O BRASIL E A JURISDIÇÃO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS
HUMANOS: O ESGOTAMENTO DOS RECURSOS INTERNOS FACE À EC nº 45
DE 2004
Loni Melillo Cardoso*
SUMÁRIO: Introdução; 1. A Organização dos Estados Americanos; 1.1 O
Sistema Interamericano de direitos Humanos; 1.1.1 A Corte Interamericana
de Direitos Humanos; 1.1.2 A Comissão Interamericana de Direitos
Humanos; 2. O requisito de esgotamento dos recursos internos em direito
internacional; 2.1 O requisito de esgotamento dos recursos internos no
Sistema Interamericano de Direitos Humanos; 3. A Emenda Constitucional nº
45 e o Incidente de Deslocamento de Competência; Considerações Finais;
Referências bibliográficas.
Resumo
A recente integração do Brasil ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos
Humanos foi celebrada por representar a inclusão formal perante a Comunidade
Internacional da proteção desta categoria de direitos na agenda política do Estado
brasileiro. Contudo, em 2004, uma reforma constitucional criou o Incidente de
Deslocamento de Competência, instrumento processual que permite a transferência de
processos relativos a grave violação dos direitos humanos para a Justiça Federal
brasileira. O presente estudo visa analisar os impactos deste instrumento sobre a
jurisdição que o Sistema Interamericano exerce sobre o Brasil, especialmente
considerando a exigência do esgotamento de recursos internos, regra geral da proteção
internacional dos direitos humanos.
Palavras-chave: Comissão Interamericana de Direitos Humanos; Corte Interamericana
de Direitos Humanos; direitos humanos; esgotamento de recursos internos; Incidente de
Deslocamento de Competência; Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos
Humanos.
*
Membro do Centro de Direito Internacional - CEDIN. Bolsista de Iniciação Científica da Fundação de
Amparo à Pesquisa de Minas Gerais - FAPEMIG.
Abstract
Brazil’s recent integration to the Inter-American Human Rights System has been
celebrated for representing the formal inclusion before the International Community of
such category of rights in the Brazilian State’s political agenda. However, in 2004, a
constitutional amendment created the Incident of Jurisdictional Displacement, an
adjective instrument which allows the transference of grave-human-rights-violationrelated lawsuits to the Brazilian Federal Courts. The hereby presented study aims to
analyze the impacts of such instrument upon the Inter-American System’s jurisdiction
over Brazil, especially considering the imperative of exhaustion of local remedies,
ground rule of the international human rights protection.
Keywords: Inter-American Commission on Human Rights; Inter-American Court of
Human Rights; human rights; exhaustion of local remedies; Incident of Jurisdictional
Displacement; Inter-American Human Rights System.
Introdução
O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos surgiu na segunda metade
do século XX como um desdobramento das propostas de integração regional no
continente americano, já então consagradas pela Organização dos Estados Americanos
(OEA). A adesão do Brasil a este sistema abriu a possibilidade de responsabilização
internacional do Estado brasileiro por crimes relativos a violações dos direitos humanos,
no âmbito regional.
Dentre os requisitos de admissibilidade dos casos pelos órgãos do Sistema
Interamericano, encontra-se o esgotamento de recursos internos, fundado no respeito à
soberania nacional e sem o qual não se pode instaurar processo de investigação contra
Estados integrantes daquele sistema.
Em 2004, sob a égide da Reforma do Judiciário, foi promulgada no Brasil a Emenda
Constitucional nº 45, que, entre outras modificações, criou no ordenamento jurídico
brasileiro o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC). Sua instituição
inaugurou a possibilidade de modificação de competência para julgar crimes de grave
violação dos direitos humanos.
Esta nova hipótese no direito processual pátrio resultou da constatação de que
determinados fatores locais são capazes de influenciar negativamente o funcionamento
do Poder Judiciário, impedindo que as violações dos direitos humanos dentro do
território nacional fossem devidamente combatidas. O IDC vem corrigir tal leniência, de
modo a evitar a possibilidade de o Brasil ser condenado no plano internacional por
desrespeito aos direitos humanos e a evitar a exposição de uma imagem negativa do
País internacionalmente.
O presente estudo visa analisar os impactos da instituição do IDC no Brasil frente à
efetividade da jurisdição do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Busca-se
compreender se a criação de um novo instrumento processual no ordenamento brasileiro
obstaculiza a admissão de casos oriundos do Brasil nos órgãos deste sistema,
especialmente em face do requisito do esgotamento dos recursos internos.
Para tanto, serão estudados o surgimento do Sistema Interamericano de Direitos
Humanos no âmbito da OEA e a forma de julgamento de demandas por este sistema.
Em seguida, o requisito do esgotamento de recursos internos será estudado em suas
raízes e premissas básicas, para depois ser contextualizado enquanto condição de
admissibilidade de julgamentos no Sistema Interamericano.
Em seguida, passaremos ao exame do próprio Incidente de Deslocamento de
Competência, seu contexto de criação e seus pressupostos, a fim de avaliar se a natureza
do IDC afeta a o requisito de esgotamento dos recursos internos no Sistema
Interamericano.
Por fim, teceremos algumas considerações sobre os efeitos do Incidente de
Deslocamento de Competência no âmbito do sistema regional americano de proteção
aos direitos humanos, a fim de concluir se a instituição do IDC afeta o requisito de
esgotamento dos recursos internos e, consequentemente, dificulta a admissão de casos
provenientes do Brasil.
1.
A Organização dos Estados Americanos 1
As propostas de integração regional do continente americano remontam ao século XIX.
