finanças/opinião
O capitalismo
sairá fortalecido
da crise
A
Por Maílson da Nóbrega*
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pesar da forte névoa causada pela crise internacional,
que dificulta previsões, uma afirmação pode ser feita
com segurança: o pior já passou. A ação dos governos dos
países desenvolvidos e de seus bancos centrais evitou a quebra
do sistema financeiro mundial, o que nos faria retornar para a
época das trevas. Seria o colapso. As medidas foram orientadas
para controlar riscos e salvar os bancos, chegando ao limite da
estatização temporária. Graças a isso tudo, há sinais inequívocos de que nos livramos de uma crise sistêmica derivada do
problema surgido das hipotecas subprime americanas. Agora
estamos na fase de rescaldo da crise, em que se busca normalizar
o funcionamento do mercado interbancário e daí promover a
estabilidade do sistema financeiro. A interrupção dos negócios
entre os bancos, por falta de confiança entre eles, foi um fato
assustador. Deu-se a paralisia nos mercados monetários. Boa
notícia, que sinaliza a normalização desses mercados, é a redução
da taxa interbancária no mercado londrino, a Libor, por um lado,
e a diminuição do spread entre a própria Libor e a taxa de juros
do mercado americano. Outras fases virão até a normalização
definitiva. Até que os bancos reduzam sua aversão ao risco e
se alcance a normalidade na oferta de crédito, a economia não
voltará aos trilhos. Nesse período, haverá uma longa recessão nos
países desenvolvidos. Trata-se de uma espécie de ressaca, que
pode durar no mínimo um e não mais do que quatro anos.
A economia mundial está sendo afetada pelo pânico que tem
grassado algumas vezes nos mercados de ações e de moedas,
mas há pouca dúvida de que essa anormalidade será contida.
Não se trata da crise terminal do capitalismo. Os que acreditam
nisso vão errar de novo. O capitalismo sairá fortalecido dessa
crise. Enquanto o ajuste acontece e se tem de pagar um preço
por isso, ao mesmo tempo abre-se um grande debate sobre a
regulação do mercado financeiro. A esquerda dá pulos de alegria,
mas pode decepcionar- se, pois a regulação dificilmente irá
pelo caminho que eles querem. Muitos
dizem que a crise aconteceu porque os
mercados foram desregulados em razão
das políticas ortodoxas. Isso tem muito
pouco a ver com a realidade. Os mercados
são altamente regulados, em especial a
partir do século passado. Não existe livre
mercado, mas boa regulação. Graças a
isso, o sistema financeiro é menos sujeito
a crises, embora elas ocorram em média
a cada dez anos. Entre uma e outra, o
sistema melhora e se torna mais útil no
financiamento das inovações tecnológicas, dos investimentos produtivos e
do consumo. Quem pensar um pouco
verá que o sistema é muito regulado.
No Brasil, a CVM (Comissão de Valores
Mobiliários), por exemplo, tem regras
bastante rígidas e claras para aprovar a
abertura de capital das empresas. O Banco Central regula o sistema financeiro de
forma ampla. Há, ainda, auto-regulação
na Bolsa de Valores. O mercado não é
livre para agir como quiser.
O desastre atual derivou em grande
parte da contribuição de dois fatores. O
primeiro foi a disseminação das hipotecas subprimes nos Estados Unidos.
O segundo foi a forte alavancagem dos
bancos de investimento no mundo todo.
Ambos decorreram de má regulação, e
não de não-regulação. Nos anos 1930, a
lei conhecida como “Glass-Steagal Act”,
nos Estados Unidos, separou os bancos
comerciais dos bancos de investimento.
Com isso, os bancos de investimento
saíram da fiscalização do Fed (Federal
Reserve) e assim ficaram livres para alavancar irresponsavelmente suas operações, particularmente via derivativos. Não
foi a falta de fiscalização das hipotecas
subprime que causou a sua expansão, mas
sim uma medida tomada pelo Congresso
dos Estados Unidos que levou as agências
semi-estatais Fannie Mae e Fannie Mac a
financiar imóveis para as famílias de baixa
renda. Com isso, elas passaram a ser as
grandes compradoras dessas hipotecas,
originadas pelos bancos privados, Só não
quebraram porque contaram com ajuda
estatal direta. Houve ausência de regulação, sim, em relação aos derivativos. Um
desses derivativos, o CDO (Colateralized
Debt Obligation), foi o mais tóxico. Ele
empacotava num mesmo instrumento
as hipotecas subprime e os papéis de
empresas americanas. Foi vendido no
mundo inteiro e contaminou o sistema.
