CIÊNCIA MODERNA E A MUDANÇA PARADIGMÁTICA: UM DIÁLOGO
COM EDGAR MORIN E BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS
Alexandre Paulo Loro1
Valdo Barcelos2
Resumo:
Trata-se de um estudo voltado criticamente à ciência moderna e à sua teoria, por tentar reduzir
a realidade ao que existe, não cumprimento de algumas de suas principais promessas,
insuficiências estruturais e limites do paradigma. Com grandes promessas de progresso, de
futuro melhor e de certezas, ignorou-se a tradição, distanciando-se do passado. Ao demarcar
espaço como conhecimento institucionalizado, vendeu a ilusão de infalibilidade e linearidade.
Objetivamos então, dialogar e refletir sobre outras possibilidades que não promovam através
de seus métodos, a disjunção, redução e abstração do sujeito e do objeto. Neste sentido,
alguns autores destacam-se por contribuir com esta discussão: Morin (1982, 1992) e
Boaventura de Sousa Santos (2000, 2002), alertam para a complexidade do ser/saber e
mudança paradigmática. O caos em que vivemos nos convida a um conhecimento prudente
para uma vida decente, que sobreponha emancipação à regulação - um conhecimento pósmoderno solidário. É um desafio a produção do conhecimento dentro deste contexto.
Principalmente quando falamos em educação, voltada ao diálogo com a natureza. A reforma
do pensar, a valorização da subjetividade, tomada de consciência da complexidade da
natureza e a busca constante da unidade dos contrários em nossa cultura, faz-se não só
necessária, mas urgente, como princípio unificador do saber e do conhecimento, em torno do
ser humano, valorizando-o.
Palavras-chave: Ciência Moderna. Mudança Paradigmática.
“Há mais coisas no mundo que em toda nossa filosofia”.
Shakespeare
A crítica à modernidade e à sua teoria deve-se à tentativa de redução da realidade ao
que existe e devido ao não cumprimento de algumas de suas principais promessas (dominação
1
2
Mestrando em Educação PPGE/CE/UFSM - E-mail: [email protected]
Prof. Dr. GEPEIS/CE/UFSM -E-mail: [email protected]
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da natureza, justiça, igualdade, liberdade, paz, etc.). As insuficiências estruturais e limites do
paradigma científico moderno é, em parte, o resultado do grande avanço proporcionado por
ele próprio.
Através de sua objetividade, formalidade, empirismo e tantas outras características
peculiares, a modernidade trouxe a grande promessa de progresso, de futuro e de certezas.
Ignorou assim, a tradição para dedicar-se ao futuro, distanciando-se do passado, com a
promessa de um futuro sempre melhor. Assim, nasceu a idéia de progresso e a obsessão pela
novidade, por sua vez, vista sempre como melhor que o velho, que o antigo.
A ciência moderna ao demarcar espaço como conhecimento institucionalizado, vendeu
a ilusão da infalibilidade e linearidade. Quanto às verdades, bem sabemos que “(...) não existe
a tal verdade verdadeira; ela é sonho, pura ficção” (Costa, 2002, p.15). Sendo ela também
suscetível ao erro.
Através de seu método, (baseado na disjunção, redução e abstração do sujeito e do
objeto) e de seus estatutos racionais (europeu, antropocêntrico, falocêntrico, colonialista, etc.),
acabou por remeter o sujeito à filosofia e à moral. Estes princípios de redução é o que Morin
(1992) chama de “paradigma da simplificação”. Constituem em levar o saber complexo a um
pensamento simplificador, incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo.
Boaventura Santos (2000) propõe um novo paradigma. “O paradigma de um
conhecimento prudente para uma vida decente”, preocupado com o social. Sugere através da
racionalidade estético-expressiva a união de causa e efeito, o que até então a racionalidade
científica moderna separou e apresentam-se inacabadas. O caos em que vivemos nos convida
a um conhecimento prudente, que sobreponha emancipação à regulação - um conhecimento
pós-moderno e solidário de emancipação.
Ciência moderna – do isolamento à busca de diálogo
A ciência na modernidade surgiu como uma fortaleza, a qual a filosofia não tinha
acesso. As ciências sociais por sua vez, com vista à obtenção de um conhecimento
intersubjetivo, descritivo e compreensivo, foram relegadas a um segundo plano, desvirtuadas
e manipuladas.
A ciência, constituída pela epistemologia do iluminismo, tida como uma verdade
absoluta foi sustentada pelos paradigmas, interesses e relações de poder. Concentrada ao nível
dos poderes econômicos e políticos. Esta relação sempre atendeu, preparou-nos para um
determinado fim: a manipulação.
3
A ciência não é neutra e nem de uma objetividade absoluta. Vem sempre
acompanhada ou patrocinada por interesses. Todo cientista se insere numa rede de avaliações
mútuas, que se estende além de seu próprio horizonte de competência: “Ele tira partido ativo
dos recursos desse ambiente pra fazer prevalecer suas teses e ele esconde suas estratégias sob
a máscara da objetividade” (Stengers, 2002, p.18).
Alves (1999) descreve que os cientistas, ao fazer ciência, não são movidos
simplesmente por razões quantitativas e científicas. São movidos por curiosidade, narcisismo,
ambição profissional, dinheiro, fama, autoritarismo.
Surgem, então, problemas de difícil solução, cada vez mais graves quando se reduz a
complexidade da ordem cósmica a um modelo de racionalidade hegemônica, defendida como
uma ciência pura, isolada e neutra. Privilegiam-se as ciências naturais pela sua objetividade,
métodos quantitativos, conhecimento explicativo e monotécnico. Esta organização mutila o
conhecimento e desfigura o real. Trata-se de uma visão unidimensional e abstrata. Fechada
sobre si mesma, monopolizada, julga possuir a verdade e a capacidade de explicar
cientificamente a realidade. Segundo Morin (1982), a ciência é incapaz de pensar a si mesmo
de tanto crer que seu conhecimento é o reflexo do real. Este princípio elimina o observador da
observação, não permitindo o sujeito introduzir-se autocriticamente e reflexivamente no seu
conhecimento dos objetos.
Para Boaventura Santos (2002), o que há de específico na dimensão conceitual da
ciência moderna é a idéia de inferioridade do outro. Não apenas a idéia, mas aprofundando-a e
legitimando-a. Ao invocar a credencial da legitimidade, tem sua validade e credibilidade
assegurada? Esta se justifica pela produção de superioridade/inferioridade. Costa (2002)
assinala as concepções que deram sustentação à modernidade:
(...) a suposição de uma ordem universal; um modelo de racionalidade
(o ocidental); uma idéia de sujeito (o sujeito poderoso); as
metanarrativas (grandes sistemas explicativos e totalizantes); a
supremacia do Homem (como espécie, como gênero, como medida de
todas as coisas); uma cultura (a ocidental) como o lugar privilegiado a
partir do qual se inventam e nomeiam as “outras” (p. 150).
A ciência em geral, e a modernidade em particular, via de regra teve uma relação
marcadamente instrumental com a vida. Preocupada e embasada na capacidade de conhecer e
transformar a natureza procurou eliminar a imprecisão, a ambigüidade e a contradição. O que
até hoje foi ignorado e rejeitado vem à tona. A idéia de ordem e estabilidade do mundo
4
demonstra como o determinismo mecanicista da modernidade separou o que serve daquilo
que não serve; o estético, do útil; a cultura, da natureza; etc.
Há necessidade de reorganizar o que conhecemos por ciência. Ao desencadear uma
nova concepção, uma reflexão epistemológica e diversificada sobre o conhecimento
científico, Boaventura Santos (2000) cita:
Em vez da eternidade, temos a história; em vez do determinismo, a
imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a
espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversabilidade, a
irreversabilidade e a evolução; em vez da ordem, a desordem; em vez
da necessidade, a criatividade e o acidente (p.70-71).
Para Boaventura Santos (2000), o saber que não considera os outros saberes do mundo
é um “conhecimento desencantado e triste”. Aquilo que é considerado como não-ciência
(senso comum) não possui a mesma credibilidade, por sua informalidade, flexibilidade e
possibilidade de várias leituras. Embora não seja quantitativo é real, movem os corpos, fazem
agir.
A ciência não é capaz de responder a todas as indagações relacionadas aos fenômenos
da natureza, embora se tenha criado este mito. A ciência também trabalha com o erro, com
hipóteses. Não é apenas regularidade, mas também o caos, que foge ao experimento, ao
controle, devido à complexidade. “Se não houvesse homens no mundo, se o mundo fosse
constituído apenas de objetos, então a linguagem da ciência seria completa. Acontece que os
seres humanos amam, riem, têm medo, esperanças, sentem a beleza, apaixonam-se por ideais”
(Alves, 1999, p. 144).