Suas primeiras manifestações pontuais marcantes ocorreram em 1823 e em 1826. A
primeira data corresponde ao nascimento da Doutrina Monroe, uma declaração
unilateral originalmente destinada a integrar os Estados Unidos, mas que,
posteriormente, serviu para justificar intervenções imperialistas norte-americanas nos
países da América Latina, durante as primeiras décadas do século seguinte. A segunda
diz respeito ao Congresso do Panamá, idealizado por Simón Bolívar, que reuniu as
novas repúblicas latino-americanas a fim de discutir medidas para sustentar sua recémadquirida independência e regulamentar a defesa e a assistência mútuas. Os trabalhos
desta conferência produziram o Tratado de União, Liga e Confederação Perpétua, que
nunca entrou efetivamente em vigor.
É apenas a partir da Primeira Conferência Internacional Americana, realizada em
Washington em 1889, que se pode falar do surgimento de um sistema internacional de
integração americana. Esta reunião fixou as bases do pan-americanismo e estabeleceu
metas que até hoje orientam o funcionamento da OEA, como manutenção da paz no
continente americano e a busca conjunta de desenvolvimento.
Posteriormente, sete outras conferências internacionais americanas desenvolveram as
discussões iniciadas em Washington 2 no sentido da integração dos países americanos.
Na Oitava Conferência, em Lima, os países reunidos criaram a possibilidade de
convocação para Reuniões Extraordinárias dos Ministros das Relações Exteriores, com
a finalidade de tratar temas relativos à Segunda Grande Guerra, já então iminente.
Em 1945, no México, aconteceu a mais importante destas reuniões, com vistas a
reorganizar, consolidar e fortalecer o Sistema Interamericano no pós-guerra, e que
resultou na Ata de Chapultepec.
1
Cf. OLIVEIRA, Márcio Luis de (Coord.). O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos.
Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 96-101.
2
Conferências sediadas no México em 1901; no Rio de Janeiro em 1906; em Buenos Aires em 1910; em
Santiago do Chile em 1913; em Havana e 1928 e finalmente em Lima em 1938.
Por fim, a Nona Conferência Internacional dos Estados Americanos, realizada em
Bogotá em 1948, produziu a Carta da Organização dos Estados Americanos 3, o Tratado
Americano de Soluções Pacíficas, também conhecido como Pacto de Bogotá e a
Declaração Interamericana de Direitos e Deveres do Homem.
A Carta de 1948 foi modificada, mediante Protocolos de Reforma, em quatro ocasiões:
Buenos Aires, 1967; Cartagena das Índias, 1985; Washington, 1992; Manágua, 1993 4.
Em sua forma atual, a OEA congrega os trinta e cinco Estados independentes do
continente americano, a saber: Antígua e Barbuda, Argentina, Bahamas, Barbados,
Belize,Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dominica, El
Salvador, Equador, Honduras, Jamaica, México, Nicarágua, Panamá, Peru, República
Dominicana, Saint Kitts e Nevis, Santa Lúcia, São Vicente e Granadinas, Suriname,
Trinidad e Tobago, Uruguai e Venezuela. Além destes, a organização concedeu o status
de observador permanente a 67 Estados e à União Europeia 5.
1.1
O Sistema Interamericano de Direitos Humanos
A Nona Conferência Internacional dos Estados Americanos, em 1948, produziu a
Declaração Interamericana de Direitos e Deveres do Homem, que antecede em meses a
Declaração Universal dos Direitos do Homem. Este documento pioneiro no continente
americano marca o interesse dos países reunidos em defender os direitos humanos
enquanto valor fundante da comunidade internacional em construção. Nela se encontra
o embrião para a Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José da
Costa Rica”), assinada em 1969 e que entrou em vigor em 1978 6.
A Convenção Americana de Direitos Humanos, por sua vez, é o principal instrumento
do sistema americano de proteção aos direitos humanos. Sua instituição marca,
historicamente, o desenvolvimento de um aparato jurídico internacional americano para
3
Aprovadas pelo Decreto Legislativo n. 64, ratificada em 13 de dezembro de 1951 e promulgada pelo
Decreto n. 30.544, de 14 de fevereiro de 1952.
4
Disponível em <http://www.oas.org/pt/sobre/nossa_historia.asp>, consulta em 15/01/2013.
5
Disponível em <http://www.oas.org/pt/sobre/quem_somos.asp>, consulta em 03/01/2013.
6
A Convenção Americana de Direitos Humanos foi tardiamente ratificada pelo governo brasileiro em 25
de setembro de 1992.
proteção dos direitos humanos. Funda-se ali um regime jurídico específico para a
proteção dos direitos humanos no âmbito da OEA 7 , de modo a dividir o sistema
americano de direitos humanos em dois regimes: um, geral, oriundo da Carta da
Organização dos Estados Americanos de 1948; outro, mais específico, baseado na
própria Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969. O regime decorrente da
Convenção Americana, mais minucioso e mais adequado aos objetivos do presente, será
o único sobre o qual lançaremos nosso olhar.
Em sua primeira parte (artigos 1º a 32) a Convenção Americana estabelece os direitos
que os Estados contratantes se propõem a preservar. Segundo Flávia Piovesan, nota-se
certa semelhança entre este conjunto de direitos e aquele previsto no Pacto Internacional
dos Direitos Civis e Políticos 8. Deste universo de direitos protegidos, destacam-se: o
direito à personalidade jurídica, o direito à vida, o direito a não ser submetido a
escravidão, o direito à liberdade, o direito a um julgamento justo, o direito a
compensação em caso de erro judiciário, o direito a privacidade, o direito a liberdade de
consciência e religião, o direito à liberdade de pensamento e expressão, o direito à
resposta, o direito à liberdade de associação, o direito ao nome, o direito à
nacionalidade, o direito à liberdade de movimento e residência, o direito de participar
do governo, o direito à igualdade perante a lei o direito à proteção judicial.