Houve forte resistência do então presidente do Fed, Alan Greenspan, a regular
os derivativos, porque acreditava que eles
dispersariam os riscos do sistema financeiro e sua regulação poderia inibir essa
contribuição (recentemente, Greenspan
reviu essa opinião). No Brasil, porém,
esse fenômeno nocivo não ocorreu, porque os derivativos são transacionados
por intermédio da BM&F e sua liquidação, segura, é feita em uma câmara de
compensação daquela Bolsa, que exige
garantias das partes envolvidas. A CVM
regula o mercado de balcão. O estrago,
assim, entre nós, limita-se às empresas
que especularam com derivativos. A lição
que se tira desta crise é que será preciso rever a regulação com o objetivo de
evitar que o sistema padeça de situação
semelhante no futuro.
Nos últimos 300 anos, o sistema financeiro mundial passou por 320 crises,
umas mais, outras menos graves, mas,
apesar disso, o mundo está mais rico. O
sistema mais sólido contribuiu para o
desenvolvimento. Há sempre o risco de
a nova regulação vir a ser malfeita, mas
parece que não será o caso. O processo
terá forte influência dos Estados Unidos e
do Reino Unido. A França poderá defender um controle estatal mais forte, mas
não acho que essa virá a ser a posição
majoritária. Neste momento, muitas medidas de regulação devem estar em exame
pelos técnicos dos bancos centrais, por
organizações multilaterais e por outras
agências oficiais. Haverá testes e provas.
Nada vai ser feito do dia para a noite. Essa
nova regulação não sairá das reuniões
de chefes de Estado, mas é bom que elas
aconteçam, para mostrar a preocupação
com a superação do problema.
Nos últimos
300 anos,
o sistema
financeiro
mundial passou
por 320 crises,
mas, apesar
disso, o mundo
está mais rico
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Algumas medidas
podem ter dado
a impressão de
que estamos
diante do risco
de alguns bancos
quebrarem. Isso
não vai acontecer
no Brasil
O Brasil, por seu lado, nunca esteve
tão bem preparado para enfrentar uma
crise dessas proporções. Ao contrário
do que parecem sugerir membros do
governo, essa preparação não é obra
desta administração. Os avanços que
nos legaram essa situação invejável
decorreram de medidas adotadas ao
longo de anos por equipes diferentes
que souberam proceder na mesma
direção. O grande mérito do presidente
Lula é ter jogado fora as idéias do PT
sobre a política econômica. Nesse
campo, governou com o que havia
sido legado para ele. Ele deve, porém,
parar de falar tanto sobre a crise. Em
nenhum lugar do mundo, autoridades
desse nível dão entrevistas todos os
dias sobre o mesmo assunto, menos
ainda quando há situação de crise.
Felizmente, o comando da crise está
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nas mãos do Banco Central, que vem
agindo com grande competência e
determinação. Medidas como a permissão para o Banco do Brasil e a Caixa
Econômica Federal estão corretas,
apesar de terem assustado o mercado,
uma vez que passou a impressão de
que estamos diante do risco de alguns
bancos quebrarem. Isso dificilmente
acontecerá. O sistema é sólido e continuará assim. Os boatos são típicos
dessa fase. Vale registrar, ainda, que as
medidas adotadas pelo atual governo
se assemelham, emn seus objetivos,
às do Proer, um programa muito mal
compreendido até hoje e que recebeu
pesados ataques do PT à época. Seria
justo que os membros do Banco Central, acusados e processados pelo Ministério Público por terem implantado
o Proer, recebessem o reconhecimento
por terem feito, em 1996, o que todo
o mundo faz agora.
Ainda há muito a resolver. A
volatilidade será a marca dos mercados nas próximas semanas, mas tudo
indica que o pior foi evitado. A economia
brasileira vai desacelerar. Dependendo
de como evoluir o processo de restabelecimento do crédito, o custo não
deverá ser alto. Não será surpresa se o
PIB crescer em torno de 3% em 2009, o
que seria um resultado muito favorável
diante das atuais circunstâncias e muito melhor do que será o desempenho
desse indicador nos Estados Unidos e
na Europa. Superará a média de crescimento anual da economia brasileira
nos últimos 20 anos, de 2,4%.
n
Maílson da Nóbrega é economista e foi ministro da Fazenda (1988-1990)
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