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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Wendell Lopes Barbosa de Souza
Danos Morais no Brasil e Punitive Damages nos Estados Unidos
e o Direito de Imprensa
DOUTORADO EM DIREITO
SÃO PAULO
2013
1
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Wendell Lopes Barbosa de Souza
Danos Morais no Brasil e Punitive Damages nos Estados Unidos
e o Direito de Imprensa
Tese apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Direito das Relações Sociais, área
de concentração de Direito Civil Comparado, sob
a orientação da Professora Doutora Odete Novais
Carneiro Queiroz.
SÃO PAULO
2013
2
Banca Examinadora
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Uma lamentável coincidência para a comarca de Ibiúna-SP no ano de 2012, que, no
mais, é a representação do que ocorre no resto do país – 57 mil eleitores vivendo na
cidade e 57 mil processos tramitando no fórum. Errado: faltam leis, juízes, servidores
e computadores. Certo: os pais devem cuidar de seus filhos, os maridos devem
respeitar suas esposas, os devedores devem pagar seus credores, os motoristas
devem observar as regras de trânsito, as pessoas devem respeitar a vida e o
patrimônio das outras, as empresas devem atender seus consumidores etc. Enfim,
pode-se dizer: não é a justiça que não funciona; os homens é que não se respeitam.
Não foi fácil escrever este trabalho na tela do mesmo computador que você me
pedia para assistir a Galinha Pintadinha, mas eu faria tudo de novo por você,
Rafaela, e por sua mãe, Ulliana, mais linda a cada dia. Amo as duas! Bom contar
com o carinho de sempre dos meus pais, dos meus irmãos e dos meus cunhados.
Pai e Mãe, que bela família vocês formaram! Vamos estar sempre juntos, enquanto
Deus quiser, agora também com a Julinha. Mais uma vez agradeço o apoio de toda
a família de minha esposa, sobretudo dos meus sogros. A acolhida aqui foi tão
grande que ganhei minha única afilhada, a Fernandinha. Obrigado também pelo
companheirismo diário dos servidores do fórum de Ibiúna, comarca em que judiquei
durante todo o mestrado e o doutorado, e tive a honra de ser o único magistrado
agraciado com o título de cidadão ibiunense. Dedico ainda o trabalho aos meus
alunos dos cursos de graduação e pós-graduação. Obrigado a todos!
5
Acompanhando-me já há sete anos, mais uma vez agradeço a professora Odete
Novais Carneiro Queiroz, não só pela orientação para a produção deste trabalho,
mas também por não permitir que interrompesse a carreira acadêmica no mestrado,
incentivando decisivamente ao ingresso no doutorado. A outras duas grandes
juristas também devo lembrança. Para agradecer a Professora Maria Helena Diniz,
como titular da cadeira de Direito Civil Comparado da PUC/SP, com quem tive
oportunidade de cursar a disciplina “Ordenamento Jurídico e Sistema”, linha mestra
do doutorado nesta instituição de ensino e lecionada com primazia. E também a
Professora Toni Fine, como responsável pelos programas internacionais da
Fordham University de Nova Iorque, que gentilmente me fez o convite para o curso
sobre os recentes desenvolvimentos do direito americano em julho de 2012,
propciando a pesquisa para esta tese em sua magnífica biblioteca.
SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Danos Morais no Brasil e Punitive Damages
nos Estados Unidos e o Direito de Imprensa. São Paulo, 2013. 300 f. Tese de
Doutorado - Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
RESUMO
Pode-se verificar verdadeira tendência da responsabilidade civil no direito brasileiro
ao sistema americano dos precedentes do common law, guardadas as
peculiaridades de cada sistema. De outro lado, examinando-se o direito americano,
verifica-se a proliferação de leis escritas, que passam a serem parâmetros à
produção jurisprudencial relativa aos casos de indenizações punitivas. Realmente,
não obstante posicione-se o ordenamento jurídico brasileiro dentre aqueles assim
considerados integrantes do sistema do civil law, amparados por robusta legislação
positivada, no que toca à indenização por danos morais pode-se dizer
tranquilamente que o caminhar da jurisprudência leva ao convencimento de que as
questões indenitárias estejam hoje sendo resolvidas por decisões fincadas em bases
eminentemente fáticas, que já contaram com pronunciamentos anteriores do Poder
Judiciário. Resulta daí, por exemplo, que as lides judiciárias envolvendo o dano
moral e seus consectários, como a tormentosa fixação do quantum indenitário,
sejam resolvidas exclusivamente com base em precedentes jurisprudenciais
relativos a fatos idênticos ou pelo menos semelhantes. Já nos Estados Unidos, país
que adotou o sistema dos precedentes jurisprudenciais para a solução dos litígios
forenses, integrando, em princípio, o grupo das nações adeptas do common law,
hoje se vê na contingência da produção de leis escritas para a disciplina de temas
relevantes, como a questão das indenizações punitivas, abrindo espaço para a
positivação de normas jurídicas orientadoras das decisões judiciais. Daí se falar em
interface entre civil law e common law no que toca à resolução das lides judiciárias
que têm por objeto as questões indenitárias relativas aos danos morais no Brasil e
aos punitive damages nos Estados Unidos no direito de imprensa, sobretudo quando
se trata do conflito entre o direito de informar da empresa jornalística e o direito de
privacidade do sujeito da notícia.
Palavras-chave: Dano moral. Punitive Damages. Civil Law. Common Law. Imprensa.
7
SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Non-economic damages in Brazil and
punitive damages in United States and the press law. São Paulo, 2013. 300 f.
Doctoral Thesis – Law School, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
ABSTRACT
It can be seen today the real tendency of the civil liability under Brazilian law to the
American system of common law precedents, each one with its details. On the other
hand, examining U.S. law, there is a proliferation of written statutes, which are
parameters to the production of jurisprudence relating to the cases of compensation
for punitive damages. In reality, despite being situated in the Brazilian legal system
among those members of the labeled civil law, supported by robust written
legislation, with regard to compensation for non-compensatory damages can be said
without hesitation that the course of jurisprudence leads to the conviction that
damage issues are today being resolved by decisions fixed to an eminently factual
bases, which have relied on statements by the Judiciary. Consequently, the judicial
cases, for example, involving the non-compensatory damage and its consequences,
like the turbulent fixing quantum of money, are resolved exclusive under precedents
for the fact identical or at least similar. In the United States, a country that adopted
the system of precedents for the resolution of legal disputes, including, at first, the
group of nations adept to common law, it is noticed today the contingency of the
production of statutes for the discipline of relevant topics, as the issue of punitive
damages, making room for the written law of legal rules guiding judicial decisions.
Hence we speak in interface between civil law and common law regarding the judicial
resolution of the cases that focus on issues relating to non-compensatory damages
in Brazil and punitive damages in the United States in the press law, especially when
the case is about the the press company’s right to inform and the right of privacy of
the news’ subject.
Keywords: Damages. Punitive Damages. Civil Law. Common Law. Press.
8
LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS
ADIN
Ação Direta de Inconstitucionalidade
ADPF
Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental
ADR
Alternative Dispute Resolution
ATRA
American Tort Reform Association
CC
Código Civil
CDC
Código de Defesa do Consumidor
CF
Constituição Federal
CMN
Conselho Monetário Nacional
CPC
Código de Processo Civil
EIRE
República da Irlanda
EUA
Estados Unidos da América
FDA
Food and Drug Administration
NHTSA
National Highway Traffic Safety Administration
STF
Supremo Tribunal Federal
STJ
Superior Tribunal de Justiça
TJSP
Tribunal de Justiça de São Paulo
REsp
Recurso Especial
REx
Recurso Extraordinário
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 14
1
OS GRANDES SISTEMAS DE DIREITO ................................................. 22
2
O CIVIL LAW – origens romanas e germânicas ................................... 25
3
O COMMON LAW .................................................................................... 29
3.1
Surgimento e Evolução Histórica.......................................................... 29
3.2
Diferenciação de Outras Expressões Aparentemente Sinônimas...... 36
4
O BRASIL COMO INTEGRANTE DO CIVIL LAW................................... 40
4.1
A Força do Direito Positivado................................................................ 40
4.2
O Normativismo Jurídico de Kelsen...................................................... 43
5
OS EUA COMO INTEGRANTES DO COMMON LAW ............................ 45
5.1
A Doutrina do Stare Decisis................................................................... 45
5.2
A Presença da Lei Positivada nos EUA................................................. 48
6
ALGUMAS
TENDÊNCIAS
DO
SISTEMA
PROCESSUAL
CIVIL
BRASILEIRO AO COMMON LAW........................................................... 51
6.1
Noções Gerais ........................................................................................ 51
6.2
Controle
Concentrado
de
Constitucionalidade
e
de
Inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal ....................... 57
6.3
Controle Incidental de Constitucionalidade nos Tribunais Estaduais e
o Efeito Vinculante das Decisões do Órgão Especial ......................... 59
6.4
O Julgamento Monocrático nos Tribunais ........................................... 60
6.5
Súmula Vinculante ................................................................................. 61
6.6
Súmula Impeditiva de Recurso ............................................................. 63
6.7
Julgamento Liminar de Ação Idêntica .................................................. 63
6.8
A Repercussão Geral no STF e os Recursos Repetitivos no STJ...... 64
6.9
Outros Meios de Eficácia Erga Omnes do Provimento Judicial......... 66
6.10
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Projeto de Novo
CPC........................................................................................................... 67
7
O SISTEMA CIVIL BRASILEIRO DE TIPIFICAÇÃO ABERTA................ 70
7.1
A Flexibilização das Normas Jurídicas................................................. 70
7.2
As Cláusulas Abertas Constantes do Novo Código Civil – um
exemplo: a responsabilidade civil pela atividade de risco ................. 73
7.3
Os Conceitos Jurídicos Indeterminados – um exemplo: o “destinatário
final” no Código de Defesa do Consumidor ........................................ 75
8
O
EQUÍVOCO
LEGISLATIVO
DEMANDANDO
A
APLICAÇÃO
DO
PRECEDENTE JUDICIAL .......................................................................... 82
8.1
O Problema da Omissão Legislativa ..................................................... 82
8.2
O Problema da Incorreção Legislativa............................................ 86
8.3
O Problema da Imprecisão Legislativa ................................................. 88
8.4
As Consequências do Mau Trabalho Legislativo ................................ 90
8.4.1
O eventual desapego à lei ........................................................................ 90
8.4.2
O ativismo judicial ..................................................................................... 91
9
O DIREITO JURISPRUDENCIAL............................................................. 95
9.1
Posição da Jurisprudência na Teoria Geral do Direito no Civil Law.. 95
9.2
Uma Pequena Digressão sobre o Precedente no Common Law ........ 96
9.3
Condições para Mudança da Jurisprudência no Civil Law e suas
Consequências...................................................................................... ..101
10
O DANO MORAL...................................................................................... 107
10.1
Natureza Jurídica Perante o Civil Law Brasileiro................................. 107
10.2
Conceito................................................................................................... 108
10.3
A Denominada “Pena Privada” do Direito Europeu.............................109
10.4
Meros Transtornos e Inadimplemento Contratual............................... 114
10.5
Uma Vexata Questio: Hipótese Jurisprudencial de Cabimento (ou não)
da Indenização por Danos Morais – abandono afetivo........................117
10.6
A Atual Tramitação Legislativa do “Estatuto do Dano Moral” ...........120
11
PRECEDENTES
DO
STJ
E
TJ/SP
SOBRE
A
LEGITIMIDADE
ATIVA/PASSIVA E O VALOR DA INDENIZAÇÃO NO DANO MORAL..127
11.1
Sujeição Passiva ....................................................................................128
11.1.1
Pessoa jurídica e protesto liminarmente sustado .....................................128
11.1.2
Nascituro ..................................................................................................131
11.1.3
Dano moral ricochete ...............................................................................133
11.2
A Legitimidade Ativa ..............................................................................137
11.2.1
Legitimidade ativa no caso de morte da vítima .........................................137
11.2.2
A questão da transmissibilidade mortis causa ..........................................140
11.3
A Responsabilidade Civil dos Provedores de Internet pelo Conteúdo
Ofensivo Postado por Terceiros e o Marco Civil da Internet ..............148
11.4
O Caso do Massacre Dentro do Cinema do Shopping Morumbi ........155
11.5
Da Cumulatividade da Reparação por Danos Morais, Materiais e
Estéticos..................................................................................................158
11.6
Dos
Parâmetros
de
Fixação
e
da
Correção
das
Verbas
Indenitárias .............................................................................................161
11.6.1
O arbitramento do valor devido pela lesão a direito da personalidade .....161
11.6.2
O princípio da equidade como critério para fixação da indenização por
danos morais - art. 953, parágrafo único, do Código Civil ........................168
11.6.3
Forma de incidência dos juros moratórios e correção monetária .............169
11.7
Uso
Indevido
da
Imagem
e
o
Arbitramento
da
Respectiva
Indenização .............................................................................................174
12
RELAÇÃO ENTRE A INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NO BRASIL
E OS PUNITIVE DAMAGES NOS EUA ...................................................180
12.1
O Posicionamento da Doutrina Brasileira ............................................181
12.2
A Questão no Tribunal de Justiça de São Paulo .................................186
12.3
A Questão no Superior Tribunal de Justiça .........................................187
12.4
A Questão no Supremo Tribunal Federal .............................................188
12.5
Nosso posicionamento........................................................................... 189
13
PARTICULARIDADES DO SISTEMA JURÍDICO AMERICANO.............191
13.1
Organização Judiciária Estadunidense ................................................191
13.2
A Autonomia dos Estados Federados – a descentralização do
poder........................................................................................................192
13.3
As Fontes do Direito Estadunidense ....................................................194
13.4
Brevíssimas Noções Procedimentais do Direito Estadunidense .......197
14
OS PUNITIVE DAMAGES........................................................................202
14.1
Conceito, Origem e Finalidade ..............................................................202
14.2
Classificação das Formas Indenizatórias nos EUA .............................205
14.3
Teses Pró ................................................................................................208
14.4
Teses Contra ...........................................................................................209
14.5
Pressupostos para Aplicação dos Punitive Damages (an debeatur)
Segundo a Orientação da Suprema Corte Americana - o caso State
Farm Mutual Automobile Insurance v. Campbell .................................210
14.6
Elementos para Valoração dos Punitive Damages (quantum debeatur)
Segundo a Orientação da Suprema Corte Americana - o caso BMW of
North America v. Gore............................................................................ 212
15
A TORT REFORM – UMA TENDÊNCIA NOS EUA AO CIVIL LAW .......215
15.1
Noções Gerais da Competência Legislativa nos Estados Unidos .....215
15.2
A Tort Reform nos Estados da Federação Americana ........................216
15.2.1
Estados que admitem incondicionalmente os punitive damages..............217
15.2.2
Estados que proíbem os punitive damages ..............................................218
15.2.3
Estados que limitam o valor dos punitive damages ..................................219
16
CASOS
EMBLEMÁTICOS
DE
INDENIZAÇÕES PUNITIVAS
NOS
EUA ..........................................................................................................225
16.1
O Denominado McDonald’s Coffee Case .............................................225
16.2
O Caso do Medicamento “MER” ...........................................................226
16.3
O Ford Pinto Case ..................................................................................228
16.4
A fumante Bullock vs. Philip Morris......................................................230
17
O DIREITO DE IMPRENSA BRASILEIRO............................................... 236
17.1
Notas Introdutórias e Disciplina Constitucional ..................................236
17.2
Histórico................................................................................................... 237
17.3
A Não Recepção da Lei de Imprensa pela Constituição Federal .......241
17.4
O Direito de Resposta ............................................................................243
17.5
O Controle da Atividade da Imprensa: Preventivo x Repressivo .......244
17.6
Os Artigos 12 e 20 do Código Civil – Controle Preventivo .................245
17.7
Nosso posicionamento ..........................................................................249
18
DANOS MORAIS E PUNITIVE DAMAGES NO CONFLITO ENTRE O
DIREITO À PRIVACIDADE E O DIREITO DE IMPRENSA .....................250
18.1
Noções Gerais ......................................................................................250
18.1.1
Conceito e conteúdo do direito à privacidade ...........................................251
18.1.2
Conteúdo e conceito do direito à palavra .................................................255
18.1.3
A colisão entre os direitos à privacidade e à palavra ................................257
18.1.4
Exame do conflito à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana e da
proporcionalidade........................................................................................262
18.1.5
Nosso posicionamento sobre a referida colisão de direitos...................... 265
18.2
A Questão nos Tribunais Brasileiros ....................................................266
18.2.1
No Tribunal de Justiça de São Paulo .......................................................266
18.2.2
No Superior Tribunal de Justiça ...............................................................267
18.2.3
No Supremo Tribunal Federal ..................................................................270
18.2.4
Um resumo da questão na jurisprudência brasileira .................................274
18.3
A Questão na Suprema Corte dos Estados Unidos.............................274
18.3.1
O caso New York Times Co. v. Sullivan ...................................................274
18.3.2
O caso Curtis Publishing Co. v. Butts .......................................................276
18.3.3
Um resumo da questão na jurisprudência da Suprema Corte ..................280
CONCLUSÕES .......................................................................................................281
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................291
SITES CONSULTADOS .........................................................................................300
14
INTRODUÇÃO
A responsabilidade civil foi galgada, ao longo do século XX, ao patamar de
um verdadeiro novo ramo da ciência jurídica, considerando o vasto campo de
incidência que abarcou. Prova disso é que o estudioso que se propõe ao exame da
questão indenitária, mormente na tentativa de ensiná-la em cursos de graduação e
pós-graduação nas faculdades de Direito, acaba por abordá-la no âmbito de vários
subsistemas jurídicos, como no Direito Civil, no Direito Empresarial, no Direito do
Consumidor, no Direito Administrativo, no Direito Ambiental, no Direito do Trabalho,
no Direito Processual e até no Direito Criminal, quando se trata da relativa
independência entre as responsabilidades civil e penal. Essa autonomia decorreu do
fato de a responsabilidade civil ter sido, sem nenhuma dúvida, o instituto jurídico que
mais se desenvolveu ao longo dos últimos tempos, sobretudo a partir da revolução
industrial e tecnológica do século XX.
Algo foi decisivo para que se promovesse o presente estudo acerca dos
punitive damages (indenização punitiva) no âmbito do sistema jurídico dos Estados
Unidos: a pretensão de analisar as decisões judiciais americanas tocantes à questão
indenitária para que se pudesse ratificar ou mesmo retificar alguns mitos que se
formaram referentemente às quantias fixadas a título de indenizações por atos
ilícitos naquele país, muitas delas, segundo se tem notícia, em valores milionários.
Exemplo mais emblemático do que se está querendo referir colhe-se na famosa lide
judiciária que se consagrou com o nome McDonald´s Coffee case, na qual a assim
reconhecida vítima de um acidente de consumo, que derramou café quente em seu
corpo porque colocou o copo cheio no meio de suas pernas com o veículo em
movimento, foi contemplada, em primeira instância pelo júri popular, com
indenização por danos materiais no valor de US$ 480 mil (quatrocentos e oitenta mil
dólares) e indenização punitiva (punitive damages) no montante de 2,7 milhões de
dólares.
Talvez por isso, andando pelas ruas daquele país ou mesmo trafegando por
suas estradas, pode-se visualizar, numa postura absolutamente contraposta à
adotada pelo Estatuto dos Advogados no Brasil, enormes outdoors oferecendo
serviço de advocacia a quem dele necessitar, especialmente no campo da
responsabilidade civil, seja contratual ou extracontratual, com os seguintes dizeres:
15
INJURED? Auto Accident, slip & fall, wrongful death, personal injury – Attorney at
Law, Free Consultation, Available 24.7 (livremente traduzido como: Ferido? Acidente
de automóvel, escorregão e queda, homicídio culposo, lesão corporal – Advogado –
Consulta grátis – disponível 24 horas, sete dias por semana). Esse é o caso da
Jacoby & Meyers, uma famosa firma de advocacia americana que pretende expandir
a sua “franquia” e abrir “lojas” em shopping centers.
Isso parece dar ao menos uma pequena noção da cultura americana acerca
da busca pela reparação de danos advindos de atos ilícitos, gerando para o ofensor
o dever de pagamento dos danos materiais e morais, além dos punitive damages
(indenização punitiva), a depender da decisão do órgão judiciário competente – o júri
popular, na maioria das lides judiciárias daquele país neste tema. Por conta disso,
num dos mais recentes filmes hollywoodianos acerca das questões envolvendo a
justiça americana, intitulado “A qualquer preço”, um advogado especialista em direito
indenizatório, interpretado por John Travolta, logo no início da película, numa
entrevista a uma rádio, afirma que nos Estados Unidos “o direito de lesões corporais
ganhou uma má reputação” e que os advogados desta especialidade são chamados
de “caçadores de ambulância, mercenários, abutres que abusam do sofrimento
alheio”.
Mas, mesmo neste campo do direito indenizatório, foi como que um susto
saber que nos Estados Unidos apenas 10% dos litígios relativos à responsabilidade
civil chegam às barras da Justiça e que o trabalho do juiz togado é, na maioria dos
casos, apenas o de condução do processo, cabendo a decisão final ao júri popular.
Ainda nesse particular, outro esclarecimento de ordem formal é necessário,
isto é, o porquê da eleição única e exclusivamente dos Estados Unidos para a
consecução da pesquisa deste estudo, ciente do fato de que na grande maioria dos
estudos comparativos o pesquisador escolhe um tema de seu interesse, examina-o
à luz do Direito nacional e busca cotejá-lo com o regramento do mesmo instituto em
vários outros sistemas jurídicos estrangeiros do mundo. Ora, deve haver, então, um
convincente motivo para que neste estudo comparativo tenha sido eleito um único
país como fonte de pesquisa para o cotejo com o Direito brasileiro. E há sim. Como
se verá no decorrer do texto, a verdadeira autonomia, inclusive e especialmente
legislativa, dos Estados Membros formadores da federação estadunidense, com a
consequente descentralização do poder, aliada ao fato de pouquíssimas serem as
lides judiciais que chegam ao exame da Suprema Corte, resulta que uma mesma
16
questão possa encontrar diversas soluções em cada uma das nada menos que 50
unidades federativas dos Estados Unidos. Daí, também, o fato de ter sido escolhido
um único país para a consecução da presente pesquisa, sem a pretensão de exaurir
os pronunciamentos judiciais sobre determinado tema em cada um dos Estados
Membros daquela nação, mas com a certeza de trazer ao leitor um material mais
abalizado para consulta sobre a justiça de um único e determinado país.
No que toca aos sistemas de Direito adotados aqui (no Brasil) e lá (nos
Estados Unidos), verifica-se a ocorrência de um interessante fenômeno, sobretudo
nas décadas mais recentes. O Brasil, tido como país integrante do civil law, sistema
jurídico que dá primazia à lei, vem recorrendo cada dia mais à jurisprudência para a
solução dos casos submetidos ao seu Poder Judiciário. De outro lado, os Estados
Unidos, tido como país integrante do common law, sistema jurídico que dá primazia
às decisões judiciais antecedentes – os precedentes – para a solução das lides
judiciais, estão recorrendo cada vez mais frequentemente à legislação, sobretudo
por meio do movimento denominado tort reform, que, numa tradução livre, significa
uma reforma no sistema de indenizações, visando normatizar as situações passíveis
de aplicação e até mesmo os limites de fixação dos punitive damages.
Na base desses dois movimentos contrários, encontram-se duas explicações
lógicas e racionais. A legislação brasileira, resultado do sistema civil law, por mais
que pretenda exaurir a disciplina dos direitos e deveres inerentes às pessoas, na vã
tentativa de evitar ou minimizar as possibilidades de litígios judiciais, não pôde, não
pode e não poderá, nunca, prever todas as situações fáticas possíveis, regulando-as
definitivamente; daí a necessidade de se recorrer aos casos idênticos ou
semelhantes já analisados pela Justiça para o julgamento dos futuros litígios, com
base nos precedentes. Por outro lado, a decisão judicial baseada unicamente nas
posturas assumidas anteriormente pelos juízes, primado máximo do common law,
por vezes não consegue gerar a mesma segurança jurídica que se visa garantir com
a edição de uma lei para a regência de determinada situação de fato.
Como exemplo do que se está querendo dizer, no Brasil, tem-se como mais
simbólica a questão do dano moral, que, não obstante se trate de um dos mais
complexos problemas enfrentados pelo operador do Direito na vida forense diária, se
fez presente, mesmo em se tratando de diploma jurídico de excelência e vanguarda,
em algumas poucas e honrosas menções no vigente Código Civil de 2002, podendose citar como a mais importante aquela do seu artigo 186. Ocorre que o mencionado
17
dispositivo legal não vai além de mencionar que o dano indenizável pode ser
material ou “moral”. Nada mais. Não há disciplina, a bem da verdade, para nenhuma
situação de fato. Apenas como exemplo, não se tem a menor ideia da orientação
legislativa a respeito das quantias a serem fixadas a título de indenização; quais as
possíveis vítimas de atos ilícitos que poderiam se beneficiar com tais indenizações
ou se até mesmo o nascituro poderia usufruir desse tipo de verba indenizatória; a
contagem dos juros e da correção monetária quando da fixação da indenização;
como se resolvem problemas por difamações proferidas no ambiente virtual da
internet, e se provedores como o Google respondem ou não por informações
injuriosas postadas por terceiros; questões atinentes ao direito de imagem e outras.
Ao contrário, o legislador, quando chamado a enfrentar o problema, parece ter
“lavado as mãos”. Explica-se. No caput do artigo 953 do Código Civil, fez constar
que a indenização por injúria, difamação ou calúnia consistirá na reparação do dano
que delas resultar ao ofendido. E, no parágrafo único do mesmo dispositivo, quando
se esperava que constasse o caminho pelo pedido de indenização por danos morais
caso a vítima não consiga provar o prejuízo material, positivou-se que, nessa
hipótese, “caberá ao juiz fixar, equitativamente, o valor da indenização, na
conformidade das circunstâncias do caso”. Bem, é óbvio que, não sendo provado o
prejuízo material, restará à vítima a busca pela reparação do dano moral, como,
aliás, é rotineiro nesses ilícitos contra a honra. Mas o legislador pareceu, como se
disse, despreocupado no trato da questão, já que poderia ter simplesmente feito
constar aquilo que era esperado por toda a comunidade jurídica: com ou sem a
prova do dano material, resta ao ofendido a indenização por danos morais. Mas não,
ao que tudo indica, a preferência foi por reduzir o trabalho legislativo e aumentar o
judicial, prevendo-se, para a hipótese de ausência de prova de dano material, uma
indenização “equitativamente” fixada pelo juiz, com base nas “circunstâncias do
caso”, o que, na prática forense, quer dizer quase nada ou quase tudo, a depender
da cabeça sentenciante, possibilitando-se a negação de qualquer valor indenizatório
ou mesmo a fixação de centenas de milhares de reais a título de reparação por
eventual dano moral.
Prova de que esta disposição do Código Civil (o parágrafo único do artigo
953) não fornece qualquer critério ao julgador quando da fixação do valor da
indenização por danos morais está na decisão do Superior Tribunal de Justiça que
fixou em meio milhão de reais uma reparação em favor do ex-presidente Fernando
18
Collor de Melo, por ter sido chamado pela Revista Veja de “corrupto desvairado”
(REsp 1.120.971/RJ). Ora, respeitado o entendimento rigorosamente técnico
utilizado no julgado mencionado, ao menos se dá a possibilidade de se vislumbrar
que a indenização neste caso poderia ser mais módica pelo fato de o ex-presidente
ter renunciado ao mandato em meio a um processo de impeachment deflagrado por
força de denúncias de corrupção que o envolviam diretamente. E, nesse sentido,
realmente verificou-se divergência dentro da própria turma julgadora, votando os
Ministros Sidney Beneti e Paulo de Tarso Sanseverino pela fixação da quantia de
R$150.000,00, enquanto entenderam os Ministros Villas Bôas Cueva, Nancy
Andrighi e Massami Uyeda pela fixação do referido valor de R$500.000,00. Ora, esta
diferença de mais de três vezes entre o valor proposto por dois Ministros e o
efetivamente adotado por outros três Ministros, integrantes da mesma turma
julgadora do mesmo tribunal, demonstra, data venia, que o denominado princípio da
equidade não tem o alcance que a ele se pretende conferir como critério seguro ao
balizamento da indenização por danos morais.
Ademais, a referida decisão nos parece o exemplo mais claro de que o Brasil
já adotou, por sua jurisprudência, a tese do caráter punitivo de que se reveste a
indenização por danos extrapatrimoniais, já que, neste caso, de acordo com sua
ementa, era “de rigor a elevação da indenização por dano moral, como desestímulo
ao cometimento da figura jurídica da injúria”, impondo-se à Editora Abril uma pena
civil pelo ilícito que se reconheceu ter cometido, ao tachar de “corrupto desvairado” o
ex-presidente, não obstante tenha sido o único na história do país sujeito de um
processo de impeachment.
Realmente, o que se verifica hoje pela experiência forense é a prolação de
julgados, cada vez mais comuns em primeira instância, devidamente confirmados
em segundo grau, na instância especial (Superior Tribunal de Justiça) e na
extraordinária (Supremo Tribunal Federal), impondo indenizações que, camuflando a
roupagem de compensação por danos morais, em verdade, têm como intuito
inescondível a imposição de uma sanção civil ao agente ofensor, como na pena
privada do direito europeu ou nos punitve damages americanos.
Resulta daquela lacuna legislativa referente aos danos morais – que poderia
ter sido parcialmente evitada, a se considerar que, quando da edição do Código Civil
de 2002, parte de tais questionamentos já se faziam presentes nos processos
judiciais e nos simpósios de Direito há anos – que as lides judiciárias envolvendo
19
esta temática sejam resolvidas exclusivamente com base em precedentes
jurisprudenciais relativos a fatos idênticos ou pelo menos semelhantes aos postos
para exame no processo a ser decidido. Urgia, então, nesse cenário, que o
legislador do Código Civil de 2002 declinasse ao menos orientações básicas a
respeito de tantas e tantas dúvidas que já se faziam pendentes, inclusive algumas
delas já tranquilizadas pelas decisões judiciais de primeira e segunda instâncias do
Poder Judiciário nacional, além das instâncias especiais ou extraordinárias. Isso viria
a solucionar uma série de pontos que até hoje se fazem obscuros a respeito do tema
da indenização por danos morais, reduzindo sensivelmente as dúvidas no momento
dos pronunciamentos dos juízes de primeiro grau de jurisdição e até mesmo
mitigando acentuadamente a interposição de recursos desnecessários.
Outra questão emblemática quanto à falta de sistematização e uniformidade
no que respeita aos danos morais se traduz na acesa divergência havida dentro do
próprio Superior Tribunal de Justiça quanto à possibilidade de indenização pedida
em virtude do abandono do filho por um dos genitores, normalmente o pai. Das duas
Turmas competentes pelo julgamento das causas relativas ao Direito Privado, a 4ª
Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, desde o ano de 2005, tem
entendimento consolidado de que a indenização por dano moral pressupõe a prática
de ato ilícito, não rendendo ensejo à responsabilidade civil o abandono afetivo,
incapaz de reparação pecuniária (REsp nº 757.411/MG, Rel. Ministro Fernando
Gonçalves). Ocorre que, numa polêmica decisão de abril de 2012, tal orientação foi
completamente afastada, também por unanimidade, pela 3ª Turma do mesmo
Superior Tribunal de Justiça, impondo-se indenização de R$200.000,00 a um pai
que se reconheceu ter abandonado sua filha durante toda a infância e juventude,
obrigando-a
ao
ajuizamento
de
ação
de
investigação
de
paternidade,
fundamentando-se que “amar é faculdade, cuidar é dever” (REsp nº 1.159.242/SP,
Rel. Ministra Nancy Andrighi). Em outras palavras, o filho abandonado que tiver a
sua ação indenizatória apreciada em grau de recurso por uma das Turmas de Direito
Privado do Superior Tribunal de Justiça – a 3ª Turma – será compensado pelos
danos morais que lhe foram ocasionados, enquanto se idêntica ação chegar à Corte
Superior por meio do respectivo recurso e aportar na outra Turma de Direito Privado
– a 4ª Turma – o pai que abandonou sua prole não se verá obrigado ao pagamento
da reparação pecuniária.
20
Não se nega que a possibilidade de formação de mais de um convencimento
acerca de uma mesma questão seja consequência de um sistema jurídico calcado
na democracia e, sobretudo, permeado por cláusulas gerais e conceitos legais
indeterminados no âmbito de sua legislação de Direito Privado. Mas há aí um perigo
iminente nesta formação de diversas interpretações acerca de um mesmo fato, já
que, nestas condições, passa a prevalecer o convencimento que cada juiz tem a
respeito do Direito, e não o mandamento da lei positivada, fator decisivo para o
aumento das demandas e recursos judiciais, e gerador de nefasta insegurança
jurídica.
O Congresso Nacional brasileiro parece querer dar sua contribuição para uma
certa uniformização da questão indenitária, estando em trâmite perante a Câmara
dos Deputados o Projeto de Lei nº 523/11, que, segundo sua ementa, dispõe sobre o
dano moral e sua reparação, trazendo, dentre outras disposições, uma absurda
redução do prazo prescricional para tão somente 6 meses nos casos de reparação
por ofensa extrapatrimonial, que será objeto de análise no momento oportuno.
Na busca por uma solução para o mesmo problema da falta de coesão das
decisões judiciais e o aumento vertiginoso do número de processos, nos Estados
Unidos pugna-se por uma reforma no sistema dos chamados punitive damages,
ainda aplicados aos montes em valores milionários, visando à elaboração de
diplomas legislativos para a disciplina dessa mencionada forma indenizatória,
autorizando sua fixação apenas em determinadas situações ou pelo menos limitando
os seus valores.
Então, com esses dois referenciais é que se busca demonstrar as bases em
que está calcado o sistema jurídico brasileiro de primazia da lei, mas caminhando, a
passos cada vez mais largos, na direção do respeito à anterior decisão judicial sobre
um caso idêntico ou semelhante; enquanto isso, a autoridade do precedente judicial
estadunidense vem cedendo espaço à legislação positivada, na busca de uma
pretensa segurança jurídica, com superação da ideia comum que se dissemina
sobre a existência exclusiva dos precedentes no direito daquela nação.
Nesse quadro, à luz das virtudes de cada um dos sistemas de Direito – o civil
law e o common law – indaga-se: não se poderia vislumbrar uma forma híbrida, na
qual a lei teria a virtude de conferir uma mínima segurança jurídica aos agentes do
sistema, mas sem a pretensão de exaurir e disciplinar toda e qualquer situação de
fato futura, que poderia bem ser resolvida com um toque de sensibilidade só
21
passível de ser obtido por meio de um pronunciamento judicial? Indaga-se mais: isso
já não acontece, ou seja, já não existe uma visível interface, uma mescla parcial,
entre o civil law e o common law, tanto aqui no Brasil como lá nos Estados Unidos?
E todas estas indagações se põem frente a uma das mais complexas
questões no âmbito do moderno Direito Civil-Constitucional, referente ao conflito
cada dia mais violento entre o direito à privacidade das pessoas e o direito de
informar da imprensa, implicando no reconhecimento ou não da indenização por
danos morais no Brasil ou por punitive damages nos Estados Unidos, sobretudo
após o advento dos modernos meios de comunicação, especialmente a internet.
Sem sucesso, a doutrina, tanto nacional quanto internacional, procura
solucionar o conflito entre os mencionados direitos fundamentais à informação e à
privacidade, propondo certa harmonização entre eles, observando no caso concreto
a máxima efetivação e a mínima restrição possível de cada um, num tom pacificador
que encontra vasto espaço no âmbito acadêmico, mas insuficiente para a solução
das lides forenses que versam a questão.
A jurisprudência brasileira vacila no enfrentamento do tema, e nem a cúpula
da Justiça nacional tem posicionamento fechado sobre a prevalência no caso
concreto do direito à privacidade ou do direito de informar da imprensa, conforme
noticia o Ministro Sepúlveda Pertence no relatório do processo que se tornou mais
conhecido como o caso O Globo x Garotinho, afirmando que: “[...] a respeito da
polêmica assim vislumbrada – que reflete a viva dissensão no direito comparado –
ainda não se pode divisar, no Brasil, uma orientação firme do Supremo Tribunal
Federal”. Já a Suprema Corte americana, como será visto no exame dos casos New
York Times v. Sullivan e Curtis Publishing v. Butts, apesar de alguma orientação
genérica, como a natural restrição do direito à privacidade em consequência do
exercício de função pública, também não apresenta solução uniforme para o
problema.
E essa falta de consenso parece ser mesmo natural, já que a almejada
solução para o conflito de direitos constitucionais em exame deve ser buscada em
cada caso concreto, sem que se permita à imprensa, a pretexto de informar, que
transgrida os limites da liberdade de expressão invadindo a intimidade alheia
injustificadamente, mas tampouco se pode reconhecer a privacidade como interesse
absoluto em detrimento da livre circulação das ideias e por consequência do próprio
Estado Democrático de Direito brasileiro.
22
1 OS GRANDES SISTEMAS DE DIREITO
A fim de melhor discorrermos acerca do objeto do presente trabalho, qual
seja, a interpenetração entre o common law e o civil law, é mister que se faça uma
abordagem, ainda que panorâmica e resumida, a respeito dos grandes sistemas
jurídicos existentes no mundo.
Assim, como de regra, o primeiro passo é classificar os grandes sistemas de
Direito, utilizando-se, para tanto, a consagrada organização elaborada por René
David1, nos seguintes termos: 1º) o sistema romano-germânico, denominado civil
law, no qual se encontra o Direito brasileiro; 2º) o sistema do common law, que é
abrigado, sobretudo, pelos países de origem anglo-saxã, inclusive os Estados
Unidos; 3º) o sistema dos Direitos socialistas, que era adotado pela chamada
Europa do Leste, capitaneada pela URSS até a queda do Muro de Berlim; 4º) outras
concepções da ordem social e do Direito, tais como os Direitos muçulmano, indiano,
do Extremo Oriente, judaico e da África, sistemas de forte componente ligado à
religião, que em determinados países é a principal fonte das normas jurídicas (Irã,
Iraque etc.), relevantes para determinados ramos do Direito Privado, em particular
em matéria de família.
Podemos ver que a classificação supracitada agrupou os sistemas consoante
as respectivas fontes principais de produção do Direito: para o sistema romanogermânico, a lei; para o sistema do common law, o precedente; para o sistema dos
Direitos socialistas, o próprio socialismo; e para o derradeiro sistema referido, a
teocracia.
Frisamos que a mencionada classificação se mostra mais acertada em face
daquelas que pretendem a mera dicotomização dos sistemas de Direito, reduzindoos aos sistemas romano-germânico (ou civil law) e do common law, sendo dois os
fundamentos de sua adoção. Por primeiro, não há que se falar em sistemas mais
importantes em relação a outros, ainda que hodiernamente alguns sejam mais
ocorrentes que os demais. E, em segundo plano, porque existem diversos países
que adotam sistemas mistos, com regras e princípios tanto do sistema civil law como
do common law, constituindo-se em verdadeiras novas organizações, dada a
1
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de
Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978.
23
ausência de preponderância de um ou de outro. Veja-se, por exemplo, o caso do
Canadá, colonizado simultaneamente por países adotantes dos sistemas jurídicos
do common law e do civil law, e que acabou por receber forte influência desses
sistemas sem que se possa dizer da prevalência de qualquer deles, conforme dá
conta José Rogério Cruz e Tucci:
Desde o Colonial Laws Validity Act, de 1865, as normas da common law
não incidem quando forem contrárias às leis ou aos costumes do povo
canadense. Ressalte-se, por fim, que os dois sistemas jurídicos - codificado
e casuístico - interagem e exercem recíproca influência: quando o juiz
decide com base na lei escrita, na Província de Quebec, a sentença é
2
considerada precedente vinculante.
Conclui-se que, a se ter pela estanque dicotomização entre os sistemas de
Direito do civil law e do common law, se está negando a existência de outros, que,
por possuírem tão intensa interpenetração das regras e institutos jurídicos de ambos
os sistemas, não se enquadram quer num quer noutro, e culminam, portanto, na
formação de um novo.
Um outro interessante exemplo é o Japão, que, num período mais remoto,
recebeu a influência do civil law, especialmente do Código Germânico, mas, num
momento posterior, após a Segunda Guerra, passou a adotar peculiaridades do
common law.3
Daí a importância de se adotar uma classificação não estanque e reduzida
das grandes famílias de Direitos, mas sim a que permita a mistura entre os sistemas
já existentes, bem como a conformação de novos ordenamentos.
Conquanto não se possa falar em qualquer preponderância ou redução dos
sistemas de Direitos, para o presente trabalho importa que se analisem com mais
vagar apenas dois deles, salientando, novamente, não serem os únicos ou mais
importantes: o sistema do civil law e o sistema do common law.
Consoante lição de Luiz Guilherme Marinoni, “a contraposição entre common
law e civil law cedeu lugar à ideia de que esses sistemas constituem dois aspectos
de uma mesma e grande tradição jurídica ocidental”, e que os dois sistemas de
2
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 170.
3
MERRYMAN, John Henry. The civil law tradition – an introduction to the legal systems of Western
Europe and Latin America. Stanford: Stanford University Press, 1969. p. 5.
24
direito “tendo surgido em circunstâncias políticas e culturais diferentes, fizeram surgir
tradições jurídicas particulares, caracterizadas por institutos e conceitos próprios”.4
Nessa mesma ordem de pensamento, Phanor J. Eder afirmou que o mundo
cristão é dividido entre dois grandes sistemas jurídicos – um derivado diretamente
do Direito Romano (o civil law) e o outro do Direito Anglo-Americano (o common
law).5
E, como será observado ao longo do presente trabalho, apesar da estanque
diferenciação que se estabelece entre os dois sistemas jurídicos, notam-se
importantes analogias entre o common law e o civil law, com alguma afinidade entre
eles.6
Apenas ressalve-se que, enquanto os praticantes do civil law tendem a
pensar em termos de normas que podem ser aplicadas ao caso concreto, os
praticantes do common law pensam no caso em si e como as causas semelhantes
foram decididas pelas cortes anteriormente.7
4
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. p.
17.
5
EDER, Phanor J. A comparative survey of Anglo-American and Latin-American law. Littleton:
Rothman, 1981. p. 4.
6
WALKER, James M. The theory of the common law. Littleton: Rothman, 1995. p. 127.
7
MOUSOURAKIS, George. Perspectives on comparative law and jurisprudence. New Zealand:
Pearson Prentice Hall, 2006. p. 46.
25
2 O CIVIL LAW – origens romanas e germânicas
Para um melhor desenvolvimento do estudo comparativo entre os sistemas de
Direito pinçados dentre os demais – o civil law e o common law – é imprescindível
que se conheça a evolução histórica de cada um, para que, assim, se averigue o
porquê da formação de sistemas de Direito tão díspares para regular realidades
sociais contemporâneas ocidentais tão semelhantes.
Apenas para se ter uma ideia da importância do sistema de civil law no
mundo, lembre-se da assertiva de John Henry Merryman, de que, das grandes
tradições legais no mundo contemporâneo, o civil law, o common law e o Direito
socialista, o civil law é o mais velho, o mais difundido e o mais influente deles.8
A gênese, não somente do sistema de Direito da família romano-germânica,
está no Direito Romano, sem, contudo, que se possa afirmar ser uma simples
reprodução deste, já que diversas instituições da família romano-germânica são
oriundas de fontes outras que não o Direito Romano primitivo.9
A disseminação e o desenvolvimento do sistema romano-germânico se
deram, obviamente, em decorrência das conquistas romanas no nascer da Era
Cristã, pois, ao se assenhorearem de territórios, os romanos impunham suas formas
de regulamentação social – à época o Direito dos pretores de Roma – visando à
integração e à consequente submissão dos povos conquistados, com a diminuição
das tensões sociais e dos riscos de insurreições locais. Conforme veremos, o
sistema de Direito Romano-Germânico difundiu-se por todo o planeta, superando,
inclusive, o esfacelamento da sociedade que o originou.
Nos primórdios, o domínio romano – impulsionado, sobretudo, pela
necessidade de manter suas proporções continentais unidas e subjugadas –
elaborou um sistema jurídico capaz de atender à premente necessidade
supramencionada de união da colônia, que, assim como o Império Romano, se
constituiu num sistema sem precedentes.
Ocorre que o Império Romano Ocidental – já cambaleante há algum tempo –
deixou de existir por volta do século V d.C.. Tal fato se deu, sobretudo, em virtude da
8
MERRYMAN, John Henry. The civil law tradition – an introduction to the legal systems of Western
Europe and Latin America. Stanford: Stanford University Press, 1969. p. 1.
9
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução de
Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 25.
26
invasão de povos germanos que perambulavam pela Europa continental, sempre em
busca de condições favoráveis ao seu desenvolvimento.
E a partir daí, foi o próprio feudalismo, talvez, o principal responsável pela
manutenção do Direito Romano enquanto sistema regulador das relações sociais,
agora não mais de um império continental, mas de múltiplos feudos que se
instalaram nas terras outrora romanas. Assim, pode-se dizer que não se verificou a
elaboração de outro sistema jurídico em substituição ao romano justamente porque
não houve a formação de um novo império.
Ademais, era da essência dos feudos sua independência, de modo que o
sistema romano de regulamentações sociais se manteve vivo. Entretanto,
invariavelmente, sofria os influxos da cultura e dos costumes dos povos germanos,
em virtude da miscigenação entre os grupos étnicos componentes do feudo.
Dessa feita, embora haja ausência de consenso sobre o fato, foi no século
XIII que se verificou o nascimento, cientificamente, do sistema de Direito RomanoGermânico.10 Nesse sentido, pode-se observar que, historicamente, os séculos XII e
XIII, no Ocidente Europeu, se caracterizaram pela reorganização da sociedade, vale
dizer, uma superação dos limites dos feudos, em muito fomentada pelo comércio de
escambo e o próprio crescimento das sociedades feudais.11
É claro que tais relações e aglomerações demandaram uma estruturação do
agora denominado Direito Romano-Germânico, visando proporcionar ordem e
segurança necessárias ao progresso.12
Insta, então, nesse ponto, salientar que o sistema romano-germânico difere
do sistema do common law, que, conforme se verá no transcorrer deste estudo,
visou à evolução do poder real inglês e sua intensa centralização – diga-se, num
ambiente propício até mesmo pelas características geográficas da Inglaterra, toda
circundada por água e praticamente destacada do restante do Continente Europeu.
Dentre outros motivos, na Europa continental o mesmo fenômeno
centralizador não se observava. Ao revés, nos séculos em que eclodiu o sistema
romano-germânico, a Europa continental não conhecia qualquer unidade político-
10
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 29.
11
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2002. p. 58.
12
DAVID, op. cit., p. 31.
27
territorial.13 Logo, o sistema romano-germânico fundou-se numa comunidade de
cultura, o que permitiu sua subsistência no tempo, pois não estava atrelado a
qualquer poder político centralizador e, portanto, não sucumbiria caso a organização
política aglutinadora da sociedade fosse dissolvida.14
Outro fato marcante na gênese do sistema romano-germânico, segundo
Guido Fernando Silva Soares:
[...] foi a compilação e codificação do Direito Romano, que cristalizou, em
textos harmônicos, normas costumeiras, normas escritas esparsas,
decisões jurisprudenciais e doutrinárias, juntamente com a obra dos
glosadores que, aos poucos, foram, em particular nas universidades
medievais (que vicejavam à sombra dos mosteiros e conventos, portanto
bem próximas dos cultores do Direito Canônico, na época, escrito e
extremamente bem-elaborado), dando uma feição racional às soluções
15
casuísticas e assistemáticas dos jurisconsultos romanos.
Nesse contexto de produção intelectual dentro das universidades, diversas
escolas se sucederam no ensino do Direito. A escola dos denominados glosadores
buscou o sentido originário das leis romanas, culminando com o abandono de
alguns textos, seja porque se referiam a instituições desaparecidas, seja porque
possuíam regramento afeto ao Direito Canônico.16 Entretanto, o trabalho
desenvolvido pelos glosadores era limitado ao texto analisado, buscando alçá-lo à
condição de instrumento de razão da verdade da autoridade, sem qualquer
implicância prática.17
Diversamente se deu com a escola dos pós-glosadores, ou comentadores,
que, nos idos do século XIV, submeteu o Direito Romano a experimentações,
refinando-o e acabando por desenvolver institutos novos, apresentando-os de forma
sistematizada e abolindo a casuística dos jurisconsultos romanos.18
Posteriormente, no século XV, sob a alcunha de
usus modernus
pandectarum, houve o ensino de um Direito Romano profundamente distorcido, sob
a influência do Direito Canônico e das manifestações de alguns pós-glosadores.19
13
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 32.
14
Ibid., p. 32.
15
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 27.
16
LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na história. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 122.
17
Ibid., p. 133.
18
Ibid., p. 134; DAVID, op. cit., p. 35.
19
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 35.
28
Prosseguindo na evolução temporal, nos séculos XVII e XVIII surge a escola
de Direito natural, com grande apelo valorativo, dicotomizando a aplicação do Direito
em duas esferas distintas, a saber, a do Direito Público e a do Direito Privado.20
Desse modo, a sucessão de diversas escolas intelectuais com o passar dos
séculos propiciou ao Direito Romano puro a atualização do alcance de suas normas
e a busca pelas regras mais justas, concomitantemente a uma sistematização lógica
no intuito de regrar a sociedade. A despeito disso, as universidades geradoras da
evolução supramencionada não tinham competência para fixar as regras oriundas
de sua produção intelectual, não as estendendo a todos os países, juízes e
práticos.21
Para superar essa deficiência de propagação, foi utilizada a codificação como
técnica que permitiu a realização dos objetivos supracitados, explanando de forma
sistematizada o Direito necessário ao desenvolvimento da sociedade moderna e
que, justamente por isso, devia ser aplicado pelas cortes dotadas de jurisdição.
Portanto, a escola de Direito natural arrematou a feição do sistema de Direito
Romano-Germânico como o temos: fez estender o Direito às relações públicoprivadas e levou a cabo a codificação de toda a produção intelectual elaborada há
séculos nas universidades.22
E, com a codificação das normas jurídicas, tem nascimento o sistema jurídico
que se denominou civil law.
20
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 35-37.
21
Ibid., p. 35.
22
Ibid., p. 57.
29
3 O COMMON LAW
3.1 Surgimento e Evolução Histórica
Em sua evolução histórica, o common law sempre esteve atrelado à
Inglaterra, pois esse sistema de Direito surgiu e se expandiu a partir da referida
nação, chegando posteriormente aos Estados Unidos para ganhar contornos
definitivos.
Nesse particular, vale a menção de Neil Andrews, traduzido por Teresa
Arruda Alvim Wambier, de que “o moderno e dinâmico sistema do Common Law,
relativo ao processo civil e as demais formas de resolução de conflitos, reflete a
importância comercial da Legislação Inglesa e, naturalmente, o domínio econômico
dos Estados Unidos da América”.23
Assim, tem-se que o sistema do common law superou os limites geográficos
de seu nascedouro, sobretudo em virtude da expansão colonialista da Inglaterra, na
qual preponderava um ordenamento de regras não escritas, nascido da prática
negocial e aplicado por tribunais locais.24
Observa-se que, até os séculos XII e XIII, a história do Direito inglês guardou
grande semelhança com a dos demais países do continente europeu, e, mesmo com
o renascimento do Direito romano, os ingleses continuaram com sua tradição
nativa.25
Segundo José Rogério Cruz e Tucci26:
O direito que começava a germinar na antiga Britania era essencialmente
autóctone, fundado na regra conhecida e na prática quotidiana, e muito
pouco influenciado pelo ius romanorum. Quando, no crepúsculo do século
XII, o estudo científico do direito romano-canônico passa a ganhar
autoridade na praxe dos tribunais canônicos, e, no curso do século XIII, a
influir nos tribunais laicos, já era muito tarde para que o direito inglês fosse,
de alguma forma, seduzido pelas reflexões jurídicas de cunho científico.
Desse modo, conclui-se que a adequação das regras embrionárias do
sistema do common law às necessidades da sociedade inglesa da época era tão
23
ANDREWS, Neil. O moderno processo civil: formas judiciais e alternativas de solução de conflitos
na Inglaterra. Tradução de Teresa Arruda Alvim Wambier. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.
p. 27.
24
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 149.
25
MUSCARI, Marco Antonio Botto. Súmula vinculante. São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999. p. 81.
26
TUCCI, op. cit., p. 150.
30
grande, ou seja, tão arraigada naquela realidade social, que o Direito RomanoCanônico e suas formas abstratas ideais não tiveram o condão de suplantá-lo.
Ilustrativo de tal força embrionária do sistema do common law é a exitosa
oposição dos barões às exigências do clero na modificação das leis inglesas
reguladoras do matrimônio, assim como a inexistência – à época – de qualquer
romanista em território inglês, culminando na proibição, por Henrique III (1216-1272),
do ensino do Direito Romano na Inglaterra.27
Quanto a isso, o professor José Rogério Cruz e Tucci28 pontifica que:
Enfim, a unidade jurídica, a configuração geográfica, a centralização
judiciária e a homogeneidade da classe forense justificam a “recepção
falhada” das fontes do direito romano-canônico na Inglaterra. Enquanto, por
exemplo, na Itália e na Alemanha, a divisão territorial em comunas e
pequenos reinos tornava indispensável recorrer ao direito romano como
fonte jurídica mais aperfeiçoada, a Grã-Bretanha já tinha o seu próprio
direito comum.
René David29, ao realizar o retrospecto histórico do Direito inglês destaca que:
Podem reconhecer-se quatro períodos principais na história do direito
inglês. O primeiro é o período anterior à conquista normanda de 1066. O
segundo, que vai de 1066 ao advento da dinastia dos Tudors (1485), é o da
formação da Common Law, no qual um sistema de direito novo, comum a
todo o reino, se desenvolve e substitui os costumes locais. O terceiro
período, que vai de 1485 a 1832, é marcado pelo desenvolvimento, ao lado
da Common Law, de um sistema complementar e às vezes rival, que se
manifesta nas “regras de equidade”. O quarto período, que começa em
1832 e continua até os nossos dias, é o período moderno, no qual a
Common Law deve fazer face a um desenvolvimento sem precedentes da
lei e adaptar-se a uma sociedade dirigida cada vez mais pela administração.
Deflui do trecho supracitado, portanto, que o período que medeia os anos de
1066 a 1485 pode ser apontado como sendo a época de formação do sistema do
common law na Inglaterra.
Nessa senda, diga-se que a conquista normanda ocorrida em meados do
século XI, quando Guilherme I (1066-1087), Duque da Normandia, considera-se
herdeiro dos reis saxões e, por isso, recepciona os seus costumes e decisões, foi
fundamental para a consolidação do sistema do common law. Com efeito, tal fato
fortaleceu o poder da Inglaterra e o sistema unitário que o formaria, suprimindo o
sistema costumeiro-tribal e inserindo para dentro do território inglês os princípios
27
Ibid., p. 150-151.
Ibid., p. 151.
29
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 283-284.
28
31
norteadores do feudalismo, concomitantemente à experiência administrativa
existente no Ducado da Normandia.30
Num primeiro momento de formação do common law, imediatamente
posterior à conquista normanda, os juízes ingleses aplicavam regras de origem
germânica, de molde a dizer-se que os princípios do Direito germânico serviram de
alicerce ao sistema jurídico anglo-estadunidense. De acordo com René David31,
apenas a legislação de Henrique II (1154-1189) é que proporcionou a ampliação do
espectro de julgamento, incluindo no Direito da época normas consuetudinárias,
anglo-saxônicas e normandas.
É imprescindível, outrossim, que se mencione o fato de que nesse período a
interpretatio iuris não se submetia a qualquer critério mais rígido, sendo o rei o
natural intérprete das normas e competindo aos juízes apenas a tarefa de moldá-las
ao caso sub judice, inexistindo, pois, qualquer adstrição ou submissão a textos
legais escritos.32
Também nessa época, “as decisões do rei e dos juízes, que continham o
comando a seguir em um caso determinado, iam sendo catalogadas, ao longo dos
anos, nos statute books” e, “assim, tais coletâneas encerravam os costumes da
corte”.33
Tais decisões judiciais desse período eram obra exclusiva dos Tribunais
Reais de Justiça, ditos Tribunais de Westminster, cortes constituídas pelo rei e a ele
subordinadas diretamente.34
O processo desenvolvido nos Tribunais de Westminster, datado do século
XIII, possuía múltiplas facetas externadas sob diversas formas de condução, de
modo que a cada writ correspondia, de fato, determinado procedimento, o qual
impunha uma sequência de atos a serem realizados, a maneira de prosseguimento
de certos incidentes, as possibilidades de representação das partes, as condições
de admissão de provas, as modalidades da sua administração e os meios de
executar uma decisão.35
30
Ibid., p. 315.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 152.
32
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 152.
33
Ibid., p. 152.
34
SOARES, op. cit., p. 32.
35
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 289.
31
32
Fornecendo um belo panorama do sistema existente à época, veja-se a lição
de Guido Fernando da Silva Soares36:
A idéia do writ era de que se constituía numa ordem dada pelo Rei às
autoridades, a fim de respeitarem, em relação ao beneficiado que obtinha o
remédio, sua situação jurídica, definida pelo julgamento a seu favor. Se não
houvesse um writ determinado para a situação, não haveria possibilidade de
dizer-se o direito (e, sendo assim, criava-se uma intolerável denegação da
justiça e a impossibilidade de saber qual o direito aplicável). Concedido o
writ, posteriormente, um jury composto de leigos, em certos casos, julgaria
as pretensões da pessoa beneficiada pelo writ.
Deflui do trecho supramencionado que as Cortes Reais possuíam jurisdição
de Direito comum, com competência universal. Entretanto, para que se tivesse
franqueado o acesso a essa justiça, por primeiro, era imprescindível que ela mesma
admitisse sua competência – sobretudo pela aceitação prévia da existência de um
writ – para posterior submissão de um conflito fático e obtenção do provimento
jurisdicional de mérito.
Esses entraves processuais, já à época representados pela expressão
remedies precede rights37 (expressão inglesa que significa: em primeiro lugar o
processo), cercearam o desenvolvimento do common law em sua característica
essencial: a capacidade de oferecer, rapidamente, mecanismos aptos a solucionar
os conflitos observados na sociedade em que estavam inseridos.
Então, ao longo do tempo, o rigorosíssimo formalismo procedimental houve
de ser temperado, à vista das crescentes injustiças e tensões sociais que estava
ocasionando. A primeira dessas moderações foi a concessão de determinados writs
por analogia, sem que houvesse qualquer previsão a seu respeito. Cite-se o
exemplo trazido pelo professor Guido Fernando Silva Soares:38
[...] inexistia um writ determinado para os contratos; contudo, através de um
writ of detinue, originariamente destinado a beneficiar um possuidor de boafé, o mesmo passaria a servir para proteger quem detivesse, sem justo
título, uma propriedade; portanto, quem detivesse a coisa sem ter um
contrato que legitimasse a posse, ou ainda o writ of trespass, que
originalmente servia para proteger um dano causado por um ato ilícito, seria
aplicado, analogicamente, para proteger um contratante que tivesse sido
prejudicado pela inadimplência.
36
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 32-33.
37
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 290.
38
SOARES, op. cit., p. 33.
33
Ocorre que mesmo a possibilidade de utilização analógica dos writs não foi
capaz de trazer às Cortes Reais a necessária liberdade de atuação para diminuição
das tensões sociais. Paralelamente, durante o século XIII, os juristas do sistema
romano-germânico podiam avocar jurisdição com competência geral, podendo
decidir sobre as mais diversas situações fáticas que se lhes apresentassem, sem
que o processo pudesse caracterizar cerceamento em sua atuação.39
Desse modo, com vista à superação do formalismo existente no Direito
comum aplicado pelas cortes de Westminster, iniciou-se o terceiro período de
constituição do common law: o surgimento da Equity Law, enquanto Direito aplicado
pelos Tribunais do Chanceler do Rei como forma de temperar o rigor do sistema
anterior e de atender a questões de equidade.40
Nesse sentido, o Direito comum passou a ser tido por ultrapassado,
descontentando sobremaneira os atores sociais da época. Estes, insurgindo-se
contra as decisões prolatadas pelas Cortes de Westminster, recorriam à coroa real
no intento de que ela aparasse os excessos e injustiças perpetrados pela excessiva
preponderância procedimental.41
Por isso a lição de Guido Fernando Silva Soares42 de que:
É bem evidente que tal sistema, formalístico e rígido, logo deveria sofrer
radicais modificações, premido pelos fatos das patentes injustiças; os
recursos ao Rei, fora das regras processuais da Common Law, aos poucos,
se tornam possíveis, sendo que o Rei os decidia, em matéria de
consciência, e não mais por motivos estritamente jurídicos.
A reiterada prática de submeter as questões à Coroa acabou, ao longo dos
anos, por sofrer uma mutação, passando de uma competência subsidiária – e
portanto, revisora das decisões do Direito comum – para uma verdadeira
competência originária, com a concessão de medidas de conhecimento originário
das causas, não mais pelo Rei, mas pelo seu Confessor, o Chanceler.43
A seu turno, as próprias características das regras emanadas da Equity –
brandas, concisas, precisas e não formalistas – aliadas à diuturnidade com que tais
39
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 06.
40
Ibid., p. 05.
41
SÈROUSSI, Roland. Introdução ao Direito inglês e norte-americano. São Paulo: Landy, 2001. p.
21.
42
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 34.
43
Ibid., p. 34.
34
procedimentos excepcionais eram requestados em virtude da ausência de writs e
consequente impossibilidade de atuação do common law, redundaram na existência
de uma verdadeira justiça paralela às Cortes de Westminster, com preceitos,
competência e precedentes próprios.44
Ao corpo de normas formulado pelos Tribunais do Chanceler – as Courts of
Chancery – chamou-se Equity, normas oriundas do Direito Canônico e que, por
serem mais evoluídas e racionais que o casuísmo dos procedimentos do período
anterior, acabaram por desenvolver verdadeira rivalidade com as Cortes de
Westminster e puseram em risco a própria existência do common law.45
Assim, o Direito existente na Inglaterra no século XVI quase cedeu passo ao
sistema romano-germânico, seguindo o restante do continente europeu, justamente
em virtude da prevalência da jurisdição de equidade das Courts of Chancery e da
decadência do common law aplicado pelas Courts of Westminster.
Contudo, diversos fatores se consubstanciaram em verdadeiros impeditivos
da consolidação da Equity e quiçá do sistema romano-germânico, em território
inglês:
A resistência dos juristas precisou ser levada em consideração pelos
soberanos, porque os tribunais de Common Law encontraram, para a
defesa de sua posição e da sua obra, a aliança do parlamento, com eles
coligado contra o absolutismo real. A má organização da jurisdição do
Chanceler, a sua morosidade e a sua venalidade forneceram armas aos
seus inimigos. A revolução que teria conduzido a Inglaterra para a família
dos Direitos Romano-Germânicos não se realizou; foi concluído um
compromisso para que subsistissem, lado a lado, em equilíbrio de forças, os
46
tribunais de Common Law e a jurisdição do Chanceler.
A cruzada do absolutismo real no intento de abolir o common law da
Inglaterra era uma constante ameaça à existência do próprio parlamento, o que
motivou referido órgão envidar esforços junto aos juristas ingleses para a
manutenção da aplicação do Direito comum inglês nos tribunais, ainda que tal
postura implicasse em uma limitação de seu poder, já que, em última análise,
salvaguardaria sua própria existência.
E esse embate estatal contra o common law surge do fato de que o Direito
oriundo das relações sociais e externado de forma jurisprudencial era, em muito,
44
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 34.
45
Ibid., p. 34.
46
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 297.
35
limitador da atuação do Estado – à época constituído por monarquias efetivamente
absolutistas – pelo que as tendências autoritárias tiveram na Inglaterra uma luta
aberta no desiderato de abolir o Direito comum inglês, conforme anotado por
Norberto Bobbio:47
Os soberanos absolutistas, como Jaime I e Carlos I, tentaram fazer valer a
preeminência absoluta do direito estatutário, negando aos juízes o poder de
resolver as controvérsias com base no direito comum; encontraram, porém,
uma firme oposição, da qual o porta-voz e expoente máximo foi Sir Edward
Coke (autor das instituições do direito inglês, trabalho considerado como a
“summa” da common law).
Todavia, o common law sagrou-se vitorioso na luta contra o absolutismo real,
salientando o filósofo supracitado que:
Na Inglaterra permaneceu sempre nominalmente em vigor o princípio
segundo o qual o direito estatutário vale enquanto não contrariar o direito
comum. O poder do Rei e do Parlamento devia ser limitado pela common
law. Ora, o Rei, ao exercer a jurisdictio (através de seus juízes) era obrigado
a aplicar a common law; esta última portanto limitava o poder do soberano.
Isto explica por que a monarquia inglesa nunca detinha um poder ilimitado
(diferentemente das monarquias absolutas continentais), porque na
Inglaterra fora desenvolvida a separação dos poderes (transferida depois
para a Europa graças à teorização executada por Montesquieu) e porque tal
país é a pátria do liberalismo (entendido como a doutrina dos limites
48
jurídicos do poder do Estado).
Dessa sorte, juntamente com as regras do common law, oriundas das Cortes
de Westminster, que acabaram por prevalecer, o Direito inglês foi na verdade
acrescido com as soluções da Equity, estabelecendo-se uma relação de
complementaridade e aperfeiçoamento das regras do Direito comum.49
Mesmo porque, com o passar dos séculos, as soluções da Equity
contaminaram-se pelo mesmo formalismo do common law, ou seja, tornaram-se
extremamente estritas e jurídicas, distanciando-se da relação de intimidade que
outrora possuiu com a equidade, facilitando a fusão entre as regras supracitadas.50
A referida fusão foi levada a cabo pelos Judicature Acts ingleses de 1873 e
1875, que dissolveram as Courts of Chancery, estendendo a competência para
47
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006.
p. 34.
48
Ibid., p. 33.
49
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 298.
50
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 35.
36
aplicação tanto do common law quanto da Equity Law a tribunais comuns da
Inglaterra.51
A partir de então, ambos grupos de Direito que outrora rivalizavam em
território inglês foram fundidos, para que se amalgamassem na busca da realização
da Justiça. A partir de então, as regras de common law e as de Equity Law podiam
ser veiculadas numa mesma ação, perante uma jurisdição una: a Supreme Court of
Judicature.52
Diga-se, ademais, que a forma unitária de Estado, aliada à concepção de
organização judiciária centralizada, viabilizou a todos os homens livres o acesso à
Justiça, disseminando-se à sociedade o conhecimento do Direito então vigente, de
forma que a expansão colonizadora inglesa, no final do século XIV, não se
conformou em óbice à inserção do novo sistema, que à época já possuía diversos
tribunais reais orientados pelas regras do common law, cuja prática já estava
naturalmente espalhada pelas regiões conquistadas.53
Sintetizando e concluindo com primazia a evolução histórica acima
explanada, finalmente cita-se a lição de Norberto Bobbio,54 para quem:
A common law não é o direito comum de origem romana, mas um direito
consuetudinário tipicamente anglo-saxônico que surge diretamente das
relações sociais e é acolhido pelos juízes nomeados pelo Rei; numa
segunda fase, ele se torna um direito de elaboração judiciária, visto que é
constituído por regras adotadas pelos juízes para resolver controvérsias
individuais (regras que se tornam obrigatórias para os sucessivos, segundo
o sistema do precedente obrigatório). O direito estatutário se contrapõe à
common law, sendo ele posto pelo poder soberano (isto é, o Rei, e, num
segundo momento, pelo Rei juntamente com o Parlamento).
3.2 Diferenciação de Outras Expressões Aparentemente Sinônimas
Com esse referencial quanto ao estudo histórico do sistema do common law,
tem-se agora como importante tarefa a delimitação do âmbito de utilização da
sobredita expressão de forma técnica, dissociando-a de outras, vale dizer, afastando
uma suposta relação de sinonímia existente com outros vocábulos.
51
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 35.
52
SÈROUSSI, Roland. Introdução ao Direito inglês e norte-americano. São Paulo: Landy, 2001.
p. 23.
53
Ibid., p. 152-153.
54
Ibid., p. 33.