Tem-se aí um avanço notável na proteção dos direitos humanos, uma vez que o número
de direitos protegidos pela Convenção é significativamente maior do que o de outros
dispositivos internacionais. Além disso, o professor e ex-juiz da Corte Internacional de
Justiça Thomas Buergenthal destaca que a Convenção estabelece dois tipos de
compromisso para os Estados: o dever negativo de não violar os direitos ali
estabelecidos paralelo ao dever positivo de promover tais direitos e criar mecanismos
que permitam zelar por eles, nos termos do “desenvolvimento progressivo” dos direitos
humanos estabelecidos no artigo 26 da Convenção 9.
7
Cf. GOMES, Luiz Flávio. PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos
Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 29.
8
Op. cit. p. 30; Pacto Internacional de Direitos Políticos, aprovado pela Assembleia Geral das Nações
Unidas em 16 de dezembro de 1966, em vigor na ordem internacional desde 1976 e em vigor para o
Brasil desde 1992.
9
BUERGENTHAL, Thomas. The inter-american system for the protection of human rights, in MERON,
Theodor (editor), Human rights in international law - Legal and policy issues. Oxford: Clarendon Press,
1984. p. 441.
A segunda parte da Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece o aparato
jurídico específico para o monitoramento e a implementação dos direitos por ela
enunciados
10
. Tal aparato compõe-se da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos 11 e pela Corte Interamericana de Direitos Humanos 12.
1.1.1
A Corte Interamericana de Direitos Humanos
Órgão propriamente jurisdicional do Sistema Interamericano de proteção dos Direitos
Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos é composta de sete membros,
juízes, eleitos a título pessoal pelos Estados-membros da Convenção Americana. Os
juízes tem o poder de produzir sentenças de caráter obrigatório para os países-membros
da OEA, em matéria de direitos humanos.
A competência da Corte Interamericana se apresenta bipartida: é contenciosa ao mesmo
tempo que consultiva. A função contenciosa, ou jurisdicional se rege pelos artigos 61 a
63 da Convenção, ao passo que a função consultiva se enquadra ao artigo 64 daquele
dispositivo. A Corte exerce a primeira quando resolve as controvérsias relativas à
interpretação ou aplicação da Convenção Americana, ou quando decide disputas
resultantes de denúncias de violação da Convenção por um Estado-parte. Exerce a
segunda quando interpreta a Convenção ou outros tratados de direitos humanos
aplicável aos membros da OEA, sem, contudo, adjudicar para nenhum fim específico 13.
É facultado a qualquer Estado-membro da OEA, independentemente de sua participação
na Convenção Americana de direitos humanos, solicitar parecer consultivo da Corte
relativo à interpretação da Convenção ou de qualquer outro tratado relativo aos direitos
humanos que alcance os Estados Americanos. É mesmo possível que a Corte opine a
10
GOMES, Luiz Flávio. PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos
Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 32-33.
11
Criada por resolução da Quinta Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores em
Santiago, Chile, em 1959, reunindo-se pela primeira vez em 1960 e com sede em Washington D.C.,
Estados Unidos da América; a Comissão foi incorporada pelo regime jurídico da Convenção Americana e
hoje o integra como parte fundamental.
12
Criada em 1969 e em funcionamento desde 1979 em San José da Costa Rica.
13
Cf. BUERGENTHAL, Thomas. The inter-american system for the protection of human rights, in
MERON, Theodor (editor), Human rights in international law - Legal and policy issues. Oxford:
Clarendon Press, 1984. p. 460.
respeito da compatibilidade entre preceitos da legislação doméstica e instrumentos
internacionais. Desde sua fundação, a Corte já proferiu vinte e uma opiniões
consultivas 14 sobre temas importantes para dar maior substância a aspectos essenciais
da Convenção, a exemplo da possibilidade de se instituir pena de morte em Estados
Americanos 15 , do habeas corpus e das garantias fundamentais 16 e de exceções ao
esgotamento dos recursos internos 17, para destacar apenas alguns exemplos.
No plano contencioso, ao revés, a competência da Corte para julgar casos se limita
àqueles Estados que reconheçam expressamente a Convenção Americana e a ela se
obriguem. Vale lembrar, também, que a regra do consentimento também se aplica à
Corte Interamericana de Direitos Humanos: a ratificação da Convenção Americana não
implica no reconhecimento da competência jurisdicional da Corte. Apenas depois de
manifestar formalmente que reconhece a jurisdição da Corte Interamericana para casos
contenciosos poderá o Estado se ver obrigado por decisão daquele órgão 18.
O processo contencioso no âmbito da Corte depende de iniciativa de Estados ou da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Nos termos do artigo 61, 1 da
Convenção Americana, apenas estes entes têm legitimidade para submeter casos à
decisão da Corte. Esta, então, fará um juízo de admissibilidade da causa, observando os
requisitos de competência estabelecidos pela Convenção Americana e, caso seja
determinada sua competência deliberativa para a questão, a Corte examinará, a denúncia
de violação dos direitos humanos. Determinada a violação, a Corte terá poder para
adotar as medidas necessárias para a reparação do direito violado, ou para estipular uma
compensação justa a ser paga pelo Estado infrator à vítima.
14
Todas disponíveis em <http://www.corteidh.or.cr/opiniones.cfm>, consulta em 16/01/2013.
Corte IDH. Restricciones a la Pena de Muerte (Arts. 4.2 y 4.4 Convención Americana sobre Derechos
Humanos). Opinión Consultiva OC-3/83 del 8 de septiembre de 1983. Serie A No. 3.
16
Corte IDH. El Hábeas Corpus Bajo Suspensión de Garantías (arts. 27.2, 25.1 y 7.6 Convención
Americana sobre Derechos Humanos). Opinión Consultiva OC-8/87 del 30 de enero de 1987. Serie A No.
8.
17
Corte IDH. Excepciones al Agotamiento de los Recursos Internos (arts. 46.1, 46.2.a y 46.2.b,
Convención Americana sobre Derechos Humanos). Opinión Consultiva OC-11/90 del 10 de agosto de
1990. Serie A No. 11.
18
Atualmente, vinte e dois Estados reconhecem a competência jurisdicional da Corte, quais sejam,
Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala,
Haiti, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Suriname, Trinidad
e Tobago, Uruguai e Venezuela; o Brasil reconheceu a competência jurisdicional da Corte para julgar
casos brasileiros apenas em 10 de dezembro de 1998, e casos anteriores a esta data não podem ser objeto
de deliberação pela Corte.
15
1.1.2
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Composta por sete membros eleitos a título pessoal pela Assembleia Geral da OEA 19, a
Comissão Interamericana de direitos humanos é órgão de natureza “quase
jurisdicional” 20 , cuja função precípua é promover a observância e a proteção dos
direitos humanos na América. Seu perfil de tarefas é destacadamente multifacetado,
envolvendo-se com vítimas, Estados e organizações, em um espectro pessoal e material
muito mais amplo. Este caráter permite que a Comissão possa atuar na proteção dos
direitos humanos em um âmbito muito mais amplo do que aquele da Corte.
Para tanto, a Comissão se encarrega de fazer recomendações aos Estados-partes, no
sentido da adoção de medidas que garantam os direitos humanos defendidos não só pela
Convenção, mas também pela Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem.
Ela também se incumbe de preparar estudos e relatórios necessários, requerer
informações necessárias junto aos governos, no tocante às medidas adotadas para a
devida aplicação da Convenção e preparar relatórios anuais para a Assembleia Geral da
Organização dos Estados Americanos.
Além dessas, merece grande destaque a função da Comissão de examinar as petições
encaminhadas por indivíduos, grupo de indivíduos ou mesmo entidades nãogovernamentais que denunciem violação de direitos consagrados pela Convenção por
Estados que dela sejam partes 21 . O consentimento à possibilidade de análise das
petições individuais pela Comissão deriva automaticamente da ratificação da
Convenção Americana de Direitos Humanos 22.
Neste ponto, importa destacar que o direito de petição individual à Comissão é fator de
dilatação da proteção conferida aos direitos humanos no sistema americano, uma vez
que não é necessária a ação estatal para que o indivíduo se faça representar junto às
19
Observe-se que, ao contrário do que ocorre com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, não se
exige que os Estados participem da Convenção Americana para que possam indicar membros da
Comissão.
20
SILVA, Roberto Luiz. A OEA enquanto organização internacional, In: O Sistema Interamericano de
Proteção dos Direitos Humanos - Interface com o direito constitucional contemporâneo, OLIVEIRA,
Márcio Luís de (coord.), Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 100.
21
Cf. Convenção Americana de Direitos Humanos, artigos 41 e 44.
22
No Brasil, este reconhecimento se deu a 25 de setembro de 1992, quando da ratificação da Convenção
Americana pelo País.
instituições do sistema. Conforme leciona Flávia Piovesan, o direito de petição
individual evita que a solução das demandas fique à mercê de considerações políticas
estatais que tendam a motivar uma ação ou inação governamental contrárias ao interesse
de proteção dos direitos humanos 23.
Dessa forma, segundo o magistério de Hector Fix-Zamudio e a classificação de César
Sepúlveda, identifica-se que a Comissão realiza as funções de natureza conciliadora,
entre um governo e os grupos sociais que se sintam afetados nos direitos de seus
membros; assessora, aconselhando aos governos que assim o solicitam a respeito de
medidas adequadas pra a promoção dos direitos humanos; crítica, na medida em que
informa sobre a situação dos direitos humanos em um Estado-membro da OEA, após
receber os argumentos e as observações do governo interessado, havendo persistido as
violações; legitimadora, quando um governo concorda em reparar as falhas de seus
processos internos e corrige as violações alegadas, após receber da Comissão informe
relativo a visita ou exame de caso; promotora, pois que realiza estudos a respeito de
temas de direitos humanos para promover o respeito a estes; e protetora, quando
intervém em casos urgentes, pedindo ao governo que venha a ser objeto de uma queixa
que suspenda sua ação e ofereça informação sobre os fatos alegados 24.
No que tange à admissibilidade de demanda pela Comissão, exige-se a observância dos
requisitos do artigo 46 da Convenção Americana, a saber:
a) que hajam sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna,
de acordo com os princípios de Direito Internacional geralmente
reconhecidos;
b) que [a demanda] seja apresentada dentro do prazo de seis meses, a partir
da data em que o presumido prejudicado em seus direitos tenha sido
notificado da decisão definitiva;
c) que a matéria da petição ou comunicação não esteja pendente de outro
processo de solução internacional; e
d) que, no caso do artigo 44 [caso de petição de pessoa, grupo de pessoas ou
entidade não governamental], a petição contenha o nome, a nacionalidade, a
profissão, o domicílio e a assinatura da pessoa ou pessoas ou do representante
legal da entidade que submeter a petição 25.
23
GOMES, Luiz Flávio. PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos
Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 41.
24
Cf. Hector Fix-Zamudio. Protección jurídica de los derechos humanos. México: Comisión Nacional de
Derechos Humanos, 1991. P. 152.
25
Obtido em <http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm>,
consultado em 16/01/2013.
Observados os requisitos acima, bem como as exceções listadas no artigo 46, 2, realizase o juízo de admissibilidade da demanda. Caso não se verifique causa de
inadmissibilidade da petição, a Comissão solicita ao governo denunciado informações a
respeito dos fatos, e procede a uma investigação e à oitiva do peticionário e do governo
demandado. Até este estágio, a Comissão pode reconhecer que os motivos da petição
não existem ou não subsistem, ou ainda que não se tenha cumprido requisito de
admissibilidade, por exemplo, o esgotamento dos recursos internos. Neste caso, o
processo é arquivado.
Caso subsistam os motivos da ação, contudo, a Comissão procede a um exame apurado
do assunto e, se necessário, à devida investigação dos fatos.
Esclarecida a matéria, a primeira tentativa da Comissão é buscar a conciliação entre as
partes. Caso tenha êxito, a Comissão elabora um informe a ser transmitido ao
peticionário e aos Estados-partes da Convenção, com uma breve exposição dos fatos e
da solução alcançada. Este informe será, posteriormente, publicado pela Secretaria da
Organização dos Estados Americanos.
No entanto, na possibilidade de se verem frustradas as tentativas de solução amistosa, a
Comissão escreve um relatório contendo os fatos apurados e as conclusões alcançadas, a
respeito da existência ou não de violação de direitos humanos pelo Estado demandado.
Também é possível que o relatório contenha recomendações ao Estado em questão a
respeito de medidas para solucionar a pendência.
Decorridos três meses da publicação do relatório, e caso não se tenha alcançado uma
solução eficaz, as partes podem empreender nova tentativa de solução ou encaminhar a
questão à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Contudo, se, decorrido aquele
prazo, não se verificar nenhuma destas duas hipóteses, cabe à Comissão formular, por
maioria absoluta dos votos, sua própria opinião e suas conclusões sobre o caso.
Ressalve-se que não há força obrigatória nesta decisão, uma vez que à Comissão não é
conferido caráter propriamente jurisdicional, senão recomendatório.
2.
O requisito de esgotamento dos recursos internos em direito internacional 26
A exigência de esgotamento dos recursos internos, originalmente relacionada à
atribuição de responsabilidade internacional a um Estado por danos causados a
estrangeiros, é princípio clássico de direito internacional. Suas raízes remontam à
prática de represálias na Idade Média e às intervenções, em tempos mais recentes, e
autores da estirpe de Francisco de Vitoria, Alberico Gentili, Hugo Grotius,
Bynkershoek, Wolff e Vattel já se debruçaram sobre o tema 27.
Fundada no respeito à soberania nacional - na medida em que restringe a possibilidade
de um Estado responder por danos que não teve a oportunidade de reparar valendo-se de
seu direito interno - a exigência de esgotamento dos recursos internos permitiu,
historicamente, privilegiar alternativas pacíficas de solução de litígios relativos à
proteção diplomática em detrimento do uso da força 28. De fato, sua cristalização gradual
por práticas estatais, entre os séculos XIX e XX 29, e seu expresso reconhecimento pela
Corte Internacional de Justiça enquanto costume internacional para casos de proteção
diplomática 30 foram determinantes para a harmonia e a estabilidade das relações
diplomáticas como as conhecemos hoje.
Durante a segunda metade do século XX, o emergente direito internacional de proteção
aos direitos humanos adotou esta regra, que hoje se encontra integrada aos requisitos de
admissibilidade da maior parte dos sistemas de proteção aos direitos humanos em vigor.
De fato, Cançado Trindade observa que esta “transplantação”
31
exige uma interpretação
diferenciada. A presunção em favor da proteção internacional dos direitos fundamentais
individuais e a adoção desta regra nos ordenamentos de proteção aos direitos humanos tanto no plano global quanto nos sistemas regionais - implica na aplicação da regra do
26
Para um entendimento exaustivo, vide a célebre obra de A. A. Cançado Trindade, The Application of
the Rule of Exhaustion of Local Remedies in International Law: Its Rationale in the International
Protection of Human Rights. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.
27
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito
Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1984. p. 23-24.
28
Para um estudo aprofundado das práticas estatais relativas ao tema, cf. A. A. Cançado Trindade, The
Rule of Exhaustion of Local Remedies in Internation Law (PhD Thesis), Universidade de Cambridge,
1977, p. 54-107.
29
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito
Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1984. p.44-45.
30
Cf. Caso Interlandel (Exceções preliminares), ICJ Reports, 1959. P. 27.
31
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito
Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1984, p. 112.
esgotamento dos recursos internos em caráter menos rigoroso que no da proteção
diplomática; isto porque, nestes sistemas, a proteção de direitos fundamentais é objetivo
comum à comunidade internacional, ao passo que a proteção diplomática diz respeito
tão-somente à conveniência do Estado em exercê-la. Assim, a proteção aos direitos
humanos se configura como núcleo do internacional contemporâneo, mas a proteção
diplomática permanece em exercício por meio de relações interestatais travadas
discricionariamente. O imperativo de proteção aos direitos da pessoa humana
reconhecido pelas vertentes mais avançadas do constitucionalismo e do direito
internacional determina uma reavaliação da regra no sentido de maximizar a eficácia da
proteção dos direitos humanos. Assim, se no caso da proteção diplomática a regra tem o
caráter de objeção substantiva que inviabiliza qualquer ato na esfera internacional, no
caso da proteção dos direitos humanos sua natureza é meramente processual, uma
proteção dilatória ou temporal, não obstando (nem podendo obstar) ao exercício tão
efetivo quanto possível da proteção dos direitos humanos 32.
