Prioritário para PCT 2009-2010
O Plano Prioritário para Povos e Comunidades Tradicionais 20092010 objetiva promover o fortalecimento, reconhecimento e
garantia dos direitos territoriais, sociais, ambientais, econômicos
e culturais destes grupos.
 Já estão aprovisionados até o momento recursos da ordem de
R$ 253 milhões por 17 órgãos governamentais federais.
 No balanço referente às ações em 2008 o governo federal
investiu recursos da ordem de R$ 540 milhões com ações
realizadas junto aos povos e comunidades tradicionais.
 Comissão Nacional – instância de construção, monitoramento
e avaliação do Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável
dos Povos e Comunidades Tradicionais.
Oportunidades/Desafios
• Realização de audiências públicas (sociedade civil).
• Apresentação de Projetos de Lei nos Estados favoráveis aos
PCTs;
• Construção de agendas e pactuação com governos estaduais;
• Construção de estratégias de vizibilização de PCTs;
• Criação de instâncias governamentais para atendimento aos
PCTs;
• Criação de ações e programas nos Planos Plurianuais estaduais
e municipais;
• Criação de instâncias estaduais de Povos e Comunidades
Tradicionais - controle social.
• Construção de cartografias sociais.
• Internalização de variáveis identificadoras de PCTs no sistema
estatístico brasileiro
• Construção
de
marcos
regulatórios
para
acesso
institucionalizado ao território.
Bibliografia citada:
•
ALMEIDA, Alfredo Wagner B. de. Terras de Quilombos, Terras Indígenas,
“Babaçuais Livres”, “Castanhais do Povo”, Faxinais e Fundos de Pasto: Terras
tradicionalmente ocupadas. Manaus: PPGSCA-UFAM. 2006.
•
BLAKIE, Piers & BROOKFIELD, Harold. Land degradation and Society. London:
Methuen and Co. 1987
•
COSTA FILHO, Aderval. Os Gurutubanos: territorialização, produção e
sociabilidade em um quilombo do centro norte-mineiro. Tese de Doutorado.
Brasília: PPGAS UnB. 2008.
•
DUMONT, Louis. Homo Hierarquicus: o sistema das castas e suas implicações.
São Paulo: EdUSP. 1992.
•
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema
totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes. 1996.
Bibliografia citada:
• HAESBAERT, Rogério. “Concepções de Território para entender a
desterritorialização”. In: Milton Santos e Bertha K. Becker (Orgs.) Território,
territórios: ensaios sobre o ordenamento territorial. Rio de Janeiro:
PPGG/UFF/DP&A. 2006.
• LITTLE, Paul E. “Territórios sociais e povos tradicionais no Brasil: por uma
antropologia da territorialidade”. Série Antropologia. N° 322. Brasília: DAN/UnB.
2002.
• OLIVEIRA, João Pacheco de. Indigenismo e Territorialização: poderes, rotinas
e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa. 1998.
• ONG, Walter J. Orality and Luteracy: the technologizing or the word. New York
City: Methuen. 1982.
• WOORTMANN, Klaas. “Com parente não se Neguceia: o campesinato como
ordem moral” In Anuário Antropológico/87. Brasília: EdUnB. 1990.
•
ZONABEND, Françoise. La Mémoire Longue. Paris: PUF. 1980.
Prof. Dr. Aderval Costa Filho
Departamento de Sociologia e Antropologia
FAFICH/UFMG
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