37
Essa possibilidade de confusão terminológica foi pinçada com perspicácia por
Guido Fernando Silva Soares55, para quem se impõe a distinção da expressão
common law de uma de suas supostas sinonímias, a expressão Direito AngloSaxão, uma vez que “o Direito Anglo-Saxão era o Direito das tribos e reinos da
Inglaterra antes da conquista normanda, e que conviveria com o common law nos
seus primórdios”, isto é, “o sistema do common law alberga o Direito Anglo-Saxão,
mas com ele não se confunde”.56
Outra distinção conceitual merece elucidação: o common law não é Direito
Inglês nem da Grã-Bretanha. No primeiro caso porque se aplica o common law em
diversos outros países independentes afora a Inglaterra, tais como a Índia, o
Paquistão, os Estados Unidos da América (EUA), dentre outros.57 No segundo caso
porque, a despeito da união real havida entre a Inglaterra e a Escócia, em 1707,
para a formação da Grã-Bretanha, e, posteriormente, com a inclusão da ilha da
Irlanda (que, a partir de 1921, manteve apenas a Irlanda do Norte integrada, em
virtude da separação da República da Irlanda), gerando o complexo do Reino Unido
da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, o fato é que o ordenamento jurídico escocês
pertence à família romano-germânica, diversamente dos demais componentes do
Reino Unido; logo, a expressão common law não pode ser associada à GrãBretanha, dado que um de seus integrantes – a Escócia – pertence à família de
Direitos do civil law.58
Outra sinonímia a ser dissipada é a estabelecida entre common law e Direito
costumeiro. Ora, o costume é a prática reiterada, diuturna, perene e que se incute na
sociedade, passando, pois, a ser preceito obrigatório. Já no common law um único
julgado pode ser considerado como vinculante, haja vista que declara a existência
de uma norma jurídica para os fatos postos sub judice.59
55
SOARES, Guido Fernando da Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000. p. 25.
56
SOARES, Guido Fernando da Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000. p. 51.
57
SOARES, op. cit., p. 51.
58
Ibid., p. 51.
59
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 52.
38
Entretanto, é lógico que, sem embargo da conclusão de que o common law
não se confunde com o Direito inglês, britânico, anglo-saxônico ou consuetudinário,
é certo que estes contribuíram decisivamente para a conformação daquele.60
Dito isso, num passo subsequente, como outros aspectos relevantes, cumpre
salientar que, desde as obras dos primeiros comentadores do common law,
verificou-se a tendência desse sistema em considerar a necessidade de manutenção
de decisões com o fito de salvaguardar o ordenamento de veredictos contraditórios,
vale dizer, a importância de ater-se, no julgamento de casos similares, àqueles que
já tinham sido antes decididos.61 E, com essa orientação, José Rogério Cruz e
Tucci62 assevera que:
Toda essa ideologia que marcou o início de formação da common law
favorecia a que, cada vez mais, os operadores do direito, juízes e
advogados, invocassem os precedentes judiciais. Afirma-se precisamente
por essa razão, que, desde a sua fase embrionária, a common law mostrou
natural vocação para ser um sistema de case law. Não havia regra jurídica
que impusesse efeito vinculante ao precedente. Contudo, com frequência,
os juízes ressaltavam a relevância dos julgados, e, sobretudo de uma série
de decisões conformes, como sendo os melhores intérpretes da lei, e a
exigência de que tais decisões deviam ser seguidas para conferir certeza e
continuidade ao direito.
Assim, podemos dizer que a natureza vinculante dos precedentes judiciais,
alçando a jurisprudência como principal fonte produtora do Direito, é a grande marca
do common law enquanto sistema de Direito.
Lembre-se, todavia, para não se ter a falsa impressão do engessamento do
sistema do common law por conta do respeito e vinculação dos juízes às decisões
anteriores, da possibilidade da aplicação do instituto que se denomina overruling,
significando a formal superação de um precedente por conta da mudança do
entendimento que lhe deu lastro63, empreendendo-se uma nova orientação judicial.
Daí a afirmação de que o common law é largamente caracterizado pela
habilidade com que os juízes desempenham sua tarefa de decidir.64 E, em vista da
importância que se dá aos casos julgados pelas Cortes de Justiça, afirma-se que, no
60
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2006.
p. 33.
61
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 153.
62
Ibid., p. 154.
63
SILTALA, Raimo. A theory of precedent – from analytical positivism to a post-analytical philosophy
of law. Oxford: Hart Publishing, 2000. p. 73.
64
HUTCHINSON, Allan C. Evolution and the common law. New York: Cambridge University Press,
2005. p. 4.
39
contexto do common law, a noção de validade do ordenamento jurídico positivado
não tem a mesma relevância que no civil law.65
Finalizando estas notas introdutórias a respeito do sistema jurídico em
análise, segundo os dizeres do Magistrado da Suprema Corte dos Estados Unidos e
considerado o maior jurista de todos os tempos daquele país, reconhecido como
precursor da celeridade e pragmatismo no âmbito judicial, o Justice Oliver Wendell
Holmes Jr., o common law é considerado o maior trabalho da jurisprudência
americana66, deitando suas origens, como visto, nos primórdios do segundo milênio
d. C., na região que hoje se encontra a Inglaterra.
65
EDLIN, Douglas E. Common law theory. New York: Cambridge University Press, 2007. p. 185.
HOLMES, Oliver Wendell. The common law. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University
Press, 2009. p. 7.
66
40
4 O BRASIL COMO INTEGRANTE DO CIVIL LAW
4.1 A Força do Direito Positivado
Como referido, o Brasil é considerado integrante do grupo dos países que
adota o sistema do civil law ou sistema romano-germânico. Entretanto, a assertiva
desprovida de qualquer exceção ou temperamento não encontra guarida na
realidade jurídica pátria, conforme explicitaremos no transcorrer deste capítulo.
Consoante abordagem anterior, o ápice da evolução histórica levada a cabo
pela escola de Direito natural acabou por conformar o sistema romano-germânico à
sua atual estrutura teórica, pretensamente adotada pelo Brasil.
Segundo Guido Fernando Silva Soares67:
O pensador que melhor caracteriza o sistema romano-germânico é Hans
Kelsen, com sua Teoria pura do direito: o direito é uma construção
escalonada (Stufenbau), tão racional e geométrica que, por isso mesmo,
tem a forma de uma pirâmide, no ápice da qual se encontra uma norma
fundamental (Grundnorm), a partir da qual as normas menos gerais retiram
sua eficácia e vão perdendo sua generalidade, até aquelas normas
colocadas na base (os contratos e as sentenças) em que o princípio geral
guarda sua eficácia, após percorrer outros campos de particularismos
crescentes (a Constituição, a lei ordinária, o artigo...).
Nesse cenário, a função dos juristas se avulta precipuamente em revelar o
alcance prático do arcabouço legislativo integrante do sistema, tarefa que se dá
através de processos de interpretação, normalmente atendo-se à vontade legiferante
ou ao espírito da lei.
Ante a força da legislação positivada nesse sistema, Montesquieu chegou a
afirmar, no seu clássico Do espírito das leis, que “(...) se os tribunais não devem ser
fixos, os julgamentos devem sê-lo a um tal ponto que nunca sejam mais que um
texto fixo da lei”, pois “se representassem uma opinião particular do juiz viver-se-ia
na sociedade sem saber precisamente quais os compromissos que nela são
assumidos”.68
67
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 29.
68
MONTESQUIEU. Do espírito das leis. Tradução de Jean Melville. São Paulo: Martin Claret, 2009.
p. 167-168.
41
Segundo essa ordem de ideias, as obras doutrinárias e a jurisprudência, não
obstante o prestígio dos teóricos e juízes que as formulam, não têm o condão de se
consubstanciar em regra para o deslinde de uma situação fática.69
Em suma, no sistema da família romano-germânica – sinônimo da expressão
civil law – oriundo, como se viu, da revisão do Direito Romano, o que se tem é a
prevalência da lei como fonte direta e única do Direito.
Repita-se, a doutrina e a jurisprudência, além dos costumes, como fontes
indiretas, são colocadas em posições secundárias, atuando num momento posterior
ao da norma positivada, seja integrando-a, interpretando-a ou aplicando-a, frisandose, ademais, o caráter persuasivo de tais fontes secundárias nesse sistema quando
do seu nascedouro.
Entretanto, apesar desses aspectos, constata-se que o sistema do civil law
tem se aproximado do common law, implicando em verdadeira mudança ontológica
quanto às fontes supracitadas, aspecto que será objeto de um dos itens seguintes
deste trabalho, refletindo na criação e na inserção de diversos institutos jurídicos no
ordenamento jurídico brasileiro.
Dessa forma, nos horizontes do Direito pátrio não remanescem dúvidas do
importantíssimo papel desenvolvido pela jurisprudência e pela atividade judicial
como aperfeiçoadoras da prática forense, sobretudo ante a massificação das
relações intersubjetivas, fomentada e viabilizada pela globalização, com um
desmedido aumento na prestação jurisdicional, justamente em virtude da maior
incidência de conflitos na teia social. Isso abarrotou nossas cortes de justiça de
recursos, gerando a necessidade de busca de institutos jurídicos que evitassem a
prolação de decisões contraditórias e enfraquecedoras do ordenamento jurídico. 70
O referido cenário é agravado ao se relembrar a organização judiciária de
nosso país, composta por grande número de tribunais estaduais e regionais federais
espalhados pelo território nacional, exigindo maior empenho na elaboração de
mecanismos capazes de promover a uniformidade do Direito.
69
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 78.
70
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 257-258.
42
Na lição de José Rogério Cruz e Tucci71:
Na verdade, a exigência de interpretação e aplicação, tanto quanto possível,
homogênea do ius positum tem efetivamente ocupado a atenção do
legislador pátrio, inclusive, por certo, como meio de minimizar o afluxo
exagerado de demandas.
O principal meio encontrado para resolver as modernas celeumas do
ordenamento jurídico pátrio foi a inserção de institutos jurídicos próximos aos
existentes no sistema do common law, de modo geral tidos por mecanismos
processuais de uniformização da jurisprudência e que se encontram esparsamente
incrustados no sistema jurídico adotado pelo Brasil.
Dentre esses institutos podemos citar as súmulas vinculantes; as súmulas
impeditivas de recurso; o controle concentrado de constitucionalidade; a eficácia
vinculante da decisão acerca da repercussão geral em sede de recurso
extraordinário; o efeito vinculante das decisões do plenário ou órgão especial dos
tribunais; o julgamento monocrático com base em súmula, jurisprudência dominante
ou precedente de tribunal superior; o julgamento liminar de ação idêntica pelo juiz de
1º grau de jurisdição72; dentre outros que serão abordados com o devido
aprofundamento em capítulo apartado no presente estudo.
Ora, um sistema jurídico dotado de tão grande número de mecanismos
jurisprudenciais que gozam de efeito vinculante não pode ser tido como um adotante
integral e exclusivo da família de Direitos romano-germânica, sendo necessário que
se ressalve, ao menos, um acentuado temperamento em virtude da adoção de
diversos institutos inspirados no sistema do common law, talvez rumando para a
conformação de um sistema misto.
No que concerne às fontes do Direito do sistema romano-germânico, a lei
está situada em posição de prevalência em cotejo com as demais fontes, dentre
elas, segundo Hans Kelsen, a Norma Fundamental, a qual está no ápice,
constituindo-se em fundamento de validade de todo o ordenamento jurídico
remanescente, gerando um controle de harmonização da totalidade do sistema em
função da sobredita norma (para nós, o controle de constitucionalidade), de sorte
que as relações jurídicas públicas ou privadas têm suas bases norteadoras
71
Ibid., p. 258.
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
p. 457.
72
43
totalmente positivadas, seja na forma de códigos ou não, da forma como abaixo
resumidamente se expõe.
4.2 A O Normativismo Jurídico de Kelsen
Para Kelsen, o Direito deve ser entendido unicamente como um conjunto
normativo positivado, estando livre de qualquer concepção social ou valorativa, sem
que sua interpretação tenha a influência da psicologia, da sociologia, da política e da
moral.
A ideia fundamental da sua obra Teoria Pura do Direito é libertar o Direito de
todos os elementos que não lhe são próprios, baseando-se, então, no mais singelo
positivismo.
Neste sentido, discorre o jurista em comento:
Quando a si própria se designa como “Pura” teoria do Direito, isto significa
que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao direito e
excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo
quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Isso quer
dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que
73
lhe são estranhos.
Kelsen consegue ver o Direito como sendo apenas um conjunto de normas
representadas por prescrições que revelam a categoria do “dever ser” e não da
ordem do “ser”, conferindo a determinados fatos o caráter de jurídico ou antijurídico.
Neste contexto, observa que a norma é um produto da vontade, elaborada
com a finalidade de regular a conduta humana e que funciona como um esquema de
interpretação, afirmando que “o juízo em que se enuncia que um ato de conduta
humana constitui um ato jurídico ou antijurídico é o resultado de uma
interpretação”.74
O autor segue ainda dizendo que “a norma que empresta ao ato o significado
de um ato jurídico ou antijurídico recebe a sua significação jurídica de outra
norma”.75
73
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 6 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, pág 1.
74
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 6 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, pág 3.
75
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução João Baptista Machado. 6 ed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, pág 4.
44
Desta forma, a norma tem validade não pelo sentido de ser justa, mas sim por
estar ligada a outra regra considerada superior, denominada de Norma
Fundamental, com a qual Kelsen sistematiza toda a ordem jurídica.
A questão da validade é um dos aspectos mais importantes sob a ótica da
teoria Kelseniana. Com efeito, a validade da norma decorre sempre da sua ligação a
outra norma, sendo a Norma Fundamental aquela considerada hierarquicamente
superior.
Kelsen também avalia se as normas são válidas segundo tenham sido
produzidas por órgãos legislativos competentes, verificando se estes órgãos tiveram
sua competência fundada em atos normativos superiores.
O Direito, então, por ser entendido como uma estrutura de normas válidas,
pode estabelecer sanções aplicáveis a agentes de condutas ilícitas. Assim, a norma
jurídica é regulada por um princípio retributivo, ou seja, ela liga a norma prescrita ou
proibida a uma consequência sancionadora.
A ordem jurídica, nesse quadro, tem como principal função regular a conduta
humana e estabelecer sanções, e é justamente no estabelecimento destas sanções
que o Direito mostra suas forças.
Portanto, o Direito é um conjunto de normas que regulam a conduta humana,
e estas normas, por sua vez, quando legitimamente válidas, podem estabelecer
sanções, caracterizando-se como uma ordem coercitiva despida de sentido
valorativo, seja social, moral ou político.
Segundo Maria Helena Diniz, comentando a doutrina em exame no cenário
dos países integrantes do sistema de civil law de origem romano-germânica, “o
racionalismo dogmático, ou melhor, a teoria Kelseniana é a expressão máxima do
estrito positivismo jurídico”76, e por isso mereceu nossa rápida atenção.
76
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 20 ed. São Paulo: Saraiva,
2009, p. 116.
45
5 OS EUA COMO INTEGRANTES DO COMMON LAW
5.1 A Doutrina do Stare Decisis
Como cediço, os Estados Unidos da América são considerados integrantes do
sistema do common law. Nesse particular, uma questão importante a ser analisada é
a origem da força vinculante dos precedentes judiciais, resultando na aplicação da
denominada doutrina do stare decisis.
Como visto anteriormente, desde sua gênese, o common law possui aptidão
para ser um sistema de case law – que tem como regra fundamental a ser seguida o
conjunto de casos já decididos, os precedentes. Entretanto, não havia qualquer
preceito que impusesse efeito vinculativo aos julgados, existindo tão-somente uma
preocupação com a coesão do sistema.77
Veja-se que a sobredita tendência à adoção das próprias decisões como
regramento não é outra coisa senão a própria essência do sistema do common law,
sendo inerente à sua própria conceituação. Nos dizeres de André Gustavo Corrêa
de Andrade78:
A expressão common law, dentre outras acepções, é designativa de um
sistema jurídico em que uma das fontes primárias do Direito é a decisão ou
o precedente judicial (precedent). O conjunto dessas decisões (case-law),
vinculadoras do julgamento de casos futuros, constitui o "Direito comum",
aplicável preferencialmente em relação às normas estabelecidas
abstratamente em leis ou outros diplomas emanados de órgãos com
competência legislativa. A característica desse sistema, portanto, é a
criação do Direito pelo juiz (judge-made law), em contraposição ao Direito
estabelecido por órgão não integrante do Poder Judiciário (statute law).
E a imposição da decisão do caso julgado a situações futuras de forma
obrigatória é a chamada doctrine of stare decisis, também chamada de doctrine of
precedents, expressão última que, traduzida para o português, seria regra do
precedente.79
77
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 154.
78
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 174.
79
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 40.
46
A expressão stare decisis é o remanescente da expressão latina stare decisis
et non quieta movere, que significa: que as coisas permaneçam firmes e
imodificadas, em razão das decisões.80
Superada a origem histórica da nomenclatura, temos que, ontologicamente, a
doctrine of stare decisis é a regra jurídica segundo a qual uma decisão tomada por
uma corte de justiça mais elevada deve ser seguida pelas cortes inferiores da
mesma jurisdição quando as circunstâncias de fato no caso subsequente sob
análise forem as mesmas do caso precedente, que atua como paradigma. Para
André Gustavo Corrêa de Andrade, “[...] busca-se, pois, aplicar as razões de decidir
de casos passados”.81
Também nesse sentido é a conceituação de Guido Fernando Silva Soares82:
Na verdade, o precedente não é uma regra abstrata, mas uma regra
intimamente ligada aos fatos que lhe deram origem, razão pela qual, o
conhecimento das razões da decisão é imprescindível; não se pode aplicar
um precedente fixado em matéria de motivos para divórcio, por exemplo, à
resolução de uma questão que verse sobre contratos ou obrigações
alimentícias!
A seu turno, José Rogério Cruz e Tucci assevera que “[...] o precedente então
nasce como uma regra de um caso e, em seguida, terá ou não o destino de tornarse a regra de uma série de casos análogos”.83
A justificativa para predileção à adoção da regra do precedente é de que há
maior segurança para o desenvolvimento de relações jurídicas em virtude de saberse, de antemão, o posicionamento judicial a ser exarado sobre determinado conjunto
de fatos para o caso de conflito, já que fatos idênticos ou análogos foram
submetidos a julgamento anterior. Assim, um conjunto de precedentes obrigatórios
confere consistência ao sistema jurídico, seja pela antecipação na direção dos
pronunciamentos judiciais, seja pelo sentimento de justiça, afastando, em muito, a
possibilidade de que casos iguais ou análogos sejam resolvidos de formas
diferentes.84
80
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 35.
81
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 171-172.
82
SOARES, op. cit., p. 41.
83
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 11-12.
84
ANDRADE, op. cit., p. 172.
47
Anote-se que referidos precedentes podem ser originados de uma única ou
várias decisões, desde que emanadas por um órgão coletivo de segundo grau,
sendo obrigatório para o mesmo tribunal e juízes que lhes são subordinados,
salientando-se que as decisões de órgãos de primeiro grau não se constituem em
precedentes.85
No que tange à autoridade dos precedentes, ou seja, a força de impor-se a
casos futuros, André Gustavo Corrêa de Andrade86, numa acepção mais restrita,
menciona como obrigatório apenas o binding precedent − prévia decisão proferida
por um tribunal em relação a órgão judicante de primeiro grau ou prolatada por
tribunal superior em relação a um colegiado inferior, pontuando que:
Entre órgãos judiciários de igual hierarquia, os precedentes não têm força
obrigatória, mas meramente persuasiva (persuasive precedent), o mesmo
ocorrendo com decisões de uma corte estadual em relação a órgãos
judiciários de outro estado.
Um outro fator de importância vital à força que se confere aos precedentes
liga-se à maneira como são encarados os litígios perante a Justiça americana, que
procura, mais do que julgar as lides, determinar, a partir delas, enunciados
normativos para as situações semelhantes que ocorrerão no futuro, como nos dá
conta Odete Novais Carneiro Queiroz, pontuando que:
Comparando-se decisões jurisprudenciais americanas e brasileiras,
haveremos de perceber que o direito americano tem procedido de duas
maneiras; na primeira soluciona o caso sub judice, na segunda oferece
nortes, fixando regras para deslindes de casos que ainda virão. Já o
Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição, criado de modo
similar à Suprema Corte americana, tem deixado a desejar, pois se prende
unicamente ao julgamento que está a fazer, não se preocupando com uma
interpretação normativa que pudesse oferecer parâmetros para demandas
87
futuras.
85
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 40.
86
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 172.
87
QUEIROZ, Odete Novais Carneiro. O devido processo legal. Revista dos Tribunais, São Paulo, n.
748, p. 50-51, fevereiro 1998.
48
Não obstante a recorrente necessidade de adequação do sistema à dinâmica
social, o abandono de um precedente na lição de José Rogério Cruz e Tucci88:
[...] sobretudo no ambiente de uma experiência jurídica dominada pelo case
law, exige do órgão judicial uma carga de argumentação que supõe não
apenas a explicação ordinária das razões de fato e de direito que
fundamentam a decisão, mas, ainda, justificação complementar. Essa
imposição natural é geralmente esclarecida pelo denominado princípio da
inércia, segundo o qual a orientação já adotada em várias oportunidades
deve ser mantida no futuro (por ser presumivelmente correta, pelo desejo de
coerência e pela força do hábito). Não pode, pois, ser desprezada sem uma
motivação satisfatória.
Em arremate, insta salientar que tais mudanças são mais frequentes na
jurisprudência estadunidense do que na inglesa, o que é explicado pela própria
complexidade da sociedade americana e seu sistema jurídico, já que, nesse ponto,
como informa André Gustavo Corrêa de Andrade:
Os Estados Unidos, diferentemente da Inglaterra, possuem uma
Constituição escrita, datada de 1787 e acrescida de diversas emendas.
Muitas de suas disposições sofreram importantes mudanças de
interpretação ao longo dos anos, para adaptá-las à evolução social. Além
disso, cada um dos cinquenta estados americanos goza de relativa
89
autonomia e possui sua própria Constituição.
5.2 A Presença da Lei Positivada nos EUA
Pois bem, a essa altura, já analisados ao menos superficialmente alguns dos
principais institutos jurídicos componentes do sistema do common law, é possível
que se averigue a suposta adesão dos Estados Unidos da América a esse sistema,
à luz da produção legislativa atual.
Por primeiro, cumpre salientar que, desde a época da colonização, o sistema
do common law vige em praticamente todo o território estadunidense. Entretanto,
com o transcorrer do século XVIII, o Direito nos Estados Unidos da América se
distanciou, por diversos fatores, da antiga tradição jurídica da Inglaterra. 90
Desses fatores, a organização federal – inexistente no Estado unitário da
Inglaterra – e, sobretudo, a existência de uma Constituição Federal rígida e escrita,
88
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 181.
89
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 174.
90
TUCCI, op. cit., p. 165.
49
fenômeno também desconhecido pelos ingleses, impuseram ao ordenamento
jurídico dos Estados Unidos sérios contrastes em cotejo com o Direito inglês.91
O Direito dos Estados Unidos é dominado pela transcendental importância da
Constituição Federal, promulgada em 1787, marcando a ruptura no seguimento da
experiência jurídica inglesa.92
Deveras, o maior traço distintivo entre o Direito nos Estados Unidos e na
Inglaterra – vale dizer, o que fundamenta a não adoção pelos estadunidenses do
sistema do common law em sua forma pura – está na maior importância que o
statue law (Direito escrito) tem no sistema adotado por eles, com a consequente
modificação da atuação do common law stricto sensu.93
E, da mesma forma que o Brasil, a adoção pelos EUA de um sistema misto,
situado entre o common law e o civil law, também é evidenciada pelas substanciais
modificações tendentes à codificação das normas jurídicas, denotando boa
aproximação de seu ordenamento jurídico ao sistema do civil law. Afora essas
principais evidências, Guido Fernando Silva Soares94 assevera que:
[...] importa observar que a adaptação e recepção da Common Law inglesa
nos EUA não se fizeram de maneira automática. As realidades de um país
do Novo Mundo, com as extensões continentais dos EUA, não poderiam
permitir a recepção de institutos concebidos para uma sociedade cercada
de água por todos os lados e profundamente enraizados numa divisão
feudal, como é o caso do direito agrário (land law); por tais razões, os
institutos como a primogenitura, que é a base do sistema hereditário na
Inglaterra, nunca tiveram qualquer aceitação nos EUA.
Assim, as fontes do Direito estadunidense são precipuamente a própria
Constituição, as leis federais (US Statues, v.g. Uniform Commercial Code; Federal
Rules of Civil Procedure) e as constituições e leis estaduais95. Sem prejuízo, é
inequívoca a relevância das normas oriundas do common law na atividade
jurisdicional nos Estados Unidos, de modo que suas cortes de justiça julgam, com
91
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 59.
92
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 165.
93
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 59.
94
Ibid., p. 59.
95
TUCCI, op. cit., p. 166.
50
extremada frequência, segundo os princípios da regra do stare decisis, citado pela
própria doutrina como decisional law96, com esteio nos precedentes.
Isso posto, é evidente que os Estados Unidos da América não integram o
sistema puro do common law, como o inglês (este baseado em um ordenamento
jurídico calcado unicamente nos precedentes), como supostamente acredita-se,
possuindo uma tendência legislativa atual que lhe aproxima em alguns momentos do
civil law, evidenciado, inclusive, pela adoção pura deste sistema no Estado da
Louisiana, pertencente à sua federação.97
96
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2000. p. 166.
97
Ibid., p. 60.
51
6 ALGUMAS TENDÊNCIAS DO SISTEMA PROCESSUAL CIVIL BRASILEIRO AO
COMMON LAW
6.1 Noções Gerais
Conforme visto, a lei, em sentido lato, é, em regra, no sistema de civil law, a
fonte primacial do Direito, atuando praticamente com exclusividade na criação das
normas jurídicas em se tratando de países que adotam o sistema de Direito romanogermânico.98
Ocorre que, diuturna e hodiernamente, a produção legislativa – lenta,
burocrática, omissa, imprecisa e equivocada – vê o crescente e pujante
fortalecimento da jurisprudência nesse sistema de Direito, seja pela imediatidade no
contato dos juízes com as lides, seja pela maior rapidez na adaptação das decisões
judiciais às necessidades sociais.
Nesse
sentido,
o
processo
hermenêutico
da
legislação
–
diga-se,
imprescindível ao processo de subsunção do fato à norma inerente ao sistema da
civil law – levado a cabo pelas cortes e seus juízes se intensificou na mesma
proporção do aumento da quantidade e complexidade das relações jurídicas
açambarcadas pela sociedade, atuando a criação jurisprudencial no preenchimento
de lacunas, disciplinando novas áreas carentes de atuação legislativa e até
solucionando lides para as quais inexiste qualquer positivação legal.
Não fosse por tudo isso, o próprio processo globalizador contribuiu de forma
determinante para que os sistemas jurídicos mundiais passassem a se comunicar
reciprocamente, identificando suas carências e, simultaneamente, buscando sanálas através da incorporação de institutos jurídicos outrora repudiados ou não
adotados.
Definindo esse processo globalizador, Jürgen Habermas99 aduz que:
A globalização pressiona o Estado nacional a se abrir internamente para a
pluralidade de modos de vida estrangeiros ou de novas culturas. Ao mesmo
tempo, ela limita de tal modo o âmbito de ação dos governos nacionais, que
o Estado soberano também tem de se abrir para fora diante de
administrações internacionais.
98
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 87.
99
HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-nacional. São Paulo: Littera Mundi, 2001. p. 107.
52
Assim, as sociedades reguladas pelo sistema de Direito romano-germânico,
sopesando a funcionalidade existente no instituto jurídico do precedent, tanto do
tradicional common law inglês como do moderno common law estadunidense,
passaram a utilizá-lo, primeiramente, como corretivo das mazelas verificadas em
seus sistemas, evoluindo posteriormente para sua utilização como verdadeira fonte
de Direito.
Veja-se, entretanto, que o caminho evolutivo percorrido pela jurisprudência,
tradicional fonte secundária de Direito e vista com reservas no sistema do civil law,
somente foi viabilizado pelo processo de globalização supradescrito, que a alçou ao
posto em que se encontra hoje, qual seja, fonte de primeira grandeza no sistema de
Direito romano-germânico.100
Reflete essa mudança no grau de importância da jurisprudência o fato de que
nenhum advogado praticante negará hoje a importância de um arquivo de
jurisprudência dominante nos vários assuntos de sua atuação, bem como que
qualquer estudante sabe da importância de seu conhecimento como um dos mais
poderosos instrumentos na aplicação do Direito. Para Guido Fernando Silva
Soares101:
Outra prova disso é a aceitação generalizada de compilações de
jurisprudência uniforme em certas matérias tópicas, conforme as
publicações que se tornam cada vez mais frequentes entre nós; quando se
fala em Informática no Direito ou em Informática Jurídica, a primeira
indagação é saber quando serão aquelas engenhocas inteligentes
aplicáveis para melhor conhecer-se a jurisprudência e dela extrair maior
aproximação com a realidade dos fatos correntes!
Logo, pode-se dizer que a evolução do Direito está em tudo atrelada à
evolução humana, consignando que o atual estágio da técnica já permite ampla
consulta juscibernética, sobretudo porque todos os tribunais estaduais e federais
pátrios gozam de acervo jurisprudencial informatizado e disponível para consulta online.
Insta salientar que tais compilações de jurisprudência estão evoluindo e se
transformando paulatinamente há um século nos países que adotam o civil law,
acompanhando a aproximação desse sistema ao do common law. Hoje tais
compilações são o resultado do importantíssimo papel delegado à jurisprudência, de
100
STRENGER, Irineu. Direito Internacional privado. São Paulo: LTr, 2003. p. 125.
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000. p. 30.
101
53
modo que diversos países adotantes do sistema romano-germanista possuem
compilações oficiais de jurisprudência, tais como Alemanha, França, Itália, Suíça e
Turquia.102
Através dessas análises, podem ser vislumbradas as transformações que o
sistema do civil law vem sofrendo, sobretudo pela maior produção e sistematização
jurisprudencial, sendo certo que as aberturas gerais supradescritas são de todo
existentes no ordenamento jurídico brasileiro. Entretanto, analisados os fatores
genéricos de abertura do sistema romano-germânico, é mister que se examinem as
brechas específicas e exclusivas encontradas no sistema adotado pelo Brasil ao
sistema de precedentes.
Consoante visto anteriormente, não remanescem quaisquer dúvidas quanto
ao fato de que o sistema jurídico brasileiro avizinhou-se do sistema do common law,
sobretudo daquele sistema misto vigente nos Estados Unidos da América. Tal fato é
evidenciado, especialmente, pela inserção de instrumentos jurídicos capazes de
conferir efeito vinculativo à jurisprudência pátria, como um primeiro passo à inserção
da doctrine of stare decisis entre nós.
Historicamente, a referida inserção – efetivamente realizada com a publicação
da Emenda Constitucional nº 45/2004, possibilitando ao Supremo Tribunal Federal a
edição de súmulas vinculantes – teve seu embrião nos primórdios da fase
republicana através da obra doutrinária de Ruy Barbosa.103
Na seara legislativa, a eficácia vinculante dos precedentes apareceu na
Constituição Federal de 1934, com a criação do instituto da suspensão, pelo Senado
Federal, de leis declaradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal,
buscando estender os efeitos de referida declaração – feita em sede de controle
difuso e, portanto, com eficácia inter partes, já que o controle concentrado de
constitucionalidade foi inserido em nosso ordenamento jurídico em momento
posterior.
Após isso, o Código de Processo Civil de 1939, em seu artigo 861, possuía
disposição expressa de que um Tribunal poderia se manifestar previamente acerca
da interpretação a ser dada a uma determinada norma jurídica.
102
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo: Direito Comparado. Tradução
de Hermínio A. de Carvalho. Lisboa: Meridiano, 1978. p. 124.
103
SOTELO, José Luiz Vasquez. A jurisprudência vinculante na common law. Temas atuais de
Direito Processual ibero-americano. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 374.
54
Posteriormente, quando da elaboração da Constituição Federal promulgada
em 1946, houve diversas propostas para a inserção de um sistema de
procedimentos vinculantes. A referida fase embrionária culminou com os estudos
elaborados por ocasião da apresentação do Anteprojeto de Novo Código de
Processo Civil, capitaneado por Alfredo Buzaid (1964), que visavam ao
restabelecimento de antigos assentos anteriormente vigentes e redundariam na
atribuição de efeito vinculativo às decisões judiciais (artigo 519 e item 29 da
exposição de motivos).
Em 1963, houve modificação no Regimento Interno do Supremo Tribunal
Federal, especificamente em seu artigo 102, que passou a conter a súmula da
Jurisprudência Predominante do Excelso Tribunal, instrumento ainda existente e que
visa dar eficácia persuasiva aos precedentes da Corte. A Emenda Constitucional nº
16/1965 criou a representação de inconstitucionalidade, trazendo efeito erga omnes
às decisões do STF em sede de controle concentrado de constitucionalidade.104
A evolução legislativa para dotar de efeito vinculante os precedentes judiciais
continuou, alcançando os diplomas infraconstitucionais. Nesse sentido, o regime
original do Código de Processo Civil de 1973 previa um mecanismo de
uniformização de jurisprudência e do feitio de súmulas em seu artigo 479, buscando
salvaguardar a igualdade nas decisões judiciais. Logo após, a Lei Complementar nº
35/1979 – Lei Orgânica da Magistratura – em seu artigo 90, § 2º, franqueou ao
relator, nos processos sujeitos à competência derivada do Tribunal Federal de
Recursos, que negasse seguimento a recurso contrário à súmula daquele Tribunal
ou do Supremo Tribunal Federal.105
Nessa esteira e no mesmo sentido adveio o artigo 38 da Lei nº 8.038/90, que
facultou ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça, por
intermédio de seus relatores, negar seguimento a recursos que contrariassem, em
matéria de Direito, o teor das súmulas elaboradas pelos respectivos Tribunais.
A partir de 1994 as reformas legislativas avançaram, sobretudo no Código de
Processo Civil, visando dar força vinculante não somente aos precedentes
sumulados, mas também aos demais. Assim, a nova redação do artigo 557 e de
seus parágrafos permitiu, no âmbito dos tribunais de segunda instância, ao relator,
104
ZAVASCKI, Teori Albino. Ação rescisória: a Súmula n. 343-STF e as funções institucionais do
Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em: 01 dez. 2011. p.
16.
105
Ibid., p. 17.
55
individualmente, negar seguimento/dar provimento a recursos. Os §§ 3º e 4º do
artigo 544 atribuíram competência monocrática aos relatores dos recursos de agravo
de instrumento interpostos em face de despachos denegatórios de Recurso Especial
e Extraordinário para, conhecendo o agravo, dar provimento ao REsp ou REx com
fulcro em jurisprudência ou súmulas do STJ e STF. Já o parágrafo único do artigo
481 inseriu o sistema de vinculação dos órgãos fracionários dos Tribunais aos seus
próprios precedentes e, caso inexistentes, aos do STF, nos incidentes de
inconstitucionalidade.106
Ainda no Código de Processo Civil, em 1998, o parágrafo único do artigo 120
autorizou o relator a decidir de plano um conflito de competência, se houver
jurisprudência dominante do tribunal sobre a questão suscitada. Em 2001, o § 3º do
artigo 475 dispensou a remessa necessária enquanto requisito à produção de efeitos
das sentenças prolatadas em desfavor da Fazenda Pública, caso tenham adotado
jurisprudência do plenário do STF ou súmula de Tribunal Superior competente. No
mesmo ano, o artigo 741, parágrafo único, passou a dotar as decisões do STF em
sede de controle difuso de constitucionalidade de eficácia executiva inibitória,
impedindo a execução de sentenças que lhes fossem contrárias, fato repetido em
2005 pelo artigo 475-L, § 1º.107
No que tange aos Juizados Especiais Federais, já em sua gênese, a Lei nº
10.259/2001, em seu artigo 14, inseriu-se o mecanismo de uniformização de
interpretação de lei federal, dando eficácia vinculante às decisões da Turma de
Uniformização (§ 2º) e da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (§ 4º). Isso
em virtude de se ter a força vinculante dos precedentes como inerente e essencial
ao atendimento dos princípios norteadores dos Juizados Especiais.
A inserção da regra do stare decisis prosseguiu a passos largos e a
promulgação da Emenda Constitucional nº 45/2004 sedimentou a tendência à
aproximação do nosso sistema ao common law. Insta salientar que a importância
dessa alteração, no que tange à consolidação do temperamento ao sistema civil law
adotado, não reside somente em seu conteúdo (a criação de um instituto jurídico
capaz de atribuir efeito vinculante às reiteradas decisões de um Tribunal - a súmula
vinculante), mas também na forma como se deu referida alteração, através da
106
ZAVASCKI, Teori Albino. Ação rescisória: a Súmula n. 343-STF e as funções institucionais do
Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br>. Acesso em: 01 dez. 2011. p.
17.
107
Ibid., p. 17-18.
56
inserção de texto normativo no conjunto de normas da mais alta hierarquia dentro do
sistema romano-germânico adotado pelo Brasil, nossa rígida Constituição Federal.
Analisando seu conteúdo, podemos inferir que o acréscimo do artigo 103-A à
Constituição Federal franqueou ao Supremo Tribunal Federal a edição de súmulas
que, a partir de sua publicação, gozam de efeito vinculante em relação aos demais
órgãos do Poder Judiciário e do Poder Executivo (administração pública direta e
indireta, seja federal, estadual ou municipal). Para a edição dessa súmula
vinculante, o Supremo Tribunal Federal, oficiosamente ou mediante provocação,
necessita da aprovação de dois terços de seus membros, mesmo quórum
necessário à revisão ou cancelamento do preceito vinculativo, procedimentos
regulamentados pela Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006.
Nesse mesmo ano várias reformas foram empreendidas nas diversas
codificações existentes, ocasião em que novos institutos de aproximação ao sistema
do common law foram inseridos no sistema jurídico brasileiro. São exemplos desses
institutos: o artigo 518, § 1º, do CPC (que consagrou a súmula impeditiva de recurso,
impedindo a apelação contra sentenças fulcradas em súmulas do STF e STJ); o
artigo 285-A do Código de Processo Civil (inserindo o julgamento antecipadíssimo,
para os casos em que a matéria discutida for unicamente de Direito e no juízo já
houver sido proferida sentença de improcedência em casos idênticos, podendo
haver a dispensa da citação e ser prolatada sentença de igual teor à anteriormente
proferida); os artigos 543-A e 543-B do CPC (que disciplinaram a repercussão geral
– artigo 102, § 3º, da Constituição Federal – como pressuposto recursal dos
recursos extraordinários); o artigo 543-A, § 3º, do CPC (que presumiu a repercussão
geral de decisão contrária à súmula ou jurisprudência dominante do Tribunal); e o
artigo 543-B, caput e § 3º, do CPC (que instituíram um sistema de decisões
vinculantes quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica
controvérsia).
Em 2008, a Lei nº 11.672/2008 acresceu o artigo 543-C ao Código de
Processo Civil, instituindo um sistema de julgamento para os recursos especiais
análogos ao da repercussão geral (recursos repetitivos), outorgando elevada força
persuasiva aos precedentes do STJ e, ao mesmo tempo, visando à aplicação prática
dos precedentes aos casos pendentes de julgamento.
Nesse cenário, mesmo antes de se adentrar na análise mais aprofundada dos
institutos jurídicos supramencionados, segundo o Professor Danilo Knijnik:
57
Embora não seja certo dizer que o juiz brasileiro, p. ex., está jungido ao
precedente tanto quanto o estaria um juiz norte-americano ou inglês,
também será falso, mormente na atualidade, dizer que o precedente é uma
categoria jurídico-processual estranha ao direito pátrio, ou que tem apenas
108
força meramente persuasiva.
Insta salientar que a doutrina, assim como as academias jurídicas,
constatando essa crescente aproximação do sistema jurídico brasileiro ao do
common law, evidenciado sobremaneira pelas alterações legislativas, têm publicado
diversos trabalhos realçando as vantagens – e até mesmo a necessidade – de se
adotar institutos jurídicos oriundos do common law como instrumentos corretivos do
sistema do civil law. Nesse sentido, Luís Guilherme Marinoni109 aduz ser
imprescindível que se tenham efetivas investigações sobre a jurisdição do common
law, numa postura de abandono ao preconceito acadêmico-doutrinário em relação
ao Direito estadunidense, constatando que:
Não há qualquer empenho em ressaltar que o juiz, no Estado constitucional,
deixou de ser mero servo do legislativo. A dificuldade em ver o papel do juiz
sob o neoconstitucionalismo impede que se perceba que a tarefa do juiz do
civil law, na atualidade, está muito próxima da exercida pelo juiz do common
law. É exatamente a cegueira para a aproximação destes juízes que não
permite enxergar a relevância de um sistema de precedentes no civil law.
Assim, estatuídos os fundamentos gerais e a evolução no tempo da
aproximação do sistema do civil law ao do common law, é necessário que
analisemos particularmente alguns dos mais importantes institutos jurídicos
presentes no ordenamento jurídico pátrio que efetivamente se consubstanciam em
aberturas ao sistema americano.
6.2 Controle Concentrado de Constitucionalidade e de Inconstitucionalidade
pelo Supremo Tribunal Federal
Como dito, o controle concentrado abstrato faz parte do sistema misto
adotado para o controle jurisdicional da constitucionalidade das leis no sistema
jurídico brasileiro. É de competência restrita, atua diretamente e possui a força da
coisa julgada erga omnes em sua parte dispositiva.
108
KNIJNIK, Danilo. O recurso especial e a revisão da questão de fato pelo Superior Tribunal de
Justiça. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 59.
109
MARINONI, Luiz Guilherme. A transformação do civil law e a oportunidade de um sistema
precedentalista para o Brasil. Cadernos Jurídicos da OAB-PR, Curitiba, v. 03, p. 1- 3, jun. 2009.
58
A Emenda Constitucional nº 3, de 1993, ao efetuar um sem-número de
alterações no ordenamento jurídico pátrio, introduziu a denominada ação
declaratória de constitucionalidade, de competência do Supremo Tribunal Federal,
bem como disciplinou seus efeitos, no § 2º do artigo 102 da Magna Carta, in verbis:
As decisões definitivas de mérito, proferidas pelo Supremo Tribunal Federal,
nas ações declaratórias de constitucionalidade de lei ou ato normativo
federal, produzirão eficácia contra todos e efeito vinculante, relativamente
aos demais órgãos do Poder Judiciário e ao Poder Executivo.
O procedimento das ações de controle de constitucionalidade foi disciplinado
pela Lei nº 9.868 de 1999, que estendeu o efeito vinculante, ab initio existente
apenas na ação declaratória de constitucionalidade, às ações declaratórias de
inconstitucionalidade e à arguição de descumprimento de preceito fundamental.
Desse modo, esse diploma legal acabou ampliando expressivamente a eficácia
vinculante dos precedentes do Supremo Tribunal Federal no que toca ao controle
concentrado da constitucionalidade das leis.110
Para José Rogério Cruz e Tucci111, “abriu-se, assim, a passos largos, o
caminho da adoção, no Brasil, do precedente judicial com força vinculante em
situações nas quais se encontram em jogo importantes quaestiones iuris, de
inequívoco peso político”.
Com a admissão dessa eficácia vinculante da decisão em controle abstrato é
que ela passou a ter qualidade de precedente constitucional, de acordo com Luiz
Guilherme Marinoni.112
E mais, a conotação vinculante também dos motivos determinantes da
decisão exarada em controle concentrado abstrato de constitucionalidade acresceu,
via de consequência, maior abrangência ao espectro de incidência de reclamo às
violações constitucionais que passaram a albergar a não observância dos motivos
essenciais do decisum, extrapolando os limites das determinações constantes de
sua restrita parte dispositiva.113 Nesse sentido, para Luiz Guilherme Marinoni114:
[...] partindo-se da premissa de que a eficácia vinculante incide sobre os
motivos determinantes da decisão proferida em sede de controle abstrato,
110
Ibid., p. 271.
Ibid., p. 271.
112
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
p. 467-468.
113
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
p. 468.
114
Ibid., p. 469.
111
59
deixa de importar apenas a coisa julgada material e passa a ter relevância o
delineamento da ratio decidendi ou dos motivos determinantes para a
segura definição dos limites em que os demais tribunais estão obrigados
perante o precedente constitucional, o que significa que tal decisão
indisfarçavelmente assume novo significado ou qualidade.
Desse modo, não remanescem dúvidas de que a força obrigatória dos
motivos determinantes das decisões em sede de controle concentrado abstrato de
constitucionalidade denota o caráter de fonte de Direito dos precedentes judiciais do
Supremo Tribunal Federal115, em tudo adotando o instituto típico do sistema do
common law e se consubstanciando numa claríssima abertura a este sistema.
6.3 Controle Incidental de Constitucionalidade nos Tribunais Estaduais e o
Efeito Vinculante das Decisões do Órgão Especial
Veja-se o disposto no artigo 97 da Constituição Federal: “Somente pelo voto
da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial
poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do
Poder Público”.
Assim, os órgãos fracionários dos tribunais, tais como as câmaras e turmas,
não podem atestar a inconstitucionalidade de lei sem que o tenha sido pela maioria
absoluta do tribunal ou de seu órgão especial, se existente.
A referida norma constitucional consagra a cláusula da reserva de plenário,
que reflete o princípio da presunção de constitucionalidade das leis, de modo que,
para haver declaração de inconstitucionalidade pelo tribunal, exige-se um quórum
qualificado.116
Apenas quando os órgãos fracionários entendem pela constitucionalidade da
norma é que estão dispensados de encaminhar a questão ao plenário. 117
Decidida a questão constitucional submetida ao plenário pelo órgão
fracionário, é evidente que este não poderá decidir de forma contrária, devendo
acatar e decidir de acordo com o pronunciamento oriundo da maioria qualificada,
seja pela constitucionalidade ou inconstitucionalidade. Frise-se que não será
somente o órgão fracionário submissor da quaestio ao plenário que estará vinculado
115
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 275.
116
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
p. 504.
117
Ibid., p. 504-505.
60
ao decisum, mas todas as câmaras ou turmas, inclusive os juízos de 1º grau de
jurisdição estarão obrigados na forma da decisão constitucional tomada pelo
plenário ou órgão especial.118
Nesse particular, Luiz Guilherme Marinoni119 acrescenta que
[...] uma vez decidida a questão constitucional no tribunal, as Câmaras ou
Turmas não mais podem submeter arguição de inconstitucionalidade ao
plenário ou ao órgão especial. Até porque estes estão proibidos de voltar a
tratar da questão constitucional sem que presentes os requisitos hábeis a
justificar a revogação de precedentes, como a transformação dos valores
sociais ou da concepção geral do direito ou ainda erro manifesto.
6.4 O Julgamento Monocrático nos Tribunais
Conforme dito alhures, o julgamento monocrático fulcrado em súmula,
jurisprudência dominante ou precedente de tribunal superior se consubstancia em
outra específica abertura do ordenamento jurídico brasileiro ao sistema do common
law.
O referido instituto jurídico está positivado no artigo 557, caput e § 1º-A, do
Código de Processo Civil. Veja-se:
Art. 557. O relator negará seguimento a recurso manifestamente
inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou
com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal
Federal, ou de Tribunal Superior. § 1º-A. Se a decisão recorrida estiver em
manifesto confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do
Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior, o relator poderá dar
provimento ao recurso.
Das próprias disposições legais supracitadas deflui que o julgamento
monocrático em comento é decorrência do efeito vinculante existente nos
precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, sendo
o seu primordial fundamento o respeito à autoridade das decisões das Cortes
superiores.120
No que tange à expressão “jurisprudência dominante”, inserta no texto legal,
numa análise superficial, não poderia abarcar os motivos determinantes de casos
118
Ibid., p. 508-509.
Ibid., p. 508.
120
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
p. 510.
119
61
isolados, apenas tomando corpo quando da repetição de casos. Entretanto, segundo
o professor Luiz Guilherme Marinoni121 há que ser feita uma distinção, pois:
Tratando-se de “casos repetitivos”, há de se buscar o precedente que, a
partir de certo momento ou com base na técnica dos recursos repetitivos,
pacificou o entendimento da Corte, e, dessa forma, fez-se dominante.
Assim, para o julgamento monocrático, além das súmulas e da
jurisprudência dominante vista como o entendimento que prevaleceu no
tribunal, importa o “precedente isolado”, ou melhor, o precedente que,
tratando de “caso isolado”, firmou ratio decidendi a respeito de determinada
questão jurídica.
Dessa feita, o precedente oriundo de caso único está albergado pela
expressão “jurisprudência dominante”, pelo simples fato de que não haveria sentido
em se retirar a autoridade dos motivos determinantes fixados por um tribunal
superior apenas porque a questão não foi repetida, de modo que um único caso − de
per si − traduz a jurisprudência dominante.122
6.5 Súmula Vinculante
Por primeiro, relembre-se que as súmulas nada mais são do que o extrato das
reiteradas decisões judiciais oriundas dos casos postos em juízo, que, num paralelo
com o sistema do common law, poderíamos denominar como um agrupamento de
holdings ou ratio decidendis.
A Emenda Constitucional nº 45, de 2004, alterou o texto da Constituição
Federal, acrescendo-lhe o artigo 103-A e seus parágrafos, a seguir transcritos:
Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por
provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após
reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que, a
partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em
relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública
direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como
proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei. § 1º.
A súmula terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de
normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia atual entre
órgãos judiciários ou entre esse e a administração pública que acarrete
grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre
questão idêntica. § 2º. Sem prejuízo do que vier a ser estabelecido em lei, a
aprovação, revisão ou cancelamento de súmula poderá ser provocada por
aqueles que podem propor a ação direta de inconstitucionalidade.
121
Ibid., p. 510.
Ibid., p. 510.
122
62
Das disposições normativas supracitadas, temos que o caput do artigo deixa
evidente a eficácia da súmula vinculante em face dos demais órgãos do Poder
Judiciário e da Administração Pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual
e municipal, bem como que sua edição poderá se dar mediante provocação ou de
ofício pelo Pretório Excelso.
Insta salientar a possibilidade de que a referida proposição sumular – não
obstante seu efeito vinculativo – pode perfeitamente ser revisada ou cancelada.123
A súmula, apenas por ser vinculante, não pode infirmar a natureza
eminentemente transitória do próprio Direito, sendo ínsita na sua existência a
possibilidade de revisão e cancelamento que, devidamente regulamentados, tornamse fortes fundamentos ao afastamento das teses que atrelam o engessamento do
ordenamento jurídico à eficácia vinculativa sumular.124
Na lição do professor Cândido Rangel Dinamarco125:
[...] sem essa flexibilidade, haveria o perigo de estagnação da
jurisprudência, que não convém a sistema algum. O mais nobre dos
predicados do chamado direito jurisprudencial é a sua capacidade de
adaptar-se às mutações sociais e econômicas da nação, de modo a extrair
dos textos constitucionais e legais a norma que no momento atenda aos
reclamos axiológicos da sociedade.
Assim, a súmula vinculante nada mais é do que a inscrição de um enunciado
a partir dos motivos determinantes de precedentes que tratam da mesma questão
constitucional. Desse modo, segundo Luiz Guilherme Marinoni126, não se pode:
[...] pensar em adotá-la, revisá-la ou cancelá-la como se fosse um
enunciado geral e abstrato, ou mesmo tentar entendê-la considerando-se
apenas as ementas ou a parte dispositiva dos acórdãos que lhe deram
origem. Lembre-se que a ratio decidendi nada mais é do que o fundamento
determinante ou o motivo essencial da decisão. Ora, se a elaboração da
“súmula vinculante” depende da adequada percepção dos fundamentos
determinantes do precedente ou dos precedentes, é pouco mais do que
evidente a impossibilidade de aplicá-la, revisá-la ou cancelá-la sem se
considerar os fundamentos determinantes dos precedentes que deram
origem à sua edição.
123
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 283.
124
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso
de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 1011.
125
DINAMARCO, Cândido Rangel. Súmulas vinculantes. Rio de Janeiro: Revista Forense, 1999. p.
64.
126
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
p. 489-490.
63
De todo o exposto vê-se que o instituto jurídico das súmulas vinculantes
implica em verdadeiro veículo condutor da doctrine of stare decisis oriunda do
sistema do common law no Direito brasileiro.
6.6 Súmula Impeditiva de Recurso
Outra espécie de proposição sumular que se consubstancia em instrumento
de abertura ao sistema do common law é a denominada súmula impeditiva de
recurso. Sua positivação se encontra no § 1º do artigo 518 do Código de Processo
Civil, in verbis: “Art. 518, § 1º: O recurso de apelação não deve ser recebido quando
a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou
do Supremo Tribunal Federal”.
Como adverte Luiz Guilherme Marinoni127, “[...] embora o texto da norma fale
em súmula, hoje, como é óbvio, o precedente de tribunal superior é suficiente para
impedir o recebimento de recurso que a ele diretamente se opõe”, traduzindo-se,
uma vez mais, em instituto que tendencia o sistema brasileiro ao common law.
6.7 Julgamento Liminar de Ação Idêntica
O julgamento liminar da demanda também está adstrito à força vinculante dos
precedentes. Sua disciplina legal está no artigo 285-A, caput e §§ 1º e 2º, do Código
de Processo Civil.
Art. 285-A: Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no
juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros
casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença,
reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada. § 1º. Se o autor apelar, é
facultado ao juiz decidir, no prazo de cinco dias, não manter a sentença e
determinar o prosseguimento da ação. § 2º. Caso seja mantida a sentença,
será ordenada a citação do réu para responder ao recurso.
Desse programa normativo depreende-se que não há qualquer alusão à
possibilidade de o magistrado julgar procedente a demanda oriunda de ações
repetitivas anteriormente decididas. Também silencia quanto aos precedentes dos
tribunais superiores, apenas fazendo referência à prolação de sentenças de
127
Ibid., p. 517.
64
improcedência para casos idênticos anteriormente decididos. Nesses termos, para
Luiz Guilherme Marinoni128:
O artigo comete lapso ao tratar somente da possibilidade de o juiz julgar
liminarmente o pedido quando já houver proferido sentença de
improcedência em ações que trataram de questão idêntica. É que, se não
há lógica em admitir que o juiz pode julgar liminarmente improcedente o
pedido quando há, em sentido contrário, súmula ou jurisprudência
consolidada de tribunal de justiça ou regional federal, é indiscutível que,
quando há precedente de tribunal superior, esse não pode ser contrariado
pelo julgamento liminar.
Deveras, havendo precedente hígido, não vergastado pela jurisprudência ou
socialmente ultrapassado, este deve balizar o julgamento liminar, determinando seu
direcionamento. Apenas pontua-se ser evidente a necessidade de o magistrado, ao
se utilizar do instituto jurídico do julgamento liminar lastreado em precedente judicial,
analisar se o caso sub judice não contém característica que o distingue de seu
paradigma.129
Não obstante a deficiência na redação do artigo e o sem-número de
possibilidades interpretativas que lhe permeiam, o fato é que o julgamento liminar de
improcedência, com fulcro no artigo 285-A do Código de Processo Civil, também é
exemplo de instituto jurídico que traz consigo uma exceção ao sistema do civil law.
6.8 A Repercussão Geral no STF e os Recursos Repetitivos no STJ
No âmbito do STF, a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, trouxe a previsão
da Repercussão Geral como pressuposto ao Recurso Extraordinário, com a seguinte
redação:
Art. 102, § 3º. No recurso extraordinário o recorrente deverá demonstrar a
repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso, nos
termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso,
somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços de seus
membros.
Os artigos 543-A e 543-B do CPC disciplinaram a Repercussão Geral em
termos de legislação infraconstitucional.
128
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
p. 515-516.
129
Ibid., p. 516.
65
Reconhecida a Repercussão Geral no Recurso Extraordinário, a decisão de
mérito que sobrevier referente à questão posta para julgamento deverá ser
respeitada, sob pena de cassação ou reforma liminar do acórdão contrário à
orientação firmada, nos termos do § 4º do art. 543-B do CPC.
Noticia-se que um ano após a aplicação da Repercussão Geral, o Supremo
Tribunal Federal divulgou resultados positivos, onde se identificou uma redução
relevante nos processos decididos naquele período.
Já no âmbito do STJ, em 2008, a Lei nº 11.672/2008 acresceu o artigo 543-C
ao Código de Processo Civil, instituindo uma forma de julgamento para os Recursos
Especiais denominado sistema de Recursos Repetitivos, nos seguintes termos de
formulação:
Art. 543-C, caput. Quando houver multiplicidade de recursos com
fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será
processado nos termos deste artigo.
O denominado sistema dos Recursos Repetitivos acabou por outorgar
elevada força persuasiva aos precedentes do STJ. Com efeito, após a prolatação da
decisão do Recurso Especial submetido ao sistema de Recursos Repetitivos, dispõe
o § 7º do art. 543-C do CPC que:
Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais
sobrestados na origem:
I – terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir
com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou
II – serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o
acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça.
Vê-se que, apesar da ausência de efeito vinculador, os Recursos Especiais
submetidos ao sistema dos Recursos Repetitivos obstarão os processos que tratam
de matéria semelhante, que vão aguardar o julgamento do leading case. Este, então,
será o precedente da questão e afetará, de algum modo, os processos que estão
nos Tribunais Federais e Estaduais que pretendam chegar ao Superior Tribunal de
Justiça.
A importância da implementação dos institutos em referência, tanto da
Repercussão Geral como dos Recursos Repetitivos, como filtros eficazes no
combate à morosidade do Judiciário, se revela também como mais uma das
tendências do nosso sistema de civil law à adoção de aspectos do common law, na
medida em que as decisões agora firmadas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo
66
Superior Tribunal de Justiça, no âmbito de atuação destes institutos, passam a
carregar uma carga mais que meramente persuasiva, mas ainda não vinculativa,
numa posição que se poderia dizer intermediária, já que vão gerar, de alguma forma,
efeitos sobre as decisões dos tribunais inferiores.
6.9 Outros Meios de Eficácia Erga Omnes do Provimento Jurisdicional
A concessão de efeitos erga omnes (do latim erga - para, e omnes - todos) a
determinados provimentos jurisdicionais, como cediço, significa a atribuição das
mesmas consequências de uma decisão judicial a todas as pessoas submetidas a
um mesmo ordenamento jurídico ou parte dele.
Bem, aí está a ideia central do sistema do stare decisis, afirmando que a
regra produzida em um determinado precedente judicial vale para todas as outras
lides e, por consequência, para as pessoas nelas envolvidas, que tenham mesma
identidade de fato.
Pode-se catalogar, sem pretensão de exaurimento, algumas hipóteses de
atribuição de efeitos erga omnes a determinadas decisões judiciais previstas na
legislação nacional, aproximando-as, então, do sistema de common law.
As decisões proferidas em Ação Civil Pública, nos termos da Lei nº 7.347/85,
nos termos de seu art. 16:
A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência
territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por
insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá
intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova.
Da mesma forma, os provimentos judiciais calcados na Ação Popular, a Lei nº
4.717/85, constando em seu art. 18 que:
A sentença terá eficácia de coisa julgada oponível erga omnes, exceto no
caso de haver sido a ação julgada improcedente por deficiência de prova.
O Código de Defesa do Consumidor, com sua disciplina acerca dos direitos
difusos em sentido amplo, traz valiosas hipóteses de concessão de efeitos erga
omnes nas ações de que cuida em seu art. 81:
Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas
poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
67
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste
código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares
pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste
código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo,
categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por
uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os
decorrentes de origem comum.
E acerca dos efeitos da coisa julgada erga omnes advinda da sentença
nestes casos, existe previsão legal também no artigo 103 do mesmo Código de
Defesa do Consumidor:
Art. 103. Nas ações coletivas de que trata este código, a sentença fará
coisa julgada:
I - erga omnes, exceto se o pedido for julgado improcedente por
insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá
intentar outra ação, com idêntico fundamento valendo-se de nova prova, na
hipótese do inciso I do parágrafo único do art. 81;
II - ultra partes, mas limitadamente ao grupo, categoria ou classe, salvo
improcedência por insuficiência de provas, nos termos do inciso anterior,
quando se tratar da hipótese prevista no inciso II do parágrafo único do art.
81;
III - erga omnes, apenas no caso de procedência do pedido, para beneficiar
todas as vítimas e seus sucessores, na hipótese do inciso III do parágrafo
único do art. 81.
Enfim, tratam as hipóteses acima mencionadas do denominado Processo
Coletivo, gerando efeitos erga omnes às decisões proferidas no seu âmbito de
atuação, aproximando-se da sistemática do stare decisis, já que não só as pessoas
diretamente relacionadas à lide são atingidas pelas consequências da decisão
judicial nele proferida, mas também todo um grupo de pessoas daquele mesmo
ordenamento jurídico ou de parte dele.
6.10 O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no Projeto de Novo
CPC
A eventual aprovação do projeto de novo Código de Processo Civil trará o
Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, consistente na identificação de
processos com mesma questão de direito que estejam tramitando no primeiro grau
de jurisdição, para que haja decisão conjunta no Tribunal Estadual ou Regional
Federal.
68
Trata-se de mecanismo que visa deslocar, para o Plenário ou para o Órgão
Especial do tribunal competente, a apreciação de questão de índole jurídica
potencialmente geradora de multiplicação de processos, buscando, segundo o
próprio texto legal, evitar grave insegurança jurídica, decorrente do risco de
coexistência de decisões conflitantes.
O incidente poderá ser provocado pelo juiz ou relator, pelas partes, pelo
Ministério Público ou pela Defensoria Pública. Admitido o incidente, suspender-se-ão
os processos pendentes em primeiro e segundo graus de jurisdição, facultada a
concessão de medidas de urgência no juízo de origem.
A lei imporá a adoção de ampla divulgação e publicidade em relação ao
incidente, cuja tese jurídica adotada será aplicada a todos os processos que versem
sobre idêntica questão de direito e que tramitem na área de jurisdição do respectivo
tribunal.
Na hipótese de recurso ao STF ou ao STJ contra a decisão proferida no
incidente, e sendo a matéria apreciada em seu mérito pelo plenário do primeiro ou
pela corte especial do segundo, a tese jurídica adotada terá aplicação cogente em
âmbito nacional.
O instituto pode ser aplicado, por exemplo, para as ações por perdas em
planos econômicos, para a definição dos índices de correção do FGTS, o
questionamento do pagamento da assinatura básica de telefonia fixa, ou ao
percentual de reajuste de mensalidades escolares e de planos de saúde, dentre
outros casos.
Para que seja instaurado o incidente, é preciso que as ações tenham um
potencial de multiplicação, por se referirem, por exemplo, a questões da vida
cotidiana do cidadão. Esse é o caso das causas de relação de consumo, por
exemplo, geralmente de grande interesse da coletividade.
Após a decisão do processo pelo sistema do incidente em exame, os juízes
de primeira instância ficam obrigados a aplicá-la a todas as ações semelhantes que
forem julgar, às demandas em curso e àquelas que ainda vierem a ser submetidas
ao Poder Judiciário, daí sua real aproximação ao sistema anglo-saxão, em virtude
da vinculação da orientação traçada no processo piloto.
69
Tal é a disciplina do mencionado incidente no projeto do novo Código de
Processo Civil:
Art. 895. É admissível o incidente de demandas repetitivas sempre que
identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de
processos fundados em idêntica questão de direito e de causar grave
insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões
conflitantes.
Art. 896. A instauração e o julgamento do incidente serão sucedidos da
mais ampla e específica divulgação e publicidade, por meio de registro
eletrônico no Conselho Nacional de Justiça.
Art. 897. Após a distribuição, o relator poderá requisitar informações ao
órgão em cujo juízo tem curso o processo originário, que as prestará em
quinze dias; findo este prazo improrrogável, será solicitada data para
admissão do incidente, intimando-se o Ministério Público.
Art. 898. O juízo de admissibilidade e o julgamento do incidente competirão
ao plenário do tribunal ou, onde houver, ao órgão especial.
Art. 899. Admitido o incidente, o presidente do tribunal determinará, na
própria sessão, a suspensão dos processos pendentes, em primeiro e
segundo grau de jurisdição.
Art. 900. As partes, os interessados, o Ministério Público e a Defensoria
Pública, visando à garantia da segurança jurídica, poderão requerer ao
tribunal competente para conhecer de eventual recurso extraordinário ou
especial a suspensão de todos os processos em curso no território nacional
que versem sobre a questão objeto do incidente.
Art. 901. O relator ouvirá as partes e os demais interessados, inclusive
pessoas, órgãos e entidades com interesse na controvérsia, que, no prazo
comum de quinze dias, poderão requerer a juntada de documentos, bem
como as diligências necessárias para a elucidação da questão de direito
controvertida; em seguida, no mesmo prazo, manifestar-se-á o Ministério
Público.
Art. 902. Concluídas as diligências, o relator pedirá dia para o julgamento do
incidente.
Art. 903. Julgado o incidente, a tese jurídica será aplicada a todos os
processos que versem idêntica questão de direito.
Tratar-se-á, na verdade, dado o caráter vinculativo de que eventualmente
estará dotada a decisão proferida no Incidente de Resolução de Demandas
Repetitivas, do instrumento processual brasileiro mais contundente de uniformização
de jurisprudência, e mais, criador de verdadeiros precedentes judicias obrigatórios
em todo o território nacional. Daí porque mereceu de Teresa Arruda Alvim Wambier
a consideração de que “um dos pontos altos do projeto (de CPC) foi a criação do
incidente de julgamento de demandas repetitivas”.130 Será, em síntese, caso
aprovado, a aproximação mais tênue entre o nosso sistema de civil law ao common
law, e com ele se encerra o capítulo atinente a esta interface entre os dois tipos de
ordenamentos no que toca aos instrumentos processuais brasileiros, restando agora
o exame da questão à luz dos nossos institutos de direito material.
130
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Panorama atual das tutelas individual e coletiva – estudos
em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 725.
70
7 O SISTEMA CIVIL BRASILEIRO DE TIPIFICAÇÃO ABERTA
7.1 A Flexibilização das Normas Jurídicas
Como sabido de todos, com a promulgação da Lei nº 10.406/02, passou a
viger o novo diploma legal regente das relações intersubjetivas civis, o novo Código
Civil que veio para substituir aquele datado do ano de 1916. Entretanto, as
mudanças inseridas na ordem jurídica não se limitaram à atualização de institutos
jurídicos e regramentos.
O Código Civil de 2002, de forma sensível, afastou-se da tendência
dogmática existente até o início do século XX que impunha o império da lei como o
único pressuposto do Estado de Direito, reservando, pois, à área de atuação
jurisdicional, a simplória função de interpretação da mens legislativa.
Na lição de Jorge Tosta131:
Essa tendência foi substituída no Código Civil de 2002 pela abertura e
flexibilização de diversas normas jurídicas que remetem diretamente ao juiz
a solução do caso concreto, seja por meio da concreção judicial de
“conceitos vagos ou indeterminados”, seja por intermédio da incidência de
normas cuja aplicação se faz por juízos de oportunidade.
Noutras palavras, o Poder Legislativo criador do Código Civil de 2002
abandonou a meta – utópica, frise-se – de solucionar exaustivamente todas as
controvérsias existentes na sociedade brasileira e forneceu aos operadores do
Direito, desde sempre incumbidos de resolvê-las in concreto, o poder de solucionálas segundo valorações vigentes à época e à luz do caso concreto litigioso, por meio
das normas de tipo aberto.
Veja-se que essa flexibilização do ordenamento posto se deu não pela
conscientização de sua conveniência, mas sim, segundo Eros Roberto Grau 132, pela
“complexidade da realidade, que propicia maior velocidade da atuação de suas
forças produtivas, reclamando a flexibilização das normas jurídicas (e dos textos
normativos), de molde a assegurar (e estimular) aquela atuação”, sendo
“fundamental, de toda sorte, não confundir segurança com imobilidade”.
131
TOSTA, Jorge. Manual de interpretação do Código Civil: as normas de tipo aberto e os poderes
do juiz. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 03.
132
GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros, 2002. p.
188.
71
Por isso é que Tereza Arruda Alvim Wambier133 preleciona que:
A interpretação dos conceitos vagos vem adquirindo cada vez mais
importância no mundo contemporâneo porque o uso desses conceitos
consiste numa técnica legislativa marcadamente afeiçoada à realidade em
que hoje vivemos, que se caracteriza justamente pela sua instabilidade,
pela imensa velocidade com que acontecem os fatos, com que se
transmitem informações, se alteram “verdades” sociais.
Por normas de tipo aberto entendem-se aquelas constituídas por termos
vagos ou indeterminados, um produto de técnica legislativa que visa, em última
análise, manter a efetividade e a incidência das normas componentes do
ordenamento jurídico.
Para tanto, confere aos operadores a possibilidade de proceder à integração
da vagueza através das regras de experiência, das exigências atuais do bem
comum, dos valores éticos e morais incorporados à sociedade, das novas
tecnologias e das características regionais e locais.134
Veja-se, nesse ponto, a lapidar lição de José Carlos Barbosa Moreira135:
Nem sempre convém, e às vezes é impossível, que a lei delimite com traço
de absoluta nitidez o campo de incidência de uma regra jurídica; isto é, que
descreva em termos pormenorizados e exaustivos todas as situações
fáticas a que há de ligar-se este ou aquele efeito no mundo jurídico. Recorre
então o legislador ao expediente de fornecer simples indicações de ordem
genérica, dizendo o bastante para tornar claro o que lhe parece essencial, e
deixando ao aplicador da norma, no momento da subsunção quer dizer,
quando lhe caiba determinar se o fato singular e concreto com que se
defronta corresponde ou não ao modelo abstrato, o cuidado de “preencher
os claros”, de colorir os “espaços em branco”.
O poder de criação deferido aos operadores do Direito, consubstanciado pela
inserção de normas de tipo aberto no ordenamento positivo e levado a efeito através
da interpretação e preenchimento valorativo de referidos claros legais, foi
denominado de judicialização do Direito Privado, fenômeno típico do final do século
XX e início do século XXI e reagente ao positivismo jurídico então reinante.136
133
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Controle das decisões judiciais por meio de recursos de
estrito direito e de ação rescisória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 145.
134
TOSTA, Jorge. Manual de interpretação do Código Civil: as normas de tipo aberto e os poderes
do juiz. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 10.
135
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Regras de experiência e conceitos juridicamente
indeterminados. Estudos em homenagem ao professor Orlando Gomes. Rio de Janeiro: Forense,
1979. p. 609-610.
136
TOSTA, Jorge. Manual de interpretação do Código Civil: as normas de tipo aberto e os poderes
do juiz. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 03.
72
É óbvio que tais abordagens doutrinárias no trato da temática das normas de
tipo aberto são deveras fecundas e demandariam uma análise mais perfunctória,
que, entretanto, não dizem respeito diretamente ao tema do presente estudo.
Este é tocado apenas quando da constatação de que a judicialização do
Direito Privado, levada a cabo pela promulgação do novo Código Civil, é conformada
pela inserção das denominadas normas de tipo aberto no corpo normativo do citado
diploma legal, estas que demandam dos operadores do Direito o seu preenchimento
segundo processo integrativo subsuntivo ou discricionário, sendo evidente que a
legitimação da interpretação (preenchimento) feita por estes será declarada pela
jurisprudência, através dos precedentes judiciais.
Ora, são os próprios precedentes judiciais que atuam na última instância das
etapas de concreção judicial das normas de tipo aberto, determinando qual a
interpretação prevalente para um conceito indeterminado. Nesse sentido, o
professor Jorge Tosta137 leciona que:
A própria história da jurisprudência dos tribunais mostra que os sistemas
fechados não evitaram a criatividade do juiz, muitas vezes até contra legem.
Em outras, representaram avanços e inovações que acabaram sendo
incorporados aos textos normativos. Basta lembrar, entre tantos, o
reconhecimento do direito da companheira a alimentos (que, na época, a
criatividade dos juízes denominou indenização por serviços domésticos); do
direito à meação de bens (que passou da necessidade de efetiva
colaboração na constituição do patrimônio à exigência de simples
convivência more uxorio); e dos efeitos jurídicos da união entre pessoas do
mesmo sexo (que até hoje carece de regulamentação legal).
Assim, as normas de tipo aberto têm sua integração determinada, em último
grau, pela jurisprudência, através dos precedentes judiciais, podendo-se asseverar
que a norma aberta concretizada pelo precedente judicial é outra exteriorização da
interpenetração do common law no sistema de civil law existente no Brasil.
E esse movimento de flexibilização das normas jurídicas, a partir,
principalmente, da edição do Código Civil de 2002, veio positivado naquilo que a
doutrina, com algum vacilo, resumiu como sendo os institutos das cláusulas gerais e
dos conceitos jurídicos indeterminados, objetos dos itens a seguir.
137
Ibid., p. 13.
73
7.2 As Cláusulas Abertas Constantes do Novo Código Civil - um exemplo: a
responsabilidade civil pela atividade de risco
As cláusulas gerais são formulações genéricas e abertas da lei, normas
orientadoras, diretrizes dirigidas ao juiz, que, simultaneamente, vinculam-no e lhe
conferem liberdade para decidir, aplicar o direito ao caso concreto.
Em verdade, constituem o instrumento legislativo que permite a entrada, no
ordenamento, de princípios valorativos expressos ou implícitos, de forma que
valores tidos tradicionalmente como metajurídicos sejam alocados aos códigos,
efetivados.
Lembrando, com Cláudio Luiz Bueno de Godoy, que a cláusula geral:
[...] encerra um preceito normativo cujos termos são propositadamente
vagos, ganhando enorme relevo a atuação integrativa da doutrina e da
jurisprudência, implicando, na concessão, pelo legislador, como que de um
mandato ao juiz para que, diante do caso concreto, desenvolva a norma,
138
preencha seu conteúdo.
Segundo Judith Martins-Costa139, as cláusulas gerais, para além das funções
supraidentificadas, serviriam como uma espécie de elemento de conexão entre as
regras presentes no interior do sistema jurídico e os valores situados fora dele e que
podem nele ser introduzidos por meio da atividade judicial. E, sintetizando a
conceituação por ela formulada, arremata:
Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral
constitui, portanto, uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado,
uma linguagem de tessitura intencionalmente “aberta”, “fluida” ou “vaga”,
caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico, a qual é
dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato (ou competência) para
que, à vista dos casos concretos, crie, complemente ou desenvolva normas
jurídicas, mediante o reenvio para elementos cuja concretização pode estar
140
fora do sistema.
Como exemplo de cláusula geral inserida no Código Civil, podemos citar o
dispositivo legal que consagrou a responsabilidade civil objetiva genérica pela
138
GODOY, Cláudio Luiz. A responsabilidade civil pelo risco da atividade. A responsabilidade
civil pelo risco da atividade: uma cláusula geral no Código Civil de 2002. 277 f. Tese (Livre
Docência em Direito Civil) − Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2007, p. 85-88.
139
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
p. 343.
140
MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
p. 303.
74
atividade de risco, prevista na segunda parte do artigo 927 do Código Civil de 2002,
prevendo que “haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa,
quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua
natureza, risco para os direitos de outrem”.141
Tem-se um longo conceito da responsabilidade civil objetiva genérica pela
atividade de risco:
[...] é a sanção civil consistente na reparação do prejuízo causado à vítima,
imposta ao agente danoso, sem que se cogite de sua culpa, unicamente
decorrente de lei, não só pelo fornecimento de serviços e produtos,
praticado organizada e profissionalmente com finalidade de lucro, mas
também em virtude da realização de condutas que não visem ao
enriquecimento, havendo necessidade de mínima ligação entre a conduta
danosa e as práticas rotineiras de determinada pessoa física ou jurídica,
regular ou irregular, em virtude da própria atividade desenvolvida pelo
agente ou dos meios pelos quais ela é executada, diante da previsibilidade
142
e efetivação do dano.
E como se pontuou:
Na esteira do que fez o Código Civil de 2002 em várias outras passagens, a
nova modalidade de responsabilização objetiva foi colocada como mais um
instituto jurídico que impõe extraordinária atividade hermenêutica ao juiz,
porquanto dele será exigida a interpretação da cláusula geral constante da
segunda parte do parágrafo único do artigo 927. Em outras palavras, caberá
ao julgador aclarar o que pretendeu o legislador ao impor o dever de
indenizar independentemente de culpa quando a atividade normalmente
desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os
143
direitos de outrem.
Veja-se que ao Poder Judiciário está entregue a tarefa de afirmar, em cada
caso concreto, qual será a atividade normalmente desenvolvida que, implicando
risco aos direitos alheios, ensejará a adoção da responsabilidade objetiva ou
independente de culpa.
Dessa forma, somente o precedente jurisprudencial será capaz de integrar a
norma em análise, de tal sorte que aqui também o sistema brasileiro aproxima-se,
sobremaneira, do common law estadunidense.
141
Objeto de nossa dissertação de mestrado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
posteriormente publicada: SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. A responsabilidade civil objetiva
fundada na atividade de risco. São Paulo: Atlas, 2010.
142
Ibid., p.112.
143
Ibid., p. 10-11.
75
7.3 Os Conceitos Jurídicos Indeterminados – um exemplo: o “destinatário
final” no Código de Defesa do Consumidor
Tratando-se de uma outra forma de flexibilização das normas civis brasileiras,
os conceitos jurídicos indeterminados não podem ser confundidos com as cláusulas
gerais, como abaixo será visto.
Exemplos em nossa legislação seriam: a “função social do contrato” (art. 421
do CC), a "boa-fé objetiva” (art. 422 do CC) e outros tantos.
De acordo com Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery, que os
denominam de conceitos legais indeterminados, estes:
São palavras ou expressões indicadas na lei, de conteúdo e extensão
altamente vagos, imprecisos e genéricos, e por si mesmo esse conceito é
abstrato e lacunoso. Sempre se relacionam com a hipótese de fato posta na
causa e cabe ao juiz no momento de fazer a subsunção do fato à norma,
144
preencher os claros e dizer se a norma atua ou não no caso concreto.
Preenchido o conceito legal indeterminado, segundo os juristas acima citados,
a solução já está preestabelecida na própria norma legal, competindo ao juiz apenas
aplicar a norma, sem exercer nenhuma outra função criadora.145
No conceito jurídico indeterminado, então, a lei enuncia o conceito
indeterminado e dá as consequências dele advindas.146
Por fim, Nelson Nery e Rosa Nery estabelecem uma distinção entre as
cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados da seguinte forma:
Com significação paralela aos conceitos legais indeterminados, as cláusulas
gerais são normas orientadoras sob a forma de diretrizes, dirigidas
precipuamente ao juiz, vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe dão
liberdade para decidir. Distingue-se dos conceitos legais indeterminados
pela finalidade e eficácia, pois aqueles, uma vez diagnosticados pelo juiz no
caso concreto, já têm sua solução preestabelecida na lei, cabendo ao juiz
aplicar referida solução. Estas ao contrário, se diagnosticadas pelo juiz,
permitem-lhe preencher os claros com os valores designados para aquele
147
caso, para que se lhe dê a solução que ao juiz parecer mais correta.
144
NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p. 198.
145
NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p. 198.
146
NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p. 198.
147
NERY, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 8 ed. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2011, p. 199.
76
De tais ensinamentos, pode ser extraída a conclusão de que, como os
conceitos jurídicos indeterminados se referem, em todos os casos, à descrição de
um fato, em sua precisão de significado pelo juiz, há apenas interpretação e não
criação do direito. E aí reside a sua distinção substancial com relação às cláusulas
gerais. Isto é, enquanto as cláusulas gerais exigem que o juiz crie o direito no caso
concreto (concorra ativamente para a formulação das normas jurídicas), os conceitos
jurídicos indeterminados exigem apenas interpretação das normas por parte do
magistrado.
Pois bem, tem vez agora o exame de um conceito jurídico indeterminado
pinçado da Lei 8.078/90, contido no caput do seu artigo 2º: o significado da
expressão destinatário final, para o estabelecimento do conceito de consumidor e
consequente aplicação do Código de Defesa do Consumidor a certo negócio
jurídico, com afastamento das regras diretas do Código Civil e do Código de
Processo Civil.
Para que se possa afirmar que entre duas pessoas se desenvolve uma
relação de consumo, se faz necessário que estejam presentes três elementos, dois
deles de ordem subjetiva e o terceiro de ordem objetiva.
Quanto aos dois elementos de ordem subjetiva, trata-se do fornecedor (artigo
3º do CDC) e do consumidor (artigo 2º do CDC), enquanto o elemento objetivo se
refere ao produto ou serviço (§§ 1º e 2º do artigo 3º do CDC), in verbis:
Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza
produto ou serviço como destinatário final.
Art. 3º Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada,
nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que
desenvolvem atividades de produção, montagem, criação, construção,
transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de
produtos ou prestação de serviços.
§ 1º Produto é qualquer bem móvel ou imóvel, material ou imaterial.
§ 2º Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo,
mediante remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de
crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter
trabalhista.
A problemática surge quanto ao conceito de “consumidor”, notadamente se
este, in casu, se apresenta como uma pessoa jurídica prestadora de outros serviços
(v.g. transporte de alimentos, de pessoas etc.), havendo certa divergência quanto a
se enquadrar esta pessoa na expressão destinatário final contida no caput do artigo
2º do CDC acima transcrito.
77
Diante de tal expressão legal (destinatário final), surgiram, basicamente, duas
maneiras de se pensar quem seria o consumidor, nessa hipótese, sustentadas nas
teorias maximalista e finalista.
Para a teoria maximalista, dá-se uma interpretação extensiva ao conceito de
consumidor e assim se encara qualquer agente da cadeia de consumo que adquira
produtos ou serviços, mesmo que faça disso um insumo para a fomentação de sua
própria atividade econômica e lucrativa.
Segundo a teoria finalista, havendo qualquer relação, direta ou indireta, entre
o produto ou serviço adquirido e a atividade desenvolvida pelo adquirente, não se
estará diante de uma relação de consumo, sendo considerado consumidor apenas o
verdadeiro destinatário final econômico da cadeia de produção.
Entre a aplicação da teoria finalista ou da maximalista, no que tange a se
estabelecer quais seriam as relações de consumo e quais seriam as relações
jurídicas ditas comuns regidas pelos Códigos Civil e de Processo Civil, pendeu, em
princípio, o Superior Tribunal de Justiça – instância última na estrutura do Poder
Judiciário brasileiro a examinar a causa – pela primeira.
Realmente, num primeiro momento, a Segunda Seção do Superior Tribunal
de Justiça, ao julgar o REsp 541.867/BA, optou pela concepção subjetiva ou finalista
do conceito de consumidor, sedimentando seu entendimento nos termos da seguinte
ementa:
COMPETÊNCIA.
RELAÇÃO DE CONSUMO.
UTILIZAÇÃO
DE
EQUIPAMENTO E DE SERVIÇOS DE CRÉDITO PRESTADO POR
EMPRESA ADMINISTRADORA DE CARTÃO DE CRÉDITO. DESTINAÇÃO
FINAL INEXISTENTE. A aquisição de bens ou a utilização de serviços, por
pessoa natural ou jurídica, com o escopo de implementar ou incrementar a
sua atividade negocial, não se reputa como relação de consumo e, sim,
como uma atividade de consumo intermediária. Recurso especial conhecido
e provido para reconhecer a incompetência absoluta da Vara Especializada
de Defesa do Consumidor, para decretar a nulidade dos atos praticados e,
por conseguinte, para determinar a remessa do feito a uma das Varas
148
Cíveis da Comarca.
Sucede que, nesse julgamento, os Ministros Pádua Ribeiro, Humberto Gomes
de Barros, Castro Filho e Nancy Andrighi manifestaram expressa predileção pela
teoria maximalista ou objetiva, sendo que a tese vencedora recebeu não mais que
cinco dos nove votos proferidos na ocasião.
148
REsp 541.867/BA, Rel. Ministro Pádua Ribeiro, Rel. pelo Acórdão o Ministro Barros Monteiro. DJ,
16 mai. 2005.
78
De acordo com esse julgado, o conceito de consumidor ficou restrito,
alcançando apenas a pessoa física ou jurídica que adquire o produto no mercado a
fim de consumi-lo imediatamente. Em outras palavras, o consumidor foi conceituado
como o destinatário final no sentido econômico, ou seja, aquele que consome o bem
ou o serviço sem destiná-lo à revenda ou ao insumo de qualquer outra atividade
produtiva.
Passados quatro anos do controvertido julgamento, a Segunda Seção
novamente se reuniu para exame da matéria, ocasião em que o mencionado
Tribunal nacional responsável pela uniformização da interpretação da legislação
federal, analisando o conceito legal de consumidor fornecido pelo artigo 2º da Lei nº
8.078/90, ratificou o entendimento anterior e pacificou a divergência jurisprudencial
que havia naquele momento, em acórdão de fevereiro de 2009, agora por votação
unânime, entendendo que consumidor é aquele que de fato se apresenta como
destinatário final econômico do produto ou serviço (CC nº 92.519/SP, relator Ministro
Fernando Gonçalves), concluindo-se, também com fundamento na teoria finalista ou
subjetiva, que
[...] para que o consumidor seja considerado destinatário econômico final, o
produto ou serviço adquirido ou utilizado não pode guardar qualquer
conexão, direta ou indireta, com a atividade econômica por ele
desenvolvida; o produto ou serviço deve ser utilizado para o atendimento de
uma necessidade própria, pessoal do consumidor.
Após tal julgamento, esperávamos uma estabilidade na interpretação da
expressão destinatário final e do conceito de consumidor através da aparente
adoção da teoria finalista ou subjetiva pela Corte Superior nacional.
Entretanto, numa análise cronológica dos julgados posteriores às decisões
acima transcritas (REsp 541.867/BA e CC 92.519/SP), veremos que não se verificou
a esperada pacificação sobre o tema, vislumbrando-se, até mesmo, uma tendência à
superação dos precedentes citados.
Isso porque se verificaram temperamentos feitos pelo Superior Tribunal de
Justiça à teoria anteriormente adotada, com tendência ao overruling.
Com efeito, conquanto a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, ao
conceituar o termo “consumidor”, tenha sufragado pela adoção da teoria finalista, de
forma unânime na última oportunidade, o que se tem é que paulatinamente referida
79
corte superior vem revendo seu posicionamento, através de abrandamentos feitos à
mencionada teoria.
Veja-se que posteriormente ao REsp 541.867/BA, houve julgados utilizando a
teoria maximalista à conceituação do que seja o consumidor para a lei, o que tornou
evidente a manutenção do dissídio interno, inobstante o já citado posicionamento
adotado pela Segunda Seção da Corte nacional. Nesse sentido:
No que tange à definição de consumidor, a Segunda Seção desta Corte, ao
julgar, aos 10.11.2004, o REsp 541.867/BA, perfilhou-se à orientação
doutrinária finalista ou subjetiva, de sorte que, de regra, o consumidor
intermediário, por adquirir produto ou usufruir de serviço com o fim de, direta
ou indiretamente, dinamizar ou instrumentalizar seu próprio negócio
lucrativo, não se enquadra na definição constante no art. 2º do CDC.
Denota-se, todavia, certo abrandamento na interpretação finalista, na
medida em que se admite, excepcionalmente, a aplicação das normas do
CDC a determinados consumidores profissionais, desde que demonstrada,
in concreto, a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica. Recurso
149
Especial não conhecido.
Mesmo após a nova reunião da Segunda Seção – presidida pela Ministra
Nancy Andrighi, que, portanto, não votou – e ratificação unânime da adoção da
teoria finalista no julgamento do CC 92.519/SP, permaneceu a dissidência já
manifestada desde o ano de 2004, através de temperamentos ao finalismo,
conforme se vislumbra do julgado abaixo transcrito:
Consumidor é a pessoa física ou jurídica que adquire produto como
destinatário final econômico, usufruindo do produto ou do serviço em
benefício próprio. Excepcionalmente, o profissional freteiro, adquirente de
caminhão zero quilômetro, que assevera conter defeito, também poderá ser
considerado consumidor, quando a vulnerabilidade estiver caracterizada por
alguma hipossuficiência quer fática, técnica ou econômica. Nesta hipótese
está justificada a aplicação das regras de proteção do consumidor,
notadamente a concessão do benefício processual da inversão do ônus da
150
prova. Recurso especial provido.
Note-se que a data de julgamento do aresto supracitado é posterior à
ratificação da adoção da teoria finalista, acabando por flexibilizar o entendimento
anterior para considerar destinatário final quem usa o bem em benefício próprio,
independentemente de servir diretamente a uma atividade profissional sua.
Sedimentando a relativização da teoria finalista, temos o recente acórdão
relatado pela Ministra Nancy Andrighi, no REsp 1.010.834/GO, que ratificou a
extensão do conceito de consumidor à pessoa que utilize determinado produto para
149
REsp 660.026/RJ. Rel. Ministro Jorge Scartezzini, 4ª Turma. DJ, 27 jun. 2005.
REsp 1.080.719/MG. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma. DJ, 17 ago. 2009.
150
80
fins de trabalho e não apenas para consumo direto, ao fundamento de que “ainda
que o adquirente do bem não seja o seu destinatário final econômico, poderá ser
considerado consumidor, desde que seja constatada a sua hipossuficiência, na
relação jurídica, perante o fornecedor”. E, em arremate, reconheceu “a possibilidade
de abrandamento da teoria finalista, admitindo a aplicação das normas do CDC a
determinados
consumidores
profissionais,
desde
que
seja
demonstrada
a
vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica”.
Referido acórdão restou assim ementado:
PROCESSO CIVIL E CONSUMIDOR. CONTRATO DE COMPRA E VENDA
DE
MÁQUINA
DE
BORDAR.
FABRICANTE.
ADQUIRENTE.
VULNERABILIDADE. RELAÇÃO DE CONSUMO. NULIDADE DE
CLÁUSULA ELETIVA DE FORO. 1. A Segunda Seção do STJ, ao julgar o
REsp 541.867/BA, Rel. Min. Pádua Ribeiro, Rel. p/ Acórdão o Min. Barros
Monteiro, DJ 16/05/2005, optou pela concepção subjetiva ou finalista de
consumidor. 2. Todavia, deve-se abrandar a teoria finalista, admitindo a
aplicação das normas do CDC a determinados consumidores profissionais,
desde que seja demonstrada a vulnerabilidade técnica, jurídica ou
econômica. 3. Nos presentes autos, o que se verifica é o conflito entre uma
empresa fabricante de máquinas e fornecedora de softwares, suprimentos,
peças e acessórios para a atividade confeccionista e uma pessoa física que
adquire uma máquina de bordar em prol da sua sobrevivência e de sua
família, ficando evidenciada a sua vulnerabilidade econômica. 4. Nesta
hipótese, está justificada a aplicação das regras de proteção ao consumidor,
notadamente a nulidade da cláusula eletiva de foro. 5. Negado provimento
151
ao recurso especial.
Assim, com esse novo entendimento, houve um significativo passo para o
reconhecimento de não ser o critério do “destinatário final econômico” o
determinante para a caracterização de relação de consumo e do conceito de
consumidor. Ainda que o adquirente do bem não seja o seu destinatário final
econômico, poderá ser considerado consumidor, desde que seja constatada a sua
hipossuficiência, na relação jurídica, perante o fornecedor.
Pode-se dizer que a tendência jurisprudencial acerca do tema, ao invés de ser
a estabilidade, é o overruling, e, como visto, esta expressão, oriunda dos sistemas
jurídicos do common law, significa a superação de um precedente jurisprudencial
anterior, tudo a demonstrar a interface vivida entre os sistemas jurídicos brasileiro e
estadunidense.
151
REsp 1.010.834/GO. Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma. DJe, 26 ago. 2010.
81
Nesse sentido, veja-se o recente acórdão do STJ, de fevereiro de 2012, que
dispõe sobre a controvérsia supracitada, demonstrando, uma vez mais, que a
produção de legislação extravagante calcada em tipos abertos gera a necessidade
do recurso ao precedente judicial para se dar a definição dos institutos jurídicos que
se aprecie:
DIREITO DO CONSUMIDOR. PESSOA JURÍDICA. NÃO OCORRÊNCIA
DE VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC. UTILIZAÇÃO DOS PRODUTOS E
SERVIÇOS
ADQUIRIDOS
COMO
INSUMOS.
AUSÊNCIA
DE
VULNERABILIDADE.
NÃO
INCIDÊNCIA
DAS
NORMAS
CONSUMERISTAS. 1. Inexiste violação ao art. 535 do CPC quando o
tribunal de origem, embora sucintamente, pronuncia-se de forma suficiente
sobre a questão posta nos autos, sendo certo que o magistrado não está
obrigado a rebater um a um os argumentos trazidos pela parte se os
fundamentos utilizados tenham sido suficientes para embasar a decisão. 2.
O art. 2º do Código de Defesa do Consumidor abarca expressamente a
possibilidade de as pessoas jurídicas figurarem como consumidores, sendo
relevante saber se a pessoa – física ou jurídica – é “destinatária final” do
produto ou serviço. Nesse passo, somente se desnatura a relação
consumerista se o bem ou serviço passa a integrar a cadeia produtiva do
adquirente, ou seja, torna-se objeto de revenda ou de transformação por
meio de beneficiamento ou montagem, ou, ainda, quando demonstrada sua
vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica frente à outra parte. 3. No
caso em julgamento, trata-se de sociedade empresária do ramo de
indústria, comércio, importação e exportação de cordas para instrumentos
musicais e afins, acessórios para veículos, ferragens e ferramentas,
serralheria em geral e trefilação de arames, sendo certo que não utiliza os
produtos e serviços prestados pela recorrente como destinatária final, mas
como insumos dos produtos que manufatura, não se verificando, outrossim,
situação de vulnerabilidade a ensejar a aplicação do Código de Defesa do
152
Consumidor. 4. Recurso especial provido.
152
REsp 932557/SP. Relator(a) Ministro Luis Felipe Salomão; Órgão Julgador: T4 - Quarta Turma;
Data do julgamento: 07/02/2012. DJe, 23 fev. 2012.
82
8.
O
EQUÍVOCO
LEGISLATIVO
DEMANDANDO
A
APLICAÇÃO
DO
PRECEDENTE JUDICIAL
8.1 O Problema da Omissão Legislativa
Questão posta para exame judicial em praticamente todos os dias refere-se
aos juros cobrados nos contratos de empréstimo bancário.
É sabido de todos que o § 3º do artigo 192 da Constituição Federal, antes de
sua revogação, à surdina, pela Emenda Constitucional nº 40, de 29 de maio de
2003, previa o limite de 12% ao ano para os juros bancários, com a seguinte
redação:
Art. 192, § 3º - As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e
quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à
concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano;
a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura,
punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.
A discussão que se punha, à época de sua vigência, era se tal dispositivo
constitucional tinha ou não eficácia imediata, isto é, se poderia ser aplicado de
plano, ou se havia necessidade de sua regulamentação por lei complementar para
que pudesse gerar efeitos.
Referida discussão se fez presente em todos os foros brasileiros, em milhares
e até pode-se dizer milhões de processos, e acabou decidida na conhecida ADIN nº
4 do Supremo Tribunal Federal, fixando-se o entendimento pela necessidade de lei
complementar regulamentadora do tema para que os juros bancários fossem
restringidos a 12% ao ano, reconhecendo expressamente a vigência da legislação
reguladora do Sistema Financeiro Nacional anterior à Constituição de 1988 (Lei nº
4.595/64 e atos normativos do CMN), até que fosse editada a lei complementar
exigida pelo caput do artigo 192 da CF/1988, in verbis:
Tendo a Constituição Federal, no único artigo que trata do Sistema
Financeiro Nacional (art. 192), estabelecido que este será regulado por Lei
Complementar, com observância do que determinou no caput, nos seus
incisos e parágrafos, não se pode admitir a eficácia imediata e isolada do
disposto em seu parágrafo 3º, sobre taxa de juros reais (12 por cento ao
ano), até porque estes não foram conceituados. Só o tratamento global do
Sistema Financeiro Nacional, na futura lei complementar, com a
observância de todas as normas do caput e dos incisos e parágrafos do art.
192, é que permitirá a incidência da referida norma sobre juros reais e
desde que estes também sejam conceituados em tal diploma. Em
83
consequência, não são inconstitucionais os atos normativos em questão
(parecer da Consultoria Geral da República e Circular do Banco Central), o
primeiro considerando não autoaplicável a norma do parágrafo 3º sobre
juros reais de 12 por cento ao ano, e a segunda determinando a
observância da legislação anterior à Constituição de 1988, até o advento da
Lei Complementar reguladora do Sistema Financeiro Nacional. Ação
Declaratória de Inconstitucionalidade julgada improcedente, por maioria de
votos.
Nunca foi editada a lei a que se refere o decisório acima ementado e, como
se disse, à surdina, foi simplesmente revogado o § 3º do artigo 192 da Constituição
Federal, no ano de 2003.
Com a revogação, o tema deixou de ter conotação constitucional e, assim, o
foro de exame das questões envolvendo os contratos bancários aos poucos foi se
deslocando do Supremo Tribunal Federal para o Superior Tribunal de Justiça, que
passou a decidir da maneira como segue.
De início, após algum vacilo jurisprudencial, decidiu-se pela aplicação do
Código de Defesa do Consumidor aos contratos bancários. Nesse tema, a
divergência que havia dentro do próprio Superior Tribunal de Justiça cessou. No
mês de setembro de 2004, foi editada a súmula nº 297: “O Código de Defesa do
Consumidor é aplicável às instituições financeiras”.
Quanto à questão acima ventilada do teto para os juros bancários, não fosse
só pelo resultado da ADIN acima mencionada, considerou o Superior Tribunal de
Justiça permitida a cobrança acima de 12% ao ano, sumulando a questão com os
seguintes verbetes. Súmula nº 296: “Os juros remuneratórios, não cumuláveis com a
comissão de permanência, são devidos no período de inadimplência, à taxa média
de mercado estipulada pelo Banco Central do Brasil, limitada ao percentual
contratado”. Súmula nº 382: “A estipulação de juros remuneratórios superiores a
12% ao ano, por si só, não indica abusividade”.
Ficou
permitida
a
capitalização
dos
juros
remuneratórios,
inclusive
mensalmente. Esse foi o entendimento do Superior Tribunal de Justiça, por sua
Seção de Direito Privado: “a partir de 31/3/2000, data da publicação da Medida
Provisória 1.963-17/2000, atualmente reeditada sob o nº 2.170-36/2001, está
permitida a capitalização dos juros”.
Nem a entrada em vigor do Código Civil de 2002, com sua disposição do
artigo 591, parte final, foi capaz de mudar o entendimento do Superior Tribunal de
Justiça, que, sob a relatoria do Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, por maioria
84
de votos, reafirmou a possibilidade da capitalização mensal dos juros para os
contratos bancários, em aresto de 23 de agosto de 2007, no Recurso Especial
821.357/RS.
Bem, essa pequena digressão a respeito da atual situação dos juros
bancários na jurisprudência brasileira, escapando um pouco do tema referente aos
danos morais e aos punitive damages, tem como finalidade demonstrar que a
situação dos cidadãos e das empresas brasileiras frente às instituições financeiras
pode ser resumida numa verdadeira luta de fracos contra poderosos, travada todos
os dias nas agências bancárias e também nos fóruns do país.
Como se pôde observar, ao emprestar dinheiro, os bancos podem fazê-lo
sem limite de juros preestabelecido em lei, impondo, como se sabe, valores
astronômicos aos mutuários e podendo ainda capitalizar mês a mês as taxas
praticadas.
Isso nada mais é que o resultado de longa omissão legislativa, que perdurou
desde a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, até 29 de
maio de 2003.
E, quando se esperava do Congresso Nacional que desse uma conveniente
resposta ao povo no que refere a tão sensível ponto para a sociedade, uma vez que
hoje praticamente não se vive e não há desenvolvimento sem o recurso ao
empréstimo bancário, o legislativo nacional, como se disse, à surdina, simplesmente
revogou o §3º do artigo 192 da Constituição Federal, por meio da Emenda
Constitucional nº 40.
É algo que realmente causa estranheza, para dizer o mínimo, pois o caminho
que vinha sendo percorrido era no sentido de se limitar os juros a 12% ao ano. Com
efeito, isso constava de disposição constitucional expressa, como se viu, no § 3º do
artigo 192.
O Poder Judiciário, por meio da ADIN nº 4 do Supremo Tribunal Federal,
afirmou a necessidade de lei complementar para que se atribuísse eficácia ao retro
citado dispositivo constitucional, e não havia outra coisa a se esperar senão a
aprovação da esperada norma complementar.
Mas, adotando postura absolutamente contrária ao anseio popular, ao invés
de cessar a omissão que perdurava anos, houve por bem o Congresso Nacional
simplesmente revogar a norma constitucional que necessitava, ao contrário, de
regulamentação.
85
Em outros termos de formulação, a norma constitucional que o Poder
Judiciário afirmou ser carente de lei complementar, isto é, que deveria ser
regulamentada por lei do Poder Legislativo, foi, ao contrário, apagada do
ordenamento jurídico nacional pelo próprio Congresso Nacional, que, sem a menor
dúvida, nesse particular, andou na contramão da vontade popular.
Por outro modo, após longa e injustificada demora, o legislador nacional
adotou conduta não querida pelo seu mandante – o povo – e causou verdadeira
desgraça financeira a milhões de famílias e empresas brasileiras, em benefício de
poderosos conglomerados bancários daqui e principalmente do exterior!
Acredita-se, após o fornecimento desse panorama, não haver necessidade de
se referir ao astronômico número de processos tocando exatamente a questão dos
juros bancários que deram ingresso no Poder Judiciário brasileiro desde a
promulgação da Constituição Federal até os dias de hoje.
Esse vultoso número de processos resultou não de outra coisa senão da
omissão legislativa quanto ao dever de regulamentação da matéria por parte do
Congresso Nacional.
E essa proliferação de processos basicamente se orientou por dois
movimentos judiciais.
Por um primeiro movimento, verificada a omissão quanto à regulamentação
dos juros, os juízes passaram a entender pela imediata eficácia do § 3º do artigo 192
da Constituição Federal, entendimento esposado em milhões de processos pelo
Brasil afora.
Por um segundo movimento, após a decisão na ADIN nº 4 do Supremo
Tribunal Federal e a revogação do § 3º do art. 192 da Constituição Federal, passou
o Poder Judiciário a se engajar na pacificação do entendimento acerca de todas as
questões que envolvem os juros bancários, culminando na edição das súmulas retro
transcritas do Superior Tribunal de Justiça.
Hoje, num resumo que agora sim se enquadra no tema proposto para exame
neste trabalho, está consagrada a ideação de que as questões relativas aos
contratos bancários, sobretudo no que toca aos juros, encontram regramento, quase
que exclusivo, nos entendimentos judiciais a seu respeito, devendo aquele que se
interessa pelo assunto, para fins acadêmicos ou processuais, recorrer, portanto, aos
precedentes jurisprudenciais para encontrar as soluções adequadas ao seu
interesse.
86
No encerramento deste item não se pode deixar de mencionar a opinião mais
franca que se encontrou a respeito da não regulamentação e posterior revogação do
§ 3º do artigo 192 da Constituição Federal, deixando o Congresso de limitar os juros
bancários a 12% ao ano, abrindo, assim, espaço para a situação vexatória hoje
vivida pelos mutuários do sistema financeiro nacional, da lavra de Lucival Lage
Lobato Neto153:
Devido ao alto lucro amealhado nesses últimos anos pelas instituições
financeiras, como conseqüência da política monetária então vigente, essas
têm interesse de manter o “status quo” econômico adquirido, por
conseguinte, procuravam bloquear qualquer tentativa de regulamentação do
art. 192 pela lei complementar nele prevista, especificamente do seu § 3º.
Para isso, as grandes instituições financeiras vêm financiando as
campanhas políticas de membros do Congresso Nacional e do Presidente
da República. Por exemplo, nas eleições de 1994 e de 1998, os recursos
originários dessas instituições para o candidato presidencial eleito e reeleito
foram, respectivamente, 23 % e 26,73% do total formalmente declarado.
Essas instituições também fazem um forte lobby no Congresso Nacional,
quer diretamente, quer por meio da Federação Brasileira de Bancos
(Febraban).
8.2 O Problema da Incorreção Legislativa
Outro nicho para o crescimento da tendência aos precedentes se dá em
virtude da incorreção legislativa. Veja-se que agora não se trata mais da omissão do
legislador quanto ao seu trabalho de regulamentar a vida em sociedade, mas sim
dos erros que comete nesse mister.
A fim de se exteriorizar o que se pensa acerca dos mencionados equívocos
legislativos, chama-se a atenção para apenas um dos incontáveis erros de que
padece o nosso ordenamento jurídico, qual seja, a disciplina acerca da
responsabilidade civil dos incapazes, regulada pelos artigos 928 e 932, incisos I e II,
e 942, parágrafo único, todos do Código Civil.
Trata-se da denominada responsabilidade civil subsidiária mitigada do
incapaz. Ocorre que para chegar a essa conclusão, doutrinadores, advogados,
juízes, promotores e professores de Direito tiveram de se debruçar exaustivamente
sobre os mencionados artigos do Código Civil anteriormente mencionados, numa
tarefa que seria absolutamente desnecessária se o legislador tivesse se conduzido
153
LOBATO NETO, Lucival Lage. As vantagens advindas com a reforma do art. 192 da Constituição
Federal.
Jus
Navigandi,
Teresina,
n.
253, 17 mar. 2004.
Disponível
em:
<http://jus.com.br/revista/texto/4983/as-vantagens-advindas-com-a-reforma-do-art-192-daconstituicao-federal>. Acesso em: 10 dez. 2001.
87
com um mínimo de atenção ao disciplinar a questão. Cabe agora a explicação,
também para que não se pense que o legislador está sendo injustamente culpado.
Pois bem, a leitura do artigo 928 do Código Civil não deixa a menor dúvida
que existe uma relação de subsidiariedade entre a responsabilidade do incapaz e
seu responsável, devendo o credor buscar em primeiro plano no patrimônio deste
último a indenização para o ato danoso de que foi vítima, para depois sim recorrer
ao patrimônio do incapaz. É essa a mensagem do artigo 928, caput, do Código Civil:
“O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele
responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios
suficientes”.
Já a mensagem legislativa extraída da leitura conjunta do artigo 932, incisos I
e II, e artigo 942, parágrafo único, do mesmo Código Civil, também não abre espaço
para dúvida de que impera a solidariedade entre os patrimônios do incapaz e seu
responsável quanto aos atos de prejuízo causados pelo primeiro. Com efeito,
dispõem os mencionados dispositivos. Artigo 932, incisos I e II: “São também
responsáveis pela reparação civil os pais pelos filhos menores que estiverem sob
sua autoridade e em sua companhia, e o tutor e o curador, pelos pupilos e
curatelados, que se acharem nas mesmas condições”. Artigo 942, parágrafo único:
“São solidariamente responsáveis com os autores os coautores e as pessoas
designadas no art. 932”.
Note-se, então, a completa divergência havida entre os dispositivos
mencionados, o primeiro (928) impondo a subsidiariedade e os últimos (932 e 942) a
solidariedade no que refere à relação entre incapaz e seu responsável quanto ao
dano produzido por aquele, o que não passou sem o reparo de Cláudio Luiz Bueno
de Godoy, que assim se pronunciou sobre o problema:
Acentue-se, por fim, a contradição de fato existente entre a determinação do
parágrafo único do preceito – que, por não ressalvar a hipótese, pode ser
considerada também alusiva a uma responsabilidade solidária existente
entre o pai e o filho, pelos atos por este praticado – e a responsabilidade
154
subsidiária dos incapazes, contida no art. 928.
E o mais triste nisso é notar que se trata de normas contraditórias contidas na
mesma Parte Especial, dentro do mesmo Livro I (Do direito das obrigações), dentro
do mesmo Título IX (Da responsabilidade civil) e dentro do mesmo Capítulo I (Da
154
GODOY, Cláudio Luiz Bueno. PELUSO, Cezar. (Org.). Código Civil comentado: doutrina e
jurisprudência. Barueri: Manole, 2007. p. 907.
88
obrigação de indenizar). Em outras palavras, o legislador, dentro de um mesmo
núcleo de regência, ao produzir os artigos 942 e 932, simplesmente se esqueceu do
que havia feito alguns poucos dispositivos atrás, no artigo 928.
Por certo que as críticas devem se pontuar de maneira urbana e polida, mas
não se pode deixar de dizer que se tratou, na espécie, de um serviço muitíssimo mal
feito, que gerou, como se disse, um trabalho absolutamente desnecessário, em
milhares de processos para consertá-lo.
Bem, está aí mais uma demonstração de que a equivocada postura
legislativa, agora consubstanciada em erro mesmo, na forma de contradição entre
normas positivadas, gerou a necessidade da busca pela orientação jurisprudencial
sobre o tema, que acabou consolidando o entendimento de que a responsabilidade
do incapaz, em casos como tais, é subsidiária com relação ao patrimônio do seu
responsável, em verdadeira necessidade de pronunciamento judicial, gerando
precedente a ser seguido.
8.3 O Problema da Imprecisão Legislativa
Não se trata agora de omissão ou incorreção legislativa, mas de uma
imprecisão tal que demanda solução jurisprudencial para as lides surgidas no
contexto em que se trabalha, como, por exemplo, o § 4º do artigo 1.228 do CC:
O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado
consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa-fé, por mais de
cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem
realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados
pelo juiz de interesse social e econômico relevante.
De tão impreciso o dispositivo, não se uniformiza a doutrina a respeito do que
se trata, sabendo-se apenas se tratar uma hipótese de perda da propriedade imóvel.
O próprio Professor Francisco Eduardo Loureiro dá o tom da falta de
consenso sobre o dispositivo em tela. Segundo o Desembargador do Tribunal de
Justiça de São Paulo, “recebeu do professor Miguel Reale o preceito em exame a
denominação de desapropriação judicial”, mas, adverte, na sequência, que “não há,
na verdade, desapropriação, nem indenização a ser paga pelo Poder Público”,
tratando-se, por conclusão, de “uma nova modalidade de perda da propriedade
89
imóvel, por sentença judicial”.155 Aliás, é nova e completamente desprovida de uma
orientação ainda que minimamente uniforme sobre seu conteúdo e aplicação. Tanto
assim que o mesmo Francisco Loureiro pondera que “algumas questões
permanecem em aberto e merecem comentários”, mas “a primeira delas é saber
quem paga a indenização”, e “embora haja controvérsia da incipiente doutrina a
respeito, parece claro que o preço deva ser pago pelos beneficiários, vale dizer, os
possuidores da gleba”.156
Já Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery sustentam que
[...] como pode haver desapropriação, pelo poder público, por interesse
social, o instituto pode evoluir no sentido de que o poder público venha a ter
responsabilidade pela desapropriação judicial, isto é, fique responsável pelo
157
pagamento da indenização, pois a ele cabe fazer a reforma agrária.
Veja-se que a divergência doutrinária acima exposta com relação a quem
deverá arcar com a indenização ao proprietário que for privado de sua propriedade é
apenas a ponta do iceberg no assunto, já que o dispositivo em comento contém
termos e expressões que demorarão décadas para serem esclarecidos pela doutrina
e principalmente pela jurisprudência, a saber: qual o tamanho da extensa área de
terra que pode ser objeto da perda da propriedade? Qual o considerável número de
pessoas que nela devem introduzir benfeitorias? Quais são as obras e serviços
considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante?
Ora, não se pretende com isso simplesmente deixar de lado toda a evolução
do Direito Privado no sentido de produzir as denominadas cláusulas gerais,
tampouco se está esquecendo do dinamismo e eficiência que tais tipos abertos
conferem ao sistema judicial de um dado país.
Mas, daí a se criar normas de conteúdo tão aberto a permitirem a subsunção
de praticamente qualquer situação de fato, existe um longo e perigoso caminho a ser
percorrido, resvalando a questão na própria cláusula de independência dos Poderes
da República.
Bem, considerado o dispositivo da forma como positivado, tem-se que a
presente modalidade de perda da propriedade imobiliária, em verdade, terá sua
disciplina consolidada, se é que vai ter um dia, apenas pelo trabalho da
155
LOUREIRO, Francisco Eduardo. PELUSO, Cezar. (Org.). Código Civil comentado: doutrina e
jurisprudência. Barueri: Manole, 2007. p. 1.170.
156
Ibid., p. 1.171.
157
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado e legislação
extravagante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 881.
90
jurisprudência, que deverá firmar o precedente a ser seguido em cada uma das lides
judiciárias que se aforar a respeito do tema, dada a radical imprecisão legislativa,
mais uma vez com necessidade de recurso ao sistema de precedentes.
8.4 As Consequências do Mau Trabalho Legislativo
8.4.1 O eventual desapego à lei
Perigoso, em última instância, para a própria Democracia, mas citado cada
vez mais frequentemente por doutrina de excelência, o aqui denominado “eventual
desapego à lei” encontra fundamento nos problemas que acima se detectou no
trabalho de feitura das normas jurídicas – a omissão, a incorreção e a imprecisão
legislativas, como se passa a demonstrar.
Maria Garcia abre um dos capítulos de sua obra “Desobediência civil - Direito
fundamental”158 com uma citação que fala por si a respeito do que se está querendo
dissertar: “Se a lei contiver erros de tal ordem que nos obrigue a ser um instrumento
de injustiça para alguém, e se somente isso for o caso, então eu digo, viole a lei”.159
Na mesma obra, Maria Garcia segue afirmando que “o homem é um ser para
a liberdade, mas, quando em sociedade, defronta-se com a autoridade, com o Poder
do Estado e com a lei”.160 E, para ela, “é o moderno Estado de Direito que explica o
estabelecimento do princípio da legalidade”.161 Mas, adverte:
[...] a lei passou a ser, em nossas complexas estruturas sociais um simples
meio técnico de organização coletiva, de modo que pode não só fazer
nenhuma referencia à justiça, senão, muito mais, pode também se converter
num modo de organização antijurídico, num modo de perversão do
162
ordenamento.
Comenta Regis Fernandes de Oliveira, citado por Maria Garcia, que:
Há leis tão absurdas casuísticas e desprovidas de sentido que fatalmente
não são obedecidas. Passa a ser importante a manutenção da
desobediência. Daí denominada desobediência civil, que significa uma
desqualificação do detentor do poder. Não se aceitam mais as ordens
158
GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 240.
159
THOREAU, 1964, apud GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. p. 240.
160
GARCIA, op. cit., p. 243-244.
161
Ibid., p. 246.
162
Ibid., p. 247.
91
expedidas porque falta legitimidade ao governante. As ordens passam a ser
163
descumpridas com a aquiescência de toda a comunidade.
O próprio Miguel Reale, citado por Maria Garcia, admite que “infelizmente”
pode haver as leis nascidas puramente do arbítrio ou de valores aparentes que só o
legislador reconhece.164
Daí o problema: o da obediência ou não às leis destituídas de fundamento.
A feitura da lei encontra-se polarizada no Poder Legislativo e, pelo princípio
da representatividade, existe uma presunção de que ela é elaborada pelos cidadãos
– na pessoa de seus representantes políticos. Mas essa representação política vem
revelando-se de todo insuficiente para a satisfação de seus objetivos, em especial
na realização e na defesa da cidadania. Isso porque o atual representante do
cidadão no Poder Legislativo atua com independência, não estando sujeito a
qualquer instrução ou determinação de seu eleitor, e muitos países, como o Brasil,
sequer adotam o instituto de revogação de mandato, chegando-se à constatação de
uma completa dissociação entre a vontade do representante e do representado, sem
compromisso político para com os eleitores.165
Constata-se, em virtude disso, a insuficiência deste processo legislativo para
a garantia da cidadania, que requer, assim, formas mais atualizadas na participação
no poder, o que vale dizer mais atualizados direitos e formas de garantia.166
8.4.2 O ativismo judicial
Ora, como outra consequência natural do mau desempenho do legislador,
surge o ativismo judicial. O Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo
Walter de Almeida Guilherme, ao ser indagado sobre o que seria ativismo judicial,
afirmou que:
O ativismo tem um lado positivo que é preencher as lacunas da lei quando o
próprio sistema jurídico permite, como é o caso do Mandato de Injunção
para obrigar o Executivo a enviar um projeto ou o Legislativo a votar.
Ativismo judicial não é nada mais que isso: um juiz decidindo na ausência
da lei quando ele é autorizado a fazê-lo. Fala-se de ativismo quando o
163
OLIVEIRA, 1988, apud GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. p. 248.
164
REALE, 1953, apud GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. p. 248.
165
GARCIA, Maria. Desobediência civil – direito fundamental. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2004. p. 257.
166
Ibid., p. 258.
92
Judiciário atua numa área que aparentemente não é dele, mas a própria
Constituição
permite
por
meio
da
Ação
Declaratória
de
167
Inconstitucionalidade, por exemplo.
De acordo com Luís Roberto Barroso168:
O ativismo judicial é uma atitude, a escolha de um modo específico e
proativo de interpretar a Constituição, expandindo o seu sentido e alcance.
Normalmente ele se instala em situações de retração do Poder Legislativo,
de um certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil,
impedindo que as demandas sociais sejam atendidas de maneira efetiva.
E segue afirmando que “o ativismo judicial, por sua vez, expressa uma
postura do intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição,
potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador
ordinário”, tratando-se “de um mecanismo para contornar, bypassar o processo
político majoritário quando ele tenha se mostrado inerte, emperrado ou incapaz de
produzir consenso”, concluindo que “os riscos do ativismo envolvem a legitimidade
democrática, a politização da justiça e a falta de capacidade institucional do
Judiciário para decidir determinadas matérias”.169
Para Elival da Silva Ramos,
Por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional
para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe,
institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de
feições subjetivas (conflitos de interesse) e controvérsias jurídicas de
natureza objetiva (conflitos normativos). Essa ultrapassagem das linhas
demarcatórias da função jurisdicional se faz em detrimento, particularmente,
da função legislativa, não envolvendo o exercício desabrido da legiferação
(ou de outras funções não jurisdicionais) e sim a descaracterização da
função típica do Poder Judiciário, com incursão insidiosa sobre o núcleo
170
essencial de funções constitucionalmente atribuídas a outros Podres.
E continua o mesmo autor a informar que, “se no positivismo clássico a
interpretação se subsume à vontade do legislador”, de outro lado, “no positivismo
renovado o que prevalece é a vontade da lei, mas contando também com a vontade
do intérprete”.171
167
GUILHERME, Walter de Almeida. Entrevista concedida ao site Consultor Jurídico. Disponível em:
<www.conjur.com.br>. Acesso em: 30 nov. 2011.
168
BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática.
Disponível em: <http://www.migalhas.com.br/arquivo_artigo/art20090130-01.pdf>. Acesso em: 09
dez. 2011.
169
Ibid.
170
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial - parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.
308.
171
Ibid., p. 308.
93
Ainda, segundo o mesmo autor,
[...] o primeiro e principal dos parâmetros fornecidos pelo próprio
ordenamento jurídico para a identificação do ativismo judicial diz respeito à
exigência de que toda interpretação constitucional seja compatível com
172
amplitude de sentidos projetada pelo texto da norma.
No Brasil, segundo se noticia, “a jurisprudência mais recente do Supremo
Tribunal Federal, entretanto, indica um avanço do ativismo judicial”.173
Dentre os fatores de fomento deste ativismo judicial brasileiro, pode se citar o
modelo de estado intervencionista, “que leva juízes e tribunais a revelar, em
algumas situações, a existência de limites impostos pelo próprio ordenamento cuja
atuação lhes incumbe”.174 E um segundo fator de fomento do ativismo judicial no
Brasil, este essencialmente ligado ao que se propôs a estudar neste trabalho, é,
segundo o mesmo Elival da Silva Ramos, a denominada principiologização do
Direito, “abrindo as portas do sistema jurídico ao subjetivismo das decisões
judiciais”, resultando na produção de julgados “ao sabor das preferências axiológicas
de seus prolatores”.175
Bem, como se viu nas questões postas para pensamento a respeito do ruim
trabalho feito pelo legislador, a orientação sobre a solução dos litígios tem sido dada
pelo Poder Judiciário, de modo proativo nas situações de retração e contradição
entre os pronunciamentos do Poder Legislativo e a vontade popular.
Daí que o surgimento de precedentes verdadeiramente regulatórios de
determinadas situações é inevitável ante a maneira como vem se portando o
legislador nacional.
É lógico que se tem em mente a advertência de Maria Helena Diniz de que
“ao Poder Judiciário está reservada a grande responsabilidade de adequar o direito,
quando sua vigência social apresenta sintomas de inadaptabilidade em relação à
realidade social, mantendo-o vivo”, mas que “desta afirmação não se infere que o
juiz tenha liberdade onímoda”176, ou ilimitada.
172
RAMOS, Elival da Silva. Ativismo judicial - parâmetros dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p.
310.
173
Ibid., p. 313.
174
Ibid., p. 314.
175
Ibid., p. 314.
176
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2009.
p. 501.
94
Sabe-se que a aplicação do Direito é, de acordo com Miguel Reale, “uma
decorrência de competência legal”.177
Assim, “o juiz, ao aplicar o Direito, não deve exceder aos ditames jurídicolegais”, nas palavras de Maria Helena Diniz178, que, reforçando sua ideia, afirma:
Dentro desse quadro da ordem jurídica, o poder de jurisdição do magistrado
tem uma zona de liberdade, dentro da qual pode exercer sua atividade. A
liberdade de julgar só é garantida nos limites da órbita jurídica que lhe
corresponde; se o órgão judicante ultrapassar esses marcos, invade órbitas
jurídicas alheias e sua atividade torna-se uma perturbação da ordem, um
179
abuso de direito.
Mesmo assim, não há como se negar a produção judicial cada vez mais
intensa a respeito de temas em que se omite, erra ou se faz imprecisa a lei, até
contra legem, como é o caso da fixação das indenizações punitivas no Brasil, que,
em tese, não encontram respaldo legal expresso.
177
REALE, Miguel. Lições preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1976. p. 291.
DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do Direito. São Paulo: Saraiva, 2009.
p. 501.
179
Ibid., p. 502.
178
95
9 O DIREITO JURISPRUDENCIAL
9.1 Posição da Jurisprudência na Teoria Geral do Direito no Civil law
John Gilissen conceitua a jurisprudência como um conjunto de normas
jurídicas extraídas das decisões judiciárias, e, analisando-a no sistema de civil law,
afirma que:
De uma forma geral, as decisões judiciárias não valem senão entre as
pessoas que são partes no processo; não enunciam normas jurídicas gerais
e, mesmo que o façam na sua motivação, estas normas não têm forças
vinculativas erga omnes. No entanto, os juízes, sobretudo os juízes
profissionais formados pela disciplina jurídica (por oposição aos juízes
populares) têm tendência a interpretar a lei e o costume como o fizeram
180
seus predecessores.
Mesmo assim, o papel da jurisprudência, segundo ele, tem sido crescente no
decurso dos séculos XIX e XX, tendo realizado uma “uniformidade real na
interpretação das leis, por uma segurança jurídica acrescida por sua fixidez e uma
adaptação constante às realidades da vida social”.181
Assim, “sem admitir o princípio do stare decisis dos países anglo-saxões, as
jurisdições dos países de direito romanista admitem a força de fato da
jurisprudência”.182
E acaba por reconhecer que “a história da evolução da jurisprudência no
decurso dos últimos cento e cinquenta anos não foi ainda suficientemente descrita”,
já que:
Pode verificar-se que os Tribunais se mostraram ora demasiadamente
tímidos e conservadores ora muito ousados. Devem-se muitas soluções
justas e uteis, à margem das leis. Um dos exemplos mais notáveis da
contribuição da jurisprudência para a evolução do direito é o volume de
decisões relativas à responsabilidade aquiliana: um só artigo do Código Civil
francês de 1804 (o artigo 1832) deu origem a milhares de decisões
judiciárias, formando uma das partes mais importantes e mais vivas do
183
Direito Civil atual.
180
GILISSEN, John.
2008. p. 27-28.
181
GILISSEN, John.
2008. p. 505.
182
GILISSEN, John.
2008. p. 507.
183
GILISSEN, John.
2008. p. 508.
Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
Introdução Histórica ao Direito. 4 ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
96
Em tom crítico, Teresa Arruda Alvim Wambier afirma que “o excesso de
dispersão de jurisprudência, fenômeno tipicamente brasileiro e latino-americano,
compromete a segurança, a estabilidade e a previsibilidade184, e que
O fato de os Tribunais Brasileiros interpretarem diferentemente a mesma
norma jurídica, decidindo-se casos idênticos de formas diversas, gera
descrédito ao Poder Judiciário e uma indesejável sensação no
185
jurisdicionado de que está sofrendo uma injustiça.
Assim, conclui, “é preciso que os Tribunais Superiores não sejam Tribunais de
grandes viradas: é necessário que respeitem sua própria jurisprudência”.186
Tercio Sampaio Ferraz Jr., examinando a jurisprudência à luz dos sistemas de
direito estudados neste trabalho, pontua que:
O sistema romanístico, assim, em oposição ao anglo-saxão, caracteriza-se,
em primeiro lugar, pela não vinculação dos juízes inferiores aos tribunais
superiores em termos de decisões; segundo, cada juiz não se vincula às
decisões dos demais juízes de mesma hierarquia, podendo decidir casos
semelhantes de modo diferente; terceiro, o juiz e o tribunal não se vinculam
sequer às próprias decisões, podendo mudar de orientação mesmo diante
de casos semelhantes; em suma, vige o princípio da independência da
magistratura judicial: o juiz deve julgar segundo a lei e conforme sua
187
consciência.
Por essas razões, segundo o mesmo jurista, no direito romanístico-germânico
a “doutrina costuma negar à jurisprudência o caráter de fonte, ao contrário do que
sucede com a teoria do precedente no mundo anglo-saxão”.188
9.2 Uma Pequena Digressão sobre o Precedente no Common Law
Nesta contextualização do common law, o precedente, segundo Neil Duxbury,
trata-se de um evento passado que serve como guia para uma ação presente 189,
184
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Panorama atual das tutelas individual e coletiva – estudos
em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 725.
185
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Panorama atual das tutelas individual e coletiva – estudos
em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 726.
186
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Panorama atual das tutelas individual e coletiva – estudos
em homenagem ao professor Sérgio Shimura. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 726.
187
FERRAZ, Jr., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.
210.
188
FERRAZ, Jr., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2008. p.
211.
189
DUXBURY, Neil. The nature and authority of precedent. United Kingdom: Cambridge University
Press, 2008. p. 1.
97
tendo, de acordo com Michael J. Gerhardt, o poder de iluminar as decisões futuras,
de forma constante e duradoura.190
O principal fundamento para se seguir a orientação traçada nos precedentes,
como já anotado superficialmene, é que a noção de Justiça impõe que um novo
caso submetido às Cortes tenha uma solução igual ou pelo menos parecida com os
casos semelhantes anteriormente apresentados ao Poder Judiciário.191
José Rogério Cruz e Tucci192 assevera que:
O efeito vinculante das decisões já proferidas encontra-se condicionado à
posição hierárquica do tribunal que as profere. Normalmente, na experiência
jurídica da common law, o julgado vincula a própria corte (eficácia interna),
bem como todos os órgãos inferiores (eficácia externa). Não se delineia
possível, à evidência, a aplicação dessa regra em senso contrário.
Saliente-se que uma decisão que tenha se consubstanciado em regra
importante, seja por seu pioneirismo no trato da matéria sub judice, seja por ser o
centro
gravitacional
de
outras
decisões,
é
denominada
leading
case,
consubstanciando-se em primordial paradigma para a solução dos casos análogos
futuros, bem como para o exercício do ofício dos operadores do Direito no sistema
do common law.193
Mesmo nessas decisions ditas leading cases, como noutras que criam
precedentes (sem o pioneirismo e força de atração daquelas), ressalve-se, não
existirá in totum o efeito vinculante, mas somente em certas e determinadas
fundamentações, de forma a ser necessário que se esclareçam quais seriam essas
fundamentações vinculativas.
Para tanto, é mister que se distinga o que é um holding de um dictum. Aquele
é a determinação da regra de Direito relacionada diretamente à solução da
demanda. Este se consubstancia em argumentação incidental que não guarda
relação de imediatidade com a causa.194
190
GERHARDT, Michael J. The power of precedent. New York: Oxford University Press, 2008. p.
204.
191
GOLDSTEIN, Laurence. Precedent in law. Oxford: Clarendon Press, 1987. p. 90.
192
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 170.
193
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000. p. 40.
194
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 173.
98
Na lição de Guido Fernando Silva Soares:195
Holding é o que foi discutido e arguido perante o juiz e para cuja solução foi
necessário “fazer” (criar/descobrir) a norma jurídica; reafirme-se, assim, a
importância do conhecimento dos facts of a case, aos quais a norma jurídica
está ligada; dictum é tudo que se afirma na decision, mas que não é
decisivo para o deslinde da questão e, embora seja meramente persuasive,
tem importância suasória para as cortes subordinadas e para o advogado,
no aconselhamento de seus clientes.
Já os facts of the case podem ser subdivididos em substantive facts e em
procedural facts. Aqueles constituem os acontecimentos que levaram à propositura
da demanda e irão delimitar o alcance do precedente formulado. Estes, também
chamados judicial history of the case, constituem os fatos ocorridos durante a
tramitação processual, do julgamento em primeiro grau até o julgamento final pelo
tribunal.196
Em resumo, é a essência da regra de Direito bastante a decidir o caso
concreto e extraída dos facts of the case, denominada holding, que vincula os
julgamentos futuros. E cumpre salientar que tal regra não é destacada ou
individualizada pelo órgão prolator da decisão, cabendo aos juízes, em momento
posterior, ao examinarem-na enquanto precedente, extrair a norma que incidirá ou
não na situação concreta análoga posta em juízo. 197
Essa complexa atividade lógico-interpretativa dos precedentes judiciais, na
busca de seu conteúdo vinculativo, é viabilizada pelo método de confronto
denominado distinguishing. Através dele o juiz analisa se os fatos postos em juízo
podem ou não ser considerados análogos ao paradigma, sendo certo que o
precedente deve guardar absoluta pertinência substancial com a holding do caso
sucessivo − precedent in point − para que tenha eficácia vinculante.198
A técnica do distingo, para além de identificar a holding, pode interpretá-la,
seja de modo restritivo (restrictive distinguishing) ou ampliativo (ampliative
distinguishing). Veja-se a lição de Guido Fernando Silva Soares199:
195
SOARES, op. cit., p. 42.
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 173.
197
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 175.
198
Ibid., p. 174.
199
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000. p. 42.
196
99
Nos casos novos, apresentados na lacuna de case laws, ou a corte pode
reler os holdings anteriores com um espírito de interpretação restritiva (“to
narrow the holding”), ou de uma interpretação extensiva (“to read a holding
more broadly”), ou, ainda, meramente declarativa (na afirmação de que o
caso se aplica à espécie, tal e qual).
A seu turno, o efeito vinculante existente numa holding tem a natureza de
regra hermenêutica de cunho universal, repercutindo, portanto, sobre todos os casos
futuros aos quais ela tenha pertinência, de modo que o vínculo açambarcado pela
regra do stare decisis se distingue do dever de respeito à coisa julgada, esta que,
disciplinando o caso concreto, possui efeito apenas inter partes.200
Entretanto, referida submissão às decisões anteriores não é absoluta, sendo
o distinguishing uma das técnicas de se furtar à força vinculativa do precedente,
sobretudo quando, por ocasião da distinção, verificar-se que os casos não são
análogos e que não comportam sequer um ampliative distinguishing.
Ocorre que, afora a situação supracitada, existem técnicas que permitem a
desconsideração de um precedente, ainda que se trate de caso análogo ou idêntico,
numa postura mais drástica do que a verificada no distinguishing. Nas palavras de
Guido Fernando Silva Soares:
Podem as cortes superiores, igualmente, desconsiderar um precedent e
decidir com novas razões um caso semelhante: é o overruling (autêntica abrogação do precedente, ou, no que é mais comum, sua derrogação,
continuando válido para certos aspectos da questão examinada - o que
201
nada mais é do que transformar um holding num dictum!).
Num primeiro momento, quanto às motivações para substituir – overruled –
determinado precedente, tem-se que as cortes superiores podem fazê-lo por ser
considerado superado ou, até mesmo, equivocado − per incuriam ou per ignorantia
legis. Nesses casos, a decisão que inova o ordenamento jurídico revoga
expressamente a holding anterior – express overruling – retirando-lhe o valor
vinculante.202
Outrossim, é possível que, sem qualquer menção ao posicionamento
jurisprudencial vinculante, a nova decisão siga fundamento absolutamente distinto
que implique em novo resultado de julgamento, caso em que terá havido uma
200
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 176.
201
SOARES, Guido Fernando Silva. Common law - Introdução ao Direito dos EUA. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000. p. 42-43.
202
TUCCI, op. cit., p. 179.
100
revogação implícita do precedente – implied overruling – retirando, do mesmo modo,
a carga vinculante do precedente substituído.203
Desse modo, a regra do stare decisis é flexibilizada pela possibilidade de
mudança das regras estabelecidas nos precedentes, chamada to overrule a
precedent, podendo ser levada a cabo pela própria corte da qual emanaram ou por
corte de hierarquia superior.204
Ademais, conforme sua produção de efeitos no tempo, podem ser citadas
como formas de excetuar a força vinculativa de um precedente os denominados
retrospective overruling, prospective overruling e antecipatory overruling.
Um retrospective overruling ocorre quando a revogação do precedente se dá
com efeitos ex tunc, não permitindo que a decisão substituída possa ser invocada
como paradigma em casos que ocorreram antes da revogação e que aguardam
julgamento.
Já
o
prospective
overruling,
instituído
pela
Suprema
Corte
estadunidense, opera a revogação do precedente com eficácia ex nunc, ou seja,
somente deixa de ser adotado aos casos sucessivos à substituição, de forma que a
holding substituída continua a ter eficácia vinculante aos fatos ocorridos
anteriormente à revogação. E, por derradeiro, o antecipatory overruling consistente
na revogação preventiva do precedente, efetivada pelas cortes inferiores sob o pálio
de que não mais constitui um bom fundamento, conforme implicitamente já teria sido
reconhecido pelos tribunais superiores, bastando que na jurisprudência da corte
superior tenha havido uma modificação no vetor referente ao respectivo
precedente.205
Esse arcabouço de mecanismos aptos a mitigar a força vinculante do
precedente, podendo retirá-la totalmente em algumas hipóteses, está a evidenciar
que a regra do stare decisis não implica no engessamento do ordenamento jurídico,
já que não impede que determinada tese dominante, antes sedimentada, possa ser
superada por um novo processo de normatização jurisprudencial.
Ora, a dinamicidade social, consubstanciada pela constante modificação dos
paradigmas de interpretação de determinado fato social alçado à condição de fato
jurídico, demanda um sistema jurídico capaz de assimilar, arregimentar e disciplinar
203
Ibid., p. 179.
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 173.
205
TUCCI, José Rogério Cruz e. Precedente judicial como fonte do Direito. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2004. p. 179-180.
204
101
referidas mutações, como corolário da própria justiça ou, ao menos, para a
diminuição das tensões sociais.206
De acordo com José Rogério Cruz e Tucci, “o ponto de referência normativo
no âmbito da commom law é exatamente o precedente judicial, enquanto no
tradicional sistema da civil law o precedente, geralmente dotado de força persuasiva,
é considerado fonte secundária do direito”207, e “tal eficácia persuasiva, dependendo
de inúmeras variantes, pode ser maior ou menor”.208.
Esclarece Cruz e Tucci, outrossim, “que em determinados ordenamentos
jurídicos de direito escrito, como, por exemplo, do Brasil, adota-se, um modelo misto,
vale dizer de precedentes vinculantes e de precedentes persuasivos”209, concluindo
que
Na atualidade, o Direito Brasileiro adota um modelo misto quanto à eficácia
dos precedentes judiciais, a saber: a) precedentes com eficácia meramente
persuasiva; b) precedentes com relativa eficácia vinculante; c) precedentes
210
com eficácia vinculante.
9.3 Condições para Mudança da Jurisprudência no Civil Law e suas
consequências
Diz Teresa Arruda Alvim Wambier que “a mudança da jurisprudência é um
fato que dificilmente passa despercebido no Brasil”, e “uns veem esse fenômeno
com entusiasmo, afirmando que este é o caminho para a evolução do direito”,
enquanto
“outros,
com
veemência,
criticam
essas
alterações,
afirmando,
211
vigorosamente, que os precedentes devem ser obedecidos”.
Assevera também que:
Parece que nós ainda carecemos de uma teoria adequada que nos ajude a
explicitar em que circunstâncias as Cortes podem ser inovadoras, e quando
devem ser conservadoras; quando devem passar por cima das velhas
206
Ibid., p. 180.
TUCCI, José Rogério Cruz e. Direito Jurisprudencial. São Paulo:
100.
208
TUCCI, José Rogério Cruz e. Direito Jurisprudencial. São Paulo:
101.
209
TUCCI, José Rogério Cruz e. Direito Jurisprudencial. São Paulo:
101.
210
TUCCI, José Rogério Cruz e. Direito Jurisprudencial. São Paulo:
111-112.
211
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São
2012, p. 12.
207
Revista dos Tribunais, 2012, p.
Revista dos Tribunais, 2012, p.
Revista dos Tribunais, 2012, p.
Revista dos Tribunais, 2012, p.
Paulo: Revista dos Tribunais,
102
decisões e quando os juízes insistem em que esta mudança ou reforma
212
deve ser feita pelo Poder Legislativo .
Para ela, “uniformidade não significa uniformidade de um certo e determinado
entendimento para sempre; e estabilidade não significa imutabilidade”.213
Pondera que “uma das mais relevantes funções do direito é a de, justamente,
gerar previsibilidade”, todavia, “como o direito serve à sociedade e esta se modifica,
é também necessário que, em alguma medida, o direito exerça a delicada função de
adaptar-se”.214
Noticia Teresa Arruda Alvim Wambier que “muitas vezes, na Inglaterra, o
overruling não se dá de modo expresso, explícito e direto, às vezes se estendendo
por anos, por um longo período: a erosão de um precedente é gradual”, de forma a
não gerar “um efeito abrupto no direito”.215
Tenha-se presente a advertência de José Rogério Cruz e Tucci que:
Deve ter-se presente que a abrupta alteração dos posicionamentos da
jurisprudência acarreta, em regra, gravíssimas consequências no plano da
dinâmica do direito, visto que: a) vulnera a previsibilidade dos
pronunciamentos judiciais; e, por via de consequência, b) produz
216
insegurança jurídica.
E com esta advertência, encerrando o presente capítulo, tem vez o exame da
questão que se refere à mudança da orientação judicial sobre determinado assunto
e suas consequências imediatas para a sociedade submetida ao crivo das decisões
do Poder Judiciário, num determinado caso concreto que, não obstante não toque a
temática dos danos morais, tem seu relevo e merece ser examinado ante a
oscilação valorativa que recebeu do sistema judicial brasileiro.
Para tanto, pinçou-se da literatura jurídica um ponto que, como se verá, vem
sendo tratado da maneira mais variada possível pela jurisprudência, causando
verdadeira balburdia no dia a dia dos chamados “loteamentos fechados” ou
212
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São
2012, p. 13.
213
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São
2012, p. 13.
214
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São
2012, 14.
215
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Direito Jurisprudencial. São
2012, p. 42.
216
TUCCI, José Rogério Cruz e. Direito Jurisprudencial. São Paulo:
110.
Paulo: Revista dos Tribunais,
Paulo: Revista dos Tribunais,
Paulo: Revista dos Tribunais,
Paulo: Revista dos Tribunais,
Revista dos Tribunais, 2012, p.
103
“condomínios de fato”, no que refere à questão da cobrança da taxa associativa,
como passa a ser explanado.
Normalmente, a administração dos assim denominados “loteamentos
fechados” ou “condomínios de fato” é feita por uma associação, oferecendo serviços
para os moradores do local, como segurança privada, coleta de lixo, opções de lazer
etc. A questão que vem sendo colocada para exame é a da cobrança da taxa
associativa referente à prestação desses serviços.
Óbvio que os moradores que se associaram à entidade que presta os
serviços devem pagar a taxa, pela simples razão de terem se associado. Nada mais
se trata do que a cobrança fundada no ato de vontade do morador que livremente se
associou, tendo de cumprir com as prestações deliberadas em assembleia.
O problema surge com aqueles moradores que, por qualquer motivo, não se
associaram, seja porque não quiseram, seja porque simplesmente não souberam da
existência da associação, o que não se mostra incomum. As duas alegações
principais trazidas por esses moradores que não se associaram são as seguintes:
primeira, que eles não têm obrigação de se associarem, daí que não têm obrigação
de pagarem a taxa associativa; segunda, que o loteamento não se trata de um
condomínio, daí que não devem o valor das despesas para a manutenção do local.
Posta a questão, demanda-se que se tragam as orientações jurisprudenciais
sobre o tema.
Por um primeiro entendimento, mostra-se como correta a cobrança da taxa
associativa, desde que devidamente comprovada a prestação dos mencionados
serviços. Afirma-se que aqueles que não querem pagar a taxa associativa são donos
de terrenos nos “loteamentos fechados” administrados pelas associações,
usufruindo dos serviços que são disponibilizados à comunidade de proprietários e
possuidores, tais como manutenção de ruas, lazer, segurança, coleta domiciliar de
lixo etc. Para essa corrente não há motivo algum para que um pequeno grupo de
pessoas pague por serviços que são colocados à disposição de toda uma
comunidade. Caso fosse negada a possibilidade de cobrança da taxa associativa
daqueles que não são associados, mas que têm terrenos no loteamento, se estaria
coadunando com o enriquecimento sem causa de uns em detrimento de outros, pela
valorização do imóvel daqueles que não querem pagar a taxa.
E essa orientação chegou a ser sufragada no Colendo Superior Tribunal de
Justiça:
104
O proprietário de lote integrante de loteamento aberto ou fechado, sem
condomínio formalmente constituído, cujos moradores constituíram
sociedade para prestação de serviços de conservação, limpeza e
manutenção, deve contribuir com o valor correspondente ao rateio das
despesas daí decorrentes, pois não se afigura justo nem jurídico que se
beneficie dos serviços prestados e das benfeitorias realizadas sem a devida
217
contraprestação.
Mas acabou vencida quando da reunião das duas Turmas da Segunda Seção
do Colendo Superior Tribunal de Justiça, em 26 de outubro de 2005, ocasião em
que, no exame dos Embargos de Divergência no REsp 444.931/SP, relator Ministro
Humberto Gomes de Barros, por maioria de votos, julgado em 26/10/05, decidiu-se
pela inadmissibilidade da cobrança em comento, sob os seguintes fundamentos:
As taxas de manutenção criadas por associação de moradores não podem
ser impostas a proprietário de imóvel que não é associado, nem aderiu ao
ato que instituiu o encargo. A questão é simples: o embargado não
participou da constituição da associação embargante. Já era proprietário do
imóvel, antes mesmo de criada a associação. As deliberações desta, ainda
que revertam em prol de todos os moradores do loteamento, não podem ser
impostas ao embargado. Ele tinha a faculdade – mais que isso, o direito
constitucional – de associar-se ou não. E não o fez. Assim, não pode ser
atingido no rateio das despesas de manutenção do loteamento, decididas e
implementadas pela associação. No nosso ordenamento jurídico há
somente três fontes de obrigações: a lei, o contrato ou o débito. No caso,
218
não atuam qualquer dessas fontes.
E essa vinha sendo a orientação predominante no mesmo Colendo Superior
Tribunal de Justiça sobre o tema, como se verifica nos seguintes julgados: AgRg no
EDcl no Ag nº 551.483-SP, REsp 778.145 e REsp 1.034.349/SP.
Todavia, não se pode deixar de mencionar que, em um julgado mais recente
do próprio Colendo Superior Tribunal de Justiça, de agosto de 2009, por sua 4ª
Turma, em votação unânime, o relator Ministro Luis Felipe Salomão, no AgRg nº
703.266-RJ, voltou a controverter a questão, afirmando categoricamente que, não
obstante o reconhecimento anterior da impossibilidade da cobrança da taxa
associativa, o tema deve ser examinado à luz de cada caso concreto, perquirindo-se
se o proprietário do lote foi ou não beneficiado por serviços prestados pela
associação. E ele concluiu que:
[...] conquanto a Segunda Seção desta Casa tenha traçado orientação no
sentido de que “as taxas de manutenção criadas por associação de
moradores, não podem ser impostas a proprietário de imóvel que não é
217
AgRg no REsp 490.419/SP; Rel. Min. Nancy Andrighi; 3ª T. DJU, 30 jun. 2003, p. 248.
REsp 444.931/SP; Relator Ministro Humberto Gomes de Barros; Julgado em 26/10/05; DJ, 01 fev.
2006, p. 427.
218
105
associado, nem aderiu ao ato que instituiu o encargo”, a questão deve ser
examinada considerando a realidade de cada caso, não havendo como
generalizar a tese. Não obstante a polêmica em torno da matéria, com
jurisprudência oscilante desta Corte, a posição mais correta é a que
recomenda o exame do caso concreto, e, para ensejar a cobrança da
cota-parte das despesas comuns, na hipótese de condomínio de fato,
mister a comprovação de que os serviços são prestados e o réu deles
se beneficia.
Nada obstante, em julgado mais recente ainda e agora prolatado pelo Excelso
Supremo Tribunal Federal, em virtude da competência constitucional para exame do
tema advindo da questão atinente à liberdade de associação, a orientação que
prevaleceu foi contrária, no sentido de negar-se à associação a possibilidade da
cobrança da taxa em referência. Com efeito, a E. 1ª Turma reformou acórdão que
determinara ao recorrente satisfazer compulsoriamente a mensalidade à associação
de moradores à qual não era vinculado. Ressaltou-se não se tratar de condomínio
em edificações ou incorporações imobiliárias regido pela Lei nº 4.591/64. Consignouse que, conforme dispõe a Constituição, ninguém estaria compelido a fazer ou a
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei e, embora o preceito se
referisse à obrigação de fazer, a concretude que lhe seria própria apanharia,
também, a obrigação de dar. Esta, ou bem se submeteria à manifestação de
vontade, ou à previsão em lei. Asseverou-se que o aresto recorrido teria esvaziado a
regra do inciso XX, do artigo 5º, da Constituição Federal, a qual revelaria que
ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado. Aduziu-se
que essa garantia constitucional alcançaria não só a associação sob o ângulo
formal, como também tudo que resultasse desse fenômeno e, iniludivelmente, a
satisfação de mensalidades ou de outra parcela, seja qual for a periodicidade, à
associação, pressuporia a vontade livre e espontânea do cidadão em associar-se.219
Como se viu, ao contrário do que se pode pensar, não se divisa, na
jurisprudência, solução única para a problemática da cobrança da denominada taxa
associativa. Note-se que, em poucos julgados e num curto período de tempo, a
oscilação quanto à decisão da questão foi radical: num primeiro momento deferiu-se
a cobrança da taxa contra o não associado; na sequência julgou-se improcedente tal
cobrança; depois a cobrança foi novamente admitida; e, por fim, foi dada como
indevida a taxa associativa no âmbito dos “condomínios de fato”.
219
Recurso Extraordinário nº 432.106, julgado pela 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em 20 de
setembro de 2011, relatoria do Ministro Marco Aurélio Mello.
106
Tal confusão tem, dentre outras, uma causa, qual seja, a ausência total de
legislação que discipline uma modalidade de ocupação do solo que se avulta a cada
dia, isto é, o denominado “loteamento fechado”, que não se trata do loteamento
regular da Lei nº 6.766/79, tampouco de um condomínio edilício previsto no Código
Civil (artigos 1.331/1.358).
Tentando solucionar a questão e evitar maiores delongas processuais, nos
autos do agravo de instrumento n°. 745831, o Ministro Dias Toffoli do Supremo
Tribunal Federal, em novembro de 2011, reconheceu a repercussão geral da
matéria, afirmando que “a questão posta apresenta densidade constitucional e
extrapola os interesses subjetivos das partes”. O julgamento, dessa forma, é
aguardado com expectativa pela comunidade jurídica.
Conclui-se, dessa sorte, que seria importante a edição de legislação federal
contempladora de normas gerais sobre os “loteamentos fechados”, ou, na sua
ausência, que a jurisprudência firmasse um precedente forte e com autoridade
suficiente para ser seguido nas instâncias inferiores, conferindo segurança jurídica
aos loteadores e aos proprietários de lotes, podendo ser, quem sabe, a própria
decisão a ser proferida no futuro julgamento acima citado em que se reconheceu a
repercussão geral da matéria. Com isso, se estaria fomentando cada vez mais a
atividade econômica do país no plano imobiliário, além de proporcionar redução
considerável dos litígios judiciais hoje enfrentados no dia a dia forense acerca do
tema.
107
10 O DANO MORAL
10.1 Natureza Jurídica Perante o Civil Law Brasileiro
A possibilidade de se indenizar o dano moral sofrido por uma pessoa, em
tese, nenhuma relação guarda com a concomitante punição a ser impingida ao
causador do prejuízo. Indenizar, como sabido, trata-se da recomposição do
patrimônio material daquele que se viu vítima de um infortúnio.
Em princípio, deveria a palavra “indenização” ser empregada apenas para a
reparação do dano material. Com alguma divergência, entende a grande maioria da
doutrina que o dano moral não pode ser reparado, porquanto a dor espiritual não
tem conteúdo econômico, daí não poder ser mensurada a respectiva indenização.
Para os casos de dano moral, nesse quadro, teria cabimento uma mera
compensação da dor sofrida pela vítima por uma quantia em dinheiro. Assente,
então, que o dano material se indeniza e o dano moral se compensa por valor em
espécie.
Nada obstante, tanto a doutrina quanto a jurisprudência aceitam, sem
problemas, o termo “indenização” para tratar da reparação do dano material e da
compensação do dano moral.
Resumindo, então, não há qualquer equívoco ao se falar em “indenizar” o
dano material ou o dano moral.
Isto posto, pode-se dizer que, tendo sido praticado um ato causador de dano
material ou moral, terá cabimento uma indenização, por meio da qual uma quantia
em dinheiro servirá como reparação pelo prejuízo material e como compensação
pelo prejuízo imaterial.
Consoante frisado no início do presente trabalho, as questões que orbitam no
entorno do abalo moral indenizável – à exceção de sua possibilidade de reparação
prevista expressamente no artigo 186 do Código Civil de 2002 – são as que mais
expressivamente denotam a mitigação do sistema civil law adotado no Brasil.
O maior relevo do dano moral nesse aspecto se dá, essencialmente, por dois
motivos: porque tais questões se consubstanciam em um dos mais complexos
problemas enfrentados pelo operador do Direito na vida forense diária, e porque,
não obstante a grande incidência social, que demandaria um regramento
minudenciado e exaustivo como decorrência do sistema romano-germânico adotado
108
pela nossa nação, o abalo moral indenizável gozou de poucas e superficiais
menções no vigente Código Civil de 2002, podendo-se citar como a mais importante
aquela do seu artigo 186.
Ocorre que o mencionado dispositivo legal não vai além de mencionar que o
dano indenizável pode ser material ou “moral”, ou “exclusivamente moral”, restando
absolutamente desprovidas de regramento todas as demais questões que gravitam
em seu entorno; vale dizer, a multiplicidade de situações fáticas e suas nuances
soçobraram diante da desértica previsão legal da matéria.
Nesse vácuo de atuação legislativa, ao longo do tempo, casuisticamente
soergueram-se questões a respeito das quantias a serem fixadas a título de
indenização; quais as possíveis pessoas vítimas de atos ilícitos que poderiam ser
beneficiadas por tais indenizações, ou se até mesmo o nascituro; se um simples
inadimplemento contratual geraria ou não o dano moral; como haveria de se dar a
contagem dos juros e correção monetária quando da fixação da indenização por
danos morais etc.
Por óbvio, tais controvérsias, a despeito da lacuna legislativa existente, não
puderam ser subtraídas da apreciação pelo Poder Judiciário, de modo que as lides
judiciárias envolvendo o dano moral e seus consectários passaram a ser resolvidas
exclusivamente com base em precedentes jurisprudenciais relativos a fatos idênticos
ou semelhantes em cotejo aos postos para exame no processo a ser decidido.
E é esse o fundamento para que o dano moral e os questionamentos que lhe
são correlatos traduzam com maior relevo a temperança evidenciada pela existência
de institutos e mecanismos típicos do sistema do common law como corolário de que
o nosso sistema jurídico não adota, exclusivamente, o sistema romano-germânico.
10.2 Conceito
José de Aguiar Dias220 entende que “[...] o dano moral consiste na penosa
sensação da ofensa, na humilhação perante terceiros, na dor sofrida, enfim, nos
efeitos puramente psíquicos e sensoriais experimentados pela vítima do dano, em
consequência deste [...]”.
220
DIAS, José Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 783.
109
Para Antonio Jeová Santos221 “[...] o que configura o dano moral é aquela
alteração no bem-estar psicofísico do indivíduo, uma alteração desfavorável, aquela
dor profunda que causa modificações no estado anímico [...]”.
Assim, como é corrente na doutrina, pode-se dizer que o dano moral trata-se
de lesão provocada a um direito da personalidade.
E, nesse sentido, Carlos Alberto Bittar222 esclarece o que são os direitos da
personalidade, devendo ser compreendidos como:
a) os próprios da pessoa em si (ou originários), existentes por sua natureza,
como ente humano, com o nascimento; b) e os referentes às suas projeções
para o mundo exterior (a pessoa como ente moral e social, ou seja, em seu
relacionamento com a sociedade).
Álvaro Villaça Azevedo223 afirma que “se o dano for moral, para que se
indenize, certamente, no Direito brasileiro, é preciso que agrida direitos da
personalidade, com ou sem reflexos de perda patrimonial”.
Nessa linha de orientação, podemos concluir que constitui dano moral a
ofensa, a lesão e a redução dos atributos personalíssimos, a violação a direitos
inatos. O bem jurídico lesado no dano moral é justamente a intimidade, a liberdade,
o nome, o sigilo, a vida privada, a integridade física, a honra, a imagem e outros
atributos sem os quais não seria possível exercer os demais direitos subjetivos.
10.3 A Denominada “Pena Privada” do Direito Europeu
Veja-se, que, em princípio, não se menciona a indenização por danos morais
como instrumento hábil à punição do agente causador do dano, mesmo tendo este
agido imbuído de dolo ou culpa grave.
Assim, como se viu, numa formulação mais restritiva, não se poderia pensar
na indenização como meio para punir o agente causador de dano, tampouco como
instrumento para dissuadir a prática de outras condutas ilícitas idênticas. Não
poderia, dessa forma, a indenização por danos morais desenvolver os aspectos de
repressão e prevenção quanto à prática de atos causadores de prejuízos, como se
dá com a indenização punitiva estadunidense.
221
SANTOS, Antonio Jeová. Dano moral indenizável. São Paulo: Método, 2001. p. 100.
BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2004. p. 164.
223
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Código Civil comentado: negócio jurídico. Atos jurídicos lícitos. Atos
ilícitos. São Paulo: Atlas, 2003. v. 2, p. 380.
222
110
Como dito, entretanto, apenas num tom mais restritivo de tratamento do tema
é que se pode chegar a tal conclusão. Isso porque, com algum vacilo, a pesquisa da
doutrina e da jurisprudência brasileiras aponta conclusão diversa da acima
mencionada. Com razão, não é reduzida a doutrina civil nacional propondo que a
indenização não tem como única finalidade a recomposição do dano material e a
compensação pelo dano moral, com a possibilidade também de servir como
instrumento de punição ao agente causador do prejuízo, da forma como atuam os
punitive damages dos Estados Unidos.
Ora, afinal, então, tem ou não a indenização por danos morais no Brasil a
função punitiva ao agente causador do dano, atuando como instrumento de
repressão e prevenção, como a pena criminal para os ilícitos considerados de
repercussão pública?
A questão ganhou seus contornos por meio daquilo que se denominou pena
privada no direito europeu.
Relata Giovanni Ettore Nanni que “na contramão da história, inspirados, entre
outros elementos, nos punitive damages oriundos do common law, autores da
Europa continental buscaram nos últimos vinte anos reavivar o antigo conceito da
pena privada”.224 Mas, segundo entende, “apesar da opinião de alguns autores
clássicos em defesa de tal ponto de vista, a pena privada não vingou como um
elemento preponderante na fixação dos danos patrimoniais”225, mesmo ressalvando
que “a questão continua a ser debatida”.226
Nesse sentido, afirma-se que a pena privada é uma alternativa intermediária à
ideia de simples ressarcimento do dano e à pena pública, pois também tem a
finalidade de punir e intimidar o ofensor, e inibir que torne a praticar determinada
ilicitude. Assim, apesar de a pena privada se mostrar um instrumento útil e
autônomo, é algo que não afasta a tipicidade do direito penal e tampouco o
ressarcimento típico do direito civil, eis que se trata de meio de colaboração no
alcance da justiça.
Aponta-se que a recente retomada dos debates em torno da aplicação da
pena privada deve-se à atual tendência de reduzir a pena pública (a
"despenalização" do setor público). No entanto, alega-se ser estranho e contraditório
224
NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 348.
NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 348.
226
NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 349.
225
111
defender-se, no mesmo momento, de um lado, a redução da pena como sanção do
ato ilícito no setor público, e, de outro, propor exatamente o inverso, penalizando o
setor privado.
O interesse pelo tema da pena privada apresenta uma razão bastante
profunda: deve-se à insatisfação que se verifica em torno da tutela dos direitos da
pessoa nos dias atuais, em relação aos quais os mecanismos tradicionais de
ressarcimento de danos mostram-se insuficientes.
Contrário à aplicação da pena privada, Giovanni Ettore Nanni pondera que:
A fixação da indenização derivada do dano extrapatrimonial deve
acompanhar duas diretrizes, quais sejam, ressarcir o dano sofrido e punir o
ofensor a fim de que não reincida na prática do ato danoso. Porém, assim
procedendo, estar-se-ia concedendo uma indenização superior ao dano
227
efetivo, o que, em princípio, configuraria um enriquecimento sem causa.
E conclui que “a pena privada não seria um critério coerente para subsidiar a
fixação dos danos extrapatrimoniais”228, pois “violaria, dentre outros, o princípio da
legalidade”229.
Não há como não se reconhecer os jurídicos argumentos expendidos pelo
doutrinador acima citado, sobretudo no que toca à ausência de disposição legislativa
para aplicação da pena privada.
Mas, de outro turno, respeitosamente, entende-se, hoje, não só pertinente,
como também essencial, a fixação de penas privadas ou mesmo punitive damages –
como queira – no bojo das indenizações por danos morais.
Realmente, o que se verifica na atualidade, pela experiência forense, é a
prolação de julgados, cada vez mais comuns em primeira instância, devidamente
confirmados em segundo grau de jurisdição, nas instâncias especial (Superior
Tribunal de Justiça) e extraordinária (Supremo Tribunal Federal), impondo
indenizações que, camuflando a roupagem de compensação por danos morais, em
verdade, têm como intuito inescondível a imposição de uma sanção civil ao agente
ofensor, como na pena privada do direito europeu ou nos punitve damages
americanos.
Pode-se afirmar, assim, ser cada vez mais vigorosa a jurisprudência nacional
no sentido da fixação reiterada de indenizações punitivas em valores que só fazem
227
NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 351.
NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 354.
229
NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. São Paulo: Saraiva: 2004, p. 354.
228
112
aumentar, calcada em posição doutrinária que tem em mira o princípio da irrestrita
indenizabilidade da vítima.
O fato é que, repita-se, seja justificada pelo princípio da irrestrita
indenizabilidade à vítima, seja por qualquer outro elemento que se insira como
fundamentação do decisório, como, por exemplo, o dolo ou culpa grave por parte do
agente danoso, e até mesmo a situação financeira das partes, não há como se frear
a tendência do Poder Judiciário brasileiro à fixação da indenização punitiva.
Não há como se esperar, por exemplo, que as sanções administrativas
incutam na postura das empresas o devido respeito ao consumidor, bastando uma
leitura cotidiana dos jornais para se constatar que as agências reguladoras dos
serviços de telefonia, transporte aéreo e terrestre, água, energia elétrica e tantos
outros, não alcançam qualquer solução aos problemas enfrentados pelos
consumidores com relação à péssima qualidade do serviço prestado. O Poder
Público, de outro lado, nos serviços que centraliza, sequer oferece um hospital
descente para a população, numa desídia vergonhosa com o serviço mais essencial
para a pessoa humana, o de saúde.
Some-se
a
isso
a
tendência,
também
de
duvidosa
eficácia,
de
descriminalização de condutas, galgando o Direito Penal à condição de última ratio,
e se tem o cidadão colocado numa situação de absoluta vulnerabilidade em sua
proteção administrativa e criminal, restando-lhe, portando, buscar a observância de
seus direitos por meio da fixação de indenização por danos morais, neles incluídos a
pena privada ou mesmo os punitive damages, visando a não reincidência da
prestação defeituosa de serviços essenciais à sociedade ou mesmo a não reiteração
de condutas dolosas ou movidas por culpa grave em situações as mais variadas.
Pensa-se, dessa sorte, que a pena privada pode ser útil para a fixação do
valor do ressarcimento por danos morais, devendo observar alguns critérios sempre
focados na finalidade retributiva e preventiva dessa sanção.
Assim, a pena privada judicial seria aquela imposta pelo juiz sem que haja
necessidade de sua previsão negocial ou legislativa, calcada em princípios como o
da irrestrita indenizabilidade da vítima ou da dignidade da pessoa humana.
Verifica-se, portanto, que, no momento em que o magistrado brasileiro fixa a
indenização por danos morais levando em consideração aspectos como, por
exemplo, o dolo do agente, está, ainda que se valendo de outras palavras, aplicando
a pena privada do direito europeu ou os punitive damages americanos.
113
Nesse cenário, o que se tem hoje é a adoção da teoria dos punitive
damages ou pena privada pelo próprio Superior Tribunal de Justiça, consoante
recentíssimo julgado de maio do ano de 2012, por votação unânime da 4ª Turma:
RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DE
TRÂNSITO. AGRESSÃO FÍSICA AO CONDUTOR DO VEÍCULO QUE
COLIDIU COM O DOS RÉUS. REPARAÇÃO DOS DANOS MORAIS.
ELEVAÇÃO. ATO DOLOSO. CARÁTER PUNITIVO-PEDAGÓGICO E
COMPENSATÓRIO.
RAZOABILIDADE
E
PROPORCIONALIDADE.
RECURSO PROVIDO. 1. Na fixação do valor da reparação do dano moral
por ato doloso, atentando-se para o princípio da razoabilidade e para os
critérios da proporcionalidade, deve-se levar em consideração o bem
jurídico lesado e as condições econômico-financeiras do ofensor e do
ofendido, sem se perder de vista o grau de reprovabilidade da conduta do
causador do dano no meio social e a gravidade do ato ilícito. 2. Sendo a
conduta dolosa do agente dirigida ao fim ilícito de causar dano à vítima,
mediante emprego de reprovável violência física, o arbitramento da
reparação por dano moral deve alicerçar-se também no caráter punitivo e
pedagógico da compensação, sem perder de vista a vedação do
enriquecimento sem causa da vítima. 3. Na hipótese dos autos, os réus
espancaram o autor da ação indenizatória, motorista do carro que colidira
com a traseira do veículo que ocupavam. Essa reprovável atitude não se
justifica pela simples culpa do causador do acidente de trânsito. Esse tipo
de acidente é comum na vida diária, estando todos suscetíveis ao evento, o
que demonstra, ainda mais, a reprovabilidade da atitude extrema, agressiva
e perigosa dos réus de, por meio de força física desproporcional e
excessiva, buscarem vingar a involuntária ofensa patrimonial sofrida. 4.
Nesse contexto, o montante de R$ 13.000,00, fixado pela colenda Corte a
quo, para os dois réus, mostra-se irrisório e incompatível com a gravidade
dos fatos narrados e apurados pelas instâncias ordinárias, o que autoriza a
intervenção deste Tribunal Superior para a revisão do valor arbitrado a título
de danos morais. 5. Considerando o comportamento altamente reprovável
dos ofensores, deve o valor de reparação do dano moral ser majorado para
R$ 50.000,00, para cada um dos réus, com a devida incidência de correção
monetária e juros moratórios. 6. Recurso especial provido. REsp
839923/MG; RECURSO ESPECIAL: 2006/0038486-2; Relator(a): Ministro
RAUL ARAÚJO; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do
Julgamento: 15/05/2012; Data da Publicação/Fonte: DJe 21/05/2012.
Veja-se que o julgado inteiro faz menção a aspectos que deixam isenta de
qualquer tipo de dúvida a adoção de conteúdo punitivo da indenização por danos
morais, que acabou majorada, exatamente em virtude do viés punitivo nela inserido,
de R$ 13.000,00 fixados na instância ordinária, para R$ 50.000,00 imputados a cada
um dos réus pelo ato de agressividade que tiveram no trânsito contra outro
motorista.
Com o máximo respeito, pensa-se que, por mais técnica que possa ser a
tese contrária, os danos morais fixados hoje no Brasil carregam um caráter punitivo
inescondível, sendo mais franco que se admita logo isso às claras, de tal sorte que
se possa gerir as relações pessoais ciente desse fato.
114
10.4 Meros Transtornos e Inadimplemento Contratual
Trata-se de duas hipóteses de não configuração de dano moral, sem que se
possa falar em sua indenização, por consequência.
Isso porque, segundo o doutrinador Sérgio Cavalieri Filho, o dano moral
À luz da Constituição vigente, nada mais é do que agressão à dignidade.
(...) Se dano moral é agressão a dignidade humana, não basta para
configurá-lo qualquer contrariedade. (...) Nesse linha de princípio, só deve
ser reputado como dano moral a dor, vexame, sofrimento ou humilhação
que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento
psicológico do indivíduo, causando-lhe aflições, angústia e desequilíbrio em
230
seu bem-estar.
Assim,
afirma,
“mero
dissabor,
aborrecimento,
mágoa,
irritação
ou
sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral, porquanto, além de
fazerem parte da normalidade do nosso dia a dia, não são aptas a romper o
equilíbrio psicológico do indivíduo”.231
Ademais, de acordo com Humberto Theodoro Júnior232,
Viver em sociedade e sob o impacto constante de direitos e deveres, tanto
jurídicos como éticos e sociais, provoca, sem dúvida, frequentes e
inevitáveis conflitos e aborrecimentos, com evidentes reflexos psicológicos,
que, em muitos casos, chegam mesmo a provocar abalos e danos de
monta. Para, no entanto, chegar-se à configuração do dever de indenizar,
não será suficiente ao ofendido demonstrar sua dor. Somente ocorrerá a
responsabilidade civil se reunirem todos os seus elementos essenciais:
dano, ilicitude e nexo causal. Se o incômodo é pequeno (irrelevância) e se,
mesmo sendo grave, não corresponde a um comportamento indevido
(licitude), obviamente não se manifestará o dever de indenizar (ausência da
responsabilidade civil cogitada no art. 159 do Código Civil).
Destarte, sem ofensa relevante a um dos direitos da personalidade, descabe
a indenização por danos morais.
O decidido no REsp 844.736/DF é emblemático nesse ponto, tratando-se de
pleito indenitário fundado no recebimento de "spams", ocasião em que o Ministro
Honildo Amaral de Mello Castro asseverou que:
[...] Em verdade, não compreendo como o envio de SPAM possa ser
considerado fundamento para justificar a ação de dano moral, se essa
evolução tecnológica pode ser bloqueada, deletada ou simplesmente
230
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.
80.
231
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 7ª ed. São Paulo: Atlas, 2010, p.
80.
232
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Dano Moral. São Paulo: Oliveira Mendes, 1998, p. 8.
115
recusada, havendo, ainda, a hipótese de se solicitar que não mais sejam
enviados. Acredito que seja, realmente, um incômodo para todos que
recebam o indesejado SPAM. Contudo, não vejo como esse veículo de
propaganda se constitua ilícito, por falta de previsão legal, além de não ser
visto como dano se não contém ataques a honra ou a dignidade de quem o
recebe, formalmente, portanto sem nexo causal entre a pretensão judicial
de condenação de dano moral e o fato que a justificaria.
Juntamente à hipótese supracitada, de ocorrência de meros dissabores
cotidianos, podemos citar aquela outra situação de não cabimento de indenização
moral jurisprudencialmente consagrada: a decorrente de mero descumprimento
contratual, cristalizada nos REsps 844.736/DF, 628.854/ES, 653.819/MG, dentre
outros.
Registre-se que neste campo do descumprimento contratual outro não é o
trilhar da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
negando-se a indenização por danos morais:
Apelação 0207071-51.2009.8.26.0100 – Relator Paulo Hatanaka – 19ª
Câmara de Direito Privado – data do julgamento 22/11/2011. Ementa:
DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DE DÉBITO C.C. ANTECIPAÇÃO
PARCIAL DE TUTELA - Por aplicação das normas protetivas do Código de
Defesa do Consumidor, tornou-se abusiva as cobranças das tarifas das
ligações telefônicas celulares em desacordo com a renegociação encetada
pelas partes litigantes - Cumpria à Ré-Apelante ter feito provas de suas
alegações da peça contestatória - Não demonstração de que os valores
cobrados eram efetivamente devidos e regulares em conformidade com o
acordado - Ocorrência de falta de adequada e clara informação dos serviços
prestação ao consumidor - Tipificação de má prestação de serviços
telefônicos - Artigo 14, "caput", CDC - Recursos não providos.
RESPONSABILIDADE CIVIL INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS –
DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL - SERVIÇO TELEFÔNICO - MERO
DISSABOR - O mero dissabor não pode ser alçado ao patamar do dano
moral, mas somente aquela agressão que exacerba a naturalidade dos
fatos da vida, causando fundadas aflições ou angústias no espírito de quem
ela se dirige - A inobservância das cláusulas contratuais por uma das partes
pode trazer aborrecimentos ao outro contratante, mas esse dissabor pode
afetar qualquer cidadão em decorrência da complexidade da vida em
sociedade - Inexistências de danos morais a serem ressarcidos - Recursos
não providos.
Insta
esclarecer,
todavia,
que,
excepcionalmente,
os
tribunais
vêm
reconhecendo a ocorrência de abalo moral fundada em descumprimento contratual,
circunscrevendo o cabimento do pedido a hipóteses pontuais, como na injustificada
negativa de cobertura de procedimento cirúrgico por parte da empresa de plano de
saúde.
116
Nesse sentido, veja-se recente julgado do STJ de 2013:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.322.914 – PR, RELATORA MINISTRA NANCY
ANDRIGHI. EMENTA: CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO
ESPECIAL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS MATERIAIS E
COMPENSAÇÃO DE DANOS MORAIS. RECUSA INDEVIDA À
COBERTURA DE TRATAMENTO DE SAÚDE. DANO MORAL. FIXAÇÃO.
1. A recusa, pela operadora de plano de saúde, em autorizar tratamento a
que esteja legal ou contratualmente obrigada, implica dano moral ao
conveniado, na medida em que agrava a situação de aflição psicológica e
de angústia no espírito daquele que necessita dos cuidados médicos.
Precedentes. 2. A desnecessidade de revolvimento do acervo fáticoprobatório dos autos viabiliza a aplicação do direito à espécie, nos termos
do art. 257 do RISTJ, com a fixação da indenização a título de danos morais
que, a partir de uma média aproximada dos valores arbitrados em
precedentes recentes, fica estabelecida em R$12.000,00, cuja atualização
retroagirá à data lançada na sentença. 3. Recurso especial provido.
Na mesma quadra o julgado abaixo do TJSP:
Apelação 0027659-35.2010.8.26.0001 – Relator James Siano – 5ª Câmara
de
Direito
Privado
–
data
do
julgamento
14/12/2011.
Ementa: AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER E INDENIZAÇÃO POR DANO
MORAL. Plano de Saúde. Autora menor impúbere, portadora de paralisia
cerebral. Contrato de prestação de serviços médicos e hospitalares firmado
em novembro de 2009 mencionando a pré-existência da patologia. Após
sete meses da contratação, autora necessitou se submeter a cirurgia para
obstar o agravamento do quadro clínico de subluxação do quadril e joelhos.
Recusa da operadora em custear o tratamento sob a assertiva de que o
prazo de carência seria de 24 meses. Necessidade de obtenção de liminar
para realização de cirurgia de emergência. Sentença de procedência
condenando a operadora a arcar com os custos da cirurgia e pagar
indenização por danos morais no valor de R$ 10.200,00. Apelo da ré
insistindo na legalidade da recusa em razão do conveniado se encontrar no
período de carência e na inexistência de dano moral indenizável, por se
tratar de hipótese de mero descumprimento contratual. Outrossim, insurgese contra o valor fixado a título de indenização. A autora teve recusada
cobertura de internação e cirurgia em caráter de emergência. Cirurgia que
só foi realizada após obtenção de liminar. Situação de urgência e
emergência caracterizada. Nas situações de emergência aplicável seria o
prazo de 24h, estipulado no capítulo XVII, 17.1, do contrato e Resolução 13
do CONSU. O dano moral prescinde de comprovação, pois presumível
diante da gravidade da doença da autora e da urgência do tratamento,
sendo inegável o agravamento do quadro clínico e da situação psicológica
da autora, até obter a liberação judicial. Valor da indenização por danos
morais fixada em R$ 10.200,00 é exagerada, comportando redução para R$
5.000,00, por ser mais consentânea à realidade dos autos. Sentença de
procedência mantida, exceto no que tange ao valor da indenização.
Recurso parcialmente provido.
117
10.5 Uma Vexata Questio: Hipótese Jurisprudencial de Cabimento (ou não) da
Indenização por Danos Morais – abandono afetivo
Passemos à análise de uma hipótese jurisprudencial concreta na qual ainda
não se decidiu de forma definitiva a respeito do cabimento ou não da reparação civil
por abalo moral – o abandono afetivo.
Repise-se que a previsão legal inexistente atinente à matéria é, novamente, o
leitmotiv desse subitem, já que, do ponto de vista normativo, não há qualquer
hipótese legal casuística de cabimento ou exclusão da indenização decorrente de
lesão a direitos da personalidade.
Assim, coube inteiramente aos precedentes judiciais o tratamento da matéria,
fixando os casos em que o pleito indenitário é devido. Nesse desiderato, o Superior
Tribunal de Justiça editou as súmulas 370, 385 e 388, consagrando como
causadoras de abalo moral a apresentação antecipada de cheque pré-datado, a
anotação irregular em cadastros de maus pagadores e a devolução indevida de
cheque.
Mas, ao lado destas hipóteses objetivas e já consagradas como passíveis de
indenização por danos morais, há outras que geram extramada dúvida sobre sua
indenizabilidade, como no caso em exame do abandono afetivo.
Com efeito, em princípio, o STJ reconheceu a inocorrência de abalo moral
fulcrado na propositura de ação de investigação de paternidade, com alegação de
falta de afeto, abandono moral e rejeição dos filhos, ao fundamento de que esses
atos não são ilícitos, de modo a inviabilizar o pleito indenitário:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ABANDONO MORAL. REPARAÇÃO. DANOS
MORAIS. IMPOSSIBILIDADE. 1. A indenização por dano moral pressupõe a
prática de ato ilícito, não rendendo ensejo à aplicabilidade da norma do art.
159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo, incapaz de reparação
pecuniária. 2. Recurso especial conhecido e provido. REsp nº 757.411/MG,
Rel. Ministro Fernando Gonçalves.
E, mesmo posteriormente, referida corte ratificou este entendimento, através
de uma de suas turmas:
CIVIL E PROCESSUAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE.
RECONHECIMENTO. DANOS MORAIS REJEITADOS. ATO ILÍCITO NÃO
CONFIGURADO. I. Firmou o Superior Tribunal de Justiça que "A
indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo
ensejo à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o
abandono afetivo, incapaz de reparação pecuniária" (Resp n. 757.411/MG,
118
4ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, unânime, DJU de 29.11.2005). II.
Recurso especial não conhecido. REsp 514350 / SPT4 - QUARTA
TURMA28/04/2009Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR.
Ocorre que, recentemente, referida corte, através de uma de suas turmas
componentes da seção de direito privado, acabou por franquear a reparação por
abalo moral em caso de abandono afetivo, consoante julgado abaixo ementado:
CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. FAMÍLIA. ABANDONO AFETIVO.
COMPENSAÇÃO POR DANO MORAL. POSSIBILIDADE. 1. Inexistem
restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade
civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2.
O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento
jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que
manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da
CF/88. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi
descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a
forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem
juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e
companhia - de cuidado - importa em vulneração da imposição legal,
exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos
morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que
minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em
relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que,
para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos
quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e
inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de
excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento
de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do
recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por
danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a
quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada.
7. Recurso especial parcialmente provido. Processo: REsp 1159242 / SP;
RECURSO ESPECIAL 2009/0193701-9; Relator(a): Ministra NANCY
ANDRIGHI; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento:
24/04/2012; Data da Publicação/Fonte: DJe 10/05/2012
Trata-se, esta, então, de
questão emblemática quanto à falta de
sistematização e uniformidade no que respeita aos danos morais, se traduzindo em
acesa divergência havida dentro do próprio Superior Tribunal de Justiça quanto à
possibilidade de indenização pedida em virtude do abandono do filho por um dos
genitores, normalmente o pai.
Repita-se, em virtude da perplexidade que isso poderia gerar numa pessoa
não letrada na ciência jurídica. Das duas Turmas competentes pelo julgamento das
causas relativas ao Direito Privado, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, por
unanimidade, desde o ano de 2005, tem entendimento consolidado de que “a
indenização por dano moral pressupõe a prática de ato ilícito, não rendendo ensejo
à aplicabilidade da norma do art. 159 do Código Civil de 1916 o abandono afetivo,
119
incapaz de reparação pecuniária” (REsp nº 757.411/MG, Rel. Ministro Fernando
Gonçalves). Ocorre que, numa polêmica decisão de abril de 2012, tal orientação foi
completamente afastada, também por unanimidade, pela 3ª Turma do mesmo
Superior Tribunal de Justiça, impondo-se indenização de R$200.000,00 a um pai
que se reconheceu ter abandonado sua filha durante toda a infância e juventude,
obrigando-a
ao
ajuizamento
de
ação
de
investigação
de
paternidade,
fundamentando-se que “amar é faculdade, cuidar é dever”, e que “não existem
restrições legais à aplicação das regras relativas à responsabilidade civil e o
consequente dever de indenizar/compensar no direito de família” (REsp nº
1.159.242/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi).
Em outras palavras, o filho abandonado que tiver a sua ação indenizatória
apreciada em grau de recurso por uma das Turmas do Superior Tribunal de Justiça
de Direito Privado – a 3ª Turma – será compensado pelos danos morais que lhe
foram ocasionados, enquanto se idêntica ação chegar à Corte Superior por meio do
respectivo recurso e aportar na outra Turma de Direito Privado – a 4ª Turma – o pai
que abandonou sua prole não se verá obrigado ao pagamento da reparação
pecuniária.
Impõe-se, nesse quadro, a reunião das duas Turmas competentes para a
elucidação definitiva da questão, de forma a que toda a sociedade e as instâncias
inferiores do Poder Judiciário tomem conhecimento da orientação a ser seguida, se
o caso de admissão da vinculação ao julgado.
Já o Tribunal de Justiça de São Paulo tem posicionamento firme acerca do
não reconhecimento de indenização por danos morais nestes casos:
Apelação 9216109-79.2005.8.26.0000, Relator(a): Francisco Loureiro,
Comarca: Ribeirão Preto, Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado,
Data do julgamento: 04/06/2009, Data de registro: 26/06/2009, Ementa:
Indenização - Dano moral - Abandono afetivo - Possibilidade, em tese,
desde bem caracterizada violação aos deveres extrapatrimoniais que
integram o poder familiar, causando o comportamento antijurídico traumas
expressivos ou sofrimento intenso ao filho - Prova dos autos que apontou
para distanciamento de ambas as partes, diante da nova situação criada
com a separação dos pais - Filhos que foram viver em outro Estado da
Federação, dificultando os contatos recíprocos - Ação indenizatória somente
ajuizada após citação em ação revisional de alimentos proposta pelo pai Filha universitária e recém-formada em direito - Filho estudante de medicina
- Ausência de prova de que a violação dos deveres inerentes ao poder
familiar tenham provocado sofrimento intenso ou traumas severos na filha Inexistência de deliberada intenção de abandonar os filhos - Precedentes
jurisprudenciais - Ação improcedente - Apelação da autora não provida.
120
Apelação 0086836-40.2004.8.26.0000, Relator(a): Viviani Nicolau,
Comarca: São Paulo, Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito Privado, Data
do julgamento: 06/09/2011, Data de registro: 09/09/2011, Ementa:
APELAÇÃO INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. Danos
imputados ao reconhecimento tardio da paternidade – Improcedência. Apelo
do autor. Inconsistência. Improcedência ratificada nos moldes do artigo 252,
do Regimento Interno deste Tribunal - Danos materiais e morais não
caracterizados - Ausência de fundamento jurídico para obrigar o apelado a
indenizar a apelante. Sentença mantida. Negado provimento ao recurso.
Apelação 9164226-59.2006.8.26.0000, Relator(a): J. L. Mônaco da Silva,
Comarca: São José do Rio Preto, Órgão julgador: 5ª Câmara de Direito
Privado, Data do julgamento: 28/09/2011, Data de registro: 29/09/2011,
Ementa: PRESCRIÇÃO - Desacolhimento - Fixação do termo inicial para o
exercício do direito de ação - Dano decorrente de omissão - Situação que
se prolonga no tempo - Preliminar de mérito rejeitada. INDENIZAÇÂO Danos morais - Abandono moral - Filha rejeitada pelo pai - Abalos
psicológicos - Improcedência da demanda - Inconformismo Inadmissibilidade - Atos praticados pelo réu na ação de investigação de
paternidade que não ensejam reparação pecuniária - Exercício regular de
direito - Sentença mantida - Recurso desprovido. Preliminar rejeitada e
recurso desprovido.
Apelação 0120671-14.2007.8.26.0000, Relator(a): Maia da Cunha,
Comarca: Ituverava, Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado, Data do
julgamento: 21/05/2009, Data de registro: 03/06/2009, Ementa: Dano moral
por abandono afetivo. Teoria de responsabilidade civil que se afasta do fato
concreto de que não há obrigação legal de o pai amar o filho, de onde
advém o carinho e o afeto naturais. Inexistência de ato ilícito porque não se
pode obrigar a amar ou manter relacionamento afetivo. Jurisprudência do
STJ. Hipótese em que se trata de filho cuja paternidade só foi reconhecida
judicialmente e na qual falta o amor natural que se tem normalmente em
relação aos filhos esperados e amados desde a concepção. Dano psíquico
que, quando existe, não acarreta indenização de quem poderia e não deu
afeto e amor. Deficiência física no desenvolvimento das orelhas que não foi
a causa da falta de relacionamento do pai com o filho. Ação corretamente
julgada improcedente. Recurso improvido por maioria de votos.
Apelação 9109865-58.2007.8.26.0000, Relator(a): Marco César Müller
Valente, Comarca: Itatiba, Órgão julgador: 1ª Câmara de Direito Privado A
Data do julgamento: 06/11/2007, Data de registro: 13/11/2007, Ementa:
Dano moral - Ação indenizatória por dano moral, proposta por filho ao pai,
reconhecido o vínculo genético em ação de investigação de paternidade,
buscando indenizar-se peia falta de afeto, e suas decorrências no piano
social e psicológico - Improcedência decretada em primeiro grau - Apelo do
autor improvido - Os desdobramentos morais dos vínculos familiares devem
estar fora da ingerência burocrática estatal, inclusive a judiciária, pena de
desnaturamento, tratando-se o que repousa em plano superior como
assunto para ser resolvido por terceiros, alheios à relação personalíssima e
inclusive emocional.
10.6 A Atual Tramitação Legislativa do “Estatuto do Dano Moral”
Encerrando este capítulo, tem oportunidade o exame daquele que se pode
denominar o futuro e eventual “Estatuto do Dano Moral”, que, uma vez aprovado,
121
será resultado da promulgação do atual Projeto de Lei nº 523/11, em trâmite na
Câmara dos Deputados, já contando com a anuência do Relator na Comissão de
Constituição e Justiça, acrescido de uma emenda comum e uma emenda
substitutiva.
Para melhor apreciação daquele que pode vir a ser um importantíssimo
diploma legislativo no quadro da situação das indenizações por danos morais no
Brasil, transcreve-se o texto original do projeto de lei de autoria do Eminente
Deputado Walter Tosta, do Partido da Mobilização Nacional (PMN), de Minas Gerais:
Projeto de Lei n. 523, de 2011 - Dispõe sobre o dano moral e dá outras providências.
Art. 1º. Esta Lei dispõe sobre o dano moral e dá outras providências.
Art. 2º. Dano moral é todo àquele em que haja irreparável mácula à honra subjetiva de pessoa natural
ou jurídica.
Art. 3º. São hipóteses suscetíveis à indenização por dano moral:
I – a inscrição indevida em cadastros de inadimplentes;
II – a cobrança indevida de valores;
III – a contratação em relação de consumo, sem a anuência formal expressa do consumidor;
IV – a realização de procedimento de revista em consumidor;
V – o fornecimento ou vendagem de passagem para veículo de transporte coletivo cujas vagas
estejam esgotadas.
VI – o fornecimento de produto fora das especificações técnicas ou adequadas às condições de
consumo;
VII – o fornecimento de produto alimentício contaminado, fora do prazo de validade ou em condição
diversa às estipuladas pelas normas sanitárias;
VIII – a disposição de cláusula leonina ou abusiva em instrumento de contrato;
IX – a realização de cobrança de débito, por qualquer meio, em local de trabalho;
X – o assédio moral no ambiente de trabalho;
XI – a exposição vexatória no ambiente de trabalho;
XII – o descumprimento das normas técnicas da medicina do trabalho;
XIII – o erro médico que cause dano à vida ou à saúde do paciente;
XIV – a exposição da vida ou da saúde de outrem a risco;
XV – a exposição de dados pessoais, sem a anuência formal da pessoa exposta;
XVI – a veiculação por meio de comunicação em massa de notícia inverídica;
XVII – a comprovada exposição pública de caso extraconjugal;
XVIII – os casos de dano decorrente da violação do dever de cuidado;
XIX – o abuso no exercício do poder diretivo;
XX – a interrupção injustificada do fornecimento de serviço essencial;
XXI – a demonstração pública de discriminação racial, política, religiosa, de gênero ou qualquer outro
atentado discriminatório;
XXII – a exposição vexatória ou não consentida da imagem pessoal;
122
XXIII – negar a alguém direito expresso em lei;
XXIV – o ato ilícito ainda que não gere dano específico;
Art. 4º. Para o arbitramento da indenização serão levados em consideração o potencial econômico da
vítima e do autor do dano, sendo a média aritmética obtida entre o potencial econômico comprovado
das partes envolvidas o parâmetro final para arbitramento da indenização quando o requerente for a
parte com menor potencial econômico.
Parágrafo único. Quando o requerente for a parte com maior potencial econômico da relação
processual o parâmetro final será o potencial econômico da parte hipossuficiente.
Art. 5º O potencial econômico das partes deverá ser documentalmente comprovado.
§ 1º. O potencial econômico da parte requerente deverá ser comprovado como requisito objetivo do
pleito.
§ 2º. O potencial econômico da parte requerida deverá ser comprovado em sede de contestação sob
pena de ser acolhido aquele porventura ventilado pelo requerente ou presumido pelo Juízo.
Art. 6º. A indenização será fixada entre 10 e 500 salários mínimos, levando-se em consideração os
parâmetros dispostos no artigo 4º desta Lei.
Art. 7º. Nas ações coletivas ou naquelas com efeito erga omnes não há limite máximo para
arbitramento de valor pecuniário apto a reparar o dano indenizável, podendo ser requerido aquele
que a parte entender de direito ou arbitrado aquele julgado adequado.
A seguir, transcreve-se a modificação do projeto original, consubstanciado no
texto aprovado na Comissão de Constituição e Justiça pelo Relator o Eminente
Deputado Paes Landim, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) do Piauí:
Substitutivo ao Projeto de Lei n. 523/11 - Dispõe sobre o dano moral e sua reparação.
Art. 1° - Constitui dano moral a lesão ao patrimônio moral da pessoa natural, da pessoa jurídica e dos
entes políticos, ainda que não atinja o seu conceito na coletividade.
§ 1° - Como pressupostos para a caracterização da obrigação de indenizar, deverá ser comprovada a
ação ou omissão do agente, a existência de culpa, a ocorrência de nexo de causalidade entre o fato e
o evento danoso e a efetiva ocorrência de prejuízo.
§ 2° - A ocorrência de caso fortuito ou de força maior constituem fatos excludentes de
responsabilidade.
Art. 2º - São bens juridicamente tutelados por esta lei aqueles inerentes à pessoa física: o nome, a
honra, a imagem, a intimidade.
Art. 3º - São bens juridicamente tutelados por esta lei aqueles inerentes à pessoa jurídica e aos entes
políticos: a imagem, o nome, a respeitabilidade.
Art. 4° - É considerado responsável pela reparação do dano moral aquele que, por ação ou omissão,
causar lesão ao patrimônio moral de outrem.
Parágrafo único – Todo aquele que, de alguma forma, tenha colaborado para a ocorrência do dano,
também será responsável pela sua reparação, na proporção de sua ação ou omissão.
Art. 5º - A indenização por danos morais pode ser pedida cumulativamente com os danos materiais
decorrentes do mesmo ato lesivo.
§ 1º - Se houver cumulação de pedidos de indenização, o juiz, ao exarar a sentença, discriminará os
valores das indenizações a título de danos patrimoniais e de danos morais.
§ 2º - A composição das perdas e danos, assim compreendidos os lucros cessantes e os danos
emergentes, não se prestarão como parâmetro para a fixação do valor de indenização dos danos
morais.
Art. 6° - A situação de irregularidade do agente ou preposto da Administração não a isenta da
responsabilidade objetiva de indenizar o dano moral, ressalvado o direito de regresso.
123
Art. 7° - Ao apreciar o pedido, o juiz considerará o teor do bem jurídico tutelado, os reflexos pessoais
e sociais da ação ou omissão, a possibilidade de superação física ou psicológica, assim como a
extensão e duração dos efeitos da ofensa.
§ 1º - Se julgar procedente o pedido, o juiz fixará a indenização a ser paga, a cada um dos ofendidos,
em um dos seguintes níveis:
I - ofensa de natureza leve: até dez mil reais;
II - ofensa de natureza média: até quarenta mil reais;
III - ofensa de natureza grave: até cem mil reais;
§ 2º - Na fixação do valor da indenização, o juiz levará em conta, ainda, a situação social, política,
econômica e creditícia das pessoas envolvidas, as condições em que ocorreu a ofensa ou o prejuízo
moral, a intensidade do sofrimento ou humilhação, o grau de dolo ou culpa, a existência de retratação
espontânea, o esforço efetivo para minimizar a ofensa ou lesão e o perdão, tácito ou expresso.
§ 3º - A capacidade financeira do causador do dano, por si só, não autoriza a fixação da indenização
em valor que propicie o enriquecimento sem causa, ou desproporcional, da vítima ou de terceiro
interessado.
Art. 8° - Prescreve em seis meses o prazo para o ajuizamento de ação indenizatória por danos
morais, a contar da data do conhecimento do ato ou omissão lesivos ao patrimônio moral.
Pois bem, transcritos o projeto original e seu substitutivo, impende agora que
se promova um cotejo entre os dois, na medida em que contêm uma diferença
marcante entre si. E, infelizmente, a diferença que se estabeleceu entre os dois –
entre o projeto original e seu substitutivo – implicou numa piora sensível daquilo que
já não se tratava de um satisfatório trabalho técnico a respeito do tema que se
pretende legislar.
Com efeito, afora a irrelevante mudança do nome de uma ementa para outra,
o ponto fulcral que se tocou quando do trâmite do projeto, perante a Comissão de
Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, se referiu ao conteúdo do artigo
3º do projeto original, que deu lugar ao § 1º do artigo 7º do seu substitutivo. O
projeto original, ainda que de forma muito deficitária, apontava objetivamente
algumas hipóteses passíveis de fixação de indenização por danos morais, sendo a
primeira delas uma das situações mais corriqueiras das lides forenses, qual seja, a
inscrição indevida em cadastros de inadimplentes. O substitutivo eliminou a
delimitação de hipóteses concretas e abriu três cláusulas genéricas permissivas da
indenização por danos morais, nos casos de ocorrência de ofensa de natureza leve,
média e grave, cujos conceitos ficam a cargo do juiz.
Vê-se, nesse passo, a clara orientação legislativa de passagem de uma
orientação calcada no sistema do civil law para o common law, já que o projeto
original, que impunha o dever indenizatório por danos morais em hipóteses legais
concretas, foi superado pelo seu substitutivo, com a entrega ao magistrado quanto
ao exame das situações passíveis de reparação por prejuízo extrapatrimonial.
124
Não há, pensa-se, espaço para críticas nem quanto ao projeto original nem
quanto ao seu substitutivo, já que cada um possui suas virtudes pelo sistema que
adota. Realmente, o estabelecimento de hipóteses concretas, segundo o projeto
original, seguindo o caminho do civil law, traz como benefício o fato de pontuar
algumas situações em que não se deixa ao alvedrio de ninguém – senão da lei –
dizer se é ou não cabível a indenização por danos morais. De outro lado, por mais
óbvio que isso possa parecer, necessário que se afirme que o projeto original não
teria condições de estabelecer todas as infindáveis hipóteses de compensação por
danos morais, de sorte que o seu substitutivo tem como ponto favorável a entrega
desta aferição ao crivo judicial, que, sensível ao caso concreto, terá condições de
decidir com maior grau de justiça.
E é por isso que, nesse particular, não se pode estabelecer críticas nem
quanto ao projeto original nem quanto ao seu substitutivo; mas, sim, deve-se
promover uma crítica – que se espera seja construtiva – quanto à pretensão de
prevalência ou superação total de um ou de outro.
Veja-se que, nesse momento, o que se propugna, nada mais é do que a
adoção, num determinado e específico diploma legislativo, dos caracteres benéficos
de ambos os sistemas jurídicos examinados ao longo deste estudo – o civil law e o
common law.
Isso é perfeitamente possível e necessário. Hipóteses, por exemplo, de morte
de parentes próximos e de cônjuge, podem, perfeitamente, por se tratarem de fatos
objetivos, constarem de uma lista de casos passíveis de indenização por danos
morais, além de contarem com fixação predeterminada de valores indenizatórios,
permitindo-se uma essencial coesão das decisões judiciais nestes casos, de forma
que não se permita mais que um filho que perdeu um de seus pais consiga 50
salários mínimos como reparação por danos morais, enquanto outro seja
compensado com 500 mil reais por ter sido vítima da mesma infelicidade.
Não se alegue que se trata isso de tarifação inconstitucional ante o princípio
da indenização integral da vítima de atos ilícitos. Trata-se, isso sim, de se delimitar,
por meio de trabalho legislativo legítimo, o valor que se entende necessário e
suficiente para a compensação devida por lesão a direito da personalidade, que
visa, ademais, a garantia da preservação de interesses constitucionais de grandeza
também muitíssimo relevantes, como o princípio da igualdade.
125
Isso mesmo se tendo em conta a advertência de Alberto Gosson Jorge Junior
de que “não tem caído nas boas graças dos Tribunais a limitação tarifada”.233
Mas, pensando-se naquele que poderia ser um “Estatuto do Dano Moral” mais
próximo da melhor técnica legislativa possível, ao lado de tais hipóteses concretas
de indenização, que seriam estabelecidas com fulcro na consolidação das questões
indenitárias promovida pelo Superior Tribunal de Justiça e na mais cristalizada
jurisprudência dos Tribunais Estaduais, abrir-se-ia, subsidiariamente, uma cláusula
geral de exame judicial de possíveis outras situações passíveis de compensação por
danos morais, de sorte que novas ocorrências não ficariam excluídas do crivo do
magistrado.
Respeitosamente, esta é a ideia que, resumidamente, se entende como a
mais adequada a promover uma melhora no texto do Projeto de Lei nº 523/2011 da
Câmara dos Deputados, que dispõe sobre o dano moral e sua reparação, segundo
sua ementa.
Necessária, por último, uma ressalva, já que, ao se mencionar acima que não
merecem crítica o projeto original e seu substitutivo, deve ser dito que essa
blindagem refere-se unicamente ao fato de adotarem, cada um deles, aspectos do
civil law e do common law, criticando-se, isso sim, a pretensão de prevalência
absoluta de um ou de outro.
Isso porque o projeto de lei, tanto na sua forma originária quanto em seu
substitutivo, merece e deve ser melhorado em uma série de outros pontos. A título
unicamente de exemplo, o projeto original, ao relacionar as hipóteses suscetíveis de
indenização, listava a “comprovada exposição pública de caso extraconjugal” (inciso
XVII do artigo 3º), numa situação que, sendo desnecessária qualquer delonga, se
trata de um pitoresco caso que não encontra mínima consolidação jurisprudencial
como passível ou não de indenização, devendo ser excluído do rol.
De outro lado, o substitutivo, em seu § 1º do artigo 1º, impõe como um dos
pressupostos para a caracterização da obrigação de indenizar a “existência de
culpa”, desconsiderando por completo toda a evolução da responsabilidade civil,
desde os tempos da irreparabilidade até a imposição do dever indenizatório em
virtude
233
do
risco
da
atividade,
passando
pelas
hipóteses
concretas
de
JORGE JUNIOR, Alberto Gosson. Subsídios para uma interpretação das cláusulas gerais no
novo Código Civil. Dissertação de Mestrado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica, 2003,
p.147.
126
responsabilidade objetiva, que, hoje, ademais, representam a maioria esmagadora
das situações envolvendo a temática atinente à reparação por danos morais, sendo
prescindível, como sabido de todos, a comprovação da culpa.
E, por uma última crítica, mais a título de sugestão neste caso, o prazo de
prescrição estabelecido no substituto do projeto, que reduz os 5 anos do Código de
Defesa do Consumidor e os 3 anos do Código Civil para apenas e tão somente 6
meses (artigo 8º), é, para dizer o menos, desarrazoado. Para se sustentar isso,
basta um argumento de ordem pragmática: em inúmeros casos de atos ilícitos, num
prazo exíguo de 6 meses, a vítima sequer teve a oportunidade de se recuperar
minimamente do abalo sofrido, sem condições, ainda, de estabelecer conversações
com o agente danoso a respeito do pagamento extrajudicial de eventual indenização
ou contratar advogado, e porque não mencionar os casos em que sequer houve
uma consolidação ainda que parcial das lesões verificadas.
Enfim, entende-se o Projeto de Lei nº 523/2011 da Câmara dos Deputados
como uma iniciativa salutar e fundamental ao manejo desta sensível ramificação do
Direito Civil, que, devidamente adequada a uma melhor técnica legislativa, pode e
deve contribuir de forma decisiva para a racionalização das lides judiciárias e a
preservação da igualdade constitucional entre as vítimas de atos danosos.
127
11
PRECEDENTES
DO
STJ
E
DO
TJSP
SOBRE
A
LEGITIMIDADE
ATIVA/PASSIVA E O VALOR DA INDENIZAÇÃO NO DANO MORAL
Reza a Constituição Federal, em seu artigo 105, inciso III, alínea “c”, competir
ao Superior Tribunal de Justiça
[...] julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última
instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos
Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida [...]
der a lei federal interpretação divergente da que lhe haja atribuído outro
tribunal.
Da determinação constitucional supracitada emana a função precípua do
Superior Tribunal de Justiça: salvaguardar a segurança jurídica relativa à aplicação
da legislação federal. Decisões discrepantes sobre uma mesma questão federal
devem ser extirpadas do ordenamento jurídico, sendo certo que os julgados do
Colendo Superior Tribunal de Justiça que busquem tal desiderato – sobretudo
quando pacificados em seu âmbito interno – devem, o quanto possível, se constituir
em precedentes a serem observados.234
Interpretação contrária, possibilitando aos Tribunais de Justiça e Tribunais
Regionais a aplicação da lei de forma diversa à anterior decisão uniformizadora
prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça, redundaria no esvaziamento de sua
autoridade e de sua própria existência, bem como militaria em desfavor da coerência
do Direito, da segurança jurídica, da previsibilidade e da igualdade. Em resumo, na
lição de Luiz Guilherme Marinoni235
[...] se o pressuposto da divergência de interpretação é requisito de
admissibilidade do julgamento do Superior Tribunal de Justiça, o único
sentido da norma constitucional é o de que, após a decisão da Corte
afirmando a interpretação cabível, todos os tribunais inferiores estão a ela
vinculados.
Com essa consideração, ao lado da coleta de dados do Superior Tribunal de
Justiça, como se mencionou, é necessário que se promova também a pesquisa,
quanto ao tema em exame, sobre a orientação da maior corte estadual de justiça da
América Latina, em virtude da jurisprudência de excelência que ali se produz,
tratando-se do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, que vem, há nada menos
234
MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
p. 492.
235
Ibid., p. 492-493.
128
que 137 anos, contribuindo decisivamente para a segura aplicação da legislação no
que toca ao tema da responsabilidade civil.
E é dessa forma que se passa a examinar as lides forenses decididas em
última instância pelo STJ, assim como aquelas resolvidas no âmbito do TJSP,
acerca de alguns pontos relativos à indenização por danos morais, que, em virtude
da carência legislativa em torno da questão, geram consequentemente uma força
mais que persuasiva às decisões destes tribunais, constituindo-se em verdadeiros
precedentes a serem observados.
11.1 Sujeição Passiva
11.1.1 Pessoa jurídica e protesto liminarmente sustado
Cite-se, por primeiro, a edição da Súmula nº 227 pelo Colendo Superior
Tribunal de Justiça, embasada nos Recursos Especiais 129.428, 161.739 e 161.913,
por meio da qual se afirmou taxativamente que “A pessoa jurídica pode sofrer dano
moral”.
Dentre os fundamentos utilizados para a edição da súmula podemos citar
ainda o REsp 134.993, relatado pelo então Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira,
que em seu voto ponderou:
Bem é verdade que a pessoa jurídica não sente, não sofre com a ofensa à
sua honra subjetiva, ao seu caráter, atributos do direito de personalidade,
inerente somente à pessoa física. Mas não se pode negar a possibilidade
de ocorrer ofensa ao nome da empresa, à sua reputação, que, nas relações
comerciais, alcançam acentuadas proporções em razão da influência que o
conceito de empresa exerce.
Referido acórdão restou assim ementado:
CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANOS MORAIS. PESSOA
JURÍDICA.
POSSIBILIDADE.
HONRA
OBJETIVA.
DOUTRINA.
PRECEDENTES DO TRIBUNAL. RECURSO PROVIDO PARA AFASTAR A
CARÊNCIA DA AÇÃO POR IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA ‒ A EVOLUÇÃO
DO
PENSAMENTO
JURÍDICO,
NO
QUAL
CONVERGIRAM
JURISPRUDÊNCIA E DOUTRINA, VEIO A AFIRMAR, INCLUSIVE NESTA
CORTE, ONDE O ENTENDIMENTO TEM SIDO UNÂNIME, QUE A
PESSOA JURÍDICA PODE SER VÍTIMA TAMBEM DE DANOS MORAIS,
CONSIDERADOS ESSES COMO VIOLADORES DA SUA HONRA
OBJETIVA. REsp 134.993/MA; Relator(a): Ministro SÁLVIO DE
FIGUEIREDO TEIXEIRA; Órgão Julgador: T4 QUARTA TURMA; Data do
Julgamento: 03/02/1998; Data da Publicação/Fonte: DJ 16/03/1998, p. 144.
129
O Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo possui farta
jurisprudência calcada no entendimento sumular supracitado, consoante recente
ementa que segue:
Apelação nº 9209718-40.2007.8.26.0000; Relator: S. Oscar Feltrin;
Comarca: Itararé; Órgão julgador: 29ª Câmara de Direito Privado; Data do
julgamento: 14/12/2011. Ementa: As pessoas jurídicas são dotadas de
conceito e de outros atributos imateriais economicamente valoráveis,
ostentando imagem perante a sociedade, podendo assim sofrer dano moral
passível de reparação pecuniária.
Nesses termos, vimos que a pessoa jurídica pode sofrer abalo moral caso
lesada em sua honra objetiva, entendida esta como seus atributos externos e
imprescindíveis ao desenvolvimento da atividade empresarial.
Ocorre que, mesmo nesse ponto específico, nova divergência jurisprudencial
surgiu, na corriqueira hipótese em que uma pessoa jurídica tem seu nome
empresarial levado a protesto decorrente de um título por ela não emitido ou quitado
anteriormente.
É óbvio que eventual protesto tirado sobre um título nessas circunstâncias
geraria abalo à honra objetiva da empresa, já que seu nome empresarial restaria
maculado, alijando-a da obtenção do crédito necessário à atividade exercida.
Entretanto, proposta ação cautelar para sustação do protesto e obtido o
provimento jurisdicional liminar que obsta o apontamento, pergunta-se: haveria abalo
moral a ser indenizado mediante a propositura de ação principal, certo que o ato
notarial não surtiu qualquer efeito?
A questão é tormentosa, havendo dois precedentes distintos que restaram
evidenciados no julgamento dos Recursos Especiais 254.073 e 752.672, cujas
ementas seguem, respectivamente, abaixo:
Pela possibilidade de indenização, o REsp 254.073/SP:
CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. APONTAMENTO INDEVIDO DE TÍTULO
A PROTESTO. PESSOA JURÍDICA. DANO MORAL. CABIMENTO.
SÚMULA N. 227-STJ. PROVA DO PREJUÍZO. DESNECESSIDADE. O
apontamento de título para protesto, ainda que sustada a concretização do
ato por força do ajuizamento de medidas cautelares pela autora, causa
alguma repercussão externa e problemas administrativos internos, tais
como oferecimento de bens em caução, geradores, ainda que em pequena
expressão, de dano moral, que se permite, na hipótese, presumir em face
de tais circunstâncias, gerando direito a ressarcimento que deve, de outro
lado, ser fixado moderadamente, evitando-se enriquecimento sem causa da
parte atingida pelo ato ilícito. II. “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral”
Súmula n. 227-STJ. III. Recurso conhecido e provido. REsp 254.073/SP;
Relator(a): Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR; Órgão Julgador: T4 -
130
QUARTA TURMA; Data do Julgamento:
Publicação/Fonte: DJ 19/08/2002, p. 170.
27/06/2002;
Data
da
Pela impossibilidade de indenização, o REsp 752.672/RS:
RECURSO
ESPECIAL.
DANO
MORAL.
PESSOA
JURÍDICA.
NECESSIDADE DE PUBLICIDADE E REPERCUSSÃO. PROTESTO
INDEVIDO. CAUTELAR DE SUSTAÇÃO QUE IMPEDIU O REGISTRO.
INEXISTÊNCIA DE PUBLICIDADE. 1. A pessoa jurídica não pode ser
ofendida subjetivamente. O chamado dano moral que se lhe pode afligir é a
repercussão negativa sobre sua imagem. Em resumo: é o abalo de seu
bom-nome. 2. Não há dano moral a ser indenizado quando o protesto
indevido é evitado de forma eficaz, ainda que por força de medida judicial.
REsp 752.672/RS; Relator(a): Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS;
Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 16/10/2007;
Data da Publicação/Fonte: DJ 29/10/2007, p. 219.
E a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
reflete a inexistência de uma única orientação judicial a ser seguida no trato da
questão, havendo divergência jurisprudencial no trato da questão, conforme se
verifica pelos julgados abaixo ementados, do ano de 2011:
Pela possibilidade de indenização mesmo com o protesto liminarmente
sustado:
Apelação nº 0013387-56.2004.8.26.0224; Relator(a): Rebello Pinho;
Comarca: Guarulhos; Órgão julgador: 20ª Câmara de Direito Privado;
Data do julgamento: 05/12/2011. Ementa: Apontamento indevido de título
a protesto constitui, por si só, fato ensejador de dano moral. Indenização
fixada na quantia de R$ 15.000,00, com incidência de correção monetária a
partir da data da prolação da r. sentença. Recurso desprovido.
Apelação nº 9162935-92.2004.8.26.0000; Relator(a): Fernandes Lobo;
Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 22ª Câmara de Direito Privado;
Data do julgamento: 09/06/2011. Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL.
Apresentação de duplicata por indicação para protesto, sustado por liminar
concedida em medida cautelar. Lastro mercantil inexistente. Nulidade
decretada. Conquanto sustado o protesto, o fato de ter sido a tanto
apontado (e a publicidade daí decorrente) caracteriza dano moral in re ipsa,
de inenizabilidade presumida. Quantum arbitrado, com proporcionalidade e
moderação, em R$ 5.000,00, afora juros (da citação) e atualização
monetária (da publicação do acórdão). Apelação provida.
Pela impossibilidade de indenização pelo simples apontamento:
Apelação nº 0005065-73.2009.8.26.0191; Relator(a): Souza Lopes;
Comarca: Poá; Órgão julgador: 17ª Câmara de Direito Privado; Data do
julgamento: 19/10/2011. Ementa: Cambial Duplicata. Declaratória
cumulada com indenização. Endosso mandato. Banco que age dentro dos
limites do mandato que lhe foi conferido. Ilegitimidade de parte passiva para
figurar em ação indenizatória e declaratória de nulidade de título. Dano
moral não configurado. Protesto não efetivado em razão da concessão de
liminar na Medida Cautelar. Recurso da autora improvido. Honorários
131
advocatícios. Sucumbência recíproca. Fixação de rigor, nos moldes do art.
21 do CPC. Recurso da corré parcialmente provido para este fim.
Apelação nº 9180831-80.2006.8.26.0000; Relator(a): Eduardo Sá Pinto
Sandeville; Comarca: Leme; Órgão julgador: 28ª Câmara da Seção de
Direito
Privado;
Data
do
julgamento:
26/07/2011.
Ementa:
Responsabilidade Civil – Dano moral - Inexistência - Mero apontamento
para protesto que não chegou a ser lavrado - Ausência de repercussão
externa - Recurso improvido.
Assim, quanto à hipótese de protesto ilegítimo eficazmente sustado por tutela
jurisdicional cautelar, não está evidente, por ora, qual seria o precedente judicial
aplicável ao caso, permanecendo a dúvida na jurisprudência do Superior Tribunal de
Justiça e do Tribunal de Justiça de São Paulo.
11.1.2 Nascituro
Outra difícil questão quanto à sujeição passiva do dano moral, enquanto
matéria exclusivamente orientada por precedentes judiciais, é aquela relativa à
possibilidade de indenização fixada em favor do nascituro.
Afora as teorizações sobre o momento inaugural da personalidade civil, temse que o nascituro − entendido como o ser já concebido, mas ainda inserto no meio
intrauterino − possui alguns direitos inerentes a um ser humano em formação
embrionária. Nesse sentido, o artigo 2º do Código Civil: “A personalidade civil
começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os
direitos do nascituro”.
Mas quais seriam esses direitos? Coube à jurisprudência, então, fixá-los por
meio de precedentes judiciais, como, por exemplo, no exame do REsp
1.120.676/SC, relatado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino do STJ, que
conferiu indenização securitária de DPVAT aos ascendentes do nascituro que foi
considerado como “segurado falecido”, constando no voto condutor que:
O Código Civil Brasileiro, no art. 2º, concebe como necessário à aquisição
da personalidade civil, o nascimento com vida (teoria natalista),
resguardando, todavia, desde a concepção, os direitos do nascituro (teoria
concepcionista). Se é certo que a lei brasileira previu como aptos a
adquirirem direitos e contraírem obrigações, os nascidos com vida, dotandoos de personalidade jurídica, não excluiu do seu alcance aqueles que, ainda
não nascidos, remanescem no ventre materno, reconhecendo-lhes a
aptidão de ser sujeitos de “direitos”. Nessa toada, o legislador resguardou
aos nascituros: direitos relacionados com a garantia do seu por vir (v.g.
direito aos alimentos gravídicos, penalização do aborto, direito à assistência
pré-natal), com o resguardo do seu patrimônio (v.g. doação; posse em
132
nome do nascituro; percepção de herança ou legado), com a preservação
da sua dignidade enquanto ser humano em formação (direito ao nome; ou,
em infeliz situação como a presente, aos cerimoniais fúnebres), desse rol
não havendo excluir-se a indenização securitária a ser alcançada aos
ascendentes do segurado falecido em face do seu passamento.
Assim, temos que o nascituro titulariza todos os direitos imprescindíveis para
que venha, em condições dignas, a nascer vivo. Logo, tendo o nascituro alguns dos
direitos da personalidade, é certo que poderia, em tese, sofrer abalo moral passível
de reparação.
Inobstante essa conclusão, o Superior Tribunal de Justiça expressa
divergência acerca da diminuição ou não do quantum indenitário no caso em que o
nascituro efetivamente não chegou a conhecer seu genitor, em cotejo com os
valores a serem percebidos pelos demais irmãos, no caso de morte de um dos pais.
Veja-se a referida divergência pelas ementas dos julgados abaixo:
RESPONSABILIDADE CIVIL. ACIDENTE DO TRABALHO. MORTE.
INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. FILHO NASCITURO. FIXAÇÃO DO
QUANTUM INDENIZATÓRIO. DIES A QUO. CORREÇÃO MONETÁRIA.
DATA DA FIXAÇÃO PELO JUIZ. JUROS DE MORA. DATA DO EVENTO
DANOSO. PROCESSO CIVIL. JUNTADA DE DOCUMENTO NA FASE
RECURSAL. POSSIBILIDADE, DESDE QUE NÃO CONFIGURADA A MÁFÉ DA PARTE E OPORTUNIZADO O CONTRADITÓRIO. ANULAÇÃO DO
PROCESSO. INEXISTÊNCIA DE DANO. DESNECESSIDADE. Impossível
admitir-se a redução do valor fixado a título de compensação por danos
morais em relação ao nascituro, em comparação com outros filhos do de
cujus, já nascidos na ocasião do evento morte, porquanto o fundamento da
compensação é a existência de um sofrimento impossível de ser
quantificado com precisão. Embora sejam muitos os fatores a considerar
para a fixação da satisfação compensatória por danos morais, é
principalmente com base na gravidade da lesão que o juiz fixa o valor da
reparação. É devida correção monetária sobre o valor da indenização por
dano moral fixado a partir da data do arbitramento. Precedentes. Os juros
moratórios, em se tratando de acidente de trabalho, estão sujeitos ao
regime da responsabilidade extracontratual, aplicando-se, portanto, a
Súmula nº 54 da Corte, contabilizando-os a partir da data do evento danoso.
Precedentes. É possível a apresentação de provas documentais na
apelação, desde que não fique configurada a má-fé da parte e seja
observado o contraditório. Precedentes. A sistemática do processo civil é
regida pelo princípio da instrumentalidade das formas, devendo ser
reputados válidos os atos que cumpram a sua finalidade essencial, sem que
acarretem prejuízos aos litigantes. Recurso especial dos autores
parcialmente conhecido e, nesta parte, provido. Recurso especial da ré não
conhecido. REsp 931.556/RS; Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI;
Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 17/06/2008;
Data da Publicação/Fonte: DJe 05/08/2008.
DIREITO CIVIL. DANOS MORAIS. MORTE. ATROPELAMENTO.
COMPOSIÇÃO FÉRREA. AÇÃO AJUIZADA 23 ANOS APÓS O EVENTO.
PRESCRIÇÃO INEXISTENTE. INFLUÊNCIA NA QUANTIFICAÇÃO DO
QUANTUM. PRECEDENTES DA TURMA. NASCITURO. DIREITO AOS
DANOS MORAIS. DOUTRINA. ATENUAÇÃO. FIXAÇÃO NESTA
INSTÂNCIA. POSSIBILIDADE. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO. I -
133
Nos termos da orientação da Turma, o direito à indenização por dano moral
não desaparece com o decurso de tempo (desde que não transcorrido o
lapso prescricional), mas é fato a ser considerado na fixação do quantum. II
- O nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas
a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do
quantum. III - Recomenda-se que o valor do dano moral seja fixado desde
logo, inclusive nesta instância, buscando dar solução definitiva ao caso e
evitando inconvenientes e retardamento da solução jurisdicional. REsp
399.028/SP; Relator(a): Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA;
Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 26/02/2002;
Data da Publicação/Fonte: DJ 15/04/2002, p. 232.
Na jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo há
maciço entendimento de que o nascituro pode sofrer abalo moral indenizável,
havendo alguma divergência quanto ao valor devido em face de seus irmãos já
nascidos no caso de morte de um dos pais. Confira-se:
Apelação nº 0002316-60.2010.8.26.0252; Relator(a): Arantes Theodoro;
Comarca: Ipauçu; Órgão julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Data do
julgamento: 24/11/2011. Ementa: Acidente automobilístico. Indenização
por morte. Ação ajuizada 18 anos após o fato, por filho que na ocasião
estava sendo gestado. Particularidade que não desautorizava o
reconhecimento de dano moral, apenas influía na determinação de seu
valor. Sentença não combatida no tocante aos danos materiais. Recurso
parcialmente provido.
Apelação nº 9178877-33.2005.8.26.0000; Relator(a): Norival Oliva;
Comarca: Caçapava; Órgão julgador: 26ª Câmara de Direito Privado; Data
do julgamento: 06/04/2010. Ementa: Não exclui o direito indenizatório do
filho pela morte do pai, causada por terceiros, prévia ação de indenização
promovida pela mãe e esposa do falecido.
11.1.3 Dano moral ricochete
Temos por igualmente tormentosa quanto à sujeição passiva do dano moral a
hipótese denominada pela jurisprudência como dano moral ricochete e vislumbrada,
v.g., na legitimidade ou não dos pais de uma vítima sobrevivente a um infortúnio em
pleitear compensação por danos morais, principalmente quando se considera,
hipoteticamente, que a própria desafortunada teve reconhecido o direito de receber
importância a título de compensação por danos morais.
Não obstante a indenização por dano moral seja devida, em regra, apenas ao
próprio ofendido, tanto a doutrina quanto a jurisprudência têm firmado sólida base na
defesa da possibilidade de os parentes do ofendido, a esses jungidos afetivamente,
postularem com ele uma compensação pelo prejuízo experimentado, conquanto
sejam atingidos apenas de forma indireta pelo ato lesivo. Neste ponto, a Ministra
Nancy Andrighi, ao relatar o REsp 1.208.949/MG, asseverou que:
134
Trata-se de hipótese de danos morais reflexos, ou seja, embora o ato tenha
sido praticado diretamente contra determinada pessoa, seus efeitos acabam
por atingir, indiretamente, a integridade moral de terceiros. É o chamado
dano moral por ricochete ou préjudice d’affection, cuja reparação constitui
direito personalíssimo e autônomo [...]. No direito comparado, há de se
destacar que tanto a doutrina francesa quanto a alemã admitem a existência
de danos reflexos (par ricochet ou Reflexschaden), ou seja, ofensa a bem
jurídico de terceiros diretamente envolvidos com o sofrimento
experimentado pelo principal prejudicado em razão do evento danoso.
E, ao finalizar seu voto, a Ministra pontuou:
Assim, são perfeitamente plausíveis situações nas quais o dano moral
sofrido pela vítima principal do ato lesivo atinjam, por via reflexa, terceiros
como seus familiares diretos, por lhes provocarem sentimentos de dor,
impotência e instabilidade emocional. É o que se verifica na hipótese [...] em
que postulam compensação por danos morais, em conjunto com a vítima
direta, seus pais, perseguindo ressarcimento por seu próprio sofrimento,
decorrente da repercussão do ato lesivo na sua esfera pessoal, eis que
experimentaram, indubitavelmente, os efeitos lesivos de forma indireta ou
reflexa.
Trilhando o mesmo caminho, o Ministro Sidnei Beneti, ao relatar o REsp
876.448/RJ, asseverou:
Deve-se reconhecer, contudo, que, em alguns casos, não somente o
prejudicado direto padece, mas outras pessoas a ele estreitamente ligadas
são igualmente atingidas, tornando-se vítimas indiretas do ato lesivo. Assim,
experimentam os danos de forma reflexa, pelo convívio diuturno com os
resultados do dano padecido pela vítima imediata, por estarem a ela ligadas
por laços afetivos e circunstâncias de grande proximidade, aptas a também
causar-lhes o intenso sofrimento pessoal. [...] O dano moral por ricochete ou
préjudice d’affection constitui direito personalíssimo dos referidos autores, e
autônomo, conferindo-lhes direito à indenização por dano reflexo, por terem
sido atingidos, também, em sua esfera de sofrimento. No caso, têm direito
os autores à indenização decorrente da incapacidade e da gravidade dos
danos causados à integridade física da vítima, eis que experimentaram,
indubitavelmente, os efeitos lesivos de forma indireta ou reflexa.
No trato doutrinário da matéria, segundo Caio Mário da Silva Pereira 236:
[...] Todas essas situações podem ser enfeixadas numa fórmula global ou
num princípio genérico: têm legitimidade ativa para a ação indenizatória as
pessoas prejudicadas pelo ato danoso. Não basta, entretanto, como no
lugar próprio já desenvolvi (Capítulo IV), um dano hipotético. Somente
enseja a titularidade à pretensão indenizatória exigível (Anspruch), quem
diretamente sofra o prejuízo. Esta regra comporta, entretanto, exceções,
das quais a mais contundente é a teoria do dano em ricochete (Capítulo IV).
Pessoa que não pode evidenciar dano direto, pode, contudo, argüir que o
fato danoso nela reflete, e, assim, adquire legitimidade para a ação, com
exclusividade ou cumulativamente com o prejudicado direto, ou em
condições de assistente litisconsorcial. Se se reconhece a existência do
dano em ricochete, não se pode recusar o direito de ação, esclarecendo
236
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 330.
135
desde logo que o direito da vítima mediata (reparação do dano material ou
moral) é distinto do da vítima imediata.
No mesmo sentido, Sérgio Severo237 assinala que “sobrevivendo a vítima
direta, a sua incapacidade pode gerar um dano a outrem”, e “os familiares mais
próximos da vítima direta gozam o privilégio da presunção juris tantum de que
sofreram um dano em função da morte do parente”, todavia, “se a vítima sobreviver,
devem comprovar que a situação é grave e, em função da convivência com a vítima,
há um curso causal suficientemente previsível no sentido de que o dano efetiva-se”.
Conquanto vislumbrada pela doutrina e jurisprudência a hipótese do
multicitado dano moral ricochete, Humberto Theodoro Júnior 238 é cuidadoso no trato
da tese de reparabilidade a pessoas ligadas à vítima, ponderando que:
Quando o ofendido comparece, pessoalmente, em juízo para reclamar
reparação do dano moral que ele mesmo suportou em sua honra e
dignidade, de forma direta e imediata, não há dúvida alguma sobre sua
legitimidade ad causam. Quando, todavia, não é o ofendido direto, mas
terceiros que se julgam reflexamente ofendidos em sua dignidade, pela
lesão imposta a outra pessoa, torna-se imperioso limitar o campo de
repercussão da responsabilidade civil, visto que poderia criar uma cadeia
infinita ou indeterminada de possíveis pretendentes à reparação da dor
moral, o que não corresponde, evidentemente, aos objetivos do remédio
jurídico em tela.
Nesse cenário, torna-se imperioso consignar que a jurisprudência do Superior
Tribunal de Justiça confere legitimidade ativa aos parentes do sujeito passivo direto
das lesões morais, no denominado dano moral ricochete:
DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. COMPENSAÇÃO POR
DANOS MORAIS. LEGITIMIDADE ATIVA. PAIS DA VÍTIMA DIRETA.
RECONHECIMENTO. DANO MORAL POR RICOCHETE. DEDUÇÃO.
SEGURO DPVAT. INDENIZAÇÃO JUDICIAL. SÚMULA 246/STJ.
IMPOSSIBILIDADE. VIOLAÇÃO DE SÚMULA. DESCABIMENTO.
DENUNCIAÇÃO À LIDE. IMPOSSIBILDADE. INCIDÊNCIA DA SÚMULA
7/STJ E 283/STF. 1. A interposição de recurso especial não é cabível
quando ocorre violação de súmula, de dispositivo constitucional ou de
qualquer ato normativo que não se enquadre no conceito de lei federal,
conforme disposto no art. 105, III, “a”, da CF/88. 2. Reconhece-se a
legitimidade ativa dos pais de vítima direta para, conjuntamente com essa,
pleitear a compensação por dano moral por ricochete, porquanto
experimentaram, comprovadamente, os efeitos lesivos de forma indireta ou
reflexa. Precedentes. 3. Recurso especial não provido. REsp 1.208.949/MG;
Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA
TURMA; Data do Julgamento: 07/12/2010; Data da Publicação/Fonte: DJe
15/12/2010.
237
SEVERO, Sérgio. Os danos extrapatrimoniais. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 25-26.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Dano moral. Belo Horizonte: Del Rey, 2010. p. 16.
238
136
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. VIOLAÇÃO AO ARTIGO
535, II, DO CPC NÃO CARACTERIZADA. AÇÃO REPARATÓRIA. DANOS
MORAIS. LEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM DO VIÚVO. PREJUDICADO
INDIRETO. DANO POR VIA REFLEXA. I - Dirimida a controvérsia de forma
objetiva e fundamentada, não fica o órgão julgador obrigado a apreciar, um
a um, os questionamentos suscitados pelo embargante, mormente se
notório seu propósito de infringência do julgado. II - Em se tratando de ação
reparatória, não só a vítima de um fato danoso que sofreu a sua ação direta
pode experimentar prejuízo moral. Também aqueles que, de forma reflexa,
sentem os efeitos do dano padecido pela vítima imediata, amargando
prejuízos, na condição de prejudicados indiretos. Nesse sentido, reconhecese a legitimidade ativa do viúvo para propor ação por danos morais, em
virtude de ter a empresa ré negado cobertura ao tratamento médicohospitalar de sua esposa, que veio a falecer, hipótese em que postula o
autor, em nome próprio, ressarcimento pela repercussão do fato na sua
esfera pessoal, pelo sofrimento, dor, angústia que individualmente
experimentou. Recurso especial não conhecido. (REsp 530.602/MA, Rel.
Min. CASTRO FILHO, TERCEIRA TURMA, DJ 17/11/2003).
No mesmo sentido é a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo:
Apelação nº 0024727-50.2011.8.26.0224; Relator(a): Beretta da Silveira;
Comarca: Guarulhos; Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Data
do julgamento: 04/10/2011. Ementa: Apelação - Indeferimento da petição
inicial, por inépcia - Pedido de assistência judiciária prejudicado, face a sua
concessão no Agravo de Instrumento nº 0127248-66.2011.8.26.0000, desta
Relatoria - Veiculação, na exordial, da tese do dano moral reflexo, cuja
indenização é pretendida dos estabelecimentos médico-hospitalares (clínica
médica e hospital) aos quais se encontra vinculado o profissional
responsável pelo suposto erro médico, que ocasionou lesão física à
companheira do apelante e sofrimento e constrangimento morais, por
ricochete, a este e a sua família - Reconhecimento indevido da ilegitimidade
ad causam, passiva e ativa - Sentença terminativa que deve ser reformada Recurso provido, prejudicado o exame do pleito de assistência judiciária.
Apelação nº 9150906-68.2008.8.26.0000; Relator(a): Gomes Varjão;
Comarca: Taubaté; Órgão julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Data
do julgamento: 09/05/2011. Ementa: Acidente de trânsito. Ações de
indenização por danos morais julgadas conjuntamente, dado o
reconhecimento da conexão. O dano moral independe de prova, porque
advém da experiência comum, sendo irrelevante a dependência econômica
em relação às vítimas, bem como valor recebido pelo ex-cônjuge e pai delas
em ação diversa. Hipótese em que se reconhece o dano por ricochete, já
que a mãe e irmãs de um dos falecidos foram inegavelmente atingidas pela
repercussão do evento danoso, em razão dos laços afetivos que as unia.
Razoabilidade da indenização em 150 (cento e cinquenta) salários-mínimos
para cada um dos autores. Os juros são devidos desde a data do evento
danoso, por se tratar de responsabilidade extracontratual. Deve ser
considerado o salário-mínimo vigente quando da prolação da r. sentença, a
fim de que não seja utilizado como fator de reajuste, bem como para se
adequar a indenização ao disposto na Súmula 362 do STJ. Improvido o
recurso da ré e parcialmente providos os dos coautores e da denunciada.
Vale a advertência de que este item tratou da questão do dano moral
denominado ricochete, no qual se discute a possibilidade de parentes próximos ou
137
cônjuges pleitearem reparação por danos morais juntamente com a vítima do ato
ilícito que permaneceu viva e também promoveu a ação indenizatória perante a
justiça, diferenciando-se da situação que será examinada no tópico abaixo atinente à
legitimidade para a demanda reparatória quando da morte da pessoa atingida pelo
evento danoso.
11.2 A Legitimidade Ativa
11.2.1 Legitimidade ativa no caso de morte da vítima
Outro ponto problemático acerca da reparabilidade das lesões morais é
aquele relativo à legitimidade ativa para postular sua reparação. Delimitando o
âmbito da controvérsia, frisamos não haver qualquer discussão quanto à
legitimidade para dedução de pretensão ressarcitória por pessoa que alegue ter
sofrido um dano. Entretanto, na clarividente lição de Sérgio Cavalieri Filho239:
A questão que se coloca, e para a qual ainda não há solução definitiva na
lei, nem na doutrina e na jurisprudência, é quanto ao limite para a reparação
do dano moral. Até que grau um parente pode pleitear indenização por esse
dano em razão da morte de familiar? Irmãos, primos, tios? E o amigo íntimo,
teria também legitimidade? Os fãs de uma artista ou atleta famoso também
teriam? Ainda que sejam milhões? Não há que se negar que todos sofrem
intensamente com a perda de alguém querido, mas só por isso todos terão
direito à indenização pelo dano moral? Um parente próximo pode sentir-se
feliz pela morte da vítima, enquanto o amigo sofrerá intensamente.
Nesse cenário, exsurge o posicionamento daqueles que entendem não haver
qualquer limitação e mui menos concorrência entre os atingidos pelo ilícito, de sorte
que a indenização pode ser pleiteada por qualquer prejudicado. A defesa de tal
posicionamento, mormente sustentada quando os supostos titulares da pretensão à
reparação guardam relação de parentesco, é fulcrada, simultaneamente, na
impossibilidade de hierarquização do direito postulatório dos ofendidos e na criação
de um direito de preferência entre eles, de forma a salvaguardar o direito de uns em
detrimento de outros. Logo, a reparação do dano moral não se circunscreveria a
nenhuma regra sucessória ou previdenciária.240
Consoante reiteradamente frisado nesses últimos itens, a referida questão
não goza de disposições legais a seu respeito. E, carecendo de previsão legal,
239
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 91.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 91.
240
138
coube à doutrina e à jurisprudência dizerem o modo pelo qual se dá a legitimidade
para se pleitear reparação por abalo moral, assim como os seus eventuais limites.
Para trazermos à baila a resposta aos questionamentos trazidos no início
deste subitem, citamos, novamente, a lição de Sérgio Cavalieri Filho241, para quem:
O nosso Código Civil, lamentavelmente, nada dispôs a respeito. A regra de
seu art. 948, II, entretanto, embora pertinente ao dano material, pode ser
aplicada analogicamente para limitar a indenização pelo dano moral àqueles
que estavam em estreita relação com a vítima, como o cônjuge,
companheira, filhos, pais e irmãos menores que viviam sob o mesmo teto. A
partir daí, o dano moral só poderá ser pleiteado na falta daqueles familiares
e dependerá de prova de convivência próxima e constante.
O doutrinador supracitado utiliza, como fundamentos legais à restrição à
legitimidade ativa para a busca da reparação moral, o inciso II do artigo 948 e os
parágrafos únicos dos artigos 12 e 20, todos do Código Civil, e que seguem abaixo
transcritos:
Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras
reparações:
II - na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia,
levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da
personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções
previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a
medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente
em linha reta, ou colateral até o quarto grau.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça
ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão
da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma
pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da
indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a
respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes
legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os
descendentes.
Conquanto plausível a aplicação analógica de referidos dispositivos legais, é
certo que limitar a legitimação à pretensão ressarcitória por abalo moral apenas nos
seus termos acaba por não responder, de forma satisfatória, todas as indagações
anteriormente feitas, sobretudo por excluir − de forma absoluta − a pretensão à
reparação moral daqueles que, a priori, não se subsumem às hipóteses de pessoas
que não guardam relação de parentesco com a vítima nos moldes supradescritos. E
241
Ibid., p. 91.
139
é por isso que Sérgio Cavalieri Filho arremata seu raciocínio, afirmando que “só em
favor do cônjuge, companheira, filhos, pais e irmãos menores há uma presunção
juris tantum de dano moral por lesões sofridas pela morte da vítima”, e que, “além
dessas pessoas, todas as outras, parentes ou não, terão que provar o dano moral
sofrido em virtude de fatos ocorridos com terceiros”.242
O Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de se manifestar sobre o
tema e o fez nos termos inframencionados, decidindo, por exemplo, que o noivo da
vítima de infortúnio fatal não tem legitimidade para o pleito indenizatório:
1. Em tema de legitimidade para propositura de ação indenizatória em razão
de morte, percebe-se que o espírito do ordenamento jurídico rechaça a
legitimação daqueles que não fazem parte da “família” direta da vítima,
sobretudo aqueles que não se inserem, nem hipoteticamente, na condição
de herdeiro. Interpretação sistemática e teleológica dos arts. 12 e 948,
inciso I, do Código Civil de 2002; art. 63 do Código de Processo Penal e art.
76 do Código Civil de 1916. 2. Assim, como regra ‒ ficando expressamente
ressalvadas eventuais particularidades de casos concretos ‒, a legitimação
para a propositura de ação de indenização por dano moral em razão de
morte deve mesmo alinhar-se, mutatis mutantis, à ordem de vocação
hereditária, com as devidas adaptações. 3. Cumpre realçar que o direito à
indenização, diante de peculiaridades do caso concreto, pode estar aberto
aos mais diversificados arranjos familiares, devendo o juiz avaliar se as
particularidades de cada família nuclear justificam o alargamento a outros
sujeitos que nela se inserem, assim também, em cada hipótese a ser
julgada, o prudente arbítrio do julgador avaliará o total da indenização para
o núcleo familiar, sem excluir os diversos legitimados indicados. A
mencionada válvula, que aponta para as múltiplas facetas que podem
assumir essa realidade metamórfica chamada família, justifica precedentes
desta Corte que conferiu legitimação ao sobrinho e à sogra da vítima fatal.
4. Encontra-se subjacente ao art. 944, caput e parágrafo único, do Código
Civil de 2002, principiologia que, a par de reconhecer o direito à integral
reparação, ameniza-o em havendo um dano irracional que escapa dos
efeitos que se esperam do ato causador. O sistema de responsabilidade
civil atual, deveras, rechaça indenizações ilimitadas que alcançam valores
que, a pretexto de reparar integralmente vítimas de ato ilícito, revelam nítida
desproporção entre a conduta do agente e os resultados ordinariamente
dela esperados. E, a toda evidência, esse exagero ou desproporção da
indenização estariam presentes caso não houvesse, além de uma limitação
quantitativa da condenação, uma limitação subjetiva dos beneficiários. 5.
Nessa linha de raciocínio, conceder legitimidade ampla e irrestrita a todos
aqueles que, de alguma forma, suportaram a dor da perda de alguém, como
um sem-número de pessoas que se encontram fora do núcleo familiar da
vítima, significa impor ao obrigado um dever também ilimitado de reparar um
dano cuja extensão será sempre desproporcional ao ato causador. Assim, o
dano por ricochete a pessoas não pertencentes ao núcleo familiar da vítima
direta da morte, de regra, deve ser considerado como não inserido nos
desdobramentos lógicos e causais do ato, seja na responsabilidade por
culpa, seja na objetiva, porque extrapolam os efeitos razoavelmente
imputáveis à conduta do agente. 6. Por outro lado, conferir a via da ação
indenizatória a sujeitos não inseridos no núcleo familiar da vítima acarretaria
também uma diluição de valores, em evidente prejuízo daqueles que
242
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 9192.
140
efetivamente fazem jus a uma compensação dos danos morais, como
cônjuge/companheiro, descendentes e ascendentes. 7. Por essas razões, o
noivo não possui legitimidade ativa para pleitear indenização por dano moral
pela morte da noiva, sobretudo quando os pais da vítima já intentaram ação
reparatória na qual lograram êxito, como no caso. 8. Recurso especial
conhecido e provido. REsp 1076160/AM; RECURSO ESPECIAL
2008/0160829-9; Relator(a): Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; Órgão
Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 10/04/2012; Data da
Publicação: DJe, 21/06/2012.
Assim, quanto à legitimidade ativa para dedução da pretensão reparatória
pelo sofrimento de dano moral, pode-se afirmar, com esteio na doutrina e
jurisprudência, que nosso ordenamento jurídico não concede uma legitimidade
irrestrita, exigindo daqueles que não guardam certa relação de parentesco com o
ofendido a prova do abalo moral ensejador de reparação, especificamente traduzida
na comprovação de convivência próxima e estreita.
No âmbito da jurisprudência do TJSP a questão possui alguma controvérsia
quanto à limitação dos legitimados no caso de morte, sendo tranquilo o direito
indenizatório do cônjuge ou convivente sobrevivente e também dos pais e filhos,
restando alguma divergência na questão dos irmãos – não os menores, mas os
maiores, colocando-se como ponto de exame fundamental saber se o caminhar das
vidas não lhes subtraiu a necessária afetividade que daria lastro à indenização
pugnada pelo colateral supérstite:
Apelação nº 9169267-41.2005.8.26.0000; Relator(a): Artur Marques;
Comarca: Mogi-Guaçu; Órgão julgador: 35ª Câmara de Direito Privado;
Data do julgamento: 29/08/2011. Ementa: CIVIL. DANO MORAL. MORTE
DO IRMÃO EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. LEGITIMIDADE ATIVA
RECONHECIDA. PRETENSÃO QUE, NO MÉRITO, É IMPROCEDENTE.
LAÇOS AFETIVOS QUE SÃO GRADATIVAMENTE ROMPIDOS, DESDE O
INSTANTE EM QUE CADA UM DELES PASSOU A CONSTITUIR SUA
PRÓPRIA FAMÍLIA. NECESSIDADE DE PROVA EFETIVA DE QUE OS
LAÇOS AFETIVOS FORAM MANTIDOS DESDE ENTÃO. Doutrina e
jurisprudência são uníssonas em garantir legitimidade aos irmãos para
postular em juízo reparação por danos morais no caso de morte de um
deles. Nada obstante, o deslinde da causa depende da inequívoca
existência de laços afetivos, presumidos durante a moradia conjunta e
paulatinamente reduzidos quando, maiores, os irmãos passam a ter vida
própria e muitas vezes isolada dos demais.
11.2.2 A questão da transmissibilidade mortis causa
Feitas tais considerações, derivadas da problemática análise da legitimidade
ativa, também temos por questão não isenta de controvérsias aquela relativa à
transmissibilidade, mortis causa, do direito de indenização pelo dano moral. A
141
peculiar natureza dos bens ou interesses atingidos por essa espécie de dano levou a
doutrina e a jurisprudência a divergir sobre a possibilidade de o respectivo direito de
indenização ser exercido por outrem que não a própria vítima. Desnecessário
salientar a importância do tema, que, em razão do crescente número de ações de
reparação, vem sendo trazido cada vez mais frequentemente para exame judicial.
Segundo Pontes de Miranda243, quanto à possibilidade de transmissão por
morte do direito indenizatório do dano moral, três correntes se formaram a respeito
na
doutrina:
a)
intransmissibilidade;
b)
transmissibilidade condicionada
ao
ajuizamento da ação indenizatória pelo lesado ou à sua manifestação da vontade de
exercer a pretensão; c) transmissibilidade irrestrita.
Para a primeira corrente, que contou com defensores como Wilson Melo da
Silva, a honra (subjetiva), sendo direito personalíssimo, extingue-se com a morte, e,
segundo ele:
Não existe, pois, o jus hereditatis relativamente aos danos morais, tal como
acontece com os danos materiais. A personalidade morre com o indivíduo,
arrastando atrás de si todo o seu patrimônio. Só os bens materiais
244
sobrevivem ao seu titular.
Noutras palavras, o doutrinador Wilson Melo da Silva argumenta que os bens
morais são inerentes à pessoa e com ela desaparecem quando de sua morte, pois
dizem respeito a seu foro íntimo. Embora os terceiros possam compartilhar da dor da
vítima, sentindo, eles próprios, por eles mesmos, as mesmas angústias, não se
concebe que a vítima possa transferir as suas dores e angústias para terceiros. E
arremata seu raciocínio ao afirmar que o dano moral, “dado seu caráter
eminentemente subjetivo, jamais se transferiria ativamente a terceiros, seja pela
cessão comum, seja pelo jus hereditatis”.245
Ao explicar referida corrente, Sérgio Cavalieri Filho 246 aduz que, “por esse
enfoque, não se afigura razoável admitir que o sofrimento do ofendido se prolongue
ou se estenda ao herdeiro, e este, fazendo sua a dor do morto, demande o
responsável a fim de ser indenizado da dor alheia”.
O C. STJ chegou a endossar a tese da intransmissibilidade, evidenciada no
julgamento do REsp 302.029/RJ, que restou assim ementado:
243
MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Campinas: Bookseller, 2008. Tomo XXII, p.
218.
244
SILVA, Wilson Melo da. O dano moral e sua reparação. Rio de Janeiro: Forense, 1999. p. 469.
245
Ibid., p. 648-649.
246
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 93.
142
Recurso especial. Processual civil. Acórdão. Omissão. Invalidade.
Inexistência. Divergência jurisprudencial. Comprovação. Dano moral. Ação
de indenização. Herdeiro da vítima. Legitimidade ativa ad causam.
Inexistência de invalidade do acórdão recorrido, o qual, de forma clara e
precisa, pronunciou-se acerca dos fundamentos suficientes à prestação
jurisdicional invocada. Não se conhece o Recurso Especial pela divergência
se inexiste a confrontação analítica dos julgados. Na ação de indenização
de danos morais, os herdeiros da vítima carecem de legitimidade ativa ad
causam. REsp 302.029/RJ; Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI; Órgão
Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 29/05/2001; Data
da Publicação: DJ, 01/10/2001, p. 212.
Por ocasião desse julgamento, o Ministro Pádua Ribeiro divergiu da maioria,
lançando os fundamentos que, mais tarde, implicariam em verdadeiro overruling na
jurisprudência do C. STJ. Por esse motivo, merecem transcrição os fundamentos por
ele exarados:
Ressalte-se que, ainda que a vítima tenha sido ofendida em seus direitos
personalíssimos, a relação obrigacional que se forma entre ela e o agente
do dano (CC, art. 1.518), não é personalíssima, como se daria, por
exemplo, com a obrigação de pintar um quadro ou esculpir uma imagem. A
meu ver, não se trata de uma obrigação personalíssima. O art. 1.526 do
Código Civil assegura que “o direito de exigir reparação e a obrigação de
prestá-la transmitem-se com a herança, exceto nos casos que esse Código
excluir”. É claro que, tendo a vítima ou seus herdeiros direito à reparação do
dano e a faculdade de exigi-la (pretensão), têm também ação material
correspondente, segundo o citado art. 75 do Código Civil, que antes li. Se
assim se dá com os danos materiais, o mesmo, a meu ver, ocorre com os
danos morais, pois, como dito, a eles aludiu a Constituição Federal, não
havendo como discriminá-los em seus efeitos e em relação à
transmissibilidade da sua reparação. Dessarte, falecido aquele que
experimentou o dano moral, têm seus herdeiros não só a legitimidade para
sucedê-lo na relação processual que ele integrava, visando à indenização,
segundo o art. 43 do Código de Processo Civil, como também para propor
ação com esse objetivo. De fato, a reparação de um dano qualquer, seja
moral, seja material, far-se-á, via de regra, com bens materiais. Quanto à
transmissibilidade deste por direito hereditário, não tenho dúvida. Portanto,
a legitimidade dos herdeiros para propor a ação de indenização por ato
dirigido contra o de cujus é, em tese, de ser reconhecida. Cabe ali indagar,
em cada caso concreto, o porquê de não ter sido proposta a ação pela
própria vítima. Essa teria o prazo prescricional de 20 anos para ajuizar a
ação, segundo o art. 177 do Código Civil, mas pode ter deixado de fazê-lo
porque não se sentiu ofendida, ou seja, porque entendeu mesmo inexistente
o dano moral. Nesse caso, há de se verificar concretamente. Pode haver
hipótese de que o falecido não propôs a ação porque não se sentiu
ofendido. Mas esse é um caso concreto a se examinar. Em tese, entendo
que têm plena legitimação os herdeiros para propor a ação por dano moral.
O tema é complexo, mas a minha convicção é esta: a haver indenização por
dano moral, não se transmitirá o aborrecimento, não se transmitirá o malestar causado em situações como essa, mas o direito patrimonial
correspondente, a obrigação de indenizar correspondente. Creio que não há
razão nenhuma para que não se transmita o direito à indenização, mesmo
porque não há nenhuma limitação legal para que isso ocorra. O próprio
dispositivo do Código Civil, que li, art. 1.526 é claro, diz que o direito de
exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmite-se com a herança,
exceto nos casos em que o Código o excluir. A meu ver, não há nenhum
143
dispositivo no Código excluindo a possibilidade de ajuizamento desta ação
pelos herdeiros.
Esse excerto final do voto do eminente Ministro delineia os fundamentos da
corrente que pugna pela transmissibilidade incondicionada. Para essa doutrina, o
direito de indenização do dano moral é sempre transmissível, como o é o direito de
indenização
do
dano
material.
Distingue-se,
acertadamente,
o
direito
da
personalidade do direito de indenização. O primeiro, sim, é por natureza
intransmissível, enquanto o último tem caráter patrimonial e é transmissível aos
herdeiros do falecido. Em última análise, o direito indenizatório constitui um crédito
que integra o conjunto de bens patrimoniais da vítima e pode, como os créditos em
geral, ser cedido por ato entre vivos ou transmitido por morte do titular. Nesse
sentido, é o magistério de José de Aguiar Dias247:
A ação de reparação é transmissível? Não há princípio nenhum que a isso
se oponha. A ação de indenização se transmite como qualquer outra ação
ou direito aos sucessores da vítima. Não se distingue, tampouco, se a ação
se funda em dano moral ou patrimonial.
Rui Stoco248, também enveredando pela análise principiológica da questão,
assinala que:
Não há princípio algum que se oponha à transmissibilidade da ação de
indenização visando à reparação de danos, ou do direito à indenização. A
ação de indenização se transmite como qualquer outra ação ou direito aos
sucessores da vítima, por força do princípio da substituição processual
contido no art. 43 do CPC. Não se distingue, tampouco, se a ação se funda
em dano moral ou patrimonial.
Sérgio Cavalieri Filho249 enfatiza a necessidade de distinguir entre o dano
moral e o direito de indenização daquele resultante: o primeiro é profundamente
pessoal e intransmissível, cessando com a morte da vítima; o último ingressa no
patrimônio da vítima no momento da lesão e é transmitido aos sucessores por
ocasião da morte do titular:
O dano moral, que sempre decorre de uma agressão a bens integrantes da
personalidade (honra, imagem, bom nome, dignidade etc.), só a vítima pode
sofrer, e enquanto viva, porque a personalidade, não há dúvida, extingue-se
com a morte. Mas o que se extingue – repita-se – é a personalidade, e não
o dano consumado, nem o direito à indenização. Perpetrado o dano (moral
247
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. v. 2, p. 938.
STOCO, Rui. Responsabilidade civil e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1995. p. 93.
249
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 94.
248
144
ou imaterial, não importa) contra a vítima quando ainda viva, o direito à
indenização correspondente não se extingue com sua morte. E assim é
porque a obrigação de indenizar o dano moral nasce no mesmo momento
em que nasce a obrigação de indenizar o dano patrimonial - no momento
em que o agente inicia a prática do ato ilícito e o bem juridicamente tutelado
sofre a lesão. Nesse mesmo momento, também, o correlativo direito à
indenização, que tem natureza patrimonial, passa a integrar o patrimônio da
vítima e, assim, se transmite aos herdeiros dos titulares da indenização.
E o citado jurista finaliza seu raciocínio com a perspicácia que lhe é peculiar,
afirmando que, a se adotar a tese de intransmissibilidade do direito indenizatório
neste caso, “a morte da vítima seria um prêmio para o causador do dano se o
exonerasse da obrigação de indenizar”.250
Por
derradeiro,
para
a
intermediária
corrente
que
sustenta
a
transmissibilidade condicionada, deve ser feita uma análise casuística da situação
deduzida em juízo, a saber: se a vítima do dano moral falece no curso da ação
indenizatória, é irrecusável que o herdeiro suceda o morto no processo, por se tratar
de ação de natureza patrimonial. Exercido o direito de ação pelo ofendido, o
conteúdo econômico da reparação do dano moral fica caracterizado e, dessa forma,
transmite-se aos herdeiros.251
Desse modo, antes de exercida, a pretensão indenizatória é de natureza
personalíssima e, portanto, intransmissível. Assume o caráter patrimonial, contudo,
depois da propositura da ação. Pressupõe-se que a falta de ajuizamento da
demanda indenizatória pode significar, v.g., que a vítima não se sentiu injuriada ou
agravada em sua honra; ou que, simplesmente, não tivesse a intenção de pleitear
indenização; pode, ainda, significar que ela renunciou à pretensão ou perdoou o
ofensor. Em contrapartida, o ajuizamento da ação indenizatória pela própria vítima
revelaria não apenas a existência do dano moral, mas a disposição daquela em
obter a reparação, que poderia, a partir de então, ser transmitida aos herdeiros.
Descritas as três correntes acerca da transmissibilidade do direito à reparação
moral, insta salientar que a jurisprudência do STJ, em autêntico overruling, vem se
consolidando no sentido de ser possível a transmissão do direito à indenização por
dano moral, não do próprio dano moral, como dito.
Em vários casos nos quais o de cujus propusera em vida a ação de
indenização por dano moral, decidiu-se que os herdeiros poderiam prosseguir com a
250
Ibid., p. 94.
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 94.
251
145
demanda. Nesse sentido, vejam-se os REsp 11.735/PR, 219.619/RJ e 440.626/SP,
cujas ementas seguem abaixo transcritas:
Dano moral. Ressarcimento. Se a indenização se faz mediante pagamento
em dinheiro, aquele que suportou os danos tinha direito de recebê-la e isso
constituiu crédito que integrava seu patrimônio, transmitindo-se a seus
sucessores. Possibilidade de os herdeiros prosseguirem com a ação já
intentada por aquele que sofreu os danos. REsp 219.619/RJ; Relator(a):
Ministro EDUARDO RIBEIRO; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA;
Data do Julgamento: 23/08/1999; Data da Publicação: DJ, 03/04/2000 p.
147.
DANO MORAL. Morte da vítima. Transmissibilidade do direito. O direito de
prosseguir na ação de indenização por ofensa à honra transmite-se aos
herdeiros. Recurso não conhecido. REsp 440.626/SP; Relator(a): Ministro
RUY ROSADO DE AGUIAR; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data
do Julgamento: 03/10/2002; Data da Publicação: DJ, 19/12/2002, p. 373.
Posteriormente, aquela Corte se viu diante da questão da transmissibilidade
incondicionada, ou seja, de casos nos quais a pretensão indenizatória havia sido
formulada originariamente por herdeiros da vítima, que não chegara a ajuizar a ação
em vida. Em um primeiro julgamento, o STJ se manifestou no sentido da
intransmissibilidade desse direito. Conforme já frisado anteriormente, no julgamento
do recurso especial nº 302.029/RJ, da 3ª Turma, relatado pela Ministra Nancy
Andrighi, entendeu-se que as filhas da pessoa que fora ofendida em vida não tinham
legitimidade para a propositura de ação de indenização por danos morais. Como
visto, a decisão foi tomada por maioria, com voto divergente do Ministro Pádua
Ribeiro, que se manifestou favorável à transmissibilidade, observando que, em caso
de dano moral, não se transmite a dor ou o aborrecimento, mas o direito à
indenização, de cunho patrimonial. Para tanto, ele invocou o artigo 1.526 do antigo
Código Civil (correspondente ao artigo 943 do Código Civil vigente), sustentando
que “o direito de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a
herança”. Já o Ministro Ari Pargendler acompanhou o voto da relatora, por entender
não estar demonstrado que o de cujus tivesse sofrido o dano moral, pois nunca
manifestara em vida, nem mesmo aos parentes, ter sido atingido em sua honra ou
reputação. O Ministro Carlos Alberto Menezes Direito também acompanhou o voto
da relatora diante das circunstâncias especiais do caso, deixando ressalvada a
possibilidade de reexame da tese jurídica em outro caso.
Depois desse julgamento em que as opiniões ficaram tão divididas, o Superior
Tribunal de Justiça passou a reconhecer, explicitamente, a transmissibilidade sem
146
restrições do direito à indenização por dano moral, ainda quando a ação
indenizatória não tivesse sido ajuizada pela própria vítima. Primeiro, no julgamento
do Recurso Especial nº 324.886/PR, que tratou de dano moral sofrido por indivíduo
do sexo masculino atingido em sua intimidade, vida privada e imagem, com a
publicação abusiva de edital que divulgara a sua condição de portador do vírus HIV,
fato que lhe causou constrangimentos. Após o falecimento do lesado, seus pais
ajuizaram ação, postulando, na condição de herdeiros, indenização pelo dano moral
sofrido pelo filho. Considerou-se que o direito de indenização por dano moral tem
natureza patrimonial e, por conseguinte, se transmite aos sucessores da vítima.
Esse entendimento foi reafirmado pouco depois, no julgamento do Recurso
Especial nº 343.654/SP, que cuidou de dano moral decorrente de lesões corporais
sofridas por vítima de acidente de trânsito. Quatro anos após o acidente, tendo
falecido a vítima, o espólio ajuizou ação para pleitear indenização pelo dano moral
sofrido pelo de cujus. Entendeu-se que o direito de exigir reparação, tanto do dano
moral quanto do material, transmite-se com a herança, nos termos do artigo 1.526
do Código Civil de 1916, então vigente, e que tal pretensão pode ser deduzida pelo
espólio do de cujus. Referidos julgados restaram assim ementados:
PROCESSUAL CIVIL. DIREITO CIVIL. INDENIZAÇÃO. DANOS MORAIS.
HERDEIROS. LEGITIMIDADE. 1. Os pais estão legitimados, por terem
interesse jurídico, para acionarem o Estado na busca de indenização por
danos morais, sofridos por seu filho, em razão de atos administrativos
praticados por agentes públicos que deram publicidade ao fato de a vítima
ser portadora do vírus HIV. 2. Os autores, no caso, são herdeiros da vítima,
pelo que exigem indenização pela dor (dano moral) sofrida, em vida, pelo
filho já falecido, em virtude de publicação de edital, pelos agentes do
Estado, réu, referente à sua condição de portador do vírus HIV. 3. O direito
que, na situação analisada, poderia ser reconhecido ao falecido, transmitese, induvidosamente, aos seus pais. 4. A regra, em nossa ordem jurídica,
impõe a transmissibilidade dos direitos não personalíssimos, salvo
expressão legal. 5. O direito de ação por dano moral é de natureza
patrimonial e, como tal, transmite-se aos sucessores da vítima (RSTJ, vol.
71/183). 6. A perda de pessoa querida pode provocar duas espécies de
dano: o material e o moral. 7. “O herdeiro não sucede no sofrimento da
vítima. Não seria razoável admitir-se que o sofrimento do ofendido se
prolongasse ou se entendesse (deve ser estendesse) ao herdeiro e este,
fazendo sua a dor do morto, demandasse o responsável, a fim de ser
indenizado da dor alheia. Mas é irrecusável que o herdeiro sucede no direito
de ação que o morto, quando ainda vivo, tinha contra o autor do dano. Se o
sofrimento é algo entranhadamente pessoal, o direito de ação de
indenização do dano moral é de natureza patrimonial e, como tal, transmitese aos sucessores” (Leon Mazeaud, em magistério publicado no Recueil
Critique Dalloz, 1943, pg. 46, citado por Mário Moacyr Porto, conforme
referido no acórdão recorrido). 8. Recurso improvido. REsp 324.886/PR;
Relator(a): Ministro JOSÉ DELGADO; Órgão Julgador: T1 - PRIMEIRA
TURMA; Data do Julgamento: 21/06/2001; Data da Publicação: DJ,
03/09/2001, p. 159.
147
Responsabilidade civil. Ação de indenização em decorrência de acidente
sofrido pelo de cujus. Legitimidade ativa do espólio. 1. Dotado o espólio de
capacidade processual (art. 12, V, do Código de Processo Civil), tem
legitimidade ativa para postular em Juízo a reparação de dano sofrido pelo
de cujus, direito que se transmite com a herança (art. 1.526 do Código
Civil). 2. Recurso especial conhecido e provido. REsp 343.654/SP;
Relator(a): Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO; Órgão
Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 06/05/2002; Data
da Publicação: DJ, 01/07/2002, p. 337.
Em suma, a problemática acerca da transmissão, hodiernamente, cinge-se
em saber se houve ou não dano moral; se a vítima, antes de morrer, foi ou não
atingida em sua dignidade. Se sim, não há razão para não transmitir a seus
sucessores o direito à indenização252, sobretudo ante a existência de texto expresso
de lei nesse sentido, a saber, o artigo 943 do atual Código Civil, in verbis: “O direito
de exigir reparação e a obrigação de prestá-la transmitem-se com a herança”.
Frise-se, por oportuno, que a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo não possui qualquer uniformidade no trato da sucessão mortis
causa da indenização por abalo moral, havendo acórdãos adotantes das duas
correntes doutrinárias mais radicais acerca da temática, além da tese intermediária,
e nenhuma estabilidade na análise da matéria no âmbito da Justiça bandeirante,
como se pode verificar pelas três ementas abaixo colacionadas, uma para cada
orientação.
Pela intransmissibilidade absoluta do direito indenizatório:
Apelação nº 9126616-91.2005.8.26.0000; Relator(a): Elcio Trujillo;
Comarca: São Joaquim da Barra; Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito
Privado; Data do julgamento: 26/10/2011. Ementa: NULIDADE Julgamento antecipado da lide - Cerceamento inexistente - Presentes as
condições que ensejam o julgamento antecipado da causa, é dever do juiz,
e não mera faculdade, assim proceder - Aplicação do disposto pelo I, do
artigo 330, do Código de Processo Civil - PRELIMINAR AFASTADA.
DANOS MORAIS - Negativação do nome da mãe do autor, já falecida, junto
ao cadastro de inadimplentes - Ausência de legitimidade ativa para pleitear
reparação por danos morais - Direito personalíssimo - Sentença confirmada
- Aplicação do disposto no art. 252 do Regimento Interno deste Tribunal Apelante beneficiário da assistência judiciária gratuita - Sobrestamento da
condenação da parte vencida - Incidência do art. 12 da Lei nº 1060/50 RECURSO NÃO PROVIDO.
Pela transmissibilidade incondicionada do direito indenizatório:
Apelação com Revisão nº 1082316003; Relator(a): Andreatta Rizzo;
Comarca: Santo André; Órgão julgador: 26ª Câmara de Direito Privado;
252
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 9495.
148
Data do julgamento: 28/07/2008. Ementa: Seguro de veículo Indenização por danos morais – Legitimidade ativa dos herdeiros Renovação automática da apólice após a morte do segurado - Débito das
parcelas em conta corrente - Inscrição do nome do consumidor nos
cadastros de proteção ao crédito após o seu falecimento - Fixação da
indenização em montante que mitigue o sofrimento e desestimule a
reiteração de atos da espécie - Redução da quantia arbitrada pela sentença
- Necessidade Manutenção da verba honorária de 15% sobre o valor da
condenação - Preliminares rejeitadas - Apelo principal parcialmente provido
e desprovido o adesivo.
E pela transmissibilidade do direito indenizatório condicionada ao ajuizamento
da ação de reparação por danos morais pela vítima do evento danoso quando ainda
em vida:
Apelação nº 9201575-62.2007.8.26.0000 / Contratos Bancários; Relator(a):
Maia da Rocha; Comarca: Campinas; Órgão julgador: 17ª Câmara de
Direito Privado; Data do julgamento: 12/09/2007. Ementa: DANO MORAL
- Indenização - Inclusão indevida de dados em órgão de restrição ao crédito
- Ilícito configurado - Morte do ofendido após a propositura da ação Herdeiro que remanesce com a legitimidade ativa - Restrição realizada pela
sociedade bancária - Legitimidade passiva configurada - Inocorrência de
cerceamento de defesa - Valor arbitrado a título de dano imaterial que
merece redução - Fixação em 10 (dez) salários-mínimos - Verba honorária
mantida no percentual fixado - Sentença reformada em parte - Recurso
provido parcialmente.
11.3 A Responsabilidade Civil dos Provedores de Internet pelo Conteúdo
Ofensivo Postado por Terceiros e o Marco Civil da Internet
Passemos a analisar os precedentes judiciais firmados pelo Superior Tribunal
de Justiça referentes às relações jurídicas decorrentes das informações postadas na
rede mundial de computadores, especialmente no que tange à responsabilidade civil
dos provedores de internet.
Por oportuno, saliente-se que os provedores disponibilizam espaços na rede
mundial de computadores para que outras pessoas os utilizem, sempre se valendo
da escusa, no caso de ilícito contra a honra e a imagem, de que não podem ser
responsabilizados por eventual informação ofensiva direcionada a outrem por não
terem controle do conteúdo postado.
Noutros termos, os denominados “provedores de internet” são pessoas físicas
ou jurídicas que exercem diversas funções no âmbito da rede mundial de
computadores, e a partir do tipo de atividade desenvolvida podem ser divididos em
provedores de acesso, provedores de serviços e provedores de conteúdo.
149
Os provedores de serviços são responsáveis, por exemplo, pelos serviços de
correio eletrônico, hospedagem de páginas eletrônicas e chave de busca. Dentre
esses, o que nos interessa para a compreensão do tema em debate é a
hospedagem de páginas eletrônicas, que inclui, no mais das vezes, a
disponibilização de ferramentas para o usuário produzir uma página e o
fornecimento de espaço para armazenamento dos dados criados.
No Superior Tribunal de Justiça instalou-se, em princípio, certa dúvida a
respeito da responsabilidade civil dos provedores de internet nestas situações de
ofensas postadas por terceiros usuários.
Por um lado, já se negou a responsabilidade nestes casos ao argumento de
que as provedoras não têm controle prévio sobre as informações postadas e que
sua atividade não poderia ser considerarada de risco a ponto de imputar-lhes a
responsabilização civil objetiva do parágrafo único do art. 927 do Código Civil:
RECURSO ESPECIAL Nº 1.193.764-SP (2010/0084512-0); RELATORA:
MINISTRA NANCY ANDRIGHI. EMENTA: DIREITO CIVIL E DO
CONSUMIDOR. INTERNET. RELAÇÃO DE CONSUMO. INCIDÊNCIA DO
CDC. GRATUIDADE DO SERVIÇO. INDIFERENÇA. PROVEDOR DE
CONTEÚDO. FISCALIZAÇÃO PRÉVIA DO TEOR DAS INFORMAÇÕES
POSTADAS NO SITE PELOS USUÁRIOS. DESNECESSIDADE.
MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. DANO MORAL. RISCO
INERENTE AO NEGÓCIO. INEXISTÊNCIA. CIÊNCIA DA EXISTÊNCIA DE
CONTEÚDO ILÍCITO. RETIRADA IMEDIATA DO AR. DEVER.
DISPONIBILIZAÇÃO DE MEIOS PARA IDENTIFICAÇÃO DE CADA
USUÁRIO. DEVER. REGISTRO DO NÚMERO DE IP. SUFICIÊNCIA. 1. A
exploração comercial da internet sujeita às relações de consumo daí
advindas à Lei nº 8.078/90. 2. O fato de o serviço prestado pelo provedor de
serviço de internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o
termo “mediante remuneração” contido no art. 3º, § 2º, do CDC deve ser
interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do
fornecedor. 3. A fiscalização prévia, pelo provedor de conteúdo, do teor das
informações postadas na web por cada usuário não é atividade intrínseca
ao serviço prestado, de modo que não se pode reputar defeituoso, nos
termos do art. 14 do CDC, o site que não examina e filtra os dados e
imagens nele inseridos. 4. O dano moral decorrente de mensagens com
conteúdo ofensivo inseridas no site pelo usuário não constitui risco inerente
à atividade dos provedores de conteúdo, de modo que não se lhes aplica a
responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC/02.
Por outro lado, pela simples aplicação do Código de Defesa do Consumidor,
reconhecendo-se como defeito na prestação de serviço a inserção de dados
difamatórios na internet, já foi uma provedora condenada ao pagamento de
indenização por danos morais a uma vítima de ofensas postadas por terceiros:
DIREITO DO CONSUMIDOR E RESPONSABILIDADE CIVIL - RECURSO
ESPECIAL - INDENIZAÇÃO - ART. 159 DO CC/16 E ARTS. 6º, VI, E 14,
150
DA LEI Nº 8.078/90 - DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO - SÚMULA
284/STF - PROVEDOR DA INTERNET - DIVULGAÇÃO DE MATÉRIA NÃO
AUTORIZADA - RESPONSABILIDADE DA EMPRESA PRESTADORA DE
SERVIÇO - RELAÇÃO DE CONSUMO - REMUNERAÇÃO INDIRETA DANOS MORAIS - QUANTUM RAZOÁVEL - VALOR MANTIDO. 1 - Não
tendo a recorrente explicitado de que forma o v. acórdão recorrido teria
violado determinados dispositivos legais (art. 159 do Código Civil de 1916 e
arts. 6º, VI, e 14, ambos da Lei nº 8.078/90), não se conhece do Recurso
Especial, neste aspecto, porquanto deficiente a sua fundamentação.
Incidência da Súmula 284/STF. 2 - Inexiste violação ao art. 3º, § 2º, do
Código de Defesa do Consumidor, porquanto, para a caracterização da
relação de consumo, o serviço pode ser prestado pelo fornecedor mediante
remuneração obtida de forma indireta. 3 - Quanto ao dissídio
jurisprudencial, consideradas as peculiaridades do caso em questão, quais
sejam, psicóloga, funcionária de empresa comercial de porte, inserida,
equivocadamente e sem sua autorização, em site de encontros na internet,
pertencente à empresa-recorrente, como “pessoa que se propõe a participar
de programas de caráter afetivo e sexual”, inclusive com indicação de seu
nome completo e número de telefone do trabalho, o valor fixado pelo
Tribunal a quo a título de danos morais mostra-se razoável, limitando-se à
compensação do sofrimento advindo do evento danoso. Valor indenizatório
mantido em 200 (duzentos) salários-mínimos, passível de correção
monetária a contar desta data. 4 - Recurso não conhecido. REsp
566468/RJ; Relator(a): Ministro JORGE SCARTEZZINI; Órgão Julgador: T4
- QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 23/11/2004; Data da Publicação:
DJ, 17/12/2004, p. 561.
Gize-se que referido debate, até recentemente, ainda não havia aportado na
instância especial da justiça nacional para uma análise mais perfunctória. Podia-se
dizer que tais questões encontravam-se abertas à fixação de precedentes judiciais
que as regulassem, e podia-se citar como principal vetor diretivo das futuras
decisões que se seguiriam o quanto fundamentado pelo Ministro Herman Benjamin
ao relatar o REsp 1.117.633/RO, no sentido de que:
A internet é o espaço por excelência da liberdade, o que não significa dizer
que seja um universo sem lei e sem responsabilidade pelos abusos que lá
venham a ocorrer. No mundo real, como no virtual, o valor da dignidade da
pessoa humana é um só, pois nem o meio em que os agressores transitam
nem as ferramentas tecnológicas que utilizam conseguem transmudar ou
enfraquecer a natureza de sobreprincípio irrenunciável, intransferível e
imprescritível que lhe confere o Direito brasileiro. Quem viabiliza
tecnicamente, quem se beneficia economicamente e, ativamente, estimula a
criação de comunidades e páginas de relacionamento na internet é tão
responsável pelo controle de eventuais abusos e pela garantia dos direitos
da personalidade de internautas e terceiros como os próprios internautas
que geram e disseminam informações ofensivas aos valores mais
comezinhos da vida em comunidade, seja ela real ou virtual. Essa
coresponsabilidade é parte do compromisso social da empresa com a
sociedade, sob o manto da excelência dos serviços que presta e da
merecida admiração que conta em todo mundo é aceita pelo Google, tanto
que atuou, de forma decisiva, no sentido de excluir páginas e identificar os
gângsteres virtuais. Tais medidas, por óbvio, não bastam, já que reprimir
certas páginas ofensivas já criadas, mas nada fazer para impedir o
surgimento e multiplicação de outras tantas, com conteúdo igual ou
assemelhado, é, em tese, estimular um jogo de Tom e Jerry, que em nada
151
remedia, mas só prolonga, a situação de exposição, de angústia e de
impotência das vítimas das ofensas.
Posteriormente, o C. STJ, por meio de sua 3ª Turma, ao decidir o REsp
1.186.616/MG, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, em recentíssima decisão do
mês de agosto de 2011, acabou por se manifestar decisivamente quanto à
imposição da responsabilidade civil dos provedores de conteúdo de internet apenas
se, devidamente notificados, não providenciarem a exclusão das informações
injuriosas, assentando-se que:
Ao ser comunicado de que determinado texto ou imagem possui conteúdo
ilícito, deve o provedor agir de forma enérgica, retirando o material do ar
imediatamente, sob pena de responder solidariamente com o autor direto do
dano, em virtude da omissão praticada. Ao oferecer um serviço por meio do
qual se possibilita que os usuários externem livremente sua opinião, deve o
provedor de conteúdo ter o cuidado de propiciar meios para que se possa
identificar cada um desses usuários, coibindo o anonimato e atribuindo a
cada manifestação uma autoria certa e determinada. Sob a ótica da
diligência média que se espera do provedor, deve este adotar as
providências que, conforme as circunstâncias específicas de cada caso,
estiverem ao seu alcance para a individualização dos usuários do site, sob
pena de responsabilização subjetiva por culpa in omittendo. Ainda que não
exija os dados pessoais dos seus usuários, o provedor de conteúdo que
registra o número de protocolo (IP) na internet dos computadores utilizados
para o cadastramento de cada conta mantém um meio razoavelmente
eficiente de rastreamento dos seus usuários, medida de segurança que
corresponde à diligência média esperada dessa modalidade de provedor de
serviço de internet.
A partir de então, a referida orientação vem sendo sistematicamente adotada
pelo STJ, somente remanescendo como dever dos provedores de acesso a
obrigação de retirada do conteúdo ofensivo tão logo sejam notificados ou em prazo
judicialmente fixado. Apenas quando infringido este dever de retirada é que se tem
por ocorrente o abalo moral indenizável, na modalidade omissão do provedor. Vejase outro julgado nesse sentido do ano de 2012, Relator Ministro Sidnei Benetti:
RECURSO ESPECIAL. DIREITO DO CONSUMIDOR. PROVEDOR.
MENSAGEM DE CONTEÚDO OFENSIVO. RETIRADA. REGISTRO DE
NÚMERO DO IP. DANO MORAL. AUSÊNCIA. PROVIMENTO. 1 - No caso
de mensagens moralmente ofensivas, inseridas no site de provedor de
conteúdo por usuário, não incide a regra de responsabilidade objetiva,
prevista no art. 927, parágrafo único, do Cód. Civil/2002, pois não se
configura risco inerente à atividade do provedor. Precedentes. 2 - É o
provedor de conteúdo obrigado a retirar imediatamente o conteúdo ofensivo,
pena de responsabilidade solidária com o autor direto do dano. 3 - O
provedor de conteúdo é obrigado a viabilizar a identificação de usuários,
coibindo o anonimato; o registro do número de protocolo (IP) dos
computadores utilizados para cadastramento de contas na internet constitui
meio de rastreamento de usuários, que ao provedor compete,
152
necessariamente, providenciar. 4 - Recurso Especial provido. Ação de
indenização por danos morais julgada improcedente. Processo: REsp
1306066/MT; RECURSO ESPECIAL 2011/0127121-0; Relator(a): Ministro
SIDNEI BENETI; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do
Julgamento: 17/04/2012; Data da Publicação: DJe, 02/05/2012.
E no mesmo sentido trilha a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo:
Apelação nº 0003610-89.2008.8.26.0294; Relator(a): Percival Nogueira;
Comarca: Jacupiranga; Órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado;
Data do julgamento: 08/03/2012. INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS.
Ação julgada improcedente. Alegação de que ficou exposto a humilhações
em razão da não fiscalização da ré das mensagens postadas com sua
autorização. Inadmissibilidade. Ausência de qualquer ilicitude na conduta da
apelada que, após receber a denúncia, excluiu as ofensas do site de
relacionamento. Impossibilidade de vigilância prévia. Sentença mantida.
Recurso desprovido.
Por fim, anote-se que, em consonância com o entendimento jurisprudencial
acima alinhavado, verifica-se a tramitação do denominado Marco Civil da Internet no
Congresso Nacional, acolhendo a tese de que a responsabilidade da provedora
somente se deflagra por omissão, após a notificação para a retirada do conteúdo
difamatório, desde que não tome tal providência, in verbis:
Art. 15 do Projeto de Lei nº 2.126/11 da Câmara dos Deputados:
Salvo disposição legal em contrário, com o intuito de assegurar a liberdade
de expressão e evitar a censura, o provedor de aplicações de internet
somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de
conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar
as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e
dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como
infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
Vale dizer que, segundo a última notícia que se tem, do final do ano de 2012,
o projeto de lei em comento teve sua votação adiada por mais de seis vezes na
Câmara dos Deputados, a demonstrar a completa ausência de vontade política para
a disciplina de questões de fundamental importância para os brasileiros, como é o
caso da internet, hoje essencial para a vida das pessoas e das empresas nacionais.
Diferente dos casos acima foi a situação julgada neste ano de 2013 pela 2ª
Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça, reformando decisão que concedia
tutela antecipada para que o site Google Brasil Internet Ltda. suprimisse veiculação
de matéria referente à prisão ou indiciamento de uma advogada na conhecida
Operação Durkheim que se referia a espionagem de políticos.
153
O relator do processo, Desembargador Alvaro Passos, afirmou em seu voto
que “por primeiro, há que se fixar a natureza da atividade operacional do agravante
(Google)”, já que “em se tratando de um site de busca, e não de hospedagem de
conteúdo ou de redes sociais, o seu operador não detém controle sobre o conteúdo
indexado”, reconhecendo que “as páginas para as quais direciona a pesquisa dos
usuários são de autoria e responsabilidade exclusiva de quem as postou”.
A respeito da natureza jurídica do serviço prestado neste caso – e é este o
elemento de diferenciação desta situação das demais acima tratadas pela
jurisprudência – o relator disse que “inicialmente, é preciso determinar a natureza
jurídica dos provedores de serviços de internet, em especial dos sites de busca, pois
somente assim será possível definir os limites de sua responsabilidade”.
Para ele, “a world wide web (www) é uma rede mundial composta pelo
somatório de todos os servidores a ela conectados”, e “esses servidores são bancos
de dados que concentram toda a informação disponível na internet, divulgadas por
intermédio das incontáveis páginas de acesso (webpages)”.
O Desembargador Alvaro Passos destacou que o Google é um desses sites
que “não incluem, hospedam, organizam ou de qualquer outra forma gerenciam as
páginas virtuais indicadas nos resultados disponibilizados, se limitando a indicar
links onde podem ser encontrados os termos de busca fornecidos”.
Assim, segundo o julgado, impor ao Google “a obrigação de bloquear toda e
qualquer consulta da qual resulte o direcionamento do usuário à prisão e/ou
indiciamento da agravada é de todo impossível”, resultando a seguinte ementa:
OBRIGAÇÃO DE FAZER. Antecipação dos efeitos da tutela visando à
abstenção de veiculação de resultado de pesquisa na internet relativa à
matéria jornalística criminal envolvendo a autora. Não concessão
Impossibilidade técnica de cumprimento da obrigação pelo provedor de
pesquisa, que não detém controle sobre o conteúdo indexado, direcionando
apenas os usuários para as páginas que contenham palavras que, por
exatidão ou semelhança, estejam contidas nos artigos publicados e
disponibilizados na rede. Inviabilidade do bloqueio pretendido. Precedente
do E. Superior Tribunal de Justiça. Decisão reformada. Agravo provido.
Agravo de Instrumento nº 0274787-02.2012.8.26.0000.
Vê-se, assim, que a solução para estas demandas relativas aos provedores
de internet não conta com orientação tranquila da jurisprudência, sendo necessário,
logo no início do exame do caso, que se determine qual o tipo da prestação de
serviço eletrônico que está sendo oferecida, disso dependendo o decisório a ser
154
proferido, daí a importância da aprovação de uma vez por todas do Marco Civil da
Internet, que viria a regulementar todas essas modernas nuances.
E, como sustentado durante todo o trabalho, é de fundamental importância
que esta legislação atenda aos preceitos ditados pelo Superior Tribunal de Justiça
quando teve a oportunidade de enfrentar litígios envolvendo os provedores de
internet, momentos em que fez a devida diferenciação entre os provedores de
serviço e de conteúdo, especialmente podendo ser citada a decisão na qual a
apresentadora Xuxa requereu, sem sucesso, que todas as informações a respeito de
um filme que estrelou há alguns anos não fossem reveladas nas buscas perante o
Google (Recurso Especial nº 1.316.921/RJ):
1. A exploração comercial da Internet sujeita as relações de consumo daí
advindas à Lei nº 8.078/90. 2. O fato de o serviço prestado pelo provedor de
serviço de Internet ser gratuito não desvirtua a relação de consumo, pois o
termo “mediante remuneração”, contido no art. 3º, § 2º, do CDC, deve ser
interpretado de forma ampla, de modo a incluir o ganho indireto do
fornecedor. 3. O provedor de pesquisa é uma espécie do gênero provedor
de conteúdo, pois não inclui, hospeda, organiza ou de qualquer outra forma
gerencia as páginas virtuais indicadas nos resultados disponibilizados, se
limitando a indicar links onde podem ser encontrados os termos ou
expressões de busca fornecidos pelo próprio usuário. 4. A filtragem do
conteúdo das pesquisas feitas por cada usuário não constitui atividade
intrínseca ao serviço prestado pelos provedores de pesquisa, de modo que
não se pode reputar defeituoso, nos termos do art. 14 do CDC, o site que
não exerce esse controle sobre os resultados das buscas. 5. Os provedores
de pesquisa realizam suas buscas dentro de um universo virtual, cujo
acesso é público e irrestrito, ou seja, seu papel se restringe à identificação
de páginas na web onde determinado dado ou informação, ainda que ilícito,
estão sendo livremente veiculados. Dessa forma, ainda que seus
mecanismos de busca facilitem o acesso e a consequente divulgação de
páginas cujo conteúdo seja potencialmente ilegal, fato é que essas páginas
são públicas e compõem a rede mundial de computadores e, por isso,
aparecem no resultado dos sites de pesquisa. 6. Os provedores de
pesquisa não podem ser obrigados a eliminar do seu sistema os resultados
derivados da busca de determinado termo ou expressão, tampouco os
resultados que apontem para uma foto ou texto específico,
independentemente da indicação do URL da página onde este estiver
inserido. 7. Não se pode, sob o pretexto de dificultar a propagação de
conteúdo ilícito ou ofensivo na web, reprimir o direito da coletividade à
informação. Sopesados os direitos envolvidos e o risco potencial de
violação de cada um deles, o fiel da balança deve pender para a garantia da
liberdade de informação assegurada pelo art. 220, § 1º, da CF/88,
sobretudo considerando que a Internet representa, hoje, importante veículo
de comunicação social de massa. 8. Preenchidos os requisitos
indispensáveis à exclusão, da web, de uma determinada página virtual, sob
a alegação de veicular conteúdo ilícito ou ofensivo – notadamente a
identificação do URL dessa página – a vítima carecerá de interesse de agir
contra o provedor de pesquisa, por absoluta falta de utilidade da jurisdição.
Se a vítima identificou, via URL, o autor do ato ilícito, não tem motivo para
demandar contra aquele que apenas facilita o acesso a esse ato que, até
então, se encontra publicamente disponível na rede para divulgação. 9.
Recurso especial provido.
155
11.4 O Caso do Massacre Dentro do Cinema do Shopping Morumbi
Caso emblemático de acesa divergência sobre a legitimidade processual
passiva para o processo em que se pleiteia indenização por danos morais é extraído
do massacre promovido por um estudante de medicina dentro do cinema do
conhecido Shopping Morumbi na Capital Paulista.
O caso foi assim resumido pela imprensa253:
Na noite de 3 de novembro, o acaso reuniu no mesmo shopping um
exterminador à procura de alguma platéia e vítimas que, seguindo a rotina
de sempre, encontraram a morte. Às 8h30min do dia 3 de março de 1999,
uma quarta-feira, o estudante de medicina Mateus da Costa Meira deixou o
quarto 915 do Príncipe Hotel, no centro de São Paulo. Morava sozinho e
tinha alucinações. Elas haviam começado a chegar dez dias antes, desde
que suspendera a medicação antipsicótica e antidepressiva prescrita pelo
psiquiatra. Eram 22h46min quando o telefone 190, do Comando da Polícia
Militar de São Paulo, recebeu o primeiro dos três chamados para atender a
uma ocorrência no Cine 5 do MorumbiShopping. Ali se consumara um
massacre. Os policiais chegaram às 22h55min, tarde demais. Deveria estar
sendo exibido o filme Clube da Luta. A projeção fora interrompida. O
estudante de Medicina havia executado três pessoas. Outras cinco
pessoas, também atingidas, sobreviveram. Depois de deixar o hotel onde
dormira, Mateus Meira foi à Zona Sul de São Paulo. Comprou uma
submetralhadora 9mm. Semi-automática, é capaz de disparar 1.200 balas
por minuto. Mateus pôs tudo numa sacola e rumou para seu destino.
Armado, sentia-se pronto para lutar contra as alucinações. Já no shooping,
o estudante de medicina sacou a metralhadora da bolsa, apontou para sua
imagem no espelho do banheiro e atirou. O disparo foi abafado pelo barulho
do filme. Ninguém na platéia percebeu que se tratava do som de um tiro.
Ninguém suspeitou de que assassino estava fora da tela, pronto para agir.
Mateus deixou o banheiro, passou por trás da tela da Sala 5 e postou-se
diante da platéia. Olhou para o filme e apertou o gatilho da submetralhadora
uma vez. Mateus virou-se para a platéia e apertou várias vezes o gatilho. O
pente de balas tinha cerca de 40 cartuchos. Descarregou todos. Alguns
espectadores que estavam próximos avançaram sobre o assassino e
conseguiram imobilizá-lo. A segurança do shopping finalmente prendeu
Mateus da Costa Meira, que foi levado à 96ª Delegacia de Polícia de São
Paulo.
As vítimas sobreviventes e as famílias das vítimas fatais pleitearam na justiça
indenização por danos materiais e morais contra o Shopping Center Morumbi e
contra a responsável pela sala de cinema, o Grupo Internacional Cinematográfico,
alegando que entre as empresas e as vítimas havia uma relação de consumo, em
virtude da prestação de vários serviços, como de estacionamento, de gastronomia,
de entretenimento e de segurança principalmente.
253
Revista Época. Disponível em <www.época.com.br>. Acesso em 8 de maio de 2009.
156
Indagava-se, à época do ajuizamento das ações: como fica a questão da
responsabilidade civil neste caso, de um terceiro que invadiu o local e matou e feriu
pessoas? Respondem as empresas ou não? Podem alegar que a culpa pelo
acidente foi de terceiro? A responsabilidade não é objetiva, sem culpa? Enfim, como
se constitui o pólo passivo dos respectivos processos.
A seguir, tem-se um resumo de como a questão foi resolvida na justiça
paulista de primeira instância, tendo quatro Varas Judiciais do Fórum Central da
Capital se pronunciado (21ª, 23ª, 25ª e 27ª unidades judiciárias).
Os juízes da 23ª e 25ª julgaram improcedentes os pedidos, acolhendo os
seguintes argumentos das empresas: 1) a indenização só poderia ser reconhecida
caso provada a falha de algum de seus funcionários ou representantes, o que no
caso não ocorreu; 2) não houve culpa pelo evento, não tendo havido falha no
sistema de segurança, pois uma pessoa não pode ser tida como suspeita em razão
de seu aspecto físico ou maneira extravagante de se trajar; 3) o fato se constituiu
num episódio inédito, imprevisível e inevitável (caso fortuito ou força maior), e
mesmo com todos os seguranças atentos e as câmeras ligadas, com funcionários
monitorando o movimento no shopping, o evento era inevitável; 4) as empresas não
têm poder de polícia, porque segurança pública é dever do Estado.
Os juízes da 21ª e 27ª julgaram procedentes os pedidos, acolhendo os
seguintes argumentos das vítimas: 1) o dever de indenizar funda-se no riscoproveito, isto porque, aproveitando-se da violência generalizada que existe na
sociedade moderna, a segurança passou a ser um produto agregado ao serviço
prestado pelos shoppings, vendido na busca de se conquistar o mercado de
consumo; 2) houve falha do serviço de segurança do shopping quando da entrada
do agente com uma submetralhadora, além disso, testou a metralhadora no
banheiro do shopping, efetuando um disparo contra o espelho do local, fato
incomum que poderia ser atentado pelos seguranças.
Nos dois casos de procedência as sentenças foram mantidas no Tribunal de
Justiça de São Paulo (apelações nº 421.435.4/1-01 e 385.046-4/3-00), mas com um
voto divergente na primeira apelação citada.
Nas duas apelações, os relatores afirmaram o que segue. Na apelação nº
421.435.4/1-01, o Relator Desembargador Beretta da Silveira pontuou que: Os réus
bem poderiam ter cuidado da segurança de modo a impedir a entrada de alguém
portando arma de fogo no interior do shopping, ou, no mínimo, no interior das salas
157
de projeção de filmes. Na Apelação nº 385.046-4/3-00, o Relator Desembargador
Arthur Del Guércio ponderou que: Nunca é demais lembrarmos que a segurança e a
tranquilidade é que fazem com que as pessoas procurem os shoppings, por que isso
é da sua essência.
Já o voto divergente acima citado nos pareceu o mais
adequado à situação, da lavra do Desembargador Gilberto Souza Moreira:
Não há como incluir o ato imprevisível de um louco, cuja doença não é
identificável, como justificativa para aplicar-se a teoria objetiva do risco. Não
parece razoável considerar a ação inesperada de um doente mental, em
surto de loucura e violência, como defeito de serviço de segurança.
Certamente, os seguranças dos réus, seus vigilantes, seus guardas,
enfrentaram o inopinável, não havia como identificar o agressor. Imagina-se
que tenha chegado ao shopping dissimulado, por óbvio com a arma
perfeitamente escondida na mochila usada a tira colo. Não havia como
supor que trazia nada menos que uma metralhadora; disso não cogitaram
os guardas nem ninguém. Anormal seria o contrário, a infundada
desconfiança e a suposição dos horrores que viriam a acontecer. Não há –
e espera-se nunca venha a haver – revista pessoal para entrar-se num
cinema do shopping center. Enfim, foram acontecimentos inopinados,
imprevisíveis, absolutamente inesperados. Caso fortuito por excelência, fato
de terceiro, não há como responsabilizar as empresas, a menos que se
adote a responsabilidade objetiva sem limitações, o que se tem por
impossível. A seguir esta tese, o estabelecimento pagaria pelos danos
causados por um meteorito que desgraçadamente atingisse a vítima.
As decisões foram submetidas à competência do Superior Tribunal de Justiça
por meio de recurso especial e lá as empresas administradoras do shopping e do
cinema obtiveram êxito total na declaração de sua isenção de responsabilidade pelo
fato, que foi atribuído unicamenta ao terceiro – o homicida.
No Resp 1.164.889, a Quarta Turma do STJ, por votação unânime, de acordo
com o relator do recurso, o desembargador convocado Honildo de Mello Castro,
afirmou que, para que haja o dever de indenizar, não é suficiente ao ofendido
demonstrar sua dor, e “somente ocorrerá a responsabilidade civil se estiverem
reunidos, no caso em questão, elementos essenciais como dano, ilicitude e nexo
causal”. O desembargador afirmou, também, que não existe no Brasil nenhuma lei
específica obrigando os shopping centers a fiscalizar os clientes e seus pertences
antes de adentrarem as dependências desses locais. Trata-se de um tipo de
fiscalização que, conforme destacou, “não existe nem mesmo nos Estados Unidos,
onde esse tipo de crime ocorre com certa frequência”. O desembargador relator
ainda considerou que a imputação de responsabilidade civil supõe a presença de
dois elementos de fato, que são a conduta do agente e o seu consequente resultado
158
danoso, e um elemento lógico-normativo, que é o nexo causal. Nesse sentido,
deixou claro que “somente se considera causa o evento que produziu direta e
concretamente o resultado danoso de uma ação”. E citou outros juristas ao enfatizar
que “pode existir responsabilidade sem culpa, mas não pode haver responsabilidade
sem nexo causal”. Aduziu, finalmente, que:
O crime ocorrido choca e causa espanto, pois todos nós acreditamos que
esse tipo de situação não aconteceria dentro de um shopping center,
estando, portanto, fora do risco inerente à atividade empresarial exercida
pelo recorrente (o Morumbi Shopping). Não se ignora aqui a dor das
famílias que perderam seus entes queridos de forma tão selvagem. Porém,
não se pode perder de vista que o mesmo crime poderia ter sido cometido
no saguão de um aeroporto, por exemplo, onde qualquer pessoa pode
chegar com uma arma dentro da mochila, sem ser notado, começar a
disparar a esmo e causar a morte de várias pessoas, exatamente como fez
Matheus, até que a segurança chegue e controle a situação.
Pensa-se que, realmente, não havia espaço para imposição do dever
indenizatório no caso em comento às empresas acionadas, por conta da quebra do
nexo causal e impossibilidade de reconhecimento de realização de atividade de risco
por parte do shopping ou do cinema.
De qualquer sorte, a questão ainda não está totalmente resolvida, havendo
um outro recurso especial a ser examinado também pela Quarta Turma do STJ (nº
1087717/SP).
Lamentável, todavia, foi o caso do sujeito que não foi vítima de qualquer
disparo e ainda assim ajuizou ação por danos morais por conta do mesmo fato, num
pedido absolutamente improcedente e ganancioso, que acabou dessa forma
reconhecido na Apelação nº 270.064-4/1-00 do TJ/SP. Segundo se entende, esta
pessoa deveria se contentar e agradecer a Deus pela sua vida, não se podendo
esquecer que famílias ficaram sem seus filhos, maridos e mães, enquanto ele, não
contente com a preservação de sua vida e integridade física, propôs mais uma ação
perante o Poder Judiciário, que, já atolado com as demandas dos verdadeiros
vitimados, teve que examinar mais um processo absolutamente temerário.
11.5 Da Cumulatividade da Reparação por Danos Morais, Materiais e Estéticos
Analisado o rol exemplificativo das situações concretas ensejadoras de abalo
moral indenizáveis e não indenizáveis, consoante jurisprudência do Colendo
159
Superior Tribunal de Justiça e do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São
Paulo, passemos agora à questão da cumulatividade dos danos morais com os
danos materiais e estéticos.
Nunca pareceu problemática a cumulação das indenizações por danos morais
e materiais no âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mesmo
porque se trata de um tribunal formado após e por força do advento da Constituição
da República de 1988, que previu expressamente a cumulatividade de tais
indenizações (art. 5, inciso X). Com efeito, referida Corte passou a admitir a
cumulação dos dois tipos de danos, consolidando tal entendimento com a edição de
sua Súmula nº 37: São cumuláveis as indenizações por dano material e dano moral
oriundos do mesmo fato.
Dentre outros precedentes utilizados à formação da súmula nº 37, podemos
citar o REsp 4.236/RJ, ocasião em que o Ministro Eduardo Ribeiro sustentou a
cumulatividade da indenização de dano material com o dano moral, pontuando que:
Se há um dano material e outro moral, que podem existir autonomamente,
se ambos dão margem à indenização, não se percebe porque isso não deva
ocorrer quando os dois se tenham como presentes, ainda que oriundos do
mesmo fato. De determinado ato ilícito decorrendo lesão material, esta
haverá de ser indenizada. Sendo apenas de natureza moral, igualmente
devido o ressarcimento. Quando reunidos, a reparação há de referir-se a
ambos. Não há porque cingir-se a um deles, deixando o outro sem
indenização.
Algum problema se verificou, sim, quanto à cumulatividade do dano moral
com o dano estético, dada a dificuldade de separar cada um dos tipos de danos, já
que geralmente oriundos de um mesmo fato.
O Superior Tribunal de Justiça acabou firmando entendimento de que também
os danos estéticos são cumuláveis com os danos morais, podendo-se citar como
leading case o REsp 65.393/RJ, relatado pelo Ministro Ruy Rosado Aguiar, em que
afirmou:
No âmbito dos danos à pessoa, comumente incluídos no conceito de dano
moral, estão a dor sofrida em consequência do acidente, a perda de um
projeto de vida, a diminuição do âmbito das relações sociais, a limitação das
potencialidades do indivíduo, a “perdre de jouissance de vie”, tudo elevado
a um grau superlativo quando o desastre se abate sobre a pessoa com a
gravidade que a fotografia de fls. 13 revela. Essas perdas, todas
indenizáveis, podem existir sem o dano estético, sem a deformidade ou o
aleijão, o que evidencia a necessidade de ser considerado esse dano como
algo distinto daquele dano moral, que foi considerado pela sentença. E tanto
não se confundem que o defeito estético pode determinar, em certas
160
circunstâncias, indenização pelo dano patrimonial, como acontece no caso
de um modelo.
Antes mesmo do julgado supramencionado, o i. Ministro Carlos Alberto
Menezes Direito já havia propugnado referida cumulatividade, muito embora
vencido, por ocasião do julgamento do REsp 156.453/SP, nos seguintes termos:
[...] tecnicamente, é possível que a indenização decorrente da lesão
deformante alcance verbas independentes de dano material, dano moral e
dano estético. Na realidade, com essa perspectiva o dano estético perde a
sua característica inaugural de espécie do gênero dano moral, à medida
que comporta ressarcimento diverso daquele, mesmo que, em alguns
casos, haja o seu cômputo dentro da rubrica dano moral.
Da década de 1990 para cá, veio se solidificando a tese de cumulação do
dano moral com o dano material e estético, tratando-se de tipos de indenizações
distintas, mesmo sendo o prejuízo originado de um só fato, entendimento que se
consolidou com a edição da súmula 387: É lícita a cumulação das indenizações de
dano estético e dano moral.
E a jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
também reflete em seus julgados essa possibilidade ampla de cumulação:
Apelação nº 9131523-41.2007.8.26.0000; Relator(a): Egidio Giacoia;
Comarca: Guarulhos; Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Data
do julgamento: 22/11/2011. Ementa: APELAÇÃO. Ação de indenização
por danos morais c/c perdas e danos. Parcial Procedência. Acordo
celebrado antes da prolação da sentença, mas que não foi analisado pelo d.
Magistrado por não ter sido juntado aos autos. Necessária a homologação
para surtir efeitos processuais. Decisão deve subsistir. No mérito:
possibilidade de cumulação dos danos morais e estéticos. Súmula 387 ‒
STJ. Aplicação do art. 252 do Regimento Interno do TJSP. Decisão que
deverá ser mantida. Precedentes. Readequação do valor da indenização.
Recurso Parcialmente Provido.
Apelação nº 9148468-69.2008.8.26.0000; Relator(a): Moacir Peres;
Comarca: Poá; Órgão julgador: 7ª Câmara de Direito Público; Data do
julgamento: 26/09/2011. Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL - DANOS
MATERIAIS E MORAIS - QUEDA ENTRE O TREM E A PLATAFORMA AMPUTAÇÃO DO MEMBRO SUPERIOR DIREITO. Inaplicabilidade do
artigo 27 do Código de Defesa do Consumidor. Inocorrência de prescrição.
Responsabilidade objetiva. Comprovados, suficientemente, o dano e o nexo
de causalidade, faz jus o autor à indenização pelos danos materiais, morais
e estéticos pleiteados. Ausência de comprovação de culpa exclusiva da
vítima. Pensão mensal devida. Danos morais reduzidos. Possibilidade de
cumulação dos danos morais com os estéticos. Juros moratórios que devem
observar a legislação vigente na época da mora. Agravo retido improvido.
Recursos parcialmente providos.
161
Apenas
para
uma
referência
histórica
serviu
a
explanação
desta
cumulatividade indenizatória, já que hoje, como se viu, trata-se de questão
pacificada, o que não se dá, minimamente, com relação ao tema do tópico abaixo.
11.6 Dos Parâmetros de Fixação e da Correção das Verbas Indenitárias
Por muitos anos, uma dúvida pairou sobre o Judiciário e retardou o acesso de
vítimas à reparação por danos morais: é possível quantificar financeiramente uma
dor emocional ou um aborrecimento? A Constituição de 1988 bateu o martelo e
garantiu o direito à indenização por dano moral. Desde então, magistrados de todo o
país somam, dividem e multiplicam para chegar a um padrão no arbitramento das
indenizações. O STJ tem a palavra final para esses casos e, ainda que não haja
uniformidade entre os órgãos julgadores, está em busca de parâmetros para
adequar e uniformizar os valores das indenizações.
11.6.1 O arbitramento do valor devido pela lesão a direito da personalidade
O valor do dano moral tem sido enfrentado no STJ sob a ótica de atender
uma dupla função: reparar o dano buscando minimizar a dor da vítima e punir o
ofensor para que não reincida no ilícito, apenas alterando os valores de
indenizações fixados nas instâncias locais quando se trata de quantia irrisória ou
exagerada.
A dificuldade em estabelecer com exatidão a equivalência entre o dano e o
ressarcimento se reflete na quantidade de processos que chegam ao STJ para
debater o tema. Segundo a assessoria de imprensa do STJ, em 2008 foram 11.369
processos que, de alguma forma, debatiam dano moral. O número é crescente
desde a década de 1990 e, nos últimos 10 anos, somou 67 mil processos só no
Tribunal Superior em comento.
Quando analisa o pedido de dano moral, o juiz tem liberdade para apreciar,
valorar e arbitrar a indenização dentro dos parâmetros pretendidos pelas partes. Não
há um critério legal, objetivo e tarifado para a fixação do dano moral, dependendo
muito do caso concreto e da sensibilidade do julgador. A indenização não pode ser
ínfima, de modo a servir de humilhação à vítima, nem exorbitante, para não
representar enriquecimento sem causa.
162
Essa é uma das questões mais difíceis do Direito brasileiro atual. Considerase, quanto à vítima, o tipo de ocorrência (morte, lesão física, deformidade), o
padecimento para a própria pessoa e familiares, circunstâncias de fato como a
divulgação maior ou menor e consequências psicológicas duráveis do evento.
Quanto ao ofensor, considera-se a gravidade de sua conduta ofensiva, a
desconsideração de sentimentos humanos no agir, suas forças econômicas e a
necessidade de maior ou menor valor, para que a quantia seja um desestímulo
efetivo para a não reiteração.
Tantos fatores para análise resultam em disparidades entre os tribunais na
fixação do dano moral, no que se denomina de “jurisprudência lotérica”.
É justamente para evitar que a fixação do quantum indenitário se torne
carente de qualquer parâmetro que o STJ visa uniformizar os valores a título de
condenação por danos morais. Abaixo seguem exemplos de quantificação das
indenizações por danos morais retiradas da jurisprudência do STJ.
No caso de morte ocorrida dentro de estabelecimento oficial de ensino, o STJ
fixou como devido o valor de 300 salários-mínimos a indenização por danos morais
ajuizada pelos pais da vítima fatal. Quando a ação por dano moral é movida contra
um ente público (União, Estados e Municípios), cabe às Turmas de Direito Público
do STJ o julgamento do recurso. Foi o que ocorreu no julgamento do REsp 860.705,
relatado pela Ministra Eliana Calmon. O recurso era dos pais, que, entre outros
pontos, tentavam aumentar o dano moral de R$ 15 mil para 300 salários-mínimos
em razão da morte do filho ocorrida dentro da escola, por um disparo de arma. A
Segunda Turma fixou a indenização no valor pretendido pelos pais, a ser ressarcida
pelo Distrito Federal.
O patamar, no entanto, pode variar de acordo com o dano sofrido. Em 2007, o
Ministro Castro Meira levou para análise, também na Segunda Turma, um recurso
do Estado do Amazonas, que havia sido condenado ao pagamento de R$ 350 mil à
família de uma menina morta por um policial militar em serviço. Em primeira
instância, a indenização havia sido fixada em cerca de 1.600 salários-mínimos, mas
o tribunal local reduziu o valor, destinando R$ 100 mil para cada um dos pais e R$
50 mil para cada um dos três irmãos. O STJ manteve o valor, já que, devido às
circunstâncias do caso e à ofensa sofrida pela família, não considerou o valor
exorbitante nem desproporcional (REsp. 932.001).
163
Já para os casos de paraplegia, o STJ fixou como parâmetro o valor de 600
salários-mínimos. A subjetividade no momento da fixação do dano moral resulta em
disparidades gritantes entre os diversos Tribunais brasileiros. Num recurso analisado
pela Segunda Turma do STJ em 2004, a Procuradoria do Estado do Rio Grande do
Sul apresentou exemplos de julgados pelo país para corroborar sua tese de redução
da indenização a que havia sido condenada. Feito refém durante um motim, o
diretor-geral do hospital penitenciário do Presídio Central de Porto Alegre acabou
paraplégico em razão de ferimentos. Processou o Estado e, em primeiro grau, o
dano moral foi arbitrado em R$ 700 mil. O Tribunal estadual gaúcho considerou
suficiente a indenização equivalente a 1.300 salários-mínimos. Ocorre que, em caso
semelhante (paraplegia), o Tribunal de Justiça de Minas Gerais fixou em 100
salários-mínimos o dano moral. Daí o recurso ao STJ. A Segunda Turma reduziu o
dano moral devido à vítima do motim para 600 salários-mínimos (REsp 604.801),
mas a relatora do recurso, Ministra Eliana Calmon, destacou dificuldade em chegar a
uma uniformização, já que há múltiplas especificidades a serem analisadas, de
acordo com os fatos e as circunstâncias de cada caso.
Para os casos em que houve a morte de filho por ocasião do parto, o STJ tem
fixado como referência o valor de 250 salários-mínimos. Passado o choque pela
tragédia, é natural que as vítimas pensem no ressarcimento pelos danos e busquem
isso judicialmente. Em 2002, a Terceira Turma fixou em 250 salários-mínimos a
indenização devida aos pais de um bebê de São Paulo morto por negligência dos
responsáveis do berçário (Ag 437968).
Caso semelhante foi analisado pela Segunda Turma no ano de 2009. Por falta
do correto atendimento durante e após o parto, a criança ficou com sequelas
cerebrais permanentes. Nesta hipótese, a relatora, Ministra Eliana Calmon, decidiu
por uma indenização maior, tendo em vista o prolongamento do sofrimento:
A morte do filho no parto, por negligência médica, embora ocasione dor
indescritível aos genitores, é evidentemente menor do que o sofrimento
diário dos pais que terão de cuidar, diuturnamente, do filho inválido,
portador de deficiência mental irreversível, que jamais será independente ou
terá a vida sonhada por aqueles que lhe deram a existência.
A indenização, neste caso, foi fixada em 500 salários-mínimos (REsp
1.024.693).
164
Para as ocorrências das denominadas “fofocas sociais”, o STJ tem
determinado a condenação no equivalente a 30 mil reais. O STJ reconheceu a
necessidade de reparação a uma mulher que teve sua foto ao lado de um noivo
publicada em jornal do Rio Grande do Norte, noticiando que se casariam. Na
verdade, não era ela a noiva. Em primeiro grau, a indenização foi fixada em R$ 30
mil, mas o Tribunal de Justiça potiguar entendeu que não existiria dano a ser
ressarcido, já que uma correção teria sido publicada posteriormente. No STJ, a
condenação foi restabelecida (REsp 1.053.534).
Para as situações de protesto indevido de títulos de crédito, o STJ tem
determinado o valor aproximado de 20 mil reais. Um cidadão alagoano viu uma
indenização de R$ 133 mil minguar para R$ 20 mil quando o caso chegou ao STJ.
Sem nunca ter sido correntista do banco que emitiu o cheque, houve protesto do
título devolvido por parte da empresa que o recebeu. Banco e empresa foram
condenados a pagar cem vezes o valor do cheque (R$ 1.333). Houve recurso e a
Terceira Turma reduziu a indenização. O relator, Ministro Sidnei Beneti, levou em
consideração que a fraude foi praticada por terceiros e que não houve demonstração
de abalo ao crédito do cidadão (REsp 792.051).
Para as situações de disparo, sem causa, de alarme antifurto em lojas, o STJ
fixou como parâmetro o valor de 7 mil reais. Nesse sentido, a Terceira Turma
manteve uma condenação no valor de R$ 7 mil por danos morais devido a um
consumidor do Rio de Janeiro que sofreu constrangimento e humilhação por ter de
retornar à loja para ser revistado. O alarme antifurto disparou indevidamente. Para a
relatora do recurso, Ministra Nancy Andrighi, foi razoável o patamar estabelecido
pelo Tribunal local (REsp 1.042.208). Ela destacou que o valor seria, inclusive,
menor do que noutros casos semelhantes que chegaram ao STJ. Em 2002, houve
um precedente da Quarta Turma que fixou em R$ 15 mil a indenização para um
caso idêntico (REsp 327.679).
Afora as hipóteses particularizadas supramencionadas, de um modo geral,
podemos extrair da jurisprudência do STJ os precedentes judiciais que fixam a forma
como devem ser dar as referidas quantificações dos pleitos indenizatórios por dano
moral, frisando-se que, também quanto a esse particular, não há qualquer diretriz
normativa.
Por primeiro, citemos o padrão dos fundamentos empregados pelo citado
tribunal e passíveis de utilização na generalidade, se é que assim se pode dizer, dos
165
pleitos de reparação moral e constantes dos Recursos Especiais 592.047/RS e
1.133.386/RS.
Naquele, relatado pelo Ministro Massami Uyeda, se afirmou que:
No tocante ao quantum, assinala-se que a fixação da indenização por dano
moral deve revestir-se de caráter indenizatório e sancionatório, de modo a
compensar monetariamente o constrangimento suportado pelos recorrentes,
sem que caracterize o enriquecimento ilícito, adstrito ao princípio da
razoabilidade e, de outro lado, há de servir como meio propedêutico ao
agente causador do dano.
No último recurso citado, o Ministro Honildo Amaral de Mello Castro pondera
que:
A indenização por dano moral trata-se mais de uma compensação do que
propriamente de ressarcimento (como no dano material), até porque o bem
moral não é suscetível de ser avaliado, em sua precisa extensão e em
termos pecuniários. O critério utilizado por esta Corte na fixação do valor da
indenização por danos morais tem considerado as condições pessoais e
econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com moderação
e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada
caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido e de
modo que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato ilícito.
Também nesse sentido é a jurisprudência do E. TJ/SP:
Apelação nº 0011258-72.2008.8.26.0019; Relator(a): Paulo Ayrosa;
Comarca: Americana; Órgão julgador: 31ª Câmara de Direito Privado;
Data do julgamento: 19/12/2011. Ementa: PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
TELEFONIA - INDENIZAÇÃO - INCLUSÃO INDEVIDA NOS CADASTROS
DE INADIMPLENTES - PROCEDÊNCIA DA AÇÃO MANTIDA. Tendo o
autor comprovado que seu nome foi incluído nos cadastros de
inadimplentes por negligência da ré, que não trouxe nenhum elemento para
afastar as afirmações, de rigor a procedência da ação. A inclusão indevida
do nome do autor em cadastro de inadimplentes é circunstância geradora
de dano moral. DANO MORAL - ARBITRAMENTO - PARÂMETROS EXCESSO RECONHECIDO - REDUÇÃO - RECURSO NESTA PARTE
PROVIDO. A quantificação da compensação derivada de dano moral deve
levar em consideração o grau da culpa e a capacidade contributiva do
ofensor, a extensão do dano suportado pela vítima e a sua participação no
fato, de tal sorte a constituir em um valor que sirva de bálsamo para a honra
ofendida e de punição ao ofensor, desestimulando-o e a terceiros a ter
comportamento idêntico. Constatando-se o excesso, de rigor a sua redução.
Apelação nº 0007584-03.2008.8.26.0564; Relator(a): Cesar Lacerda;
Comarca: São Bernardo do Campo; Órgão julgador: 28ª Câmara da
Seção de Direito Privado; Data do julgamento: 13/12/2011. Ementa:
Aluguel de veículo a ser utilizado no exterior - Ação de indenização por
danos morais e materiais - Voucher pré-pago não aceito - Lançamento
indevido de novo débito no cartão de crédito dos autores Constrangimentos e dificuldades gerados aos autores que importam no
reconhecimento de danos materiais e morais indenizáveis - Restituição do
valor indevidamente cobrado pelo serviço previamente pago - Devolução
em dobro descabida - Má-fé do credor não comprovada – Quantificação da
166
indenização pelos danos morais que deve levar em conta a gravidade do
dano, a sua extensão, a posição social e econômica das partes, as
finalidades reparatórias e punitiva da indenização, devendo ser suficiente
para coibir novos abusos das demandadas, sem que permita o
enriquecimento sem causa dos demandantes - Indenização reduzida Exclusão da multa imposta com fundamento no parágrafo único do art. 538
do CPC, por não se identificar manifesto intuito protelatório na interposição
dos embargos de declaração - Recurso parcialmente provido.
Assim, as condições econômico-pessoais das partes litigantes, bem como a
vedação à irrisoriedade e ao enriquecimento indevido são os balizamentos-padrões
à quantificação das indenizações por danos morais. Entretanto, tais nortes não se
mostram suficientes para todas as situações concretas geradoras de abalo moral,
fazendo-se necessária a fixação de outros critérios.
Para as situações de cadastramento indevido, o STJ, no REsp 760.841/RS,
levou em conta, além dos critérios-padrões, o diminuto valor da dívida, decisum que
restou assim ementado:
PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. RECURSO ESPECIAL. NÃO COMUNICAÇÃO
PRÉVIA DE INSCRIÇÃO EM REGISTROS DE INADIMPLENTES.
EXEGESE DO ART. 43, § 2º, DO CDC. DANOS MORAIS. OCORRÊNCIA.
INDENIZAÇÃO FIXADA. REDUÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO. 1.
Divergência jurisprudencial comprovada, nos termos do art. 541, § único, do
CPC, e art. 255, e parágrafos, do Regimento Interno desta Corte. 2. No
pleito em questão, as instâncias ordinárias concluíram que “não houve
comunicação prévia da inscrição do nome do autor no órgão de restrição ao
crédito, conforme exige a disciplina do art. 43, § 2º, do CDC, configurando,
assim, a reparação a título de danos morais”. 3. Constatado evidente
exagero ou manifesta irrisão na fixação, pelas instâncias ordinárias, do
montante indenizatório do dano moral, descumprindo os princípios da
razoabilidade e da proporcionalidade, é possível a revisão nesta Corte da
aludida quantificação. 4. Consideradas as peculiaridades do caso em
questão, ou seja, o valor da dívida que originou a indevida inscrição
(R$1.478,46 - mil quatrocentos e setenta e oito reais e quarenta e seis
centavos), o fato de que o autor não tenha comprovado nenhuma
repercussão negativa, restrição creditícia ou outra, decorrente do fato
danoso, e, sobretudo, em atenção aos parâmetros adotados nesta Corte em
casos assemelhados a este, o valor fixado pelo Tribunal de origem (em
R$10.400,00 - dez mil, quatrocentos reais) mostra-se excessivo, não se
limitando à compensação dos prejuízos advindos do evento danoso, pelo
que se impõe sua redução à quantia certa de R$ 1.000,00 (um mil reais). 5.
Recurso conhecido. REsp 760.841/RS; Relator(a): Ministro JORGE
SCARTEZZINI; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do
Julgamento: 28/03/2006; Data da Publicação: DJ, 08/05/2006, p. 232.
Já no REsp 994.253/RS o fator de ponderação na fixação do quantum
indenitário foi o período em que perdurou o cadastramento indevido, fundamentando
a Ministra relatora Nancy Andrighi ser
[...] necessário destacar que o curto lapso de permanência da inscrição
indevida em cadastro restritivo, apesar de não afastar o reconhecimento dos
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danos morais suportados, deve ser levado em consideração na fixação do
valor da reparação, porquanto é inequívoco que uma manutenção
prolongada possui, em tese, a possibilidade de gerar constrangimentos
ainda maiores ao consumidor vítima da ilegalidade. De fato, a jurisprudência
do STJ tem definido certos parâmetros para a estipulação da compensação
por danos morais, a fim de torná-la a mais adequada possível, sem, no
entanto, estabelecer qualquer tipo de tarifação de valores, já que, conforme
salientado no REsp 663.196/PR, de minha relatoria, “é da essência do dano
moral ser este compensado financeiramente a partir de uma estimativa que
guarde alguma relação necessariamente imprecisa com o sofrimento
causado, justamente por inexistir fórmula matemática que seja capaz de
traduzir as repercussões íntimas do evento em um equivalente financeiro”.
Assim, considerando as peculiaridades do presente feito, dentre as quais se
destaca a circunstância de a manutenção indevida ter perdurado por
apenas 9 (nove) dias, bem como levando em conta a necessidade de que a
compensação não importe em enriquecimento indevido, mas signifique, com
razoabilidade, um adequado tratamento ao sofrimento experimentado,
apresenta-se pertinente a fixação da compensação por danos morais em R$
10.000,00 (dez mil reais).
Num último exemplo, para as hipóteses de cerceamento oficial de liberdade
de forma ilegal, tal qual uma prisão cautelar por tempo excessivo, o STJ utilizou
como parâmetro os dias em que perdurou o cárcere ilegal, como no REsp
1.209.341/SP, relatado pelo Ministro Humberto Martins, que restou assim ementado:
1. Inexiste violação do art. 535 do CPC quando a prestação jurisdicional é
dada na medida da pretensão deduzida. Descumprido o necessário e
indispensável exame dos dispositivos de lei invocados pelo acórdão
recorrido, apto a viabilizar a pretensão recursal da recorrente, a despeito da
oposição dos embargos de declaração. Incidência da Súmula 211/STJ. 2. A
Corte de origem não analisou, sequer implicitamente, o art. 133 do Código
de Processo Civil. Incidência da Súmula 211 do Superior Tribunal de
Justiça: “Inadmissível recurso especial quanto à questão que, a despeito da
oposição de embargos declaratórios, não foi apreciada pelo tribunal a quo”.
3. O Tribunal a quo entendeu presente o erro judiciário, apto a gerar a
responsabilidade indenizatória, porque substancial, inescusável e culposo,
decorrente de prisão indevida do autor, como depositário infiel, fixados em
200 salários-mínimos a compensação por danos morais. 4. O tempo de
duração da prisão indevida é fator influente ao cálculo da compensação por
danos morais. Considerado que pelo tempo de cárcere, aproximadamente
sete horas, a fixação do dano moral em 200 salários-mínimos é exorbitante,
devendo ser reduzida para a quantia de R$ 10.000,00 (dez mil reais), que
melhor se ajusta aos parâmetros adotados por esta Corte. 5. Quanto à
aplicação de multa em embargos declaratórios opostos pela recorrente,
merece reparo o acórdão, haja vista que, no caso particular, não possuem o
necessário caráter protelatório a autorizar a manutenção da penalidade
insculpida no art. 538, parágrafo único, do Código de Processo Civil.
Recurso especial parcialmente provido. REsp 1209341/SP; Relator(a):
Ministro HUMBERTO MARTINS; Órgão Julgador: T2 - SEGUNDA TURMA;
Data do Julgamento: 21/10/2010; Data da Publicação: DJe, 09/11/2010.
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11.6.2 O princípio da equidade como critério para fixação da indenização por danos
morais - art. 953, parágrafo único, do Código Civil
No Recurso Especial nº 1.152.541/RS (2009/0157076-0), de relatoria do
Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Sua Excelência recorda sua fundamental obra
no assunto em tela, denominada “O Princípio da Reparação Integral – indenização
no Código Civil”, na qual destaca o princípio da equidade, mencionado no parágrafo
único do art. 953 do Código Civil, como o critério adotado pelo ordenamento jurídico
civil vigente para a correta fixação do valor da indenização por danos morais.
O voto condutor do julgado mais parece uma obra de doutrina acerca do
assunto em exame, merecendo destaque pausado uma de suas partes que toca
mais de perto o assunto deste trabalho. Sua Excelência inicia pela constatação da
extrema dificuldade hoje vivida pela jurisprudência para a quantificação da
indenização por danos morais; afirma que o sistema da tarifação legal da
indenização não se coaduna com nosso ordenamento jurídico civil-constitucional, à
vista do princípio da integral reparação, importando, inclusive, na declaração de não
recepção constitucional da Lei de Imprensa pelo Supremo Tribunal Federal; e, por
fim, chega ao sistema do arbitramento pelo juiz de forma equitativa como parâmetro
adequado à fixação do quantum indenizatório nas lesões aos direitos da
personalidade, nos seguintes termos:
II – Arbitramento equitativo pelo juiz. O melhor critério para quantificação
da indenização por prejuízos extrapatrimoniais em geral, no atual estágio do
Direito brasileiro, é por arbitramento pelo juiz, de forma eqüitativa, com
fundamento no postulado da razoabilidade. Na reparação dos danos
extrapatrimoniais, conforme lição de Fernando Noronha, segue-se o
“princípio da satisfação compensatória”, pois “o quantitativo pecuniário a ser
atribuído ao lesado nunca poderá ser equivalente a um preço”, mas “será o
valor necessário para lhe proporcionar um lenitivo para o sofrimento
infligido, ou uma compensação pela ofensa à vida ou integridade física”
(NORONHA, Fernando. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003,
p. 569). Diante da impossibilidade de uma indenização pecuniária que
compense integralmente a ofensa ao bem ou interesse jurídico lesado, a
solução é uma reparação com natureza satisfatória, que não guardará uma
relação de equivalência precisa com o prejuízo extrapatrimonial, mas que
deverá ser pautada pela eqüidade. No Brasil, embora não se tenha norma
geral para o arbitramento da indenização por dano extrapatrimonial
semelhante ao art. 496, n. 3, do CC português, tem-se a regra específica do
art. 953, parágrafo único, do CC/2002, já referida, que, no caso de ofensas
contra a honra, não sendo possível provar prejuízo material, confere
poderes ao juiz para “fixar, eqüitativamente, o valor da indenização na
conformidade das circunstâncias do caso”. Na falta de norma expressa,
essa regra pode ser estendida, por analogia, às demais hipóteses de
prejuízos sem conteúdo econômico (LICC, art. 4º). Menezes Direito e
169
Cavalieri Filho, a partir desse preceito legal, manifestam sua concordância
com a orientação traçada pelo Min. Ruy Rosado de que “a eqüidade é o
parâmetro que o novo Código Civil, no seu artigo 953, forneceu ao juiz para
a fixação dessa indenização” (DIREITO, Carlos Alberto Menezes;
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Comentários ao novo Código Civil: da
responsabilidade civil, das preferências e privilégios creditórios. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. v. 13, p. 348). Esse arbitramento eqüitativo será
pautado pelo postulado da razoabilidade, transformando o juiz em um
montante econômico a agressão a um bem jurídico sem essa natureza. O
próprio julgador da demanda indenizatória, na mesma sentença em que
aprecia a ocorrência do ato ilícito, deve proceder ao arbitramento da
indenização. A autorização legal para o arbitramento eqüitativo não
representa a outorga pelo legislador ao juiz de um poder arbitrário, pois a
indenização, além de ser fixada com razoabilidade, deve ser devidamente
fundamentada com a indicação dos critérios utilizados. A doutrina e a
jurisprudência têm encontrado dificuldades para estabelecer quais são
esses critérios razoavelmente objetivos a serem utilizados pelo juiz nessa
operação de arbitramento da indenização por dano extrapatrimonial.
Tentando-se proceder a uma sistematização dos critérios mais utilizados
pela jurisprudência para o arbitramento da indenização por prejuízos
extrapatrimoniais, destacam-se, atualmente, as circunstâncias do evento
danoso e o interesse jurídico lesado, que serão analisados a seguir.
Como se vê, nos termos em que redigido o parágrafo único do art. 953 do
Código Civil brasileiro, segundo o julgado acima ementado, a equidade deve ser o
critério a ser levado em conta pelo magistrado para a fixação do valor indenizatório
no caso de danos morais, sopesado ainda o princípio da razoabilidade, além das
circunstâncias do evento danoso, como a gravidade do fato em si e suas
consequências para a vítima (dimensão do dano), a intensidade do dolo ou o grau
de culpa do agente (culpabilidade do agente), a eventual participação culposa do
ofendido (culpa concorrente da vítima), a condição econômica do ofensor, as
condições pessoais da vítima (posição política, social e econômica), e, por último, a
valorização do bem jurídico lesado (vida, integridade física, honra, nome etc.).
11.6.3 Forma de incidência dos juros moratórios e correção monetária
Muito se discute, e ainda assim se decide de forma bastante confusa, a
respeito da atualização dos valores apurados a título de danos morais, ou seja,
quanto à incidência de juros moratórios e correção monetária.
Sumulou-se que os juros moratórios terão como termo inicial a data do evento
danoso, nos termos do enunciado nº 54 do Colendo Superior Tribunal de Justiça.
Veja-se: “Súmula 54: Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso
de responsabilidade extracontratual”.
170
A correção monetária fluirá a partir da data do arbitramento do valor da
indenização, ou seja, da prolação da sentença ou do acórdão que a reconhecer, nos
termos da Súmula nº 362 do Superior Tribunal de Justiça: “Súmula 362: A correção
monetária do valor da indenização do dano moral incide desde a data do
arbitramento”.
Veja-se que, nesse ponto, o próprio Tribunal entendeu pelo afastamento de
sua Súmula nº 43, que dispõe que para os casos de ilícito extracontratual a correção
monetária incide desde a data do evento danoso, consoante decidido no REsp
657.026/SE, relatado pelo Ministro Teori Albino Zavaski, que assim se manifestou:
No que pertine à correção monetária sobre dívida decorrente de ato ilícito,
determina a Súmula 43/STJ que esta deve correr a partir do evento danoso.
Entretanto, consolidou-se o entendimento segundo o qual, nas indenizações
por dano moral, o termo a quo para a incidência da atualização monetária é
a data em que foi arbitrado seu valor, tendo-se em vista que, no momento
da fixação do quantum indenizatório, o magistrado leva em consideração a
expressão atual de valor da moeda. Assim, inaplicável, nesses casos, o
enunciado da Súmula 43/STJ.
Feitos esses esclarecimentos, cumpre-nos, por derradeiro, salientar a
existência de recentíssimo julgado do STJ divergente quanto às formas de
atualização supracitadas. Assim é que, inobstante os vetores de atualização estarem
consagrados em proposições sumulares, no julgamento do REsp 903.258/RS,
datado de 30 de junho de 2011, a Ministra Maria Isabel Galloti determinou que os
juros moratórios, em se tratando de indenizações por danos morais, devem ter seu
termo inicial também desde a data do arbitramento, pouco importando se oriundos
de ilícito contratual ou extracontratual; vale dizer, os juros de mora referentes à
reparação de dano moral contam-se, de acordo com este julgado, a partir da
sentença que determinou o valor da indenização ou do acórdão que a reconheceu. A
decisão é da Quarta Turma do STJ e representou novo entendimento sobre o tema
na Corte. A maioria dos ministros seguiu o voto da relatora, considerando que, como
a indenização por dano moral só passa a ter expressão em dinheiro a partir da
decisão judicial que a arbitra, “não há como incidirem, antes desta data, juros de
mora sobre a quantia que ainda não fora estabelecida em juízo”.
A Ministra Gallotti esclareceu que, no caso de pagamento de indenização em
dinheiro por dano moral puro, “não há como considerar em mora o devedor, se ele
não tinha como satisfazer obrigação pecuniária não fixada por sentença judicial,
arbitramento ou acordo entre as partes”. Como os danos morais somente assumem
171
expressão patrimonial com o arbitramento de seu valor em dinheiro na sentença de
mérito, a ministra concluiu que o não pagamento desde a data do ilícito não pode ser
considerado omissão imputável ao devedor, para efeito de tê-lo em mora: “Mesmo
que o quisesse, o devedor não teria como satisfazer obrigação decorrente de dano
moral não traduzida em dinheiro nem por sentença judicial, nem por arbitramento e
nem por acordo”.
O julgamento que inovou a posição da Quarta Turma diz respeito a uma ação
de indenização – por danos materiais, morais e estéticos – de um paciente do
Hospital Moinhos de Vento, de Porto Alegre (RS). Internado nos primeiros dias de
vida, ele foi vítima de infecção hospitalar que lhe deixou graves e irreversíveis
sequelas motoras e estéticas. Após a condenação do hospital ao pagamento de
pensão mensal vitalícia à vítima, a ministra se propôs a reexaminar a questão do
termo inicial dos juros de mora. Nesse ponto, o Ministro Luis Felipe Salomão
discordou, considerando que os juros devem contar a partir do evento danoso,
afirmando que uma mudança brusca na jurisprudência precisa de uma discussão
pela Seção ou pela Corte Especial. Foi, porém, vencido pelos outros ministros, que
acompanharam a relatora em seu voto.
Assim, consoante todo o fundamentado, ainda que se tenha pela adoção dos
critérios sumulados, a jurisprudência do STJ sinalizava um possível overrruling,
talvez um dia fixando como termo inicial para a contagem da atualização monetária
e também dos juros moratórios a data da sentença ou do acórdão que arbitrar a
indenização por danos morais.
Entretanto, quando se dava a pensar numa nova orientação a esta respeito,
posteriormente ao julgamento do Recurso Especial 903.258/RS acima citado, a
questão foi novamente trazida a lume, agora no bojo do REsp 1132866/SP,
examinado pela Segunda Seção do STJ, cuja relatoria novamente coube à Ministra
Maria Isabel Gallotti, que, mais uma vez, votou no sentido de que a fluência dos
juros moratórios deveria começar na data do julgado da condenação. Segundo ela, a
questão do termo inicial dos juros de mora no pagamento de indenização por dano
moral deveria ser reexaminada, tendo em vista as peculiaridades desse tipo de
indenização. A relatora foi acompanhada pelos Ministros Antonio Carlos Ferreira,
Marco Buzzi e Raul Araújo. Porém, o Ministro Sidnei Beneti iniciou a divergência, no
que foi acompanhado pela Ministra Nancy Andrighi e pelos Ministros Luis Felipe
172
Salomão, Paulo de Tarso Sanseverino e Villas Bôas Cueva. Assim, a relatora ficou
vencida.
Para o Ministro Sidnei Beneti, o acórdão do TJ/SP vergastado estava em
conformidade com o entendimento do STJ no sentido de que os juros moratórios
incidem desde a data do evento danoso, em caso de responsabilidade
extracontratual (Súmula nº 54/STJ). “Assim, diante de súmula deste Tribunal, a
própria segurança jurídica, pela qual clama toda a sociedade brasileira, vem antes
em prol da manutenção da orientação há tanto tempo firmada do que de sua
alteração”, acrescentou.
A Ministra Isabel Gallotti, ao apresentar ratificação de voto após o início da
divergência, esclareceu que não estava contradizendo a Súmula
nº 54.
Especificamente no caso de dano moral puro, que não tem base de cálculo, ela
aplicava por analogia a Súmula nº 362, segundo a qual “a correção monetária do
valor da indenização do dano moral incide desde a data do arbitramento”. A relatora
afirmou ainda que o magistrado, ao fixar o valor da indenização por dano moral, leva
em consideração o tempo decorrido entre a data do evento danoso e o dia do
arbitramento da indenização pecuniária. Por essas razões, considerou que a data
fixada no acórdão proferido pelo tribunal paulista é que deveria ser o termo inicial
dos juros de mora, mas acabou vencida.
Logo, os juros de mora, nos casos de condenação por dano moral, continuam
a incidir a partir da data do evento danoso, consoante decisão da Segunda Seção do
STJ, no bojo do REsp 1.132.866/SP, que negou recurso da Empresa Folha da
Manhã S/A, condenada a pagar indenização por dano moral ao jornalista Marcelo
Fagá (morto em 2003). Com isso, a Segunda Seção manteve o entendimento que já
prevalecia no STJ – cuja revisão, ante as peculiaridades do caso, era defendida por
parte dos ministros.
Apenas para que conste, os juros moratórios e a atualização monetária são
acessórios da verba principal devida, que independem, para que constem da
condenação, de pedido expresso da parte a quem aproveitam, como deixa claro
Renan Lotufo:
O novo dispositivo acresce sobre o de origem (art. 1.056 do Código Civil de
1916) por deixar evidente a incidência de juros e atualização monetária das
perdas e danos. Portanto, a regra, nessa hipótese, é de aplicação de ofício
173
pelo juiz, não havendo necessidade de pedido da parte. É a sanção do
254
sistema para o inadimplemento absoluto.
No âmbito do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo há plena
adoção das proposições sumulares e jurisprudenciais emanadas do C. STJ e que
regulam os termos iniciais dos juros moratórios e correção monetária referentes às
indenizações por dano moral:
Apelação nº 0000426-44.2010.8.26.0072; Relator(a): Adilson de Araujo;
Comarca: Bebedouro; Órgão julgador: 31ª Câmara de Direito Privado;
Data do julgamento: 19/12/2011. Ementa: Ficou demonstrado que o réu
incluiu o nome da autora no cadastro de inadimplentes quando esta já havia
efetuado o pagamento da parcela apontada no registro desabonador. A
quantia fixada a título de danos morais não pode ser fator de
enriquecimento injustificado do indenizado, mas também não pode gerar
excesso na direção oposta, tornando-se extremamente modesta e não
provocando qualquer esforço à devedora para adimpli-la. O arbitramento
feito atende a tais princípios, ajustando-se à situação fática apresentada. O
termo inicial da correção monetária do valor da indenização do dano moral
incide desde a data do arbitramento na sentença conforme Súmula nº 362
do STJ.
Apelação nº 9218340-45.2006.8.26.0000; Relator(a): João Carlos Saletti;
Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 10ª Câmara de Direito Privado;
Data do julgamento: 13/12/2011. Ementa: Dano moral. Situação de
tristeza e angústia de compradores de imóvel novo, que o encontram
danificado por águas servidas provindas do vizinho de cima. Danos
demonstrados. Indenização devida. Valor fixado conforme os princípios de
razoabilidade e proporcionalidade. Sentença mantida. Juros moratórios.
Incidência. Termo inicial. Data do evento lesivo. (Súmula 54 do STJ).
Sentença mantida.
De todo o exposto, espera-se ter ficado esclarecido que a jurisprudência
adotou para as verbas acessórias dos danos morais termos iniciais parcialmente
diversos daqueles que o Código Civil e a legislação extravagante disciplinam para a
indenização por danos materiais.
Assim, por exemplo, o termo inicial da correção monetária nos danos morais
se dá apenas no momento da prolação da decisão que fixar a indenização desta
espécie, isso em virtude de pura construção jurisprudencial, enquanto a reparação
por danos materiais, se líquida e exigível a dívida, tem como termo a quo a data do
vencimento da prestação, nos termos do art. 397 do Código Civil (mora ex re).
No que toca à contagem dos juros de mora, que pareciam ter seu termo inicial
de fácil constatação, por expressa previsão dos artigos 405 do CC e 219, § 5º, do
CPC, isso é, após a citação, também se verificou uma variante. Com efeito, tratando254
LOTUFO, Renan. Código Civil comentado. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 2, p. 431.
174
se de indenização por danos morais, fica reconhecida a aplicação do art. 398 do
Código Civil, bem como da súmula 54 do STJ, contando-se os juros moratórios
desde a data do ato ilícito que gerou a compensação.
Neste caso, o art. 405 do CC e o art. 219, § 5º, do CPC, reservam-se à
hipótese de indenização por danos materiais que não tenham data de vencimento
(mora ex persona) e também se inexistente notificação extrajudicial ou judicial para
pagamento, caso contrário este último será o termo inicial, em virtude da
constituição da mora antes da citação para o processo de cobrança.
11.7 Uso Indevido da Imagem e o Arbitramento da Respectiva Indenização
O uso indevido da imagem, enquanto lesão a direito da personalidade
ensejador de reparação, merece uma análise mais pausada, pois, segundo Sérgio
Cavalieri Filho255, “[...] embora revestida de todas as características comuns aos
direitos da personalidade, a imagem destaca-se das demais pelo aspecto da
disponibilidade”.
A imagem foi expressamente tutelada no artigo 20 do Código Civil. Vejamos:
Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à
manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos a transmissão da
palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma
pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da
indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a
respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Referida inviolabilidade da imagem foi previamente assegurada pela
Constituição Federal, especificamente em seu artigo 5º, incisos V e X.
Ocorre que a imagem de uma pessoa, a despeito da proteção supradescrita,
pode ser utilizada em campanhas publicitárias de produtos e serviços, mediante
autorização de seu titular. É certo, contudo, que a autorização da utilização da
imagem não importa em renúncia por seu titular, já que não produz a extinção do
direito e possuiu um destinatário favorecido por sua cessão. E, é claro, essa
disposição em favor de outrem não implica em qualquer lesão, tornando legítimo o
uso da imagem por terceira pessoa.256
255
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 108.
Ibid., p. 109-110.
256
175
Consoante lição de Sérgio Cavalieri Filho 257, a violação do direito de imagem
pode gerar para a pessoa dano material, moral, ou os dois, cumulativamente, nas
seguintes hipóteses:
O uso indevido da imagem alheia ensejará dano patrimonial sempre que for
ela explorada comercialmente sem a autorização ou participação de seu
titular no ganho através dela obtido, ou, ainda, quando a sua indevida
exploração acarretar-lhe algum prejuízo econômico, como, por exemplo, a
perda de um contrato de publicidade. Dará lugar ao dano moral se a
imagem for utilizada de forma humilhante, vexatória, desrespeitosa,
acarretando dor, vergonha e sofrimento ao seu titular, como, por exemplo,
exibir na TV a imagem de uma mulher despida sem a sua autorização. E
pode, finalmente, acarretar dano patrimonial e moral se, ao mesmo tempo, a
exploração da imagem der lugar à perda econômica e à ofensa moral.
Da vasta casuística que envolve a proteção à imagem, transcrevemos abaixo
os julgados do Colendo Superior Tribunal de Justiça que demonstram a proteção
que se confere ao referido direito personalíssimo:
REsp nº 1.082.878/RJ; Relator(a): Ministra NANCY ANDRIGHI; Órgão
Julgador: T3 TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 14/10/2008; Data da
Publicação/Fonte: DJe 18/11/2008. Ementa: Ator de TV, casado,
fotografado em local aberto, sem autorização, beijando mulher que não era
sua cônjuge. Publicação em diversas edições de revista de “fofocas”. A
existência do ato ilícito, a comprovação dos danos e a obrigação de
indenizar foram decididas, nas instâncias ordinárias, com base no conteúdo
fático-probatório dos autos, cuja reapreciação, em sede de recurso especial,
esbarra na Súmula nº 7/STJ. Por ser ator de televisão que participou de
inúmeras novelas (pessoa pública e/ou notória) e estar em local aberto
(estacionamento de veículos), o recorrido possui direito de imagem mais
restrito, mas não afastado. Na espécie, restou caracterizada a abusividade
do uso da imagem do recorrido na reportagem, realizado com nítido
propósito de incrementar as vendas da publicação. A simples publicação da
revista atinge a imagem do recorrido, artista conhecido, até porque a
fotografia o retrata beijando mulher que não era sua cônjuge. Todas essas
circunstâncias foram sopesadas e consideradas pelo TJ/RJ na fixação do
quantum indenizatório, estipulado com base nas circunstâncias singulares
do caso concreto. A alteração do valor fixado implicaria em ofensa à Súmula
nº 7/STJ. Tratando-se de responsabilidade extracontratual, decorrente de
ato ilícito, os juros de mora contam desde a prática do ilícito, de acordo com
a regra do art. 398, do CC, e com a Súmula nº 54/STJ. Tendo o autor
decaído apenas em pontos de pouca significância em face do pleito
indenizatório, a recorrente deve arcar com a totalidade das custas e
honorários advocatícios. Em ação de danos morais, os valores pleiteados
na inicial são meramente estimatórios, não implicando em sucumbência
recíproca a condenação em valor inferior ao pedido. Recurso especial não
conhecido.
REsp 1.063.304/SP; Relator(a): Ministro ARI PARGENDLER; Órgão
Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 26/08/2008; Data
da
Publicação/Fonte:
DJe
13/10/2008.
Ementa:
CIVIL.
RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL. REPORTAGEM DE JORNAL
A RESPEITO DE BARES FREQUENTADOS POR HOMOSSEXUAIS,
ILUSTRADA POR FOTO DE DUAS PESSOAS EM VIA PÚBLICA. A
257
Ibid., p. 110.
176
homossexualidade, encarada como curiosidade, tem conotação
discriminatória, e é ofensiva aos próprios homossexuais; nesse contexto, a
matéria jornalística, que identifica como homossexual quem não é, agride a
imagem deste, causando-lhe dano moral. Recurso especial conhecido e
provido em parte.
Mesma proteção conferida pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
Apelação nº 0134250-63.2006.8.26.0000; Relator(a): José Luiz Gavião de
Almeida; Comarca: Osasco; Órgão julgador: 9ª Câmara de Direito
Privado; Data do julgamento: 29/11/2011. Ementa: Responsabilidade civil.
Dano moral. Configuração em razão do uso indevido da imagem. Caso em
que se demonstrou que não foi dada autorização para a veiculação das
fotografias. Redução da indenização indevida. Recurso improvido.
Apelação nº 9247965-56.2008.8.26.0000; Relator(a): Fábio Quadros;
Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Data
do julgamento: 24/11/2011. Ementa: Uso indevido de imagem.
Indenização por danos morais. Evento ocorrido nas dependências da ré
com divulgação não autorizada de foto da autora em revista de circulação
interna. Desimportância de tratar-se a ré de entidade sem fins lucrativos e
de ter ocorrido prejuízo com o evento. Dever de indenizar que decorre do
próprio uso indevido da imagem. Honorários advocatícios que devem ser
reduzidos, aplicado o § 3º, do art. 20, do Código de Processo Civil.
Preliminar afastada. Recurso parcialmente provido com observação.
Apelação nº 0119966-16.2007.8.26.0000; Relator(a): Moreira Viegas;
Comarca: Franca; Órgão julgador: 5ª Câmara de Direito Privado; Data do
julgamento: 23/11/2011. Ementa: Indenização - Danos materiais e morais.
Violação à imagem. Matéria jornalística que mostra os menores com
referência expressa a uma gravidez precoce. Uso indevido da imagem dos
menores sem a devida autorização de sua representante. Danos morais
configurados Incidência da Súmula nº 403, do STJ. Recurso não provido.
Vê-se, assim, que o uso indevido da imagem alheia pode acarretar o dever de
pagamento da indenização por danos materiais e morais, sendo a fixação da verba
indenizatória desta última espécie de dano (o moral) a que mais nos importa neste
estudo.
Num primeiro momento, houve a defesa da tese de que o valor da
indenização por abalo moral decorrente do uso indevido da imagem se
circunscreveria ao proveito econômico obtido pelo lesante caso a publicação fosse
autorizada.
Posteriormente, doutrina e jurisprudência, de forma majoritária, passaram a
afirmar que o valor da indenização pela indevida utilização da imagem não deve ser
o mesmo que normalmente se obteria pela utilização autorizada.258 Isso porque,
258
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. p. 112.
177
segundo o doutrinador Sérgio Cavalieri Filho259, “se assim não for, a ilicitude passará
a ser um estímulo e ninguém mais respeitará a imagem de ninguém”, pois, “com ou
sem o consentimento do titular, a sua imagem será utilizada e as consequências
serão as mesmas”, e, por óbvio, “o efeito do ato vedado não pode ser o mesmo do
ato permitido, sobretudo quando há implicações de ordem moral”.
A jurisprudência se apresenta, sobretudo no STJ, tendenciosa a esta posição,
não se pautando o valor indenizatório dos danos morais ao lucro obtido pelo lesante,
nem se o ofendido é desconhecido, nem se é conhecido:
REsp 1.208.612/RJ; Relator(a): Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO; Órgão
Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do Julgamento: 15/03/2011; Data da
Publicação/Fonte: DJe 24/03/2011. Ementa: RESPONSABILIDADE CIVIL.
USO INDEVIDO DA IMAGEM. JORNAL DE GRANDE CIRCULAÇÃO.
DIREITO AUTÔNOMO. SÚMULA Nº 403/STJ. VALOR DA INDENIZAÇÃO.
VINCULAÇÃO À TIRAGEM DO PERIÓDICO. IMPROPRIEDADE. 1. A
preferência do julgador por esta ou por aquela prova está inserida no âmbito
do seu livre convencimento motivado, não cabendo compelir o magistrado a
acolher com primazia determinada prova, em detrimento de outras
pretendidas pelas partes, se pela análise das provas em comunhão estiver
convencido da verdade dos fatos. 2. “Independe de prova do prejuízo a
indenização pela publicação não autorizada de imagem de pessoa com fins
econômicos ou comerciais” (Súmula nº 403/STJ). 3. Cuidando-se de pessoa
anônima, a vinculação da indenização por uso da imagem ao percentual do
preço de venda do veículo no qual a imagem foi publicada, de regra, não é
consentânea com a essência de indenizações desse jaez. Indeniza-se o
titular do direito de imagem pelo não recebimento do preço que lhe seria
devido, caso a concessão fosse feita mediante autorização, e pelo
respectivo valor econômico da imagem, que varia a depender do potencial
publicitário da pessoa retratada. 4. Com efeito, no caso concreto, tendo em
vista que o autor é absolutamente desconhecido e certamente não poderia,
mediante a vinculação de sua imagem ao produto, propiciar qualquer
alavancagem nas vendas do periódico, não se mostra razoável atrelar o
valor da indenização à vendagem do jornal. 5. Recurso especial da
Infoglobo Comunicações S.A. parcialmente provido. 6. Recurso especial da
Empresa Folha da Manhã S.A. provido, por inexistência de qualquer ato
ilícito de sua parte. REsp 100.764/RJ.
RECURSO ESPECIAL: 1996/0043232-5; Relator(a): Ministro RUY
ROSADO DE AGUIAR; Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA; Data do
Julgamento: 24/11/1997; Data da Publicação/Fonte: DJ 16/03/1998, p. 137.
Ementa:
RESPONSABILIDADE
CIVIL.
DIREITO
À
IMAGEM.
INDENIZAÇÃO. JUROS. ÁLBUM DE FIGURINHAS. “HERÓIS DO TRI”. O
valor do dano sofrido pelo titular do direito, cuja imagem foi indevidamente
incluída em publicação, não está limitado ao lucro que uma das infratoras
possa ter auferido, pois o dano do lesado não se confunde com o lucro do
infrator, que inclusive pode ter sofrido prejuízo com o negócio. Os juros
devidos na indenização por ilícito absoluto correm desde a data do fato.
Recurso conhecido em parte e, nesta, provido.
259
Ibid., p. 112.
178
Além do pagamento da indenização por danos materiais e morais, impende
ainda que se refira ao posicionamento jurisprudencial que determina a publicação,
pelo veículo de informação ofensor, da sentença de procedência da demanda
indenizatória contra uso indevido do direito de imagem, como no caso de exposição
ilegítima em revista masculina de uma mulher, julgado pelo Tribunal de Justiça de
São Paulo:
Apelação nº 0086833-85.2004.8.26.0000; Relator(a): Enio Zuliani;
Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 4ª Câmara de Direito Privado; Data
do julgamento: 10/11/2011. Ementa: Apelação antiga (redistribuída em
virtude da Resolução nº 542/2011). Responsabilidade civil. Indenização por
danos morais e materiais. Utilização, de fotografia da autora em revista
especializada direcionada ao público masculino (Playboy). Ausência de
autorização. Alegação de consentimento tácito. Inexistência. A obrigação da
reparação decorre do próprio uso indevido do direito personalíssimo, não
havendo de cogitar-se da prova da existência de prejuízo ou dano.
Sentença de procedência, condenando a ré ao pagamento de indenização
por danos materiais, morais, e determinação para que o periódico
publicasse a sentença. Recurso de ambas as partes. Provimento, em parte,
do recurso da ré, para reduzir o quantum da indenização por danos morais
para R$ 5.000,00, afastando a condenação por danos materiais, bem como
a determinação para publicação da sentença.
Também do Tribunal de Justiça de São Paulo, colhe-se um julgado do ano de
2013, no qual se pontuou que o fato de a pessoa conversar com um repórter, por si
só, já demonstra sua anuência com a publicação de reportagem, mesmo que não
haja autorização por escrito, negando o direito de um homem ser indenizado pela TV
Globo por conta de uma reportagem feita com ele depois de seu envolvimento em
um acidente de trânsito. Após atropelar e matar um agente de trânsito em São
Paulo, dias depois do acidente, em agosto de 2003, o autor da ação foi entrevistado
para uma reportagem sobre mortes em acidentes de trânsito no Brasil. Ele alega,
porém, que não autorizou a exibição da entrevista — o que daria causa ao dano
moral. O homem argumentou, ainda, que a veiculação da reportagem causou
transtornos a ele e seus familiares, como a perda de seus clientes de transporte
escolar e a demissão de sua esposa. Além disso, o autor sustentou que houve
abuso da liberdade de imprensa na exibição de matéria tendenciosa, que o apenou
por um erro já sancionado pela Justiça. Entretanto, o magistrado Roberto Maia,
relator do recurso, considerou que, embora não haja prova da autorização por
escrito, o homem concordou em falar e permitiu que a equipe de reportagem
entrasse em sua casa. Fundamentou ainda que não houve desrespeito à intimidade
179
e que o Globo Repórter se limitou a retratar um fato reconhecido pelo próprio autor e
que havia se tornado notícia em todo país. Acrescentou que a emissora agiu de
acordo com a liberdade de imprensa e dentro de padrões de qualidade, sem ferir a
honra do homem, que teve participação mínima na reportagem, nos seguintes
termos da ementa do julgado:
APELAÇÃO n° 9168942-95.2007.8.26.0000, 27ª Câmara de
Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator
Roberto Maia. Ementa: AÇÃO INDENIZATÓRIA. ENTREVISTA
GRAVADA E EXIBIDA NA TELEVISÃO SEM AUTORIZAÇÃO POR
ESCRITO DO AUTOR. PEDIDO DE DANOS MORAIS. 1) Direitos à
privacidade e à imagem. Artigo 5º, inciso X, CF. Ausência de
violação. Demandante concordou em falar com o repórter da
demandada, deixando que ele e a equipe do programa entrassem na
casa, onde foi gravada a conversa. Quando não há causa legal
específica de sigilo nem de reserva da conversação, a gravação feita
por um dos interlocutores, ainda que sem autorização do outro, é
lícita, de modo que o material daí extraído pode ser usado até
mesmo como prova em processo penal, conforme sólida
jurisprudência do STF. Tendo se colocado nessa situação, por
vontade livre e consciente, não pode o autor, agora, retroceder e
querer punir a ré. Boa-fé objetiva, princípio geral do direito, proíbe o
venire contra factum proprium. 2) Direito à intimidade. Inexistência
de desrespeito. Programa da demandada se limitou a retratar um fato
amplamente divulgado nas páginas dos jornais e no noticiário
televisivo. Foi instaurado processo penal em virtude do acidente
provocado pelo demandante, de sorte que os autos poderiam ser
consultados por qualquer indivíduo. 3) Direito à honra. Não
ocorrência de qualquer menoscabo. Requerida divulgou em um
programa jornalístico fatos verídicos, sem qualquer distorção da
realidade. 4) Liberdade de imprensa. Artigos 5º, inciso IX e 220,
caput, §§ 1º e 2º, da CF. Exercício regular. Ré abordou a questão da
embriaguez ao volante, tema de grande interesse público. Não
recorreu ao sensacionalismo, nem a comentários grosseiros e
apelativos. Participação do autor no programa foi mínima.
Para finalizar este item, vale lembrar a redação da recente Súmula nº 403 do
STJ: “Independe de prova do prejuízo a indenização pela publicação não autorizada
de imagem de pessoa com fins econômicos ou comerciais”.
Bem por isso, a Rádio e Televisão Bandeirantes Ltda. foi condenada a pagar
para a apresentadora Xuxa a quantia de R$1.000.000,00 (um milhão de reais) por
danos materiais e mais R$100.000,00 (cem mil reais) por danos morais, em virtude
da exibição de fotos antigas e originalmente feitas para uma revista masculina, ante
a ausência de autorização da artista para tanto (AResp n. 301.020 do STJ).
180
12 RELAÇÃO ENTRE A INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS NO BRASIL E OS
PUNITIVE DAMAGES NOS EUA
A possibilidade de se indenizar o dano moral sofrido por uma pessoa, em
tese, nenhuma relação guarda com a concomitante punição a ser impingida ao
causador do prejuízo. Indenizar, como sabido, trata-se da recomposição do
patrimônio material daquele que se viu vítima de um infortúnio. Em princípio, deveria
a palavra “indenização” ser empregada apenas para a reparação do dano material.
Com alguma divergência, entende a grande maioria da doutrina que o dano moral
não pode ser reparado, porquanto a dor espiritual não tem conteúdo econômico, daí
não poder ser mensurada a respectiva indenização. Para os casos de dano moral,
nesse quadro, teria cabimento uma mera compensação da dor sofrida pela vítima
por uma quantia em dinheiro. Assente, então, que o dano material se indeniza e o
dano moral se compensa por valor em espécie.
Nada obstante, tanto a doutrina quanto a jurisprudência aceitam, sem
problemas, o termo “indenização” para tratar da reparação do dano material e da
compensação do dano moral. Resumindo, não há qualquer equívoco ao se falar em
“indenizar” o dano material ou o dano moral.
Isto posto, pode-se dizer que, tendo sido praticado um ato causador de dano
material ou moral, terá cabimento uma indenização, por meio da qual uma quantia
em dinheiro servirá como reparação pelo prejuízo material e como compensação
pelo prejuízo imaterial.
Veja-se, entretanto, que, em momento algum, mencionou-se a indenização
como instrumento hábil à punição do agente causador do dano, mesmo tendo este
atuado imbuído de dolo, má-fé ou culpa grave.
Por outro modo, em termos técnicos, não se poderia pensar na indenização
como meio para se apenar o agente causador de dano, tampouco como instrumento
para dissuadir a prática de outras condutas danosas idênticas. Não poderia, assim, a
indenização desenvolver os aspectos de repressão e prevenção quanto à prática de
atos causadores de prejuízos materiais e morais, como se dá com a indenização
punitiva estadunidense.
Como dito, entretanto, apenas no trato estritamente técnico do tema é que se
pode chegar a tal conclusão. Isso porque a pesquisa da doutrina e da jurisprudência
brasileiras aponta conclusão diversa da acima mencionada, qual seja, de que a
181
indenização não tem como única finalidade a recomposição do dano material e a
compensação pelo dano moral, com a possibilidade também de servir como
instrumento de punição ao agente causador do prejuízo, da forma como atuam os
punitive damages dos Estados Unidos.
Ora, afinal, então, tem ou não a indenização por danos morais no Brasil a
função punitiva ao agente causador do dano, atuando como instrumento de
repressão e prevenção, como a pena criminal?
É exatamente esta dúvida doutrinária e jurisprudencial que se põe para
exame nos itens que se seguem neste capítulo, iniciando-se pela doutrina e
passando-se pelo posicionamento dos tribunais.
12.1 O Posicionamento da Doutrina Brasileira
Em primeiro plano está a doutrina que responde negativamente à indagação
em comento, sem que se reconheça à indenização por danos morais qualquer
elemento de caráter punitivo.
Nesse sentido, o texto que se considerou o mais bem fundamentado foi
escrito por Maria Celina Bodin de Moraes, que inicia seu pronunciamento alertando
para a existência de eminentes doutrinadores e julgados pela tese contrária à que
defende, nos seguintes termos:
De fato, a tese da função punitiva da reparação do dano extrapatrimonial
conta atualmente no Brasil com ilustres e ardorosos defensores, tanto em
doutrina como na jurisprudência. Não são poucos os que afirmam que a
satisfação do dano extrapatrimonial visa, além de atenuar o sofrimento
injusto, desafrontar o inato sentimento de vingança, retribuindo o mal com o
mal; prevenir ofensas futuras, fazendo com que o ofensor não deseje repetir
o comportamento; e servir de exemplo, para que tampouco se queira imitálo. Diz-se, então, que a reparação do dano extrapatrimonial possui uma
dupla função, constituindo-se por meio de um caráter compensatório, para
confortar a vítima, ajudando-a a sublimar as aflições e tristezas decorrentes
do dano injustificado, e de um caráter punitivo, cujo objetivo é, em suma,
impor uma penalidade exemplar ao ofensor, consistindo esta na diminuição
de seu patrimônio material e na transferência da quantia para o patrimônio
260
da vitima.
Feita esta ressalva, todavia, passa Maria Celina Bodin de Moraes, com
fundados argumentos, a externar seu posicionamento contrário à tese punitiva da
indenização por danos morais, afirmando que “apesar do posicionamento doutrinário
260
MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e
perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 47, abr./jun. 2004.
182
e jurisprudencial acima referido, não há na legislação brasileira nada que autorize a
aplicação de uma função punitiva, ao lado da função compensatória, à indenização
de danos extrapatrimoniais”.261
Ao contrário, chama a atenção para o fato de que “o instituto dos chamados
(erroneamente) danos punitivos foi, por diversas vezes, rejeitado pelo legislador
nacional”.262 Com efeito, o artigo 16 do Projeto do Código de Defesa do Consumidor,
por exemplo, que contemplava a indenização punitiva, foi vetado quando da sanção
do Código.
Assim, afirma Maria Celina Bodin de Moraes que
[...] relevante parece ser o fato de que quando se teve a melhor
oportunidade para tanto, isto é, no âmbito da proteção ao consumidor, cujo
correspondente americano é a tortius liability, onde os punitive damages
alcançaram a fama e o sucesso, a opção brasileira foi no sentido de não
263
adotar qualquer caráter punitivo na reparação do dano.
O dispositivo previa:
Art. 16 - Vetado - Se comprovada a alta periculosidade do produto ou
serviço que provocou o dano, ou grave imprudência, negligência ou
imperícia do fornecedor, será devida multa civil de até um milhão de vezes o
Bônus do Tesouro Nacional - BTN, ou índice equivalente que venha
substituí-Io, na ação proposta por qualquer dos legitimados à defesa do
consumidor em juízo, a critério do juiz, de acordo com a gravidade e a
proporção do dano, bem como a situação econômica do responsável.
Das razões do veto consta que
[...] o art. 12 e outras normas já dispõem de modo cabal sobre a reparação
do dano sofrido pelo consumidor. Os dispositivos ora vetados criam a figura
da “multa civil”, sempre de valor expressivo, sem que sejam definidas a sua
264
destinação ou validade.
Segundo, ainda, a mesma Maria Celina Bodin de Moraes,
[...] não há no Código Civil de 2002 – e nem tampouco havia no de 1916 – a
contemplação de um caráter punitivo, não trazendo qualquer regra
permissiva de inserção de parcela punitiva na reparação do dano
extrapatrimonial; aliás, os indícios são fortemente contrários ao juízo de
punição: basta pensar no parágrafo único do art. 944, quando alude a
reduzir o valor da indenização (e, em obrigatória interpretação a contrário
sensu, impede que o juiz a aumente), e no art. 403, em tema de
responsabilidade contratual, quando afirma que “ainda que a inexecução
261
MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e
perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 47, abr./jun. 2004.
262
Ibid.
263
Ibid., p. 47-48.
264
Ibid., p. 48.
183
resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos
265
efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato”.
O Projeto de Lei n° 6.960, apresentado em 2 de junho de 2002, pelo deputado
Ricardo Fiuza, previa a inclusão de um novo parágrafo ao artigo 944, no bojo das
188 modificações ao texto do sancionado Código de 2002, com a seguinte redação:
“Art. 944, § 2º. A reparação do dano moral deve constituir-se em compensação ao
lesado e adequado desestímulo ao lesante”. Já o relatório que gerou o Substitutivo
ao Projeto de Lei nº 6.960/2002, de autoria do deputado Vicente Arruda, veio rejeitar
a proposta, sob a seguinte justificativa:
Art. 944. A doutrina define o dano moral de várias formas. Todas as
definições, entretanto, são coincidentes no que diz respeito a ser referente
ao dano de bens não patrimoniais ou não econômicos do lesado. Em
nenhum lugar a indenização por dano moral é relacionada à pena. É
justamente esse caráter de pena que ora se pretende dar quando o PL diz:
“adequado desestímulo ao lesante”. Além do mais confere-se ao juiz um
arbítrio perigoso porque não delimita a fronteira entre o dano efetivo e o
adequado desestímulo ao cometimento de futuros atos ilícitos. Cria também
um duplo critério de avaliação da indenização. O critério para cálculo do
valor da indenização do dano, tanto para o material quanto para o moral,
deve ser o da sua extensão. Pela rejeição.
Ainda, argui-se que a quantia fixada a título de indenização punitiva atuaria
como elemento de enriquecimento sem causa, como alertado por Giovanni Ettore
Nanni. Para ele, “apesar da opinião de alguns autores clássicos em defesa de tal
ponto de vista, a pena privada não vingou como um elemento preponderante na
fixação dos danos extrapatrimoniais”266, já que, “assim procedendo, estar-se-ia
concedendo uma indenização superior ao dano efetivo, o que, em princípio,
configuraria um enriquecimento sem causa”267, concluindo que, “à luz dessas
vertentes, apesar de consistir tema arenoso, não parece ser apropriada a adoção da
linha oriunda da common law para aplicação de danos punitivos ou ditos punitive
damages no Direito Brasileiro”268.
Enfim, aí estão os argumentos de que se valem os juristas que negam à
indenização por danos morais qualquer elemento de repressão ou prevenção quanto
aos atos causadores de prejuízos extrapatrimoniais.
265
MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e
perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 48-49, abr./jun. 2004.
266
NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 354.
267
NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 358.
268
NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 354.
184
Por outro lado, mesmo diante dos fortes argumentos acima alinhavados, é
torrencial a doutrina nacional que enxerga na indenização por danos morais também
um aspecto dos punitive damages, isto é, de punição ao agente prejudicial, como se
demonstra adiante.
Para Maria Helena Diniz, “a reparação pecuniária do dano moral deverá
proporcionar ao lesado uma satisfação compensatória e desestimular a prática de
atos ofensivos, inibindo conduta antissocial”.269 Segundo Wilson Melo da Silva, o
quantum indenizatório “apresentaria um aspecto iniludível de pena”.270 Cláudio Luiz
Bueno de Godoy, se pronuncia da maneira a seguir:
Com efeito, o dano que se prefere denominar extrapatrimonial
consubstancia vulneração a direitos de personalidade e reclama fixação
indenizatória que represente uma compensação à vítima, da mesma
maneira que, simultaneamente, deve representar um desestímulo ao
ofensor, ainda que, no caso concreto, se pondere o grau de culpabilidade
do agente, se afinal não se arbitra o quantum indenizatório pela extensão de
271
um prejuízo que não é materialmente mensurável.
Para Sérgio Cavalieri Filho, “a indenização punitiva do dano moral surge
como reflexo da mudança de paradigma da responsabilidade civil e atende a dois
objetivos bem definidos: a prevenção (através da dissuasão) e a punição (no sentido
de retribuição)”.272 Carlos Roberto Gonçalves chama a atenção para que:
A reparação pecuniária do dano moral tem duplo caráter: compensatório
para a vítima e punitivo para o ofensor. Ao mesmo tempo em que serve de
lenitivo, de consolo, de uma espécie de compensação para atenuação do
sofrimento havido, atua como sanção ao lesante, como fato de desestímulo,
273
a fim de que não volte a praticar atos lesivos à personalidade de outrem.
Silvio de Salvo Venosa aponta que “a indenização por dano exclusivamente
moral denota um cunho eminentemente punitivo e não indenizatório”. 274 Segundo
Luiz Antonio Rizzato Nunes:
Como se viu, no dano moral não há prejuízo material. Então, a indenização
nesse campo possui outro significado. Sue objetivo é duplo: satisfativopunitivo. Por um lado, a paga em pecúnia deverá proporcionar ao ofendido
uma satisfação, uma sensação de compensação capaz de amenizar a dor
269
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 859.
SILVA, Wilson Melo da. Da responsabilidade civil automobilística. São Paulo: Saraiva, 1975. p.
371.
271
GODOY, Cláudio Luiz. PELUSO, Cezar. (Org.). Código Civil comentado: doutrina e
jurisprudência. Barueri: Manole, 2007. p. 910.
272
CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Atlas, 2010. P. 98.
273
GONÇALVES, Carlos Roberto. Responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 628.
274
VENOSA, Silvio de Salvo. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010. p. 204.
270
185
sentida. Em contrapartida, deverá também a indenização servir como
punição ao ofensor, causador do dano, incutindo-lhe um impacto suficiente
275
para dissuadi-lo de um novo atentado.
Para Arnaldo Rizzardo, “domina a teoria do duplo caráter da reparação, que
se estabelece na finalidade da digna compensação pelo mal sofrido e de uma
correta punição do causador do ato”.276 E, segundo Carlos Alberto Bittar, “o caráter
reparatório impõe, ademais, como vimos realçando, a atribuição de valor que iniba o
agente de novas investidas”.277
Nas palavras de Luís Antonio Rizzato Nunes, no dano moral não há prejuízo
econômico, possuindo a indenização outro significado. Seu objetivo é duplo:
satisfativo-punitivo. Por um lado, a paga em pecúnia deverá amenizar a dor sentida.
Em contrapartida, deverá também a indenização servir como castigo ao ofensor,
causador do dano, incutindo-lhe um impacto tal, suficiente para dissuadi-lo de um
novo atentado.278
Por fim, Judith Martins-Costa e Mariana Souza Pargendler se posicionam
favoráveis à indenização punitiva afirmando que os instrumentos colocados à
disposição pelo sistema jurídico nacional, sobretudo a cláusula de indenizabilidade
irrestrita da Constituição Federal (artigo 5º, incisos V e X), são suficientes à fixação
de quantia em favor da vítima desde que respeitadas algumas condições, como a
prática de um ilícito pelo agente imbuído de dolo ou até mesmo culpa grosseira.279
Em arremate da questão, conforme noticiam Nelson Nery Junior e Rosa Maria
de Andrade Nery, a função pedagógica da responsabilidade civil foi consolidada na
Jornada nº. IV de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, resultando no
enunciado nº 379: “O CC 944 caput não afasta a possibilidade de se reconhecer a
função punitiva ou pedagógica da responsabilidade civil”.280
275
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo:
Saraiva, 2005. p. 70-71.
276
RIZZARDO, Arnaldo. Responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007. p. 261.
277
BITTAR, Carlos Alberto. Responsabilidade civil: teoria e prática. São Paulo: Forense
Universitária, 2005. p. 116.
278
NUNES, Luiz Antonio Rizzato. O dano moral e sua interpretação jurisprudencial. São Paulo:
Saraiva, 1999. p. 2.
279
MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana de Souza. Usos e abusos da função punitiva
(punitive damages e o Direito brasileiro). Revista CEJ, Brasília, n. 28, p. 15-32, jan./mar. 2005.
Disponível em: <http://www.cjf.jus.br/revista/numero28/artigo02.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2011.
280
NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado e legislação
extravagante. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 723.
186
12.2 A Questão no Tribunal de Justiça de São Paulo
Da mesma forma, é torrencial a jurisprudência paulista que enxerga na
indenização por danos morais também um aspecto dos punitive damages, isto é, de
punição ao agente prejudicial, como assentado no v. acórdão relatado pelo Exmo.
Desembargador
Sérgio
Shimura
e
nos
julgados
que
se
seguem,
todos
recentíssimos:
INDENIZATÓRIA. DANOS MORAIS. Protesto e negativação indevidas.
Reconhecimento da ilegalidade das anotações em ação declaratória de
inexistência de débito. Petição inicial que veio acompanhada dos
documentos indispensáveis à propositura da ação. Inocorrência de inépcia
da inicial. Protesto datado de 17/05/2001. Ordem judicial, datada de
14/07/2008, para cumprimento do acórdão, para excluir o nome da autora
do SCPC e dar baixa no protesto. Dano que se prolongou no tempo.
Ausência de prescrição. Reconhecimento judicial da ilegalidade do protesto
e negativação do nome da autora Indenização por dano moral que tem
previsão constitucional (artigo 5º, incisos V e X, da Constituição Federal),
tendo caráter dúplice, devendo ser considerado tanto o aspecto
compensatório à vítima como o punitivo ao causador do dano,
desestimulando-o à prática de atos semelhantes - O dano moral não se
limitou a um mero aborrecimento, até porque ninguém fica indiferente ao ter
seu nome negativado - O valor fixado, de R$ 1.500,00, mostra-se abaixo do
devido Majoração para R$ 10.000,00, mais consentâneo ao caso em tela Apelação nº 0026037-42.2009.8.26.0554 - 23ª Câmara de Direito Privado –
TJSP, Relator Sérgio Shimura (grifado).
Apelação nº 9101010-22.2009.8.26.0000; Relator(a): Rubens Rihl;
Comarca: Santos; Órgão julgador: 8ª Câmara de Direito Público; Data do
julgamento: 26/10/2011. Ementa: APELAÇÃO. INDENIZAÇÃO POR
DANOS MORAIS. INSCRIÇÃO INDEVIDA EM DÍVIDA ATIVA.
PROPOSITURA DO EXECUTIVO FISCAL. Dano moral decorrente da
inscrição indevida. Caracterização de erro da municipalidade. Existência de
nexo de causalidade entre o ato da Administração e o evento danoso.
Incidência da responsabilidade objetiva do ente público. Inteligência do art.
37, § 6º do CF. Dano moral caracterizado por força do simples fato da
violação. Desnecessidade de comprovação do prejuízo. Quantum a ser
arbitrado com adequação, observando-se os critérios de razoabilidade e
proporcionalidade, bem como em atenção aos aspectos reparador, punitivo
e pedagógico da medida.
Apelação nº 0187770-84.2010.8.26.0100; Relator(a): João Pazine Neto;
Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Data
do julgamento: 06/12/2011. Ementa: Ação indenizatória c/c obrigação de
fazer. Negativação indevida. Negligência e falta de cautela da Ré/Apelante
ao não confirmar a veracidade dos dados do suposto cliente. Dano moral
configurado. Dever de indenizar caracterizado. Montante fixado em 50
salários-mínimos, ora reduzido para R$ 5.000,00, nos termos de
precedentes da Câmara. Congruência entre as funções ressarcitória e
punitiva. Honorária adequada, em consequência da redução da
indenização, para 15% do valor da condenação.
Apelação nº 0012784-74.2008.8.26.0019; Relator(a): Mendes Gomes;
Comarca: Americana; Órgão julgador: 35ª Câmara de Direito Privado;
Data do julgamento: 05/12/2011. Ementa: Para a fixação do valor do dano
187
moral levam-se em conta, basicamente, as circunstâncias do caso, a
gravidade do dano, a situação do lesante, a condição do lesado,
preponderando, em nível de orientação central, a ideia de sancionamento.
Apelação nº 9164982-34.2007.8.26.0000; Relator(a): Soares Levada;
Comarca: Santos; Órgão julgador: 34ª Câmara de Direito Privado; Data
do julgamento: 28/11/2011. Ementa: Prestação de serviços de telefonia.
Cobrança indevida de faturas extraídas de ligações não atribuíveis ao autor,
sob pena de inscrição de seu nome nos cadastros de proteção ao crédito.
Transtorno indevido e abalo psicológico evidenciado. Indenização a título de
dano moral devida, com a dúplice finalidade compensatória às vítimas e
punitiva à ofensora.
12.3 A Questão no Superior Tribunal de Justiça
Outra não é a posição do Superior Tribunal de Justiça, conferindo também
uma conotação de pena pecuniária à indenização por danos morais visando
dissuadir a prática de atos da mesma espécie, consoante se verifica das ementas
abaixo transcritas:
1. Não há que falar que a apreensão do veículo em blitz por estar o
documento de licenciamento fornecido com o ano de exercício errado é um
“transtorno corriqueiro”. “Os simples aborrecimentos triviais aos quais o
cidadão encontra-se sujeito devem ser considerados como os que não
ultrapassem o limite do razoável, tais como: a longa espera em filas para
atendimento, a falta de estacionamentos públicos suficientes,
engarrafamentos etc.” (REsp 608.918/RS; Rel. Min. José Delgado; Primeira
Turma; julgado em 20/05/2004, DJ, 21/06/2004, p. 176.) 2. Não resta
dúvida, no presente caso, que o proprietário do veículo sofreu desconforto e
constrangimento bastantes para se impor uma compensação pelo infortúnio,
que deve ter finalidade compensatória e punitiva, sem patrocinar o
enriquecimento sem causa. Recurso especial provido em parte, para
determinar a condenação em danos morais no valor de R$ 4.000,00 (quatro
mil reais) e honorários advocatícios em 10% (dez por cento) sobre o valor
da condenação. (REsp 1.181.395/SC; Relator: Min. Humberto Martins;
julgado em 20/04/2010).
É de todo conveniente trazer à baila os fundamentos sobre os quais se
sustentou o precedente supracitado. A Ministra Nancy Andrighi, ao relatar o REsp
1.171.826/RS, asseverou que, inobstante o STJ evitar rediscussão quanto a
questões de fato e de direito, no que tange às indenizações por danos morais:
[...] muito excepcionalmente o quantum arbitrado tem sido modificado se a
Corte identifica ausente qualquer das seguintes funções: (i) a
proporcionalidade da compensação em relação ao sofrimento; (ii) a
exemplaridade da punição do ofensor para evitar novo ato danoso. [...] Em
situações de serviços de relevância pública que resultam acidentes com
vítima fatal, a jurisprudência do STJ baliza a indenização conforme a
188
natureza do dano, a gravidade das consequências, a proporção da
compensação em relação ao sofrimento e sua função punitiva.
Já o Ministro Honildo Amaral de Mello Castro, ao improver o Agravo
Regimental 850.273/BA, manteve in totum a decisão monocrática do eminente Juiz
Federal Convocado, Dr. Carlos Fernando Mathias, e que se deu com esteio no
fundamento infradescrito:
Há, como bastante sabido, na ressarcibilidade do dano em destaque, de um
lado, uma expiação do culpado e, de outro, uma satisfação à vítima. Como
fixar a reparação? Quais os indicadores? Por certo, devido à influência do
direito norte-americano muitas vezes invoca-se pedido na linha ou princípio
dos “punitive damages”. “Punitive damages” (ao pé da letra, repita-se o
óbvio, indenizações punitivas) diz-se da indenização por dano, em que é
fixado valor com objetivo a um só tempo de desestimular o autor à prática
de outros idênticos danos e a servir de exemplo para que outros também
assim se conduzam. Ainda que não muito farta a doutrina pátria no
particular, têm-se designado as “punitive damages” como a “teoria do valor
do desestímulo” posto que, repita-se, com outras palavras, a informar a
indenização, está a intenção punitiva ao causador do dano e de modo que
ninguém queira se expor a receber idêntica sanção. No caso do dano moral,
evidentemente, não é tão fácil apurá-lo. Ressalte-se, outrossim, que a
aplicação irrestrita das “punitive damages” encontra óbice regulador no
ordenamento jurídico pátrio que, anteriormente à entrada em vigor do
Código Civil de 2002, vedava o enriquecimento sem causa como princípio
informador do direito e após a novel codificação civilista, passou a
prescrevê-la expressamente, mais especificamente, no art. 884, do Código
Civil de 2002. Assim, o critério que vem sendo utilizado por esta Corte na
fixação do valor da indenização por danos morais, considera as condições
pessoais e econômicas das partes, devendo o arbitramento operar-se com
moderação e razoabilidade, atento à realidade da vida e às peculiaridades
de cada caso, de forma a não haver o enriquecimento indevido do ofendido
e, também, de modo que sirva para desestimular o ofensor a repetir o ato
ilícito.
12.4 A Questão no Supremo Tribunal Federal
Por derradeiro, cumpre citar a ementa de recente julgamento do Supremo
Tribunal Federal, de relatoria do Eminente Ministro Decano Celso de Mello, na qual
se alude, expressamente, aos punitive damages:
189
Responsabilidade Civil Objetiva do Estado ‒ Dano Causado em Hospital
Público. AI 455846/RJ; RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO. EMENTA:
RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO.
ELEMENTOS ESTRUTURAIS. PRESSUPOSTOS LEGITIMADORES DA
INCIDÊNCIA DO ART. 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA.
TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. FATO DANOSO PARA O
OFENDIDO, RESULTANTE DE ATUAÇÃO DE SERVIDOR PÚBLICO NO
DESEMPENHO DE ATIVIDADE MÉDICA. PROCEDIMENTO EXECUTADO
EM HOSPITAL PÚBLICO. DANO MORAL. RESSARCIBILIDADE. DUPLA
FUNÇÃO DA INDENIZAÇÃO CIVIL POR DANO MORAL (REPARAÇÃOSANÇÃO): (a) CARÁTER PUNITIVO OU INIBITÓRIO (“EXEMPLARY OR
PUNITIVE DAMAGES”) E (b) NATUREZA COMPENSATÓRIA OU
REPARATÓRIA. DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. AGRAVO IMPROVIDO.
Ocorre que a competência final para exame da grande maioria das questões
de Direito Privado, sobretudo as relacionadas à responsabilidade civil, e, por
consequência, dos danos morais e sua relação com os punitive damages, após a
Constituição Federal de 1.988, se deslocou do Supremo Tribunal Federal para o
Superior Tribunal de Justiça, daí o reduzido número de julgados da Excelsa Corte
acera do tema em comento, salientando-se que a decisão acima referida tratou da
indenização punitiva num caso em que era ré uma entidade de Direito Público
interno, atraindo a mais alta competência do país por conta da responsabilidade civil
objetiva da Administração Pública, a teor do art. 37, § 6º, da Carta Constitucional.
Mas o fato é que a decisão tratou de deixar isenta de dúvidas a conclusão de
que o Supremo Tribunal Federal acompanha expressamente o raciocínio que atribui
“dupla função da indenização civil por dano moral (reparação-sanção): (a)
caráter punitivo ou inibitório (“exemplary or punitive damages”) e (b) natureza
compensatória ou reparatória”.
12.5 Nosso posicionamento
Nesse quadro, mesmo se tendo em consideração que o ativismo judicial
somente tem lugar quando autorizado pelo legislador, vê-se o Poder Judiciário, hoje,
colocado na berlinda, como última tábua de salvação dos direitos civis, sobretudo
dos interesses dos consumidores contra enormes conglomerados econômicos, que,
tendo como único norte o lucro, reiteram-se na lesão a direitos alheios.
Com efeito, estudos e mesmo a experiência forense apontam que empresas
dos ramos bancário, telefônico, securitário, e até prestadoras de serviços essenciais
como água e energia elétrica, além de, é claro, o próprio Poder Público, tratam o
consumidor como um “nada”. Os serviços de pós-venda, por exemplo, são feitos por
190
atendimento telefônico computadorizado, com infindáveis minutos e até horas de
espera. Nada se resolve!
Afora isso, no que toca ao tema específico deste estudo, é sabido que
existem empresas de comunicação que vivem do sensacionalismo e da imputação
de notícias difamatórias contra quem quer que seja que possa gerar lucro, e nem
deveriam ser chamadas de entidades de imprensa.
E ainda o dolo, a arbitrariedade, e todo o tipo de elemento de má-fé têm hoje
impulsionado um número cada vez maior de condutas que só fazem gerar
verdadeira desgraça na vida de pessoas de bem, e isso não pode continuar.
Resultado disso é, como se viu, a prolação de julgados, cada vez mais
comuns em primeira instância, devidamente confirmados em segundo grau, na
instância especial (Superior Tribunal de Justiça) e na extraordinária (Supremo
Tribunal Federal), impondo indenizações que, camuflando a roupagem de
compensação por danos morais, em verdade, têm como intuito inescondível a
imposição de uma pena civil ao agente ofensor.
E não há como negar a correção desta postura judicial, certo do fato de que
nem sempre o direito criminal, sobretudo em tempos de adoção de sua noção como
última ratio, pode fazer frente às aspirações da sociedade por uma proteção mais
efetiva de seus direitos fundamentais.
Assim, a fixação de indenização punitiva é muito bem vinda, e não há
necessidade alguma de se promover qualquer mudança relativa à sua nomenclatura
ou posicionamento. Em outras palavras, a utilização de critérios como grau de
culpabilidade, dolo, reiteração da conduta lesiva, elevado potencial econômico do
ofensor e extensão do prejuízo para a vítima, são o bastante para se introduzir na
própria indenização por danos morais o conteúdo punitivo ao agente.
O fato é que a importação de institutos jurídicos de outros países nem sempre
se dá de forma natural, em virtude das peculiaridades de cada país, de forma que
não se há de falar em pena privada ou mesmo punitive damages nos Brasil. Basta
que a indenização por danos morais seja praticada com mais intensidade no dia a
dia dos tribunais para que vá ganhando seus contornos definitivos com o tempo, de
forma natural e à moda brasileira.
Por outro modo, o tempo trará a consolidação das hipóteses de fixação de
indenização punitiva no bojo da compensação por danos morais e o seu respectivo
valor.
191
13 PARTICULARIDADES DO SISTEMA JURÍDICO ESTADUNIDENSE
13.1 Organização Judiciária Estadunidense
Em síntese, o sistema judiciário estadunidense está dividido em Cortes
Estaduais de primeira e segunda instâncias, em Cortes Federais Distritais e Cortes
Federais de Apelação do Circuito. A Corte Estadual de última instância, ao decidir
um caso, cria o precedente para aquele Estado, o mesmo acontecendo com o
julgamento da Corte Federal de Apelação de Circuito, que também cria seus
precedentes. Além disso, a Suprema Corte dos Estados Unidos estabelece
precedentes em nível nacional e que são vinculantes para todas as Cortes estaduais
e federais.
Dessa sorte, quanto à forma de organização do sistema judicial, tal como no
Brasil, o Poder Judiciário estadunidense está dividido em âmbitos estadual e federal,
que consubstanciam dois sistemas de cortes independentes: o sistema estadual de
cortes, gerido autonomamente por cada estado soberano, e o sistema federal de
cortes, organizado hierárquica e geograficamente.281
A esfera estadual é formada por Cortes de 1º grau (State Court), uma
instância intermediária no caso de alguns Estados (State Court of Appeals) e uma
Suprema Corte estadual, que estabelece seus precedentes em relação à
interpretação da Constituição Estadual e das leis estaduais, sendo que suas
decisões são passíveis de serem atacadas por recurso endereçado à Suprema
Corte americana.282
A jurisdição federal é composta por Cortes de 1ª Instância (Federal District
Courts) e pelas Cortes Federais de Apelação (United States Circuit Courts of
Appeal), totalizando onze regiões mais o distrito federal. As Cortes Distritais
Federais julgam relações jurídicas regradas por leis federais, com recursos
interpostos perante a Corte de Apelação do respectivo Circuito, que também elabora
seus precedentes, podendo ter suas decisões igualmente atacadas por recursos
endereçados à Suprema Corte estadunidense.
281
FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 03.
282
HAZARD JUNIOR, Geoffrey C.; TARUFFO, Michele. American civil procedure. An introduction.
New Haven: Yale University Press, 1993.
192
A Suprema Corte dos EUA é composta por oito magistrados mais o juiz
presidente, denominados Justices e Chief in Justice, respectivamente. O Tribunal
Excelso estadunidense não está regulado por mandamento legal quanto aos
requisitos de admissibilidade dos recursos, sendo detentor de grande autonomia e
discricionariedade na seleção de casos que aceita conhecer e julgar, sendo menos
de 100 (cem) casos os recebidos, instruídos e julgados a cada ano.
Durante uma aula na Escola Paulista da Magistratura de São Paulo, no
campus da Rua da Consolação, no ano de 2010, a convidada Professora Toni Fine,
Dean Assistant (cargo equivalente a pró-reitor) da Faculdade de Direito da Fordham
University de Nova Iorque, indagada por um estudante brasileiro quanto a esse
reduzido número de processos julgados anualmente, da forma espontânea e
didática que lhe é peculiar, deu exatamente o tom da discricionariedade da Suprema
Corte de Justiça americana quanto aos feitos que aceita conhecer, devolvendo a
pergunta ao aluno da seguinte maneira: como estudante, se você fosse se submeter
a uma prova na faculdade e tivesse a opção de ler 10 livros ou 100 livros para se
preparar, quantos você leria? Um silêncio de início se seguiu de algumas
gargalhadas e todos entenderam que a competência da Suprema Corte americana é
tão ampla ou tão restrita quanto entenderem seus magistrados, como dito, sem
nenhum critério legal a ser levado em consideração para tanto.
13.2 A Autonomia dos Estados Federados – a descentralização do poder
A formação das federações brasileira e estadunidense adotou caminhos
inversos. Enquanto no Brasil havia uma unidade administrativa e, para a formação
da federação, houve necessidade de se descentralizar o poder entre os membros
federativos, nos Estados Unidos havia várias unidades administrativas autônomas
que, em determinado momento, se uniram numa só. Como consequência lógica, a
unidade central brasileira, ao repassar poderes às unidades descentralizadas para a
formação da federação, o fez de forma cautelosa, resguardando para si a maior
parte das atribuições administrativas e legais. Já nos Estados Unidos, o repasse de
poder também foi cauteloso, mas lá, como se viu, quem resguardou para si a maior
parte das atribuições administrativas e legais foram os Estados Membros, já que
eram os detentores originais da soberania.
193
O resultado prático dessa adoção de caminhos contrários para a formação da
federação é que no Brasil a maior parte do poder soberano é exercida pela
Administração Federal, enquanto nos Estados Unidos são os Estados Membros os
maiores executores do poder popular, com suas próprias e acentuadas atribuições
administrativas, legais e jurisdicionais.
Assim, como primeiro traço relevante da descentralização da soberania
estadunidense, citamos a notável divisão de poder, tanto vertical como horizontal,
nas estruturas governamentais daquele país. O segundo ponto importante é o fato
de que do sistema jurídico estadunidense deflui uma variedade ímpar de fontes do
Direito oriundas de cada ramificação governamental – quer federal, quer estadual –
gerando uma multiplicidade de fontes secundárias de maior ou menor influência
persuasiva. Como um terceiro aspecto relevante, diga-se que o sistema jurídico em
comento particulariza-se pela excelência de uma dessas fontes, qual seja, o case
law (o precedente) que, consoante já discorrido, tem observância compulsória por
força da teoria do stare decisis – política segundo a qual decisões judiciais devem
ser seguidas em casos subsequentes que envolvam a mesma questão fáticojurídica.
Os pontos acima levantados serão objeto de exame nos itens abaixo, sendo
pertinente, agora, que se discorra brevemente sobre a descentralização do poder
soberano estadunidense. Consoante já dito, as estruturas governamentais daquele
país são caracterizadas por uma minuciosa divisão de poder. Nesse sentido, a
Professora Toni M. Fine283 leciona que
Os pais da Constituição procuraram descentralizar o poder o quanto
possível, a fim de evitar a acumulação de poder em um único organismo ou
nas mãos de uma só pessoa. Essa divisão de poder foi pensada e adotada
com o intuito de preservar os direitos e as liberdades individuais. Nesse
sentido, o federalismo mostra-se como um importante arranjo constitucional,
sob o qual os poderes são divididos entre um governo nacional (ou federal),
de um lado, e diversos governos estaduais, do outro.
Assim, é o federalismo que assegura o relacionamento harmônico entre os
poderes de que são dotadas as diversas estruturas governamentais estadunidenses,
sendo certo que o poder federal é limitado e tem sua fonte suprema na Constituição
dos EUA. Com efeito, a Carta Magna enumera os poderes delegados pelos Estados
ao governo federal (diferentemente do Brasil, onde os poderes da União atrofiam os
283
FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 2.
194
dos Estados e Municípios). Novamente, valemo-nos das lições proeminentes da
citada professora nova-iorquina Toni Fine284:
Nos Estados Unidos, o governo federal possui ampla autoridade, mas
poderes limitados. Ou seja, a autoridade do governo é limitada aos poderes
enumerados na Constituição, sendo que os estados detêm poderes
consideráveis. Em cada soberania, isto é, o governo nacional e o governo
de cada estado, os poderes estão divididos entre as três ramificações: a
legislativa (responsável pela criação das leis), a executiva (responsável pela
execução da lei) e a judiciária (responsável pela interpretação das leis. Essa
separação de poderes é complementada por um sistema de freios e
contrapesos pelo qual cada poder mantém algum controle (freio) sobre os
demais.
In concreto, a Emenda X à Constituição estadunidense, abaixo transcrita e
traduzida, de forma explícita, reserva aos Estados Membros os poderes não
delegados ao governo federal central. Dessa forma, os Estados Federados
mantiveram considerável grau de autonomia, convivendo numa espécie de
dualidade soberana com o governo federal.
Vale ainda trazer a anotação de Toni M. Fine de que “a Constituição dos
Estados Unidos determina, com base no que pertine ao governo nacional, que cada
um dos Estados da Federação deva possuir uma Constituição com sistema
semelhante de separação de poderes”.285
13.3 As Fontes do Direito Estadunidense
No que concerne às fontes do Direito, consoante já dito, a problemática
exsurge do fato de o Direito anglo-americano ser produto de várias destas
mencionadas fontes, que podem ser classificadas em primárias ou secundárias,
mais especificamente na constatação de que a dualidade do sistema de governo
federalista dos Estados Unidos acarreta uma dúplice existência de fontes primárias,
que são criadas tanto em nível federal como estadual, sendo este o seu centro
nevrálgico.286 Para harmonizar tal aparente reduto de conflituosidade, a Professora
Toni M. Fine287 aduz que
284
Ibid., p. 02.
FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 2.
286
Ibid., p. 03.
287
Ibid., p. 03.
285
195
Essas fontes devem ser diferenciadas de acordo com os níveis de respeito,
baseados em princípios de supremacia (sob a qual uma lei federal válida
sobrepõe-se a uma lei estadual que conflita com ela) e de hierarquia (sob a
qual normas constitucionais sobrepõem-se às leis que possuem
precedência sobre determinações do Poder Executivo, o qual, por sua vez,
tem precedência sobre o case law).
E, arrematando o raciocínio anterior, assevera que “quando não existe norma
definidora primária, as cortes devem consultar fontes primárias não vinculantes, ou
uma variedade de fontes secundárias de direito”.288
Nesses termos, pode-se ter a impressão de que o precedente judicial (case
law) estaria relegado a uma função marginal e subsidiária ante a produção
legislativa dentro do sistema judicial misto dos Estados Unidos. Porém,
contraditoriamente, o case law encontra-se em posição de destaque no sistema do
common law estadunidense, sendo certo que a leitura, análise e sumarização dos
precedentes judiciais são aspectos da diuturna prática forense e do estudo do Direito
naquele país.289
Mais uma vez, para equalizar a questão aparentemente inconciliável, deve ser
observada a lição da eminente Professora Toni M. Fine290:
Segundo as regras do stare decisis, o precedente - os casos judiciais
decididos anteriormente - deve vincular a Corte subsequente que esteja
considerando uma mesma questão legal. Ainda, embora as fontes
constitucionais e legais sejam superiores aos casos na hierarquia das fontes
de direito, qualquer case law relevante é consultado quando da aplicação de
regras constitucionais ou legais (ou similares) no futuro.
Noutras palavras, as cortes estadunidenses não empreendem nova
interpretação das normas constitucionais e estatutárias para cada novo caso sub
judice; antes, consultam decisões preexistentes sobre a norma legal e que estejam à
disposição do julgador, em relação às quais o precedente pode ou não estar
vinculado.291
Assim, podemos afirmar que as fontes do Direito estadunidense são
classificadas em primárias e secundárias, de forma hierárquica, com base na força
de aplicação que carregam. Fontes primárias são as Constituições (federal e
estaduais), leis, regulamentos e precedentes vinculantes (as decisões de tribunais
288
Ibid., p. 03.
FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 3.
290
Ibid., p. 3-4.
291
Ibid., p. 4.
289
196
de mesma jurisdição). São elas de aplicação obrigatória, sempre que for o caso. As
fontes secundárias são decisões não vinculantes (tribunais de jurisdições distintas),
doutrina e direito comparado, como tais, meramente persuasivas.
Por todo o exposto e consoante dito anteriormente, a tradição jurídica dos
Estados Unidos da América é, em princípio, o common law, e, por consequência, a
que inspira o seu sistema judicial. Contudo, existem tantas peculiaridades nesse
sistema, que sequer pode ser tido como um puro sistema de Direito common law,
sendo mais corretamente denominado de sistema misto, justamente em virtude da
existência de considerável produção legislativa típica do civil law, que será objeto de
estudo mais adiante.
Frise-se que, para muitos estudiosos e operadores do civil law, os sistemas
inspirados na tradição common law produzem um caótico emaranhado de regras e
normas esparsas. Esse fato obriga o operador do Direito a examinar dezenas ou até
centenas de decisões das mais diversas jurisdições para conseguir extrair o Direito
aplicável e poder construir de forma racional o seu argumento jurídico.
Essa circunstância é agravada haja vista a lei também desenvolver relevante
função nesse sistema a ponto de prevalecer sempre que em conflito com algum
precedente. Entretanto, não raras são as vezes em que a interpretação dos
diplomas legais se rende à subjetividade da racionalidade articulada nas decisões
dos magistrados.
Assim, o operador do Direito nos EUA, quando diante de uma questão
jurídica, é obrigado a esmiuçar diversos precedentes à procura de fatos semelhantes
que lhe possibilitem construir o argumento jurídico do caso em concreto. Tal método
não prescinde, por óbvio, da articulação das leis e regulamentos eventualmente
aplicáveis.
Dessa sorte, a qualidade de um advogado ou de um magistrado será medida
na proporção de sua respectiva perspicácia e eficiência na pesquisa da lei e de
decisões de casos concretos.
Embora a descrição desse processo cognitivo possa se assemelhar ao de
uma jurisdição inspirada pelo civil law, a racionalidade e a metodologia de ensino,
além da prática forense, são divergentes. Enquanto no common law o acadêmico é
sempre testado a partir de um caso concreto, e em sua capacidade de articular e
analisar os fatos semelhantes e a racionalidade do Direito aplicável, no civil law o
operador jurídico é treinado e inspirado com base nas teorias jurídicas e
197
principiológicas, e testado em sua capacidade de retratar e transcrever a linguagem
da ciência jurídica lecionada a partir do ordenamento jurídico positivado.
É por isso que, na derradeira lição da Professora Toni M. Fine 292 deste item,
“essas e várias outras características peculiares do sistema jurídico dos Estados
Unidos geram grandes desafios aos estudantes, operadores de direito e juízes”.
13.4 Brevíssimas Noções Procedimentais do Direito Estadunidense
Quanto às peculiaridades procedimentais existentes no sistema judiciário
estadunidense, dentre as infindáveis diferenças com o sistema adotado no Brasil,
podemos sintetizá-las na constatação de que o sistema adversarial dos Estados
Unidos impõe às partes – através de seus causídicos – o desenvolvimento de todo o
caso, este externado pelos fatos e pelas questões legais. Em tal cenário, o
magistrado assume papel relativamente passivo em diversos aspectos do
julgamento, restando incumbido de garantir que os requisitos atinentes às provas e
às outras determinações legais sejam cumpridos, bem como que as questões legais
sejam devidamente apresentadas ao júri, competente na maior parte dos litígios
judiciais.293
Com efeito, diz-se que o júri é o cartão postal do processo por atos ilícitos nos
Estados Unidos.294 E, originalmente, os jurados eram selecionados pelos seus
conhecimentos, mas hoje são convocados para dar representatividade à
sociedade.295 Assim, o que se verifica é que o sistema processual de
responsabilidade civil americano põe um enorme poder na mão dos jurados.296 Por
isso, o júri tem um poder sem igual nos casos de danos pessoais naquele país.297
Frise-se, nesse particular, que o direito ao júri é constitucionalmente garantido
em causas criminais e civis pelas Emendas VI e VII à Constituição estadunidense,
respectivamente.298
292
FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 04.
293
FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 4.
294
FLEMING, John G. The American tort process. Oxford: Claredon Press, 1988. p. 101.
295
Ibid., p. 105.
296
Ibid., p. 115.
297
O’CONNEL, Jeffrey l. The Lawsuit Lottery – only the lawyers win. New York: The Free Press,
1979. p. 86.
298
Tradução livre do autor das Emendas mencionadas: Emenda VI. Em todos os processos criminais,
o acusado terá direito a um julgamento rápido e público, por um júri imparcial do Estado e distrito
198
Como dito, o corpo de jurados é formado por leigos, que são reunidos para
um julgamento específico, sendo incumbidos de decidir os fatos em litígio, aplicando
o Direito a tais fatos em conformidade com as instruções fornecidas pelo juiz. Ainda
no que concerne à existência deste júri, enquanto exteriorização de uma das
peculiaridades do sistema processual estadunidense, a Professora Toni M. Fine 299
constata que
A presença do júri como o investigador do fato gera desafios especiais e
uma dinâmica única. Dos procedimentos investigatórios preliminares ao
julgamento, no país, são muito mais extensos do que em qualquer outro
lugar do mundo. Tais procedimentos têm sido criticados por serem
considerados prejudiciais ao sistema, mas também têm sido elogiados por
promoverem soluções racionais e permitirem que os julgamentos
transcorram de forma mais suave e sem vantagens estratégicas baseadas
na surpresa.
Vale dizer, outrossim, que a simples possibilidade de ocorrência de
condenações pesadas a título de punitive damages, embora para alguns isso não
seja comum (e muito menos de incidência obrigatória e desprovidas de quaisquer
critérios, como erroneamente imaginado aqui no Brasil), tem um forte impacto nas
estratégias de litigância e de acordo.
E é nessa esteira que se deu o desenvolvimento dos ADR - Alternative
Dispute Resolution, constituídos por uma série de procedimentos que fornecem
alternativas ao sistema de ações em juízo, proporcionando benefícios ao sistema e
às partes, e que, hodiernamente, vêm se tornando cada vez mais comuns.300
onde o crime houver sido cometido, distrito esse que será previamente estabelecido por lei, e de
ser informado sobre a natureza e a causa da acusação; de ser acareado com as testemunhas de
acusação; de fazer comparecer por meios legais testemunhas da defesa, e de ser defendido por
um advogado. Emenda VII. Nos processos de direito consuetudinário, quando o valor da causa
exceder vinte dólares, será garantido o direito de julgamento por júri, cuja decisão não poderá ser
revista por qualquer tribunal dos Estados Unidos senão de acordo com as regras do direito
costumeiro. Original em inglês das Emendas menciondas: Amendment 6. In all criminal
prosecutions, the accused shall enjoy the right to a speedy and public trial, by an impartial jury of
the State and district wherein the crime shall have been committed, which district shall have been
previously ascertained by law, and to be informed of the nature and cause of the accusation; to be
confronted with the witnesses against him; to have compulsory process for obtaining witnesses in
his favor, and to have the Assistance of Counsel for his defense. Amendment 7. In Suits at
common law, where the value in controversy shall exceed twenty dollars, the right of trial by jury
shall be preserved, and no fact tried by a jury, shall be otherwise re-examined in any Court of the
United States, than according to the rules of the common law.
299
FINE, op. cit., p. 4.
300
FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 87-88.
199
Com efeito, alguns reformistas propõem se afastar dos aspectos legais do
processo por indenizações e buscar a mediação ou arbitragem das disputas. 301
Nesse sentido, afirma-se que a vasta maioria dos casos de danos pessoais são
resolvidos fora das Cortes de Justiça, sem processos judiciais, talvez 98 ou 99 por
cento dos litígios.302
Corroborando a informação, falam por si os dados informados pela Professora
Toni M. Fine303:
A grande maioria das disputas, nos Estados Unidos, é resolvida por meio de
acordos entre as partes. A estimativa é que mais de 90 por cento das
disputas cíveis são resolvidas dessa maneira. Um percentual similar de
casos criminais é resolvido a partir de transação. Realmente seria muito
difícil, senão impossível, para o funcionamento do sistema jurídico norteamericano se um grande percentual de disputas não fosse resolvido antes
de um julgamento formal. O acordo pode ocorrer a qualquer momento da
disputa: antes mesmo de uma queixa formal ser apresentada perante a
corte até o momento do julgamento. Acordos prévios, é claro, são uma
ferramenta muito mais eficiente para o sistema jurídico e também para as
partes. A maioria dos acordos ocorre após a realização de algumas
investigações dos fatos.
Dentre os modos alternativos de resolução de conflitos podemos citar, por
serem mais conhecidos, a mediação e a arbitragem. A despeito de terem como traço
comum o fato de se tratar, ontologicamente, de mecanismos alternativos à justiça,
tais institutos possuem um elemento diferenciador. A mediação é um processo
facultativo e eletivo, pelo qual um terceiro imparcial aproxima as partes, visando
obter a composição, mas não lhes impõe qualquer solução, ou seja, em última
análise, o êxito da mediação depende diretamente das partes. Já a arbitragem é
processo de natureza privada, em que o árbitro avalia as questões conflituosas e,
sopesando os parâmetros legais aplicáveis ao caso, profere decisão atinente ao
mérito, que é impositiva às partes que deram sua concordância prévia ou posterior à
lide quanto a isso.304
Em certa medida os institutos da mediação e da arbitragem nos EUA
guardam aspectos em comum com a lei federal brasileira correspondente ao tema
(de n°. 9.307/96), como, por exemplo, seu caráter vinculante após seu ajuste, já que,
também no Brasil, “estando prevista a convenção de arbitragem, se uma das partes
301
OLSON, Walter. New Directions in Liability Law. New York: Capital City Press, 1988. v. 37, p. 3.
O’CONNEL, Jeffrey l. The Lawsuit Lottery – Only the lawyers win. New York: The Free Press,
1979. p. 84.
303
FINE, op. cit., p. 88.
304
FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 88-89.
302
200
propuser a ação perante o Poder Judiciário, o requerido pode invocá-la em
preliminar (art. 301, IX, do CPC), sendo caso de extinção do processo sem
julgamento do mérito (art. 267, VII, CPC)”.305
Sobre a aplicação concreta da mediação nas lides estadunidenses, a
Professora Toni M. Fine306 declara que
Algumas cortes atualmente consideram a mediação obrigatória para os
advogados e até mesmo para as partes. Essas pessoas são solicitadas a
comparecer perante um mediador escolhido pela corte para tentar resolver
a contenda mediante acordo. Nas cortes federais, juízes não togados
normalmente atuam como mediadores. Além da mediação judiciária,
existem diversos serviços de mediação privada que as partes podem
contratar na tentativa de resolver suas controvérsias. A mediação é benéfica
em particular às partes que queiram resolver suas controvérsias de forma
rápida e privada e com um custo bem mais baixo do que outros
mecanismos normalmente utilizados, sendo aconselhável em questões de
família e relações pessoais.
Já quanto à aplicação da arbitragem no sistema estadunidense, a professora
supracitada aduz que
Em grande medida, os procedimentos na arbitragem tendem a ser mais
flexíveis do que os procedimentos aplicados nas cortes, onde os juízes
estão vinculados a rígidas regras procedimentais e probatórias. A menos
que sejam especificados como não vinculantes, os acordos de submissão à
arbitragem são tratados como vinculantes, havendo poucos e limitados
direitos de recurso em relação às decisões arbitrais. A política judicial de
respeito às decisões arbitrais é consideravelmente robusta, e decidir a
resolução de uma disputa por meio de arbitragem também afasta o direito
de litigar perante uma corte estadual. De acordo com o Ato Federal de
Arbitragem (Federal Arbitration Act) de 1925, uma decisão arbitral somente
poderá ser questionada perante uma corte estadual em bases muito
restritas, argumentado que a arbitragem foi procedida viciada por corrupção,
fraude ou meios indevidos; que um ou mais árbitros não foram imparciais ou
foram corrompidos; que os árbitros foram acusados de má conduta de
natureza grave ou excederam seus poderes. Em regra, a decisão arbitral
não será desconsiderada mesmo que o árbitro cometa um erro de fato ou
307
de direito.
Em suma, podem ser elencados os seguintes benefícios aos mecanismos
alternativos de resolução de conflitos: menor gasto de tempo e dinheiro; menos
formalidades; controle, pelas partes, sobre o processo a que serão submetidas as
controvérsias; privacidade e confidencialidade; e procedimento mais harmonioso
305
SHIMURA, Sérgio. Título Executivo. 2. ed. São Paulo: Método, 2005, p. 356.
Ibid., p. 89.
307
FINE, Toni M. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. Tradução de Eduardo Saldanha.
São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. p. 90.
306
201
para a solução dos conflitos, incluindo menores prejuízos às relações pessoais e
comerciais entre as partes.308
Maiores informações a respeito do processo civil norte-americano escapariam
à finalidade deste estudo, e os pouquíssimos elementos trazidos foram conhecidos
apenas como uma melhor forma de se analisar as decisões relativas aos punitive
damages e o próprio sistema do common law.
308
Ibid., p. 91.
202
14 OS PUNITIVE DAMAGES
14.1 Conceito, Origem e Finalidade
Os punitive damages são definidos como: “Indenização outorgada em adição
à indenização compensatória quando o ofensor agiu com negligência, malícia ou
dolo”.309
William L. Prosser, John W. Wade e Victor E. Schwartz afirmam que os
punitive damages, às vezes chamados de exemplary ou vindicte damages, ou smart
money − ao pé da letra “dinheiro esperto” − consistem numa soma adicional acima
da remuneração, para a vítima dos danos sofridos, concedida com a finalidade de
punir o réu e de advertí-lo a não fazê-lo de novo, além de intimidar os outros com o
exemplo.310
Os pedidos de punitive damages, até a metade do século XX, não eram
frequentes nos Estados Unidos.311 Mas, a partir daí, a concessão de indenizações
punitivas se tornou um dos mais controversos e importantes aspectos da
responsabilidade civil no Direito americano.312
Para melhor entender a teoria e aplicação dos punitive damages como parte
da jurisprudência de hoje, algumas considerações devem ser buscadas na origem
do instituto, e pode-se dizer que, como em muitos outros aspectos do common law,
esta doutrina pode ser primeiramente encontrada nos antecedentes ingleses.313
Eles surgiram na Inglaterra, nos dias de George III, em situações de abuso de
autoridade ultrajante por oficiais do governo, em casos como Wilkes v. Wood e
Huckle v. Money, de 1763. Os autores das duas ações foram presos pelo
mensageiro do Rei, por meio de um mandado gerérico, emitido sem causa provável,
e mantidos em custódia por algumas horas sob suspeita, o primeiro de ter impresso
um panfleto muito crítico contra o monarca. Segundo consta, embora tenham sofrido
309
Damages awarded in addition to actual damages when the defendant acted with recklessness,
malice, or deceit (GARNER, Bryan A. (Ed.). Black’s Law Dictionary. St. Paul: West, 2004. p. 448).
310
PROSSER, William L.; WADE, John W.; SCHWARTZ, Victor E. Torts cases and materials. New
York: Foundation Press, 2010. p. 566.
311
HAMMESFAHR, Robert W.; NUGENT, Lori S. Punitive Damages – a state by state guide to law
and practice. New Jersey: West, 2011. p. 5.
312
LEVMORE, Saul; SHARKEY, Catherine M. Foundations of tort law. New York: Foundation Press,
2009. p. 394.
313
KIRCHER, John J.; WISEMAN, Christine M. Punitive Damages – law and practice. St. Paul: West,
2000. v. 1, p. 2.
203
pouco em danos reais, o veredicto do júri foi favorável a eles porque a evidência
mostrou que a Magna Carta havia sido violada, e, portanto, uma indenização
exemplar deveria ser garantida aos presos.314
Segundo esta primeira visão, portanto, os punitive damages ou exemplary
damages foram aplicados originalmente por conta de atos ilícitos praticados como
forma de opressão por parte de agentes do governo inglês. 315
Como visto, então, os punitive damages são concedidos desde o século XVIII,
na Inglaterra, em casos de lesões pessoais causadas intencionalmente, em
hipóteses específicas, em que o juiz podia condenar o réu a um ulterior pagamento a
título de indenização punitiva, remédio que surgiu para tutelar os direitos civis dos
súditos em suas relações com funcionários do governo, cujo comportamento era,
frequentemente, vexatório e arbitrário.
No entanto, os punitive damages foram progressivamente perdendo importância, até que, na primeira metade do século XX, tais penas quase foram
abolidas, sob a consideração de que seriam incompatíveis com a natureza
estritamente compensatória da reparação dos danos. Sua aplicação foi, assim,
limitada a três reduzidas hipóteses: i) quando a administração pública privasse um
cidadão de seus direitos fundamentais; ii) quando alguém obtivesse um
enriquecimento como consequência de uma conduta culposa; ou iii) quando a
hipótese estivesse especialmente prevista em lei.316
Tendência inversa, a partir da segunda metade do século XX, fortemente
expansiva dos punitive damages, verificou-se na experiência estadunidense, até
pelo menos meados dos anos 90. Com efeito, desde os anos 70, especialmente no
que se refere a danos decorrentes de acidentes de consumo (products liability), o
valor das indenizações, quando relativa aos punitive damages, supera com alguma
frequência a faixa do milhão de dólares.
É dessa forma, então, que, nos Estados Unidos, a política de concessão de
indenizações punitivas em casos de atos ilícitos tem sido objeto de muita disputa. 317
Com efeito, segundo André Gustavo de Andrade, “embora os punitive damages, em
314
PROSSER, William L.; WADE, John W.; SCHWARTZ, Victor E. Torts cases and materials. New
York: Foundation Press, 2010. p. 566.
315
KIRCHER, John J.; WISEMAN, Christine M. Punitive Damages – law and practice. St. Paul: West,
2000. v. 1, p. 4.
316
MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e
perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 56, abr./jun. 2004.
317
PROSSER, William L.; WADE, John W.; SCHWARTZ, Victor E. Torts cases and materials. New
York: Foundation Press, 2010. p. 566.
204
sua feição moderna, tenham se originado na Inglaterra, foi na jurisprudência
americana que o instituto ganhou impulso”, daí que “é principalmente a experiência
americana que fornece os mais valiosos elementos para a análise do instituto”.318
Além das denominações antes indicadas, outras, menos usuais, são
empregadas para fazer referência aos punitive damages, dentre as quais: vindictive
damages, punitory damages, speculative damages, imaginary damages, presumptive damages, added damages, smart money, punies, penal damages e
retributory damages.319
De acordo com André Gustavo de Andrade, “o propósito geral dos punitive ou
exemplary damages é o de punir o ofensor, estabelecendo uma sanção que lhe sirva
de exemplo para que não repita o ato lesivo, além de dissuadir comportamentos
semelhantes por parte de terceiros”, entendendo que, “na realização desses
propósitos, os punitive damages atuam em prol do interesse público e social”.320
Para o autor acima citado, “a necessidade dos punitive damages estaria
demonstrada principalmente, mas não exclusivamente, em situações nas quais um
ato delituoso, por razões de ordem jurídica ou prática, escapa de um processo
criminal”; além disso, “preencheria lacunas da legislação criminal, punindo condutas
que, a despeito de sua atipicidade, merecem punição”321, e, “secundariamente,
exerceriam outras funções, dentre as quais a de atuar como mecanismo para a
proteção de consumidores contra práticas comerciais fraudulentas ou ofensivas à
boa-fé”.322
De acordo com outra teoria, a doutrina dos punitive damages foi desenvolvida
por conta da relutância das cortes em reconhecer que certos interesses eram dignos
de proteção legal, e que sua ofensa poderia ser reconhecida como dano a ser
judicialmente compensado.323
Como visto, os punitive damages também podem ser concedidos para
desencorajar terceiros de praticarem o mesmo ato ilícito que gerou a punição.324
318
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 184.
319
Ibid., p. 186.
320
Ibid., p. 187.
321
Ibid., p. 187.
322
Ibid., p. 187.
323
KIRCHER, John J.; WISEMAN, Christine M. Punitive Damages – law and practice. St. Paul: West,
2000. v. 1, p. 5.
324
Ibid., p. 1.111.
205
Como se verá com muito mais vagar, com exceção de alguns Estados,
permite-se, então, a fixação de indenização punitiva, mediante a verificação de
alguns requisitos325, quais sejam: a) preponderantemente a existência de uma
conduta dolosa; b) um sofrimento mental ou estado psicológico negativo da vítima
como consequência desse comportamento do agente326; ou c) quando o ato do
ofensor for considerado malicioso, violento, opressivo, fraudulento, temerário ou
significativamente (grotescamente) negligente.327
Dessa forma, os punitive damages também podem ser ocasionalmente
aplicados nas situações de negligência grosseira, mesmo ausente o dolo, como, por
exemplo, um cirurgião que deixa um bisturi dentro de um paciente durante uma
operação, talvez seja considerado um caso de negligência grosseira pela
comunidade médica e passível de punição civil.328
Assim, e diversamente do que muitos creem, a indenização por punitive
damages não ocorre, em tese, nos casos de simples culpa; ela só surge se o
ofensor tiver agido com culpa grave ou dolo.
E, como se verá com mais vagar abaixo, para chegar à fixação do valor dos
punitive damages, o júri deve considerar a natureza e a repreensão a ser imposta ao
réu, o tipo de dano que foi produzido, tanto atual quanto potencial, a ciência por
parte do agente quanto ao mau que produziu, além de sua condição financeira.329
Por isso se diz que, “na realidade, cada vez mais, vê-se uma tendência
limitativa dessa forma de indenização”.330
14.2 Classificação das Formas Indenizatórias nos EUA
O surgimento da responsabilidade civil como um ramo independente do
Direito, ao contrário do que se pensa, veio muito tarde na história dos Estados
325
PHILLIPS Jerry J. et al. Tort law: cases, materials, problems. New Jersey: LexisNexis, 1998. p.
711.
326
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 185.
327
MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e
perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 56, abr./jun. 2004.
328
BUCKLEY, William R.; OKRENT, Cathy J. Torts and personal injury law. New York: Delmar
Publishers, 2004. p. 97.
329
Ibid., p. 1.115.
330
NANNI, Giovanni Ettore. Enriquecimento sem causa. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 354.
206
Unidos, sendo lecionada pela primeira vez numa escola de Direito no ano de 1870,
com o primeiro livro publicado sobre o tema quatro anos depois.331
Afirma-se que a responsabilidade civil extracontratual americana, o common
law of torts, é complexa, bagunçada e portadora de uma gama enorme de vários
objetivos332, e que não existe um só aspecto de vida contemporânea dos
americanos que não esteja ligado à responsabilidade civil e aos seguros como
consequência.333
Diz-se, por isso, que em determinado momento a sociedade americana se viu
obrigada ao pagamento de um novo tributo, que veio com o nome de tort tax. Para
os adeptos desta ideia, a tort tax é uma prática não muito antiga, que, apesar de já
existir há séculos no Direito, só recentemente saiu do segundo plano e alçou lugar
de destaque, isso a partir dos anos 50 na legislação e principalmente com uma nova
geração de juristas dos anos 60 e 70.334
São variadas as modalidades indenizatórias no Direito estadunidense,
segundo a ampla e didática classificação apresentada por André Gustavo de
Andrade. Segundo ele, os “actual damages ou compensatory damages (integrantes
da categoria substantial damages) constituem uma soma estabelecida em favor da
vítima para a compensação de perdas e danos comprovados” 335, e, assim,
“correspondem à tradicional indenização reparatória ou compensatória, pois visam a
restabelecer a situação patrimonial que a vítima apresentava anteriormente ao
dano”.336
Já os nominal damages, segue o autor acima referido,
[...] constituem uma soma de valor insignificante e simbólica estabelecida
em caso de lesão que não causa dano material, ou quando este não é
demonstrado em sua extensão, sendo sua função assinalar, em uma
situação na qual nenhum dano foi efetivamente sofrido, o reconhecimento
337
da prática de um ilícito.
331
WHITE, Edward. Tort law in America. New York: Oxford University Press, 1985. p. 3.
MADENN, M. Stuart. (Ed.). Exploring tort law. New York: Cambridge University Press, 2005. p.
336.
333
ABRAHAM, Kenneth S. The liability century, insurance and tort law form the progressive era
to 9/11. Cambridge: Harvard University Press, 2008. p. 1.
334
HUBER, Peter W. Liability, the legal revolution and its consequences. New York: Basic Books,
1988. p. 4.
335
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 184.
336
Ibid., p. 184.
337
Ibid., p. 184.
332
207
A expressão general damages (também chamados direct damages ou
necessary damages), de acordo com André Gustavo de Andrade, serve como
“referência a danos não redutíveis a pecúnia e que independem de comprovação,
tais como a perda de um ente querido, o dano à reputação, a diminuição da
expectativa de vida, a dor e o sofrimento em geral”.338
Os special damages fazem referência tanto às perdas e danos comprovados
pelo lesado, incluídos aí os danos emergentes e os lucros cessantes, quanto à
indenização correspondente a tais prejuízos.339
O mesmo André Gustavo de Andrade menciona que “figuras assemelhadas,
em razão de seu caráter essencialmente punitivo, mas que não se confundem com
os punitive damages, são os multiple damages, double damages e treble damages
ou triple damages” que “constituem formas exacerbadas ou agravadas de
indenização estabelecidas por lei, correspondentes a duas ou três vezes a soma que
seria devida à vítima como compensação pelos danos sofridos”.340
Os punitive damages, pela sua natureza, constituem figura à parte em relação
às demais espécies de indenizações, constituindo “uma soma de valor variável,
estabelecida em separado dos compensatory damages, quando o dano é
decorrência de um comportamento lesivo marcado por grave negligência, malícia ou
opressão”.341
O tema envolvendo a indenização por danos materiais e morais de um lado, e
a indenização punitiva de outro, no sistema indenizatório estadunidense, gera para a
doutrina estrangeira alguma confusão no que toca à sua nomenclatura, como pode
ser observado pela seguinte passagem de José de Aguiar Dias, para quem “também
se chama danos morais, na Inglaterra e nos Estados Unidos, vindictive, punitory e
exemplary damages”.342 Veja-se a presença da mencionada confusão com relação
aos nomes dos institutos, já que não se considera exatamente correto afirmar-se
que a indenização por danos morais pode ser chamada de exemplary damages,
expressão que deveria ser reservada à indenização punitiva, ao menos em se
tratando do sistema estadunidense de responsabilidade civil.
338
Ibid., p. 184-185.
Ibid., p. 185.
340
Ibid., p. 185.
341
Ibid., p. 186.
342
DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 1.015.
339
208
Por isso é que os punitive damages foram chamados até de “camaleão do
direito”, já que existe muita discordância a respeito de seus objetivos e por
consequência de seu nome343, divergindo também a doutrina e a jurisprudência a
respeito de seus aspectos favoráveis e desfavoráveis, como passa a ser
demonstrado.
14.3 Teses Pró
Os punitive damages têm sido defendidos como um método saudável de
desencorajar maus motivos e como um remédio parcial para o processo civil
estadunidense permitir a compensação das despesas de litígio gastas pela vítima,
incluindo honorários advocatícios, bem como uma forma de retirar dos demandantes
o desejo de vingança e ingressarem em canais pacíficos, além de também servirem
para corrigir uma longa série de pequenos casos de indignação e opressão.344
Todavia, segundo André Gustavo de Andrade, “diz-se que a finalidade
dissuasória muitas vezes não é alcançada, pois contratos de seguro cobrem grande
parte dos valores impostos a título de punitive damages”.345 Mas, adverte o mesmo
autor,
[...] os partidários dos punitive damages contrapõem-se a esse argumento,
ponderando que, mesmo quando uma seguradora possa responder pelo
pagamento de punitive damages atribuídos ao segurado, muitas vezes a
cobertura é inferior ao valor da indenização; e, mesmo quando a cobertura é
suficiente, depois de efetuado o pagamento da indenização securitária,
muito provavelmente os valores referentes ao prêmio de um novo seguro
serão objeto de um substancial aumento, se não houver o próprio
346
cancelamento de toda e qualquer cobertura posterior.
Também a favor dos punitive damages afirma-se que a indenização por
danos materiais, muitas vezes, não é o bastante para compensar as vítimas de atos
ilícitos, sequer para pagar seus advogados ou as taxas do processo.347
343
GROVES, John R. (Ed.). Extracontractual damages – torts and insurance pratice section.
Chicago: American Bar Association, 1983. p. 106.
344
PROSSER, William L.; WADE, John W.; SCHWARTZ, Victor E. Torts cases and materials. New
York: Foundation Press, 2010. p. 566.
345
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 197.
346
Ibid., p. 197-198.
347
PHILLIPS, Jerry J. et al. Tort law: cases, materials, problems. New Jersey: LexisNexis, 2006. p.
711.
209
14.4 Teses Contra
De acordo com André Gustavo de Andrade, “os partidários da tort reform
argumentam que os punitive damages são contrários à longa tradição do Direito
norte-americano, que separa o Direito Civil do Criminal”, já que “o Direito Criminal se
preocupa em punir o ofensor, enquanto o Direito Civil tem o objetivo de reparar ou
compensar o dano sofrido pela vitima”.348
Argumenta-se que as multas tipicamente penais são destinadas ao Estado,
enquanto os punitive damages são pagos à vitima, para a qual o montante
indenizatório constitui um ganho inesperado e em certa medida uma fonte de
enriquecimento sem causa (windfall).349
Todavia, comumente, as Cortes rejeitam os argumentos de que os punitive
damages sejam uma dupla condenação, penal e civil, mesmo que o réu tenha sido
sujeito de uma anterior condenação criminal.350
Um outro argumento contrário aos punitive damages é que não há dados
afirmando que sua fixação serve de caráter pedagógico para que outras pessoas
não se conduzam da mesma forma que o réu. E que também não seria justo que o
júri impusesse uma condenação economicamente nefasta contra uma empresa sem
que tenha elementos seguros para tanto.351
Alguns chegam a afirmar que a maior preocupação a respeito dos punitive
damages hoje é que nos Estados Unidos estão “out of control”, isto é, fora de
controle.352 E por isso as empresas começam a ser impactadas pelos punitive
damages conferidos frequentemente em valores muitas vezes excessivos quando
comparados com os compensatory damages.353
Por vezes, entretanto, as Cortes de Justiça comparam os potenciais punitive
damages com os compensatory damages e tentam não deixar que o valor do
primeiro exceda em muito o valor do segundo.354
348
ANDRADE, op. cit., p. 197.
Ibid., p. 197.
350
DIAMOND, John L.; LEVINE, Lawrence C.; BERNSTEIN, Anita. Understanding torts. New Jersey:
LexisNexis, 2010. p. 219.
351
PHILLIPS, Jerry J. et al. Tort law: cases, materials, problems. New Jersey: LexisNexis, 2006. p.
711.
352
LEVMORE, Saul; SHARKEY, Catherine M. Foundations of tort law. New York: Foundation Press,
2009. p. 394.
353
HAMMESFAHR, Robert W.; NUGENT, Lori S. Punitive Damages – a state by state guide to law
and practice. New Jersey: West, 2011. p. 6.
354
DIAMOND; LEVINE; BERNSTEIN, op. cit., p. 219.
349
210
Segundo Roberta Corrêa Gouveia355, “outra questão a ser decidida é se uma
conduta que submeteria um sujeito tanto aos punitives damages quanto à sanção
criminal violaria o princípio do non bis in idem”. Entretanto, afirma, a jurisprudência
majoritária, inclusive da Suprema Corte, é de que a sanção penal não apresenta
uma barreira à punição na esfera cível, conforme o precedente Wittman v. Gilson
(1988). E conclui que a razão apontada pelas cortes é que a indenização punitiva
visa corrigir um dano privado, enquanto a sanção criminal pretende reparar uma
violação
pública,
motivo
pelo
qual
devem
operar
independente
e
complementarmente em suas respectivas esferas.
Um estudo de natureza híbrida, de caráter social e jurídico, feito nos Estados
Unidos, concluiu que as indenizações punitivas fixadas pela justiça daquele país são
altamente variáveis e arbitrárias356, daí estarem causando toda a preocupação nos
dias correntes, sobretudo visando à imposição de requisitos mais ou menos
objetivos como parâmetro ao corpo de jurados, como se expõe no item seguinte.
14.5 Pressupostos para Aplicação dos Punitive Damages (an debeatur)
Segundo a Orientação da Suprema Corte Americana - o caso State Farm
Mutual Automobile Insurance v. Campbell357
No ano de 2003, a Suprema Corte estadunidense se posicionou sobre os
pressupostos necessários à aplicação da indenização punitiva, especificando os
requisitos que os tribunais devem verificar presentes no caso concreto para a
imposição de punitive damages, isso quando do exame da lide judiciária
denominada o caso State Farm Mutual Automobile Insurance v. Campbell.
Tratou-se de uma ação ajuizada por um casal (os Campbell) em virtude da
prática de ilícitos contratuais por parte da seguradora State Farm Mutual contra os
autores e outros de seus segurados, consistentes no não pagamento de
indenizações devidas. Em primeira instância, o valor da condenação foi de US$ 2,6
milhões como indenização compensatória e de US$ 145 milhões a título de
355
GOUVEIA, Roberta Ferreira. Limites à indenização punitiva. Tese de doutorado pela PUC/SP,
2012. p. 349.
356
PAYNE, John W. et al. Punitive Damages – How juries decide. Chicago: The University of Chicago
Press, 2002. p. 74.
357
A narrativa deste caso foi extraída da obra de André Gustavo de Andrade, já citada por diversas
vezes neste trabalho, tal a sua importância no tema, qual seja, Dano moral e indenização
punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 200/202.
211
indenização punitiva. Embora o Tribunal de Apelação tenha reduzido o valor da
compensação a US$ 1 milhão, bem como a punição a US$ 25 milhões, a Suprema
Corte de Utah restaurou a condenação original, motivando sua decisão no intuito de
punir a State Farm Mutual Insurance Co. pelas reiteradas operações fraudulentas
praticadas, em nível nacional, pela companhia de seguros contra seus clientes.
A Suprema Corte dos Estados Unidos, contudo, avaliou que a indenização
punitiva determinada pela Corte de Utah teve, na verdade, o objetivo punir e
desestimular comportamentos que não tinham qualquer nexo de causalidade com os
danos sofridos pela parte em julgamento. Entendeu a Suprema Corte que a
companhia deveria ser julgada e eventualmente condenada, só e exclusivamente,
com base nas ações que causaram danos unicamente às vítimas daquele processo,
e não também por “fatos considerados desagradáveis ao corpo de jurados”.
Com base nestas premissas, a decisão de condenar a State Farm Mutual
lnsurance Co. a pagar a indenização punitiva de US$ 145 milhões pareceu à
Suprema Corte de impossível justificação, determinando a devolução dos autos à
origem para a fixação de um novo valor.
Assim, no caso State Farm Mutual Automobile Insurance Co. v. Campbell, o
excelso tribunal estadunidense indicou novos critérios para uniformizar, nas diversas
cortes americanas, tanto federais quanto estatuais, o exame acerca da
determinação do grau de repreensão da conduta do réu a gerar a possibilidade de
indenização punitiva. Dessa sorte, aos tribunais cumpre avaliar, essencialmente: I se o dano causado à vítima é um dano físico ou se tem caráter econômico; II - se o
dano é resultado de dolo, de fraude ou de grave negligência do réu; III - se o dano é
resultado de ações reiteradas por parte do réu ou se representa apenas um fato
isolado; e IV - também ser levada em conta a conduta do réu para verificar se é
reveladora de absoluta falta de consideração e/ou de respeito pela vida ou pelos
interesses de outrem.
Afirma-se, dessa forma, por conta dos requisitos acima estabelecidos, ser
absolutamente incorreto supor que indenizações punitivas sejam um problema de
ocorrência diária nos Estados Unidos, como se propaga358, posição esta que, de
outro lado, já foi muitas vezes infirmada neste trabalho por vários tratadistas do
assunto.
358
SPENSER, Stuart M.; KRAUSE, Charles F.; GANS, Alfred W. The American Law of Torts. St.
Paul: West, 2009. v. 2A, p. 359.
212
14.6 Elementos para Valoração dos Punitive Damages (quantum debeatur)
Segundo a Orientação da Suprema Corte Americana - o caso BMW of North
America v. Gore359
No ano de 1995 a Suprema Corte americana teve a oportunidade de se
pronunciar também acerca da quantificação dos punitive damages, ao apreciar a lide
conhecida como o caso BMW of North America v. Gore.
O médico Ira Gore Jr. moveu a ação em face da BMW pelos seguintes fatos:
em 1990 o autor adquiriu um automóvel BMW no valor de US$ 40 mil; nove meses
depois, detectou que algumas partes do carro tinham sido repintadas, embora o
automóvel tivesse sido vendido como novo; aparentemente o dano fora causado por
uma chuva ácida durante o transporte do veículo da Alemanha aos Estados Unidos.
Convencido de que houve omissão de informação relevante, Gore Jr. propôs
ação em face da BMW of North America (o distribuidor estadunidense da BMW),
alegando que o veículo por ele adquirido valia 10% menos (cerca de US$ 4 mil) do
que um automóvel inteiramente novo, não repintado. A esse valor somava-se um
pedido, a título de punitive damages, de US$ 4 milhões, correspondente ao prejuízo
sofrido por compradores de cerca de 1.000 automóveis repintados, nas mesmas
condições do seu, que haviam sido vendidos como novos pela BMW nos Estados
Unidos.
Na contestação, a BMW alegou que desde 1983 adotava a seguinte política
relativa a veículos danificados no decorrer da fabricação ou do transporte: se o custo
do reparo fosse superior a 3% do preço do veículo, este seria vendido como usado;
se, no entanto, o custo fosse inferior a 3%, o veículo seria vendido como novo, sem
qualquer notificação ao comprador acerca da realização dos reparos. Como o custo
do reparo do veículo adquirido pelo autor correspondia a apenas 1,5% de seu preço,
não houve divulgação da preexistência de danos e da realização do respectivo
reparo. Alegou a BMW que agiu, portanto, de boa-fé.
No entanto, além da condenação ao pagamento de US$ 4 mil dólares (como
compensação), o júri do Tribunal de Birmingham aceitou o pedido de Ira Gore e
condenou a BMW a pagar 4 milhões de dólares como punitive damages,
359
Repita-se que a narrativa deste caso foi extraída da obra de André Gustavo de Andrade, já citada
por diversas vezes neste trabalho, tal a sua importância no tema, qual seja, Dano moral e
indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 200/202.
213
entendendo que a política de não divulgação de danos adotada pela ré constituía
omissão fraudulenta. Inconformada, a BMW interpôs recurso de apelação perante a
Suprema Corte do Alabama. Sustentou que a política por ela adotada obedecia à lei
de 25 Estados da Federação, sendo tal legislação mais rigorosa comparativamente
com os demais estados. A Suprema Corte do AIabama condenou-a a pagar US$ 2
milhões em punitive damages, determinando a redução no valor inicialmente fixado
pelo júri, porque este, impropriamente, teria levado em conta, para estabelecer a
pena pecuniária, o número de vendas realizadas nos Estados Unidos e não somente
as vendas efetuadas em determinados Estados, com legislação semelhante à do
Alabama.
Em 1995, foi interposto recurso perante a Suprema Corte estadunidense, que
aceitou analisar o caso e considerou “enormemente excessivo” o valor indenizatório
a título de punitive damages. Em síntese, a Corte entendeu que “a decisão de 2
milhões de dólares a título de indenização punitiva é enormemente excessiva e
portanto ultrapassa o limite constitucional”, diante da “garantia fundamental contra
indenizações arbitrárias ou irracionais”.
A partir da decisão BMW v. Gore, considera-se violado o dispositivo
constitucional do Due Process sempre que se verificar arbitrariedade na fixação dos
punitive damages. Como consequência, restaram fixados três critérios para analisar
situações deste gênero, já que a falta de razoabilidade na fixação da indenização no
caso em exame, vista como atentatória da Due Process Clause em seu aspecto
substancial, foi deduzida dos seguintes argumentos: I - o grau de repreensão da
conduta do ofensor; II - a relação entre o valor da indenização compensatória e o
valor da indenização punitiva; e III - a diferença entre o valor da indenização punitiva
e o das penalidades civis ou criminais impostas em casos semelhantes no Estado.
No caso BMW v. Gore, quanto à repreensão da conduta, a Suprema Corte fez
a distinção entre a conduta que causa dano físico e a conduta que causa dano
econômico, e considerou que o dano causado pela BMW havia sido puramente
econômico. Considerou a Suprema Corte que poucos veredictos cuja proporção
entre indenização punitiva e compensatória seja igual ou maior do que 10 serão
conformes à exigência da Due Process Clause. No caso em comento, no que referia
à relação entre o dano sofrido e o valor arbitrado a título punitivo, observou-se que 2
milhões de dólares representava quantia 500 vezes superior ao dano real, medido
214
pelo valor arbitrado a título de compensação, sendo que não havia qualquer
indicação de danos pessoais.
Como principal consequência, a Suprema Corte, desde então, tem reiterado
que a Due Process Clause impõe uma substancial limitação aos valores a serem
pagos a título de indenização punitiva. Além disso, declarou que os três
pressupostos por ela fixados no caso BMW v. Gore para balizar os limites
constitucionais das sentenças punitivas devem ser seguidos por todos os tribunais
daquele país, construindo um sólido precedente sobre a questão.
215
15 A TORT REFORM – UMA TENDÊNCIA NOS EUA AO CIVIL LAW
15.1 Noções Gerais da Competência Legislativa nos Estados Unidos
Em quais situações é possível a aplicação dos punitive damages e quão
reprovável deve ser a conduta do causador do dano para justificar essa espécie de
indenização, além da própria problemática da fixação do quantum indenitário, é algo
que varia consideravelmente de um para outro Estado dos EUA, no que toca ao trato
tanto legal quanto, por consequência, ao jurisprudencial do tema.
Para melhor visão da matéria, é necessário que se discorra a respeito da
competência legislativa reservada aos Estados da Federação estadunidense; afinal,
é por meio de lei que muitos deles têm regrado a questão dos punitive damages,
gerando reflexos na jurisprudência, por óbvio.
Dispõe a Constituição dos Estados Unidos360:
Artigo I, Seção 8. O Congresso deverá ter o poder para instituir e coletar
taxas e impostos, para pagar as dívidas e prover a defesa comum e o bem
estar em geral dos Estados Unidos, mas todos impostos e taxas deverão
ser uniformes por todos os Estados Unidos; Emprestar dinheiro no crédito;
Regular o comércio com nações estrangeiras, e entre os diversos Estados,
e com as Tribos Índias; Estabelecer uma regra de naturalização uniforme, e
Leis sobre Falências uniformes por todos os Estados Unidos; Cunhar
dinheiro, regular o valor deste, e de moeda estrangeira, e fixar o padrão de
pesos e medidas; Providenciar pela punição de falsificar as seguranças e
moeda corrente dos Estados Unidos; Estabelecer escritórios e estradas de
correio; Promover o progresso da ciência e das artes úteis, garantindo, por
tempo limitado, aos autores e inventores o direito exclusivo aos seus
escritos ou descobertas; Constituir tribunais inferiores à Suprema Corte.
Emenda X. Os poderes não delegados aos Estados Unidos pela
Constituição, nem por ela negados aos Estados, são reservados aos
Estados ou ao povo.
360
Article 1, Section 8. Powers of Congress. The Congress shall have Power To lay and collect
Taxes,
Duties, Imposts and Excises,
to
pay the Debts and provide for the
common
Defence
and
general
Welfare of
the
United
States;
but
all
Duties, Imposts and Excises shall be uniform throughout the United States; To borrow money on
the credit of the United States; To regulate Commerce with foreign Nations, and among the several
States, and with the Indian Tribes; To establish anuniform Rule of Naturalization,
and uniform Laws on the subject of Bankruptcies throughout the United States; To coin Money,
regulate the Value thereof, and of foreign Coin, and fix the Standard of Weights and Measures; To
provide for the Punishment of counterfeiting the Securities and current Coin of the United States; To
establish Post Offices and Post Roads; To promote the Progress of Science and useful Arts, by
securing for limited Times to Authors and Inventorsthe exclusive Right to their respective Writings
and Discoveries; To constitute Tribunals inferior to the supreme Court.
Amendment 10. Powers of the States and People. The powers not delegated to the United
States by the Constitution, nor prohibited by it to the States, are reserved to the States respectively,
or to the people.
216
Isso significa que, nos termos das disposições acima transcritas, em matéria
de competência para legislar sobre Direito Privado, a Constituição estadunidense
reservou ao Congresso Nacional apenas a disciplina do empréstimo a crédito e a
das falências.
Portanto, por autorização da Emenda X, acrescentada posteriormente ao
documento constitucional estadunidense original, está reservada aos Estados a
competência legislativa acerca da temática referente à responsabilidade civil
contratual ou extracontratual.
Assim, nos Estados Unidos da América, em tese, não há como existir
legislação federal que determine critérios de aplicação universal dos punitive
damages, em todo o país.361
Os punitive damages são, em maior ou menor extensão, admitidos em 45 dos
50 Estados dos EUA. Em alguns Estados vêm previstos em lei, em outros têm sua
origem no common law.
De tal maneira, o presente capítulo terá como norte a pesquisa e a análise
das leis promulgadas nos Estados dos EUA que tenham como conteúdo a disciplina
de questões afetas aos punitive damages, bem como o pronunciamento da Justiça a
seu respeito.
15.2 A Tort Reform nos Estados da Federação Estadunidense362
Hoje os punitive damages são o centro das maiores batalhas contemporâneas
no tema da responsabilidade civil americana, por meio da tort reform.363
Os valores das indenizações estabelecidas a título de punitive damages têm
sido objeto de acirrada controvérsia entre partidários e opositores da tort reform, ou,
em outras palavras, da reforma do sistema de indenização estadunidense. Os
361
“Ressalve-se apenas que, dentre os estatutos que vedam os punitive damages, há, por exemplo, o
Federal Tort Claims Act, que exclui a imposição dessa espécie de indenização contra o Governo
Federal ou qualquer de seus departamentos, por mais reprovável que seja a conduta do agente”,
segundo André Gustavo de Andrade, in Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009. p. 188, mas aí se está diante de um caso especial, por tratar de interesse do
próprio governo federal, o que dá legitimidade à existência desta lei federal.
362
As informações contidas neste capítulo a respeito da reforma no sistema indenitário dos Estados
Unidos foram extraídas do site da ATRA – American Tort Reform Association. Disponível em:
<http://www.atra.org>. Acesso em: 13 dez. 2011, que nos foi indicado pela obra retro citada de
André Gustavo de Andrade, p. 196.
363
SPENSER, Stuart M.; KRAUSE, Charles F.; GANS, Alfred W. The American Law of Torts. St.
Paul: West, 2009. v. 2A, p. 352.
217
primeiros sustentam que os montantes indenizatórios estão fora controle, o que é
atribuído, de um lado, a um excessivo poder discricionário entregue ao júri, e, de
outro, à falta de preparo dos jurados para estabelecer esses valores. 364 Convencidos
do acerto desses argumentos, muitos Estados dos EUA têm fixado limites aos
valores dos punitive damages e até mesmo requisitos à sua imposição, por meio de
estatutos legais, o que se denominou tort reform.
Registre-se que, se esses estatutos mudam efetivamente os limites dos
punitive damages, isso na prática ainda não é claro.365
Em outras unidades da Federação o tema permanece sem disciplina
normativa, ficando a aplicação e a fixação do valor dos punitive damages a critério
único da Justiça.
Chama atenção a mensagem que se encontra inserta no site da ATRA366, da
lavra de seu presidente Tiger Joyce, para quem a Tort Reform é, em última análise,
uma questão econômica, não uma questão política, e que é visível o fato de
empregadores e empresas estarem fugindo dos Estados em que são impostas altas
indenizações a título de punitive damages, como a Califórnia, Illinois e Nova York.
Neles, segundo consta, os advogados dos querelantes controlam o processo
legislativo, concluindo que não é necessário ser um economista vencedor do Nobel
para entender que os limites razoáveis de responsabilidade promovem a
prosperidade, enquanto expansões de responsabilidade civil minam a prosperidade.
15.2.1 Estados que admitem incondicionalmente os punitive damages
Alguns Estados dos EUA não proíbem nem sequer limitam os valores dos
punitive damages por meio de leis, ficando a decisão inteiramente à mercê do Poder
Judiciário, apenas respeitada a condição de produção de prova clara acerca do dolo,
má-fé, fraude ou malícia do causador do dano. Tais requisitos, entretanto, como se
viu, consubstanciam-se em pressupostos gerais estabelecidos pela Suprema Corte
estadunidense para toda e qualquer imposição de indenização punitiva, sem que
364
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 198.
365
HAMMESFAHR, Robert W.; NUGENT, Lori S. Punitive damages – a state by state guide to law
and practice. New Jersey: West, 2011. p. 9.
366
ATRA – American Tort Reform Association. Disponível em: <http://www.atra.org>. Acesso em: 13
dez. 2011.
218
seja necessária a edição de lei para sua observância, em virtude do próprio sistema
de precedentes.
No caso da Califórnia, estabelece seu Civil Code, 3.294:
(a) Em uma ação fundada no descumprimento de obrigação não derivada
de contrato, quando estiver comprovado por provas claras e convincentes
que o réu atuou com opressão, fraude ou malícia, o autor, em adição à
indenização reparatória, pode fazer jus a uma indenização que exerça a
367
finalidade de exemplo e tenha o propósito de punir o réu.
Interessante notar que as unidades federativas onde estão situadas as três
maiores e mais pujantes cidades dos Estados Unidos: Nova York (Estado de Nova
York), Los Angeles (Estado da Califórnia) e Chicago (Estado de Illinois), nessa
ordem de grandeza, não possuem qualquer proibição ou mesmo limitação à fixação
das indenizações punitivas.
Vale dizer também que no Estado de Illinois tentou-se uma reforma, em 1995,
limitando a concessão de indenizações punitivas a três vezes a indenização de
danos econômicos, bem como proibindo a concessão de punitive damages quando
ausente a prova de que o acusado participou do ato danoso "com um motivo doloso,
ou com uma despreocupação para com os direitos dos outros", determinando-se
ainda que a indenização punitiva deveria ser feita em um processo separado. Tal
reforma, todavia, foi considerada inconstitucional no caso Best v. Taylor Machine
Works, Inc., de sorte que nesse Estado os punitive damages não encontram óbice
algum para sua aplicação e fixação do valor devido.
15.2.2 Estados que proíbem os punitive damages
Como se viu, considerável é o movimento de vários segmentos da sociedade
estadunidense
em
busca
da
implementação
de
reformas no
campo
da
responsabilidade civil368, e a denominada tort reform tem levado à adoção de várias
medidas restritivas em relação aos punitive damages no âmbito estadual.
367
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 188.
368
Ibid., p. 196.
219
Muitos Estados buscam a abolição do instituto ou, ao menos, o
estabelecimento de normas que restrinjam os casos de aplicação dos punitive
damages e limitem os valores indenizatórios.369
E, talvez por isso, por essa proliferação de leis, já se tenha propugnado por
uma suposta crise do common law.370
Segundo André Gustavo de Andrade, dentre as organizações que apoiam a
tort reform, como se mencionou, uma das principais é a ATRA, entidade
representada basicamente por associações de classe e grandes corporações. Os
objetivos por ela já declarados incluem, além da limitação dos punitive damages: a
limitação dos noneconomic damages em geral, a reforma das regras de
responsabilidade civil em caso de acidentes provocados por produtos defeituosos, a
reforma das regras de responsabilidade civil na área da saúde, a reforma da class
action e a abolição da regra da solidariedade passiva dos responsáveis pelo dano.371
Assim, à vista de tal movimento, das 50 unidades federadas estadunidenses,
já não admitem os punitive damages os Estados de Massachusetts, Louisiana,
Nebraska e Washington.372
Diga-se que alguns Estados ainda desenvolveram legislações disciplinando
os punitive damages de outra forma, como em New Hampshire, onde os punitive
damages não são possíveis, mas quando o ato ilícito envolve arbítrio, malícia ou
opressão,
a
indenização
compensatória pode
refletir essas circunstâncias
agravantes.373
15.2.3 Estados que limitam o valor dos punitive damages
Num caminho intermediário, nem autorizando ilimitadamente nem proibindo a
imposição dos punitive damages, encontra-se a grande maioria dos Estados dos
EUA, valendo a menção da disciplina de alguns deles, que podem ainda contar com
regras especiais sobre julgamento em processo separado com relação à
369
ANDRADE, André Gustavo de. Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2009. p. 196.
370
BRUDNER, Alan. The unity of the common law – studies in hegelian jurisprudence. Berkeley:
University of California Press, 1995. p .1.
371
ANDRADE, op. cit., p. 197.
372
MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e
perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 57, abr./jun. 2004.
373
SPENSER, Stuart M.; KRAUSE, Charles F.; GANS, Alfred W. The American Law of Torts. St.
Paul: West, 2009. v. 2A, p. 229.
220
indenização punitiva e até mesmo indicar uma terceira entidade a ser beneficiada
com parte do respectivo montante indenizatório, juntamente com a vítima, evitando o
alegado enriquecimento sem causa.
Vejamos a situação Estado a Estado, repita-se, com as informações do site
da ATRA374.
Em Connecticut os exemplary damages são limitados às despesas da vítima
com o litígio e, por conseguinte, têm finalidade compensatória.
Em Michigan, os punitive damages são estabelecidos como forma de
compensação adicional à vitima e há limites punitivos em ações de responsabilidade
do produto a duas vezes a concessão de indenizações compensatórias.
O Code of Alabama estabelece que os punitive damages não podem exceder
certos limites, prevendo que: “[...] nenhuma indenização a título de punitive damages
excederá três vezes os compensatory damages ou quinhentos mil dólares (US$ 500
mil), o que for maior”, mas esse limite é aumentado para um milhão e meio de
dólares em caso de ações fundadas em danos corporais.
No Colorado Statute os exemplary damages não podem exceder o valor dos
compensatory damages, exceto se caracterizado que o agente, no curso da ação,
persiste em seu comportamento lesivo ou agrava o dano, caso em que o montante
pode chegar a três vezes o valor dos compensatory damages.
Em Nova Jersey o Punitive Damages Act estabelece o limite de US$ 350 mil
para os punitive damages ou cinco vezes o montante dos compensatory damages,
mas esse teto não se aplica aos casos envolvendo crimes de preconceito,
discriminação, resultado de teste de AIDS, abuso sexual ou motoristas embriagados.
Requer que o autor demonstre que o réu agiu com “dolo” ou “irresponsabilidade e
desrespeito voluntário” para com os direitos dos outros, e a determinação da
indenização punitiva deve ser feita em um processo separado. A reforma não se
aplica a casos que envolvam responsabilidade civil ambiental.
No Texas, a partir da reforma das indenizações punitivas de 2003, requer-se
veredicto unânime para a atribuição de indenizações punitivas e especifica que o júri
deve ser assim instruído. Também houve reforma das indenizações punitivas, em
1987, para que o autor demonstre que as ações do réu foram fraudulentas,
maliciosas, ou grosseiramente negligentes, limitando a concessão de danos
374
ATRA – American Tort Reform Association. Disponível em: <http://www.atra.org>. Acesso em: 13
dez. 2011.
221
punitivos ao máximo de quatro vezes a quantidade de danos reais ou US$ 200 mil.
A Flórida limita as indenizações punitivas a três vezes a indenização material,
a menos que o autor demonstre, por “claras e convincentes” evidências, que uma
maior compensação não seria excessiva. Sessenta por cento da indenização deve
ser paga ao Fundo Geral do Estado ou ao Fundo Fiduciário de Assistência Médica
(alterado em 1992 para 35%).
No Kansas a reforma das indenizações punitivas limitou os valores em US$ 5
milhões. Requer do autor que demonstre que o réu agiu com conduta dolosa,
devassa, fraude ou dolo. Estipula também que a determinação da indenização
punitiva deva ser feita em um processo separado.
Em Oklahoma a reforma impôs fatores que o júri deve considerar na fixação
de uma indenização punitiva. Prevê que quando um júri encontra provas “claras e
convincentes” de que o réu: (1) atuou com “descaso pelos direitos dos outros”, a
indenização é limitada ao máximo de US$ 100 mil; ou (2) agiu intencionalmente e
com malícia, a indenização é limitada a US$ 500 mil. O limite não se aplica se o
tribunal concluir que há evidência de que o réu agiu intencionalmente e com dolo na
conduta, com risco de vida para outrem.
Em Ohio a reforma impôs limites punitivos para não mais de duas vezes os
danos compensatórios. Requer-se que o autor demonstre por “claras e
convincentes” provas que sofreu “danos reais” e que o réu agiu com “dolo, fraude ou
flagrante opressão ou insulto”, para a concessão de indenizações punitivas.
Em Nevada a reforma colocou limites punitivos no valor de US$ 300 mil, mas
não se aplica a casos contra fabricante, distribuidor ou vendedor de um produto
defeituoso; uma seguradora que age de má-fé; uma pessoa que viola as leis de
discriminação; uma pessoa vítima de danos causados por tóxicos radioativos ou
resíduos perigosos, ou por difamação. Requer-se que o autor demonstre por “provas
claras e convincentes” que o réu agiu com “opressão, fraude ou dolo”, e que a
determinação da indenização punitiva seja feita em um processo separado,
permitindo a admissibilidade das provas das finanças do réu.
Na Pensilvânia foi imposto um limite à indenização punitiva de 200% dos
valores compensatórios.
Em Utah requer-se do autor que demonstre por provas “claras e
convincentes” que as ações do réu foram imprudentes, e a determinação da
indenização punitiva deve ser feita em um processo separado. Exige-se que 50% de
222
todas as indenizações punitivas maiores que US$ 20 mil sejam pagos ao fundo
estadual.
Na Geórgia há limites punitivos em US$250 mil, a menos que o autor
demonstre que o réu agiu com intenção específica de dano.
No Alasca limita-se a concessão de indenizações punitivas na maioria dos
casos a três vezes o valor da indenização compensatória, ou US$ 500 mil. Requerse que o autor demonstre por “claras e convincentes” provas que o réu agiu com
“indiferença irresponsável” ou estava engajado em conduta “ultrajante”. Determinase que a indenização punitiva deva ser feita em um processo separado e exige-se
que 50% dos valores relativos a danos punitivos sejam pagos ao Tesouro do Estado.
A Virgínia limita a concessão de indenizações punitivas a US$ 350 mil, e sua
Corte de Apelações confirmou a constitucionalidade dessa lei no caso Wackenhut
Applied Technologies Inc. v. Centro de Sistemas de Proteção Syngetron (em
novembro de 1992).
Na Carolina do Norte há um limite para a concessão de indenizações
punitivas de três vezes a quantia da indenização compensatória ou 250 mil dólares.
Requer-se que o autor demonstre por provas “claras e convincentes” que o réu foi
responsável por danos compensatórios e agiu com dolo, fraude, ou conduta
devassa. A determinação da indenização punitiva deve ser feita em um processo
separado, a pedido do réu.
No Mississipi os limites são impostos de acordo com os ganhos líquidos do
réu: US$ 20 milhões para o réu com um patrimônio líquido de mais de US$ 1 bilhão;
US$ 15 milhões para o réu com um patrimônio líquido de mais de 750 milhões de
dólares e não mais de US$ 1 bilhão; US$ 5 milhões para o réu com um patrimônio
líquido de mais de 500 milhões de dólares e não mais de US$ 750 milhões; US$
3,75 milhões para o réu com um patrimônio líquido de mais de US$ 100 milhões e
não mais de US$ 500 milhões; US$ 2,5 milhões para réus com um patrimônio líquido
de mais de 50 milhões dólares e não mais de US$ 100 milhões; dois por cento de
seu patrimônio líquido para o réu com um patrimônio de US$ 50 milhões ou menos.
No Tenesse há limites punitivos de duas vezes a indenização compensatória
ou US$ 500 mil, o que for maior. Os limites da indenização punitiva não se aplicam
se o réu agiu com a intenção de prejudicar, ou agiu sob a influência de drogas ou
álcool.
223
Em Indiana exige-se que 75% do valor das indenizações punitivas sejam
pagos ao fundo estadual e que seus valores não ultrapassem três vezes as
indenizações compensatórias.
No Missouri fixou-se o limite das indenizações punitivas em US$ 500 mil ou
cinco vezes o prejuízo, o que for maior, mas o limite não se aplica a determinados
casos envolvendo discriminação. A determinação da indenização punitiva deve ser
feita em um processo separado. Exige-se que 50% de todos os valores punitivos
sejam pagos ao fundo estadual.
Em Wisconsin há limites punitivos de US$ 200 mil ou duas vezes os danos
compensatórios, o que for maior.
Na Dakota do Norte o limite da indenização punitiva é equivalente a duas
vezes os danos compensatórios ou US$ 250 mil.
No Colorado há proibição de que uma pessoa apresente uma reclamação por
danos morais a menos que o queixoso possa demonstrar a prática de ação dolosa
ou devassa que justifique tal afirmação. Prevê-se que o prêmio de indenização
punitiva não possa exceder o valor dos danos compensatórios. Permite-se ao
tribunal conceder aumento de indenizações punitivas equivalente a três vezes o
valor dos danos compensatórios, se o mau comportamento continuar durante o
julgamento.
Em Montana há limites punitivos, salvo expressa disposição de lei, em US$
10 milhões. Requer-se que um juiz reveja todas as indenizações punitivas e emita
um parecer sobre sua decisão de aumentar ou diminuir o valor, ou deixá-lo como
fixado. O júri deve ser unânime.
Na Carolina do Sul os fatores para o júri considerar na determinação do
montante da indenização punitiva são: grau de culpabilidade do réu; gravidade do
dano causado pelo requerido; medida em que a conduta dos próprios autores
contribuiu para o prejuízo; duração da conduta; a consciência do réu; conduta
passada similar; rentabilidade da conduta para o requerido; capacidade do réu de
pagar; probabilidade que a indenização tem de deter o réu ou outros de conduta
igual; concessões de indenização punitiva contra o réu para o mesmo ato; sanções
penais contra o réu para o mesmo ato; multas civis contra o réu para o mesmo ato.
Limitação em primeiro lugar: o valor da indenização punitiva não pode exceder o
maior de três vezes o montante dos danos compensatórios ou US$ 500 mil.
Limitação segunda: o valor da indenização punitiva não deve exceder o maior de
224
quatro vezes o montante dos danos compensatórios ou US$ 2 milhões de dólares se
a conduta ilícita comprovada foi motivada principalmente por ganho financeiro.
Porém, tais limitações não são aplicadas: (1) se no momento da lesão o réu tinha a
intenção de prejudicar o requerente, ou (2) se o réu se declarou culpado ou foi
condenado por um crime decorrente do mesmo ato, ou ainda (3) se o réu agiu sob a
influência de álcool ou drogas.
No Iowa requer-se do autor que demonstre que a conduta do réu se constituiu
em desrespeito intencional e arbitrário dos direitos ou da segurança de outrem.
Exige-se que 75% ou mais de todos os valores punitivos devam ser pagos para o
Fundo Civil Estadual de Reparações.
Na Dakota do Sul o autor tem que demonstrar que o ato do réu foi “opressivo,
arbitrário, fraudulento, malicioso ou ultrajante”, para a concessão de indenizações
punitivas.
Em Idaho foi elevado o padrão para a imposição de indenizações punitivas,
quando há “provas claras e convincentes” do ato ilícito, para US$ 250 mil ou três
vezes os valores compensatórios.
Em Óregon requer-se do autor que demonstre por “claras e convincentes”
evidências que o réu “agiu com dolo ou mostrou uma indiferença irresponsável e
ultrajante para a saúde, segurança e bem-estar dos outros”. Prevê-se a
possibilidade de revisão da decisão do tribunal de júri que concedeu indenização
punitiva.
Em Minesota impõe-se que o autor demonstre que o réu agiu com
“desrespeito deliberado” para a concessão de indenizações punitivas. Apenas
ressalva-se que a determinação da indenização punitiva deva ser feita em um
processo separado, a pedido do réu, mas autoriza que juízes de segunda instância
possam rever todas as indenizações punitivas por danos.
Além dos Estados que já foram vistos, Arizona, Kentucky e Maryland também
exigem, para a concessão da indenização punitiva, que o autor demonstre por
“claras e convincentes” provas que o réu agiu com fraude, opressão ou malícia.
Verifica-se, dessa forma, a absoluta falta de uniformidade entre as diversas
entidades federativas americanas, o que resulta na constatação de que o sistema de
responsabilidade civil daquele país é bem mais complexo que o nosso, já que aqui
disciplinamos o tema mediante a promulgação unicamente de legislação federal, nos
termos do art. 22, inciso I, da Constituição da República brasileira.
225
16 CASOS EMBLEMÁTICOS DE INDENIZAÇÕES PUNITIVAS NOS EUA
Noticia Maria Celina Bodin de Moraes375 que “a principal crítica que sofrem os
punitive damages nos Estados Unidos se apega à sua absoluta imprevisibilidade,
para alguns um fenômeno que se encontra fora de controle”, havendo, “de fato,
situações
quase
anedóticas,
que
fazem
a
alegria
dos
estudantes
de
responsabilidade civil”, como em casos que passam ser retratados.
16.1 O Denominado McDonald’s Coffee Case
O mais conhecido caso de condenação em punitive damages nos Estados
Unidos é o da senhora que derramou café em seu colo e obteve, em primeira
instância, uma indenização punitiva de US$ 2,7 milhões da McDonald's Corporation,
considerada a mais emblemática indenização no assunto.
O aspecto mais incompreensível nesse caso parece ser o fato de que a idosa
senhora buscou − e conseguiu − reparação para algo que não foi nada mais do que
um acidente cotidiano e que lhe cabia evitar porque estava inteiramente no seu
âmbito de ação e controle, numa hipótese típica de culpa exclusiva da vítima.
Um resumo detalhado talvez possa oferecer uma visão mais abrangente dos
acontecimentos. Stella Liebeck, de 79 anos, comprou o café na lanchonete e,
enquanto seu neto dirigia o carro, ela colocou o copo entre suas pernas e removeulhe a tampa para adicionar creme e açúcar. Uma manobra fez derramar café em seu
colo,
tendo-lhe
causado
queimaduras
de
segundo
e
de
terceiro
graus,
comprometendo cerca de 10% de sua pele. Em razão dos ferimentos, permaneceu
diversos dias hospitalizada e passou algumas semanas recuperando-se em casa,
ajudada pela filha, tendo sidos necessários, depois, cerca de dois anos de
reabilitação.
Naquele período, perdeu quase 20% de seu peso. Foi quando a Sra. Liebeck
escreveu à McDonald’s solicitando que diminuísse a temperatura do café, ajustada
em 180º F (82º C). Pediu também indenização pelas despesas médicas, no valor de
aproximadamente vinte mil dólares além dos salários não recebidos por sua filha,
durante o período em que lhe atendera. A McDonald’s recusou. Ela, então, acionou
375
MORAES, Maria Celina Bodin de. Punitive damages em sistemas civilistas: problemas e
perspectivas. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 18, p. 58, abr./jun. 2004.
226
a empresa, pedindo US$ 100 mil como indenização compensatória e o triplo desse
valor como indenização punitiva.
No julgamento, um perito testemunhou que o café a 180°F causa
queimaduras de segundo grau muito rapidamente, apenas 3,5 segundos depois de
atingir a pele, enquanto se a temperatura baixasse para 160°F somente após 8
segundos ocorreriam queimaduras daquela gravidade. Além disso, o supervisor de
controle de qualidade da McDonald’s informou aos jurados que a companhia não
havia diminuído a temperatura do café a despeito de ter recebido cerca de 700
queixas de queimaduras em 10 anos. Um consultor de segurança, perito contratado
pela empresa, advertiu, por outro lado, que as 700 queixas correspondiam,
aproximadamente, a 1 em 24 milhões de copos, o que, do ponto de vista estatístico,
é praticamente igual a zero. A esse argumento respondeu depois um jurado,
entrevistado em seguida ao julgamento: “cada estatística é alguém seriamente
queimado; aquilo me deixou realmente irritado”.
Após poucas horas de deliberações, o júri deu razão a Sra. Liebeck. Foi-lhe
atribuída a quantia de US$ 200 mil como indenização compensatória, reduzida em
20% (US$ 160 mil) porque ela havia contribuído para o acidente, e US$ 2,7 milhões
como indenização punitiva. Segundo um jurado, “foi a nossa maneira de dizer: ei,
abram os olhos; as pessoas estão se queimando”.
O juiz depois reduziu a quantia punitiva para US$ 480 mil, calculando o valor
como o triplo da indenização compensatória estipulada.
A quantia final obtida pela Sra. Liebeck, em posterior acordo celebrado com a
empresa, permanece em segredo até hoje.
O caso Liebeck tornou-se um verdadeiro ícone no quadro dos punitive
damages estadunidenses, embora esteja longe de ser o único, como veremos
abaixo.
16.2 O Caso do Medicamento “MER”376
Foi apenas em 1967 que os punitive damages ganharam nova dimensão, com
o julgamento de dois casos envolvendo a comercialização, pela empresa
376
A narrativa deste caso foi extraída da obra de André Gustavo de Andradejá citada por diversas
vezes neste trabalho, qual seja, Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2009. p. 190/191.
227
Richardson-Merrell Inc., de uma droga, o “MER 29”, indicada para a redução do
colesterol, mas que, como se descobriu, produzia efeitos colaterais, dentre os quais
o surgimento de catarata nos usuários.
A droga, que foi administrada em aproximadamente 400 mil pessoas, rendeu
para a fabricante, Richardson-Merrell, cerca de US$ 7 milhões e gerou 490 casos de
catarata relatados.
Dois julgamentos tornaram-se Ieading cases. O primeiro foi Roginsky v.
Richardson-MerreI Inc. Em primeiro grau de jurisdição, a empresa fabricante do
medicamento fora condenada a pagar US$ 17.500 como compensatory damages e
US$ 100 mil em punitive damages ao autor da ação, vítima do efeito colateral do
medicamento. Todavia, a Corte de Apelações reformou a decisão, excluindo os
punitive damages. O relator da decisão da Corte, Judge Friendly, argumentou que
não havia evidências suficientes de um comportamento de tal maneira pernicioso do
fabricante que desse ensejo ao estabelecimento de uma indenização de caráter
punitivo. Mas o argumento mais controvertido foi o seguinte: a maciça distribuição do
medicamento deu ensejo a um potencial de centenas de processos judiciais
semelhantes e, em consequência, aumentou a possibilidade de imposição de
indenizações punitivas cumulativas, cujo montante total poderia ultrapassar o
necessário para punir e dissuadir a empresa fabricante, que poderia ter a sua saúde
econômica irremediavelmente afetada.
Dois meses depois, foi julgado o segundo leading case, Toole v. RichardsonMerrel Inc. Toole, o autor da ação, fora vítima de catarata em um dos olhos como
efeito colateral decorrente do uso da droga. O fabricante do medicamento foi
condenado pelo júri a pagar US$ 175 mil de compensatory damages pela lesão
sofrida pela vítima e US$ 500 mil adicionais a título de punitive damages, reduzidos
estes últimos pelo juiz para US$ 250 mil. No julgamento considerou-se que houve
malícia por parte da empresa, que sabia que o produto não era seguro, pois testes
realizados previamente em animais teriam demonstrado o desenvolvimento de
catarata. Além disso, o fabricante teria distorcido relatórios e deixado de advertir os
usuários quanto aos riscos inerentes à utilização do medicamento. A Corte de
Apelações confirmou os punitive damages, rejeitando as razões anteriormente
apresentadas no anterior case e argumentando que a conduta da empresa ré foi
imprudente e demonstrou falta de consideração com relação às suas prováveis
consequências danosas. Toole v. Richardson-Merrell Inc. pode ser considerado um
228
caso seminal de indenização punitiva em situação de responsabilidade objetiva
(strict liability) pelo produto (product liability).
Posteriormente, já no ano de 1979, no julgamento do caso Sturm, Ruger &
Co. v. Day foram reforçados os fundamentos da aplicação dos punitive damages em
casos envolvendo a responsabilidade civil decorrente de defeito de produto.
Reconheceu-se, então, expressamente que os punitive damages não eram
incompatíveis com a responsabilidade objetiva, quando estivesse caracterizado que
o fabricante, antes da colocação do produto no mercado, sabia da existência do
defeito e, ainda mais, tinha ciência dos riscos envolvendo o uso desse produto.
Observou-se que os punitive damages desempenhariam papel de dissuasão
principalmente em casos nos quais é economicamente mais vantajoso para o
fabricante pagar indenizações compensatórias às vítimas que postulem indenização
do que corrigir o defeito do produto, como na lide que se consagrou com o nome
Ford Pinto Case, abaixo examinada.
16.3 O Ford Pinto Case377
A ideia de aplicar a indenização punitiva como forma de mudar a mentalidade
administrativa de fornecedores de produto que se pautam por uma racionalidade
estritamente econômica é simbolizada pelo famoso “Ford Pinto Case” (Grimshaw v.
Ford Motor Co).
Em 28 de maio de 1972, a senhora Gray, acompanhada do jovem de 13 anos
Richard Grimshaw, dirigia seu automóvel Ford Pinto por uma freeway, quando o
veículo, após uma troca de faixa, repentinamente enguiçou. O carro que vinha
imediatamente atrás desviou, mas o seguinte (um Galaxie) não conseguiu evitar a
colisão com a parte traseira do Ford Pinto. No momento do impacto o Ford Pinto
pegou fogo e o seu interior ficou tomado pelas chamas. De acordo com o laudo de
peritos, o impacto causou ruptura no tanque de combustível, que vazou para o
compartimento de passageiros. Ambos os ocupantes dos veículos sofreram sérias
queimaduras. Quando saíram do veículo, suas roupas estavam quase completamente queimadas. A senhora Gray morreu alguns dias depois de parada cardíaca
377
A narrativa deste caso também foi extraída da obra de André Gustavo de Andradejá citada por
diversas vezes neste trabalho, qual seja, Dano moral e indenização punitiva. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2009. p. 192/193.
229
resultante de complicações provocadas por essas queimaduras. O jovem Grimshaw
conseguiu sobreviver após intenso tratamento, um grande número de cirurgias e
vários enxertos de pele. Ele perdeu pedaços dos dedos da sua mão esquerda e
parte da sua orelha esquerda, enquanto sua face precisou de vários enxertos
extraídos do seu corpo. As lesões causaram-lhe marcas de queimadura
permanentes no rosto e em todo o corpo.
Grimshaw e os herdeiros da senhora Gray processaram a Ford Motor
Company. O júri condenou a Ford a pagar a Grimshaw uma indenização compensatória de US$ 2.516.000 e punitive damages de US$ 125 milhões; em favor dos
herdeiros da senhora Gray foi estabelecida uma indenização compensatória de
US$559.680. No julgamento, considerou-se a circunstância de que os engenheiros
da Ford teriam descoberto, em testes de colisão (crash tests) realizados
anteriormente à produção comercial do veículo, que um acidente envolvendo a
traseira poderia causar facilmente a ruptura do sistema de combustível. Como a
linha de produção já se encontrava pronta quando os engenheiros encontraram o
defeito, altos executivos da Ford decidiram produzir o automóvel como projetado
originalmente, embora modificações de baixo custo pudessem ter corrigido o
problema.
O juiz, todavia, por considerar excessivo o valor fixado pelo júri, reduziu o
montante dos punitive damages para US$ 3,5 milhões, valor que acabou confirmado
pela Corte de Apelações da Califórnia. A despeito disso, foi importante a rejeição,
pela Corte de Apelações, do apelo da Ford, que pretendia a eliminação dos punitive
damages. Reconheceu a Corte a excepcional reprovabilidade da empresa, que
poderia ter tomado as providências necessárias para prevenir o acidente em
questão e outros envolvendo o mesmo modelo de automóvel. Importante, também,
foi o fato de que, em 1978, mesmo ano em que foi dado o veredicto do júri, a Ford
se viu compelida pela National Highway Traffic Safety Administration (NHTSA) a
fazer o recall de mais de um milhão de automóveis modelo Ford Pinto fabricados
entre 1971 e 1976.
Matéria jornalística publicada pouco depois do julgamento expôs que, em uma
estimativa conservadora, o Ford Pinto, em razão do defeito na concepção do seu
projeto, teria provocado a morte de cerca de 500 pessoas, talvez 900. Nessa matéria
foi revelado que um memorando interno da Ford continha estudo que calculava o
seguinte: de um lado, o custo estimado das indenizações com acidentes envolvendo
230
o Ford Pinto (US$ 200 mil por vida perdida multiplicados por prováveis 180 mortes
por ano, além de US$ 67 mil por estimadas 180 lesões não fatais, mais os danos
com os veículos); e, de outro lado, o valor que teria de ser gasto para corrigir o
problema do veículo (cerca de US$ 11 por unidade, multiplicados por 12,5 milhões
de unidades). A conclusão do estudo foi que, do ponto de vista estatístico, o
pagamento das indenizações, ao custo total estimado de U5$ 49,5 milhões, seria
economicamente mais vantajoso do que o aperfeiçoamento necessário em todos os
veículos, ao custo total de U5$ 137,5 milhões, para prevenir cerca de 180 mortes por
ano e um número equivalente de feridos.
Qualquer comentário seria despiciendo para o caso depois destes dados.
16.4 A fumante Bullock vs. Philip Morris
No ano de 2002, a Philip Morris, a maior fabricante de cigarro do mundo, foi
condenada a pagar uma indenização recorde de US$ 28 bilhões para uma mulher
de 64 anos com câncer de pulmão que culpava pela doença o vício do tabaco,
imputando falha da empresa em adverti-la sobre os riscos do tabagismo.
Com a notícia, as ações da Philip Morris caíram mais de 7% em apenas um
dia, já que os 28 bilhões de dólares equivaleriam a 38% por cento do faturamento
anual da empresa, de 72,9 bilhões de dólares.
A mesma Sra. Bullock, em processo anterior, já havia ganhado US$ 850.000
em indenização compensatória, e o valor de US$ 28 bilhões se destinou unicamente
a punir a empresa, com aplicação dos punitive damages.
Segundo se alegou, a Sra. Bullock começou a fumar aos 17 anos e foi
diagnosticada no ano de 2001 com câncer de pulmão que já havia se espalhado
para seu fígado.
Durante o julgamento, a Philip Morris voltou sua defesa inteira sobre Bullock e
sua decisão espontânea de fumar. “Se ela tivesse parado de fumar, mesmo na
década de 1980, ela não teria câncer de pulmão, hoje", disse Peter Bleakley, o
advogado que representou a Philip Morris, aos jurados, no início do julgamento.
A empresa disse que o depoimento de Bullock mostrou que ela estava
consciente dos riscos do tabagismo na saúde e que foi avisada várias vezes sobre
esses riscos por seus médicos ao longo de quatro décadas.
231
Advogado de Bullock, Michael Piuze, argumentou que a Philip Morris passou
anos escondendo os perigos do cigarro, com uma campanha de desinformação
generalizada, que começou na década de 1950.
William Ohlemeyer, outro advogado da Philip Morris, confiante de que um
tribunal de apelações iria reverter os danos, afirmou: "este é o exemplo do júri
ignorar a lei e fazer o que não se deve fazer".
No recurso, a Philip Morris alegou que a indenização punitiva do júri foi cerca
de 33.000 vezes maior do que a indenização por danos compensatórios, "bem acima
da proporção de quatro para um, como posta na orientação permissiva da Suprema
Corte dos EUA".
Na segunda instância a indenização foi reduzida para 13,8 milhões de
dólares. Houve novo recurso para a Suprema Corte do Estado da Califórina, mas o
valor acima acabou ratificado no ano de 2011.
Diga-se que a atribuição do dever indenizatório, neste caso, de fumante que
adoece por conta do tabagismo, tem tratamento absolutamente divergente se
comparadas as justiças americana e brasileira. Lá, como se viu, foi aplicada a
elevada indenização contra a Philip Morris, pelos motivos que acima se expôs. Aqui,
apenas a título de informação, o cenário da questão na justiça brasileira, segundo
dados fornecidos pela Souza Cruz, é o seguinte: do total de 554 ações ajuizadas
contra a companhia desde 1995, há 344 ações judiciais com decisões rejeitando tais
pretensões indenizatórias (237 definitivas) e 10 em sentido contrário, as quais estão
pendentes de recurso378. Outrosim, a orientação do STJ é franca quanto ao não
reconhecimento de dever indenizatório nestes casos.
Sem que isso tenha qualquer conotação de convencimento sobre a correção
do que produzimos na operação prática do Direito, tudo estando sob o crivo até
mesmo dos estudantes que se iniciam na ciência jurídica, a situação foi objeto de
exame em sentença proferida pela Segunda Vara Judicial da Comarca de Ibiúna.
Pedia-se indenização por danos materiais e morais contra uma fabricante de
cigarros pelo fato de a suposta vítima ter consumido o produto por anos a fio e após
ter sofrido danos à saúde, inclusive com amputação de parte de um membro inferior.
378
Disponível em: www.conjur.com.br. Acesso em 29 de janeiro de 2009.
232
Foi negada a indenização e, por lealdade ao leitor, que poderá aferir seu
acerto ou erro, no rodapé, transcreve-se a sentença que se encontra aguardando
reexame pelo Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo.379
379
Processo nº de ordem 653/07 - 2ª Vara Judicial da Comarca de Ibiúna. Vistos. CELSO
AMARO propôs ação indenizatória em face de CIA DE CIGARROS SOUZA CRUZ S/A,
alegando que: desde os treze anos de idade fuma vários maços de cigarros por dia, inclusive de
marcas fabricadas pela ré; em razão desse consumo adquiriu tabagismo e doença de buerguer,
afetando-lhe a circulação sanguínea; como consequência sofreu amputação transtibial, que lhe
impôs aleijão; foi afastado permanentemente do mercado de trabalho, pois era trabalhador braçal;
a ré obteve lucro com seu sofrimento físico-moral, devendo repará-lo (fls. 02/04). Indeferida em
primeira instância, a gratuidade judiciária foi concedida posteriormente e o processo teve regular
seguimento. A ré contestou o feito, argüindo, preliminarmente, a inépcia da petição inicial. No
mérito, sustentou que: a comercialização de tabaco é uma atividade lícita em todo o mundo, bem
como no Brasil; inexiste qualquer defeito no produto colocado no mercado; a comercialização de
produto de periculosidade inerente não enseja responsabilidade civil; os riscos à saúde dos
consumidores são aceitáveis desde que normais e previsíveis; a comercialização de cigarros não
padece de qualquer defeito de informação; os riscos associados ao consumo de cigarros são de
conhecimento público pelo menos desde o século XIX, sendo, por todos, razoavelmente
esperados há muitas décadas; houve o cumprimento estrito das normas que disciplinam as
informações a serem prestadas aos consumidores; antes de 1988 não poderia ser
responsabilizada por omissão em informar porque não existia lei que lhe impusesse essa
obrigação; não se pode retroagir a noção de boa-fé objetiva; a propaganda inerente aos cigarros
não é enganosa ou abusiva, pois os riscos associados ao consumo são de conhecimento público
há décadas; a publicidade é destinada à venda de cigarros para adultos que já fumam; não há
comprovação de que a doença alegada pelo autor é exclusivamente decorrente do tabagismo; as
doenças vasculares periféricas são de natureza multifatorial; inexiste prova do nexo de
causalidade entre a doença que teria acometido o autor e o consumo de cigarros; o autor decidiu
fumar por livre e espontânea vontade; nada há no cigarro, incluindo a nicotina, que tenha o poder
de neutralizar a vontade própria do fumante e evitar que ele tome decisões conscientes sobre o
prosseguimento ou interrupção da prática de fumar; não há prova de que o autor efetivamente
consumiu cigarros, bem como que consumiu exclusivamente os cigarros por ela produzidos (fls.
145/205). Réplica (fls. 1297/1301). Instadas as partes (fls. 1302), o autor pugnou pela produção
de provas e a ré requereu o julgamento antecipado da lide (fls. 1303 e 1305/1323). É o relatório.
Fundamento e decido. Julgo a lide antecipadamente com autorização do artigo 330, inciso I, do
Código de Processo Civil, sendo desnecessária produção de outras provas, conforme abaixo se
fundamentará com mais vagar. O pedido é improcedente. Frise-se, por primeiro, que o julgamento
antecipado decorre da impossibilidade e da desnecessidade de o exame pericial requerido pela
parte-autora (fls. 1303) modificar os rumos da demanda, certo que redundaria tão-somente em
procrastinação para a prestação da tutela jurisdicional. A citada impossibilidade se dá porque a
doença manifestada no autor – e que lhe ocasionou o aleijão – não necessariamente tem como
única causa o tabagismo, consoante atual literatura médica (nesse sentido, veja-se o Resp
886.347/RS), de modo a se ter pela inaptidão da prova técnica para comprovar a causa de sua
moléstia. Já a mencionada desnecessidade do exame pericial médico decorre da própria maneira
como a exordial foi redigida, certo que não há possibilidade de se comprovar a utilização
exclusiva, pelo autor, dos produtos fabricados pela ré. Nesse ponto, anoto que o autor
fundamentou seu pleito indenitário no fato de que [...] desde os treze anos de idade, fuma vários
maços de cigarros por dia, incluídos os das marcas [...] fabricadas pela ré. (primeiro parágrafo de
fls. 03), e que tal consumo lhe gerou tabagismo que, posteriormente, deflagou a doença de
Buerguer. Ora, o próprio termo incluídos (primeiro parágrafo de fls. 03) denota que o autor
assume ter se utilizado de diversas marcas de cigarros, não afirmando sequer a existência de
preponderância na utilização de marcas fabricadas pela ré. Nestes termos, mostra-se despicienda
a realização de exame pericial e a oitiva de testemunhas, pois não há possibilidade de se
estabelecer nexo de causalidade entre os danos e a utilização única ou preponderante dos
produtos fabricados pela ré – já que o próprio autor admitiu fato contrário em sua inicial,
consoante supra-exposto. E, indubitavelmente, essas razões fundamentam – a um só turno – o
julgamento antecipado do feito e também sua improcedência. Nesse sentido, insta salientar que a
imputação de responsabilidade civil supõe a presença de dois elementos de fato: a conduta do
233
agente e o resultado danoso; e de um elemento lógico-normativo: o nexo causal (que é lógico,
porque consiste num elo referencial, numa relação de vinculação entre os elementos de fato; e é
normativo, porque tem contornos e limites impostos pelo sistema de direito, segundo o qual a
responsabilidade civil só se estabelece em relação aos efeitos diretos e imediatos causados pela
conduta do agente). À evidência, a questão jurídica da forma como posta em juízo merece
atenção com relação à impossibilidade de estabelecimento do nexo de causalidade entre a
suposta conduta da ré e os danos experimentados pelo autor. Não haveria mesmo como se
deferir qualquer pretensão indenizatória sem a comprovação do nexo de causalidade entre as
lesões e enfermidades descritas na inicial e o suposto tabagismo oriundo unicamente do
consumo dos cigarros produzidos pela ré, já que este último fato, consoante todo o
fundamentado, não poderia ser comprovado mesmo com a produção de prova pericial e
testemunhal. Com efeito – e a despeito deste reconhecimento – não se pode olvidar que a
doutrina, mesmo em sede de teoria de responsabilidade objetiva, se aperfeiçoou no sentido da
indispensabilidade do nexo de causalidade como elemento configurador do dano. Nesse
panorama, vejo que in casu está ausente o nexo causal. E sendo este um dos pressupostos da
existência da responsabilidade civil, é certo que sua ausência importa em improcedência do
pedido indenitário. Ainda que assim não se entendesse, vejo que, do caso ora examinado,
exsurge o livre-arbítrio como excludente da responsabilidade civil. Por primeiro, veja-se o
significado de livre-arbítrio, consoante definição do dicionário Hoaiss: Possibilidade de decidir,
escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa
determinante. Já o dicionário Aurélio assim o define: 1. Filos. Possibilidade de exercer um poder
sem outro motivo que não a existência mesma desse poder; liberdade de indiferença. [Refere-se
o livre-arbítrio principalmente às ações e à vontade humana, e pretende significar que o homem é
dotado do poder de, em determinadas circunstâncias, agir sem motivos ou finalidades diferentes
da própria ação. Nestes termos, o livre-arbítrio determina a possibilidade de escolher entre o bem
e o mal, o certo e o errado. Trata-se, pois, de uma capacidade humana que permite apreciar os
valores e as conseqüências das diversas possibilidades resultantes de sua vontade, dos seus
atos ou ações, razão por que o homem responde por tais conseqüências. E nada há nos autos –
sequer uma frase –afirmando eventual vício de consentimento por parte do autor, sendo certo que
desde os idos de 1.988 passaram a ser veiculadas nos maços de cigarro as advertências contra
os malefícios provocados pelo fumo, conforme determinou a Portaria n. 490 do Ministério da
Saúde, de 25 de agosto de 1.988, que impôs para as indústrias do ramo a obrigação de colocar
nos maços a cláusula de advertência: O Ministério da saúde adverte: Fumar é prejudicial à saúde.
Tal fato acaba por legitimar o livre arbítrio exercido pelo autor, afastando a pretensão à
responsabilização da ré pelos danos decorrentes do tabagismo por ele adquirido, já que, mesmo
com as advertências explicitamente estampadas nos maços, repete-se, ele optou por adquirir,
espontaneamente, o hábito de fumar, valendo-se de seu livre-arbítrio. No mais, para a Professora
TERESA ANCONA LOPEZ, titular do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da
USP, a liberdade de fumar é um direito humano tanto quanto a liberdade de não fumar, e é dever
do Estado tutelar e tornar harmônicas essas duas liberdades quando estiverem em rota de
colisão. Em sua obra Nexo causal e produtos potencialmente nocivos: a experiência brasileira do
tabaco, p. 15/17, Ed. Quartier Latin do Brasil, São Paulo, a insigne professora considera que: a
produção e comercialização de cigarros não só é lícita, mas amplamente regulamentada, de
acordo com o que dispõe a Constituição (art. 220, §4º), o Código de Defesa do Consumidor e os
regulamentos da Anvisa; a propaganda do cigarro não é enganosa ou abusiva; o cigarro não é um
produto defeituoso, mas um produto de periculosidade inerente; os riscos associados ao consumo
de cigarros são de conhecimento dos consumidores há várias décadas; não há como estabelecer
o nexo causal entre o ato de fumar e “doenças multifatoriais” (diversos fatores de risco são
concorrentes), mormente pelo fato de que a associação dessas doenças ao tabaco é meramente
estatística, não levando em consideração o indivíduo isolado; ao consumidor deve ser imputada
culpa exclusiva, porque fumar é uma opção que envolve riscos conhecidos e nada impede que o
fumante decida parar de fumar a qualquer tempo, já que a nicotina é incapaz de intoxicar o
consumidor a ponto de afetar a sua autodeterminação. Neste cenário, pode-se concluir que atos
como fumar, beber, consumir produtos altamente calóricos, com altas doses de açúcar, sódio ou
gorduras, ou, ainda, praticar esportes radicais trata-se de escolha individual, que se dá no
exercício de liberdade protegida constitucionalmente. Ninguém, ressalvados os casos patológicos
de falta de higidez mental, ignora os riscos que cada uma dessas atividades possui. Se opta por
fazê-las, manifesta sua livre e espontânea vontade, e, portanto, deve arcar com os riscos
inerentes às suas opções. No caso concreto, a se ter pela responsabilidade da ré, o dever de
234
indenizar estaria configurado para determinada fabricante de bebidas alcoólicas na hipótese de
um cliente que fosse portador de alcoolismo, simplesmente porque aquela pessoa diz ter o hábito
de ingerir – além das bebidas de outras marcas – aquelas fabricadas por tal empresa, mesmo
sabendo dos riscos atrelados ao tipo de bebida que ingere. Assim, in casu, tem-se que o autor, no
uso de seu livre-arbítrio, submeteu-se, conscientemente, a um risco que poderia ser evitado, se
ele tivesse optado por não começar a fumar, ou deixar de fumar a partir do momento em que
adoeceu. Especificamente quanto a este último aspecto, vejo que o único documento médico que
instrui a petição inicial consigna que o autor possuía antecedentes de amputações prévias (fls.
06verso), de modo a reforçar a necessidade da abstenção de fumar, evitando assim o
agravamento de suas lesões e a ocorrência de novas amputações. Outrossim, é importante
consignar que o Brasil adota uma política de apoio às pessoas que desejam parar de fumar, nos
moldes previstos na Portaria do Ministério da Saúde n.º 1.035, de 31 de maio de 2004, que amplia
o acesso à abordagem e tratamento do tabagismo para a rede de atenção básica e de média
complexidade do Sistema Único de Saúde (SUS) conjugada com a Portaria da Secretaria de
Atenção à Saúde/MS n.º 442, de 13 de agosto de 2004, que aprova o Plano para Implantação da
Abordagem e Tratamento do Tabagismo no SUS e o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas –
Dependência à Nicotina. Sob este prisma, o autor tinha não somente a faculdade legítima – eis
que ciente dos riscos – mas a possibilidade in concreto de abandonar o fumo, esta possibilitada
pelos programas governamentais supracitados, o que realça o fundamento de que o uso do
cigarro é manifestação do livre-arbítrio inato aos cidadãos em um Estado Democrático de Direito,
que poderão deixar de fazê-lo se quiserem, afastando, assim, o dever de indenizar. A todas estas
ponderações, acresça-se o fato de que o cigarro, de per si, não pode ser considerado como um
produto defeituoso, ou que seu consumo, inexoravelmente, leve à caracterização de
responsabilidade civil pelo fato do produto, nos termos do artigo 12, caput, do Código de Defesa
do Consumidor, pois, hodiernamente, não deixa de oferecer a segurança que dele
legitimamente se espera. Ora, não se pode, legitimamente, esperar que o cigarro não faça mal
à saúde do fumante. Em outras palavras, se pode esperar do cigarro, por exemplo, rigoroso
processo de fabricação, com adequado controle de qualidade, mas dele não se pode esperar que
não prejudique o sistema respiratório do usuário. E, como já mencionado, aí estão as políticas
públicas que impõem a intensa divulgação da advertência dos males do tabagismo, bem como
pela existência de programas governamentais de apoio aos dependentes, sendo certo que a
periculosidade inerente de um produto, de modo algum, pode ser confundida e caracterizada
como um seu defeito, consoante os percucientes fundamentos trazidos pelo Excelentíssimo
Ministro Luis Felipe Salomão, ao relatar o Resp. 1.113.804 /RS, e a seguir descritos: Por outro
lado, não parece possível que o cigarro seja considerado um produto defeituoso, nos termos do
que imaginara o Diploma Consumerista, