Estado e Regulação Econômica: O Papel das Agências Reguladoras no Brasil e na
Experiência Internacional
Profª Drª. Carmen Alveal
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Rio de janeiro, Julho de 2003
Estado e Regulação Econômica: O Papel das Agências Reguladoras no Brasil e na
Experiência Internacional
Carmen Alveal (IE/UFRJ)♣
1. Introdução
A criação de sistemas e organizações regulatórias e a instrumentação de
sistemas administrativos de regulação pode ser vista como uma esfera especial dos
processos decisórios políticos mais amplos que organizam a vida das sociedades
humanas ao longo da história.
A regulação da vida econômica era a norma nas sociedades ocidentais da Idade
Média e se traduzia, sob a égide do direto costumeiro, na imposição de regras
pormenorizadas sobre as atividades produtivas e as ocupações, por agremiações de
artesãos, profissionais e comerciantes. Estas regras se acompanhavam da regulação da
Igreja sobre a cobrança de taxas de juros. Durante a era do mercantilismo praticou-se a
regulação pela outorga de cartas e franquias reais que conferiam monopólios, sistema
que perdeu força com as mudanças introduzidas pela revolução comercial e a
consolidação dos Estados nacionais europeus, nos séculos, XVI e XVII, se exaurindo no
curso do século XIX, sob o impacto da revolução econômica, social e tecnológica de
fins do século XVIII.
Modernamente a regulação designa as ações e as atividades do governo que, de
alguma maneira, afetam as operações das empresas privadas e a vida dos cidadãos
particulares. A regulação modernamente praticada é fruto do longo processo histórico
de formação e de consolidação dos Estados nacionais. Este processo se desdobrou em
duas dimensões distintas, porém estreitamente relacionadas: uma interna às nações e
outra no plano das relações entre nações da comunidade política e econômica
internacional.
Internamente, a consolidação dos Estados nacionais criou uma relação de
reciprocidade entre a burocratização da autoridade pública (Estado) e o reconhecimento
legal e prático do exercício de direitos aos membros da comunidade política nacional
(nação). Os sistemas regulatórios, modernamente concebidos e praticados, resultam da
trajetória histórica de construção da cidadania e do correspondente Estado democrático
de direito. Dado que essa construção combinou atributos políticos, econômicos e
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Conferência proferida no Seminário de Direito Internacional e Regulação Econômica. Escola Superior
do Ministério Público da União. Núcleo Regional no Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1920/05/2003
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culturais peculiares a cada sociedade, originou sistemas, organizações e administrações
regulatórias também peculiares.
De modo concomitante, no plano das relações internacionais entre nações, a
trajetória histórica de formação e consolidação dos Estados modernos selou a função e o
desempenho econômico desenvolvido por cada país no assimétrico sistema de poder
econômico e geopolítico mundial. Nessa trajetória, a inserção periférica secular da
grande parte das nações do mundo, tem consistido do esforço de adaptação e luta para
aproveitar oportunidades de manter algum grau de orientação autônoma na construção
de seus projetos de desenvolvimento futuro como nações.
Contemporaneamente, o papel das agências reguladoras, enquanto
disciplinadoras da atividade econômica das empresas privadas, visando o interesse
público das comunidades internas de cidadãos e o interesse de defesa destas no tecido
das relações internacionais, se encontra profundamente enraizado em ambas trajetórias:
a de construção da democracia e do Estado de Direito; e a da força como nação no
sistema de poder econômico e político mundial. Historicamente, ambas as trajetórias
configuraram dois âmbitos de regulação econômica, originando a definição de agências
reguladoras funcionalmente distintas: as que disciplinam a defesa da concorrência e de
condutas anti-competitivas (anti-truste); e as que regulam as atividades mais específicas
e complexas dos serviços públicos de infra-estrutura econômica.
É este último campo da regulação o que concita hoje, no Brasil e alhures, as
controvérsias e os debates mais acirrados, sendo também o objeto privilegiado da
presente exposição. As mudanças regulatórias em curso, no conjunto peculiar dos
serviços públicos de infra-estrutura econômica, foram iniciadas nos Estados Unidos e no
Reino Unido nos anos 70, constituindo o núcleo duro do processo mundial de
“reinvenção” do Estado, na passagem de século XX para o XXI. Na década de 90, a
larga difusão dessas mudanças nas economias e sociedades do planeta originou a
criação de novas agências de regulação em mais de 150 países.
O espelho a ser refletido nessa mudança se inspira largamente da tradição anglosaxã americana, construída numa experiência peculiar, mesmo para as economias e
sociedades desenvolvidas e, nitidamente, alheia à tradição institucional de cunho
autocrático das economias e sociedades em desenvolvimento e periféricas do mundo.
Nestas últimas, a exemplo do Brasil, é o papel tutelar do Estado sobre a nação, inspirado
da tradição européia continental jus-naturalista de construção do Estado e de nação, o
que sempre pautou os conceitos, sistemas e estruturas de governança, em matéria de
regulação.
Nessa perspectiva, argumento que o transplante de uma tradição jurídicoinstitucional estranha, é fonte primordial dos entreveros da nova construção regulatória
empreendida no Brasil, originando controversas “adaptações” do modelo “imitado”, na
medida em que a nova regulação, ao se inserir no marco da reforma das funções
econômicas e sociais do Estado, assumiu para o Brasil, alta complexidade. Essa
complexidade reside no fato de a nova regulação estar no bojo da mudança estrutural do
padrão de desenvolvimento e inserção internacional e, paralelamente, da transformação
das estruturas de decisão política, pressionadas pela reivindicação da democratização do
Estado.
Com esse intuito, a seção seguinte expõe os princípios das duas grandes matrizes
teóricas que originaram as orientações dos sistemas regulatórios modernos. Em
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As implicações deletérias da nova prática regulatória brasileira de serviços
públicos de infra-estrutura se manifestaram precocemente no tempo. Além da crise do
racionamento elétrico e suas seqüelas, o contexto atual reúne concessionários que
reivindicam novas garantias para a saúde econômico-financeira dos seus
empreendimentos, reguladores em evolução desconfortável e, especialmente, um
maciço público consumidor vitimado pelo percurso altista das tarifas dos serviços e uma
evolução de rendimento real em queda.
Esse cenário dramatizou a condição de “sem saída” (monopólios ou oligopólios),
dos consumidores (cativos) dos serviços de infra-estrutura no Brasil. Neste domínio,
quando a regulação não funciona, o único recurso racional do “cidadão-consumidor” é o
protesto, o voto contra, sinalizando e advertindo seu desconforto com o desempenho das
empresas concessionárias e com a nova organização. Este protesto se manifestou no
resultado do último pleito eleitoral para escolha do novo governo da nação, abrindo o
debate acerca da necessidade de re-estabelecer a hierarquia de autoridade que cabe ao
poder concedente sobre o poder regulador.
5. Considerações finais
Na perspectiva brasileira de transformação estrutural, político-institucional e
produtiva, o déficit de democracia do Estado representa o desafio maior. A ocorrência
de mudanças simultâneas introduziu enorme complexidade ao processo decisório
político que deu nascimento à nova convenção institucional da regulação econômica,
pois esta se insere no bojo da redefinição das regras básicas da ação coletiva entre os
atores relevantes do sistema sócio-econômico brasileiro.
A definição e implementação defensiva e “flexível” das novas regras
regulatórias nos serviços de infra-estrutura, renderam resultados preliminares frustrantes
para as idéias originais dos reformadores, em particular as expectativas acalentadas com
relação ao aumento do investimento privado e, especialmente, com relação ao bem-estar
e à modicidade das tarifas para o amplo público consumidor.
Hoje são identificadas tendências desestabilizadoras, decorrentes da nova
institucionalidade regulatória, originadas basicamente do distanciamento do princípio
liberal de checks and balances, introduzindo uma franca assimetria na repartição dos
custos e dos ganhos da reforma regulatória entre concessionários e consumidores. Esta
assimetria configurou perspectivas de bloqueio para a continuidade do processo, na
medida em que a evolução ascendente das tarifas dos serviços públicos é
tendencialmente divergente da evolução real de rendimentos da grande massa de
“cidadãos-consumidores”.
Não seria surpreendente que a saída desse impasse tenda a retomar a trajetória
institucional, em que o papel fundamental da política re-assuma estatura, em função da
evolução crítica da infra-estrutura, num país de dimensão continental caracterizado por
marcadas desigualdades de dinâmica produtiva.
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