2.1 O requisito de esgotamento dos recursos internos no Sistema Interamericano
de Direitos Humanos
Nos termos do artigo 46, a) da Convenção Americana de Direitos Humanos, para que
uma petição ou comunicação seja admitida pela Comissão, “será necessário que hajam
sido interpostos e esgotados os recursos da jurisdição interna, de acordo com os
princípios de direito internacional geralmente reconhecidos”. Neste dispositivo, a
Convenção Americana proclama a exigência de esgotamento dos recursos internos para
que se ingresse com demandas no sistema. Uma vez que a Comissão é responsável pela
totalidade dos casos decididos pela Corte até hoje, a imposição de tal requisito é,
certamente, um fator essencial para que a jurisdição interamericana de direitos humanos
alcance os Estados.
Recursos internos devem ser entendidos, no âmbito do sistema jurídico internacional
americano, como os recursos legais que sejam acessíveis para indivíduos ou grupos
32
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito
Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1984. p. 244-245.
perante juízes e tribunais nacionais 33. Quando preenche o formulário de denúncia junto
à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o peticionário deve demonstrar que o
caso tenha passado por todas as instâncias judiciais do direito interno. Assim, deve-se
informar, no formulário, todas as medidas tentadas até então junto ao poder judiciário
ou a órgãos administrativos do Estado responsável a fim de denunciar e reparar as
violações alegadas, e anexar as respectivas decisões. Se houve impedimento para o
esgotamento dos recursos internos, tal como impedimento ao uso da justiça, falta de
recurso cabível ou demora na decisão, deve-se indicar o motivo e explicá-lo. Caso não
se demonstre o esgotamento dos recursos internos, a demanda em questão poderá ser
rejeitada pela Comissão durante a apreciação preliminar da denúncia (cf. supra).
Neste ponto, contudo, importa observar que o Estado não pode valer-se da regra do
esgotamento dos recursos internos em má-fé, com o propósito único de impedir o
acesso da vítima à jurisdição internacional. Conforme os artigos 30, §§ 4 e 7; artigo 37,
§3; e artigo 38 do Regulamento da Convenção Interamericana de Direitos Humanos 34, o
ônus de demonstrar quais recursos internos deveriam ter sido esgotados recai sobre o
Estado nos casos em que a vítima alegue não ter meios de provar tal esgotamento. Além
disso, caso o Estado não alegue em sua defesa que não houve o esgotamento dos
recursos internos, a Comissão pode interpretar a renúncia tácita a este requisito, não
podendo o Estado vir posteriormente a alegá-lo em seu benefício 35.
Também não basta a existência de recursos internos meramente formais. Os recursos
levantados devem ser eficazes conforme estabelecem os artigos 8 e 25 da Convenção
Americana. Quando os recursos internos em questão não se apresentarem dotados de tal
eficácia para impedir violação aos direitos humanos, a possibilidade de valer-se deles
não permitirá que a Comissão rejeite o caso em questão. Observe-se que o Estado que
não garante recursos eficazes e efetivos incide em violação da Convenção Americana e
é passível de responsabilização internacional por não garantir o devido processo legal à
vítima. Tal situação afronta diretamente o que estabelecem os artigos 1.1, 8 e 25 da
33
GOMES, Luiz Flávio. PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos
Humanos e o Direito Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000. p. 71-72.
34
Disponível em <http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/u.Regulamento.CIDH.htm>, consulta em
19/01/2013.
35
Cf. Relatório 11/92, Caso 10.284, contra El Salvador, de 04/02/1992, Relatório Anual da Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, 1991, Washington D.C, 1992, p. 139; também Corte Interamericana
de Direitos Humanos, caso Gangaram Panday, exceções preliminares, sentença de 04/12/1991, §§ 39 e
40.
Convenção Americana, e atinge a proteção concedida ao exercício de direitos da vítima,
não sendo tolerada no Sistema Interamericano.
Naturalmente, quando se questionar o exaurimento dos recursos internos, é possível
defrontar-se com certas exceções. Cançado Trindade oferece como exemplos gerais os
casos de denegação da justiça, atrasos indevidos e irregularidades processuais graves 36.
A Convenção Americana define as possibilidades de exceção à regra dos recursos
internos em seu artigo 46, § 2, que estabelece:
2.
As disposições das alíneas a e b do inciso 1 deste artigo [exigência de
esgotamento de recursos internos e ausência de litispendência internacional,
respectivamente] não se aplicarão quando:
a.
não existir, na legislação interna do Estado de que se tratar, o devido
processo legal para a proteção do direito ou direitos que se alegue tenham sido
violados;
b.
não se houver permitido ao presumido prejudicado em seus direitos o
acesso aos recursos da jurisdição interna, ou houver sido ele impedido de
esgotá-los; e
c.
houver demora injustificada na decisão sobre os mencionados recursos.
Em geral, a maioria das denúncias apresentadas à Comissão fundamenta-se em tais
possibilidades, tendo em vista que o processo histórico de transição democrática nos
países da América Latina deixou falhas estruturais graves no acesso dos indivíduos aos
sistemas judiciais, dando azo a ampla impunidade nos casos de violação dos direitos
humanos. A morosidade judicial, por exemplo, é um dos principais motivos de violação
impune dos direitos humanos na América Latina. Por esta razão o processo judicial
extremamente longo, ainda que não concluído, é encarado como violação, pelo Estado,
das suas obrigações internacionais e dos direitos consagrados na Convenção Americana,
sujeitando o Estado a responsabilização internacional e não podendo este alegar
36
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Esgotamento dos Recursos Internos no Direito
Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília , 1984, p. 23-25.
inadmissibilidade da demanda por não-esgotamento de esgotamento dos recursos
internos 37.
3.
A Emenda Constitucional nº 45 e o Incidente de Deslocamento de
Competência
A ratificação da Convenção Americana, em 1992, e a aceitação da jurisdição
compulsória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 1998, marcam um
processo de integração plena do Brasil ao regime jurídico do Sistema Interamericano de
Proteção dos Direitos Humanos, cuja consequência última será a possibilidade de o
Estado brasileiro se ver processado e julgado internacionalmente por crimes contra os
aqueles direitos.
A responsabilização internacional que decorre da condenação por crime contra os
direitos humanos, recai sobre o Estado, compreendendo a União, os Estados federados,
o Distrito Federal e os municípios. Na prática, contudo, o ônus da responsabilidade
internacional sempre recai sobre a União 38, nas formas da compensação designada para
o violado e do desprestígio internacional que decorre de condenação por violar direitos
humanos. O prejuízo será da União, ainda que o ato violador dos direitos humanos seja
de exclusiva competência judiciária dos Estados da federação, dos municípios ou do
Distrito Federal, nos moldes que estabelece a Constituição brasileira.
Neste ponto, importa destacar que o direito internacional não admite que arranjos
relativos à ordem interna eximam o Estado de cumprir suas obrigações internacionais.
Temos tal disposição no artigo 27 da Convenção de Viena de 1969 e no artigo 28 da
Convenção Americana de Direitos Humanos. Assim, no Sistema Interamericano, a
punição por desrespeito aos direitos humanos recairá invariavelmente sobre a totalidade
37
A jurisprudência do Sistema Interamericano vem trabalhando o conceito de prazo razoável para solução
do caso por meios de direito interno. O grau de efetividade destes meios e a possibilidade de excessiva
demora processual dependem de critérios como a complexidade do assunto, a atividade processual da
parte interessada e a conduta das autoridades judiciais responsáveis pelo procedimento, seja ele judicial
ou administrativo. Para desenvolvimento do tema, vide caso Genie Lacayo, Corte Interamericana de
Direitos Humanos, sentença de 20/01/1997.
38
PIOVESAN, Flávia. Federalização dos Crimes contra os direitos humanos, p. 80.
do Estado, qualquer que seja a origem da violação e não importando a repartição de
competências interna adotada ele 39.
Assim, até 2004, a situação da União no Brasil era paradoxal: estava impedida
constitucionalmente de investigar e julgar crimes relativos a violações de direitos
humanos, mas estava sujeita, internacionalmente, a responsabilização por eles. O
movimento de reforma do judiciário, que culminaria com a edição da Emenda
Constitucional nº 45/2004, fez uma primeira tentativa de sanar esta controvérsia em
2002, quando a Lei nº 10.446/2002 40 foi editada, dispondo que:
Art. 1º: Na forma do inciso I do § 1o do art. 144 da Constituição, quando
houver repercussão interestadual ou internacional que exija repressão
uniforme, poderá o Departamento de Polícia Federal do Ministério da Justiça,
sem prejuízo da responsabilidade dos órgãos de segurança pública arrolados
no art. 144 da Constituição Federal, em especial das Polícias Militares e Civis
dos Estados, proceder à investigação, dentre outras, das seguintes infrações
penais:
(...)
III – relativas à violação a direitos humanos, que a República
Federativa do Brasil se comprometeu a reprimir em decorrência de tratados
internacionais de que seja parte;
Fica aí consagrada a possibilidade de a Polícia Federal interferir em investigações
relativas a violação de direitos humanos, um primeiro esforço em coibir violações dos
direitos humanos e evitar responsabilização internacional. Trata-se de um primeiro
esforço do Estado brasileiro em se adequar às disposições do sistema americano, de
modo a combater com mais efetividade as agressões aos direitos humanos.
O advento da Lei nº 10.446, contudo, ainda não foi suficiente para conferir proteção
desejável aos direitos humanos, uma vez que, não raro, o trabalho concreto de órgãos de
investigação e de aplicação da justiça é obstruído. O infeliz arcabouço social do Brasil
permite que, especialmente no interior do país, as funções do Judiciário sejam barradas
pela força de agentes de poder locais cuja influência negativa se consolidou
39
Para explicação exaustiva dentro da jurisprudência do Sistema Interamericano, vide CORTE IDH. La
Ultima Tentación de Cristo (Olmedo Bustos y otros vs. Chile). 5.2.2001, série C, §§ 22 e 23, voto do Juiz
Cançado Trindade.
40
Publicada no Diário Oficial da União em 8 de maio de 2002.
historicamente e cujo controle sobre os recursos em suas regiões é capaz de acobertar
crimes dos mais diversos.
Dada a importância da proteção aos direitos humanos, percebeu-se que seria desejável
uma intervenção federal não apenas na investigação, mas também na execução do
processo judicial. A Justiça Federal brasileira, diferentemente das Justiças Estaduais,
não depende de recursos oriundos do próprio Estado federado - e que podem ser
dificultados por lideranças regionais -, e é composta por pessoas que vem de partes
diversas do país. Esta configuração torna mais difícil que se intimide ou que se obstrua
o trabalho de um juiz federal no Brasil, o que, por sua vez, torna muito mais efetiva a
proteção dos direitos humanos exercida por esta categoria de magistrado.
Assim, com o interesse de fortalecer a responsabilidade interna da União para com os os
direitos humanos, bem como no intuito de equilibrar a responsabilidade interna da
União com a sua responsabilidade internacional, foi aprovada a Emenda Constitucional
n. 45, de 2004, que, entre outras coisas, modifica o artigo 109 da Constituição Federal
de modo a criar o Incidente de Deslocamento de Competência. Dita a nova redação do
artigo 109:
Art. 109. Aos juízes federais cabe processar e julgar:
(..)
V-A as causas relativas a direitos humanos a que se refere o § 5º deste artigo;
(...)
§ 5º Nas hipóteses de grave violação de direitos humanos, o ProcuradorGeral da República, com a finalidade de assegurar o cumprimento de
obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos
quais o Brasil seja parte, poderá suscitar, perante o Superior Tribunal de
Justiça, em qualquer fase do inquérito ou processo, incidente de
deslocamento de competência para a Justiça Federal.
De pronto, observa-se que são requisitos do IDC: a) existência de grave violação de
direitos humanos; b) a necessidade de dar efetividade a obrigações assumidas pelo
Brasil mediante tratados internacionais de direitos humanos; c) incapacidade (oriunda
de inércia, negligência, falta de vontade política, de condições materiais e pessoais) de o
Estado federado, por suas instituições a autoridades, levar a cabo, em toda a sua
extensão, a persecução pena 41 . Ressalta-se ainda que, para o Superior Tribunal de
Justiça, o incidente é medida subsidiária, somente se evidenciando sua interposição na
hipótese de inércia da autoridade judiciária estadual, a justificar a excepcionalidade da
transferência do julgamento de um Juízo para outro.
A legitimidade para propositura de IDC é sempre do Procurador Geral da República,
chefe do Ministério Público da União, e pode ser exercida em qualquer fase da
investigação ou do processo, inclusive após o trânsito em julgado da sentença.
Ressalva-se que o IDC não pode ser a primeira medida tomada em relação a uma
violação dos direitos humanos, senão que ele depende de negligência ou de
descumprimento das formas processuais ordinárias 42.
O julgamento se dará pela 3ª Seção do Supremo Tribunal de Justiça, compreendendo os
ministros da 5ª e da 6ª turmas daquele tribunal, conforme Resolução n. 06/05 da
Presidência do STJ.
Importante ressaltar a dupla natureza jurídica e política do IDC: jurídica na medida em
que modifica o processo penal brasileiro, entre instituições de mesma instância (justiça
estadual e justiça federal, ambas na primeira instância); política porque pretende evitar
que o Estado passe pelo constrangimento de se ver julgado pela Comunidade
Internacional em matéria de desrespeito aos direitos humanos.
4. Considerações finais
A atuação mais recente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e de seu
órgão irmão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, permite identificar
tendências positivas na proteção aos direitos humanos na América. Ainda que recente, o
Sistema Interamericano se encontra em franca consolidação, e, conforme se amplia o
reconhecimento a suas instituições, também se consolida a possibilidade de obter
reparação por violação dos direitos humanos no âmbito internacional, quando houver
41
BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. 3ª Seção, IDC n. 00001. Relator Ministro Arnaldo Esteves
Lima, julgado em 8 de junho de 2005.
42
GOMES. Federalização dos crimes graves: o que é isso? Mundo Legal, 2006.
omissão ou erro das autoridades nacionais, abrindo considerável espaço para avanços
futuros.
Neste quesito, o compromisso recente do Brasil com o Sistema Interamericano é
positivo para os cidadãos, na medida em que consagra o objetivo do Estado republicano
brasileiro de primar pela observância dos direitos humanos, conforme estabelece a
Constituição; este mesmo compromisso, contudo, representa a possibilidade de
responsabilização internacional do Estado, desvantajosa do ponto de vista diplomático.
Tendo em vista a desvantagem de se ver processado internacionalmente, o Estado
brasileiro buscou, com a Lei nº 10.446/2002 e com a Emenda Constitucional nº
45/2004, criar novos recursos internos de proteção aos direitos humanos, de modo a
evitar a imagem negativa que seria atribuída ao Estado caso fosse ele sujeito de
sucessivas demandas internacionais por violação dos direitos humanos. Dado o requisito
de esgotamento dos recursos internos para admissão do caso na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos, o Brasil, por meio das reformas implementadas
por estas novas normas, visa, sobretudo, impedir que casos cheguem à Comissão pela
criação de novas possibilidades processuais internas.
O escopo do Incidente de Deslocamento de Competência, portanto, é o de criar uma
nova possibilidade de julgamento para os crimes contra os direitos humanos, a fim de
que tais casos sejam julgados pelos recursos jurisdicionais internos, e não pelos
organismos internacionais. Uma vez que o direito internacional dos direitos humanos
prima pela subsidiariedade aos recursos internos eficazes, o IDC, ao criar uma nova
possibilidade de recurso interno eficaz, reduz a possibilidade de responsabilização
internacional para o Estado brasileiro.
Isto não quer dizer que a instituição do IDC seja negativa: a existência de um
instrumento processual excepcional certamente vale de estímulo à atuação das
autoridades estaduais brasileiras e, quando estas venham a falhar, garante que os
cidadãos não estejam desprotegidos, pois lhes garante a possibilidade de transferir o
caso para a Justiça Federal, processo certamente mais ágil do que acionar organismos
internacionais. De fato, ao se propor a solucionar casos de ofensa aos direitos humanos
na ordem interna, o Brasil marca a história de seu processo democrático, por meio do
dever autoimposto pelo Estado de zelar, presentemente e no futuro, pela observância
dos direitos humanos, bem como de evitar que a violação destes direitos fique de tal
forma impune que se faça necessária intervenção internacional.
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Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 13, n. 54, maio/junho de 2005.
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. O Esgotamento dos Recursos Internos no
Direito Internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1984.
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