O saber rigoroso, a precisão quantitativa, a rejeição, o desencantamento, a falta de
prazer e de emoção da ciência moderna faz com que se perca a riqueza de compreensão.
As dicotomias, os dualismos, as fragmentações e as separações entre os fenômenos são
sexistas, capitalistas, provisórios, às vezes precários e até mesmo contraditórios. Desta
maneira, “a ciência moderna existe num equilíbrio delicado, entre a relativa ignorância do
objeto de conhecimento e a relativa ignorância das condições do conhecimento que pode ser
obtido por ele” (Boaventura Santos 2000, p. 82). As leis possuem um caráter probabilístico e
aproximado. Disfarçados sob a égide de sua linearidade.
Não é possível observar ou medir um determinado objeto sem interferir nele, sem o
alterar. Há a interferência de particularidades humanas e de valores. Esta relação
5
sujeito/objeto é muito mais complexa do que aparenta ser. Apresenta importantes implicações,
demonstrando a interferência estrutural do sujeito no objeto observado.
Neste sentido, Boaventura Santos (2000) sugere uma ruptura epistemológica, onde o
conhecimento científico possa vir a se transformar num novo senso comum: ético,
participativo, político e solidário. Este, por sua vez, voltado ao social. “O paradigma de um
conhecimento prudente para uma vida decente3”, propõe a sobreposição da emancipação à
regulação (conhecimento-emancipação pós-moderno) e a união de causa e efeito, através da
racionalidade estético-expressiva. O que até então a racionalidade científica moderna separou
e apresentam-se inacabadas.
Percebemos que o paradigma atual/dominante encontra-se em crise e está a modificarse. Diante de tantas incertezas, o conhecimento científico deve dispor de reflexividade.
Contestando sua convicção e sua própria estrutura de pensamento. Esta transição em que a
ciência se encontra, aponta para a emergência de um novo paradigma. É necessário voltar o
olhar às coisas simples e às perguntas simples. No entanto, as respostas não são nada simples
de responder, pois “temos a tendência inconsciente em afastar de nosso espírito o que vai
contradizê-lo” (Morin, 1992, p. 85). Principalmente quando está em jogo o valor do
conhecimento científico, suas contribuições para a nossa felicidade, de seu sentido para as
nossas vidas.
Morin (1992) nos sensibiliza para as enormes carências de nosso pensamento. Ao
fazer referência ao saber, relata que a redução do complexo ao simples leva a um pensamento
simplificador, incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo. A “inteligência cega”
destrói os conjuntos e as totalidades, isolando todos os objetos a sua volta; trata-se de uma
maciça e prodigiosa ignorância, uma visão unidimensional e mutiladora. “Assim, surge o
grande paradoxo: sujeito e objeto são indissociáveis, mas o nosso modo de pensar exclui um
pelo outro, deixando-nos livres de escolher, segundos as circunstâncias do trabalho entre o
sujeito metafísico e o objeto positivista” (Morin, 1992, p. 50).
O autor trás a unidade por via de uma epistemologia aberta e uma nova ciência,
integrando as realidades banidas pela ciência clássica: a inventividade e a criatividade. “A
imaginação, a iluminação, a criação, sem as quais o progresso das ciências não teria sido
possível, só entraram na ciência às escondidas: não eram logicamente assinaláveis e eram
sempre epistemologicamente, condenáveis” (Morin, 1992, p. 66).
3
Cf. Boaventura de Sousa Santos – A crítica da razão indolente: contra o desperdício da Experiência (2000)
6
Ao trazer à tona a discussão da complexidade do pensamento4, percebemos que a
complexidade não elimina a simplicidade. Trata-se de uma palavra problema e não uma
palavra solução, por apresentar traços inquietantes da confusão, da desordem, da ambigüidade
e incerteza. É um dado da realidade. É o real em processo, em transformação incessante.
Embora o nosso mundo comporte a harmonia, não há uma receita de equilíbrio, pois
esta harmonia está ligada à desarmonia. A ordem e a desordem cooperaram na organização do
universo. É parte constituinte da existência social. A própria contradição não significa
necessariamente um erro, mas o atingir de uma camada profunda da realidade que, justamente
por ser profunda, não pode ser traduzida para a nossa lógica. Nunca escaparemos às incertezas
e jamais poderemos ter um saber total. E se um dia a tiver, “a totalidade é a não verdade”
(Morin, 1992, p. 83).
Partindo destas discussões, podemos também trazer a contribuição de Maturana
(2004), ao explicar o entrelaçamento do racional com o emocional, através da biologia do
conhecimento5. Este conjunto de idéias põe por terra a dualidade do pensamento ocidental.
Deixa sob tensão o imperialismo da razão por estabelecer uma continuidade entre o biológico
e o social ou cultural. O autor vê os seres vivos determinados estruturalmente. Com isso,
incapacita o funcionamento do argumento da realidade independente dos seres vivos
(observador).
Tecendo algumas considerações...
Minhas conclusões são provisórias, à medida que admito que o próprio conhecimento
seja provisório.
Acredito que não podemos ter uma representação ingênua da ciência. Ela deve ser
entendida numa dimensão social e cultural, envolvida com o contexto a que está inserida. A
reforma do pensar, a tomada de consciência da complexidade da natureza e da instabilidade
dos paradigmas faz-se não só necessária, como urgente. No entanto, ainda estamos iniciando.
Como alerta Morin (1982):
(...) perdemos a ilusão de que o conhecimento científico era um
conhecimento acumulativo de verdades que, empilhando-se uma sobre
as outras e provocando um crescimento constante e simplesmente
4
Em Morin (1992), é complexo o que não pode resumir-se numa palavra mestra, o que não pode reduzir-se a
uma lei ou a uma idéia simples.
5
Cf. Humberto Maturana, 2004.
7
científico da própria ciência, constituem aquilo que chamávamos de
progresso (p. 42).
A ciência moderna com seus essencialismos gerou graves problemas, a exemplo da
divisão do trabalho, catástrofes ecológicas e a fragmentação do saber. É um desafio
contemporâneo à produção do conhecimento, principalmente quando falamos em educação.
Podemos nos perguntar então: quais perspectivas temos? A perspectiva significa ao
mesmo tempo enfoque e possibilidade. Este período anuncia a crise de paradigmas, que traz
para a reflexão pedagógica novos conceitos. Várias mudanças estão ocorrendo em diversos
níveis, apontando cenários possíveis. Este momento é oportuno para uma reflexão sobre as
teorias e práticas que atravessam os tempos.
Podemos pensar que é preferível compreender o mundo a ser manipulado por ele, e
que a superação desta maneira pequena e cartesiana de visualizá-lo, pelos dualismos, só tende
a oprimir e desvalorizar o ser humano. Acredito que há outras formas de buscar entender o
mundo em que vivemos.
Podemos iniciar suspeitando de boa parte das nossas certezas, edificadas ao longo da
modernidade. Apreciando a pluralidade de possibilidades de sentido e trajetórias intelectuais.
Valorizando a subjetividade, considerando a contingência. Buscando constantemente a
unidade dos contrários em nossa cultura. Faz-se necessário recuperar a harmonia fundamental
que não destrói. Uma educação que nos leve a atuar no diálogo com a natureza, a entendê-la
para viver com ela e nela sem pretender dominá-la. Defendo o princípio unificador do saber e
do conhecimento, em torno do ser humano, valorizando-o. Ao invés de sonhar com conquistas
titânicas, podemos optar por desejar e edificar pequenas coisas do cotidiano. Esta sim, será
uma grande contribuição que podemos dar à sociedade.
Referências bibliográficas
ALVES, Rubem. Entre a ciência e a sapiência: o dilema da educação. São Paulo: Edições
Loyola, 1999.
COSTA, Marisa Vorraber. Uma agenda para jovens pesquisadores. In: Caminhos
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Vorraber (org.). Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
____. Novos olhares na pesquisa em educação. In: Caminhos investigativos: novos olhares
na pesquisa em educação. COSTA, Marisa Vorraber (org.). Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
8
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagens na educação e na política. Belo
Horizonte. Editora UFMG, 1998.
____; VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Amar e brincar: fundamentos esquecidos do humano
do patriarcado europeu à democracia. São Paulo: Palas Athena, 2004.
MORIN. Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.
____. A ciência com consciência. Portugal. Edições Europa América, 1982.
SANTOS, Boaventura de Sousa. O fim das descobertas imperiais. In: OLIVEIRA, Inês
Barbosa & SGARB, Paulo. Redes Culturais, diversidades e educação. Rio de Janeiro:
DP&A, 2002.
____. Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição
paradigmática. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 2000.
STENGERS, Isabelle. A Invenção das ciências modernas. Tradução Max Altman. – SP:
Editora 34, 2002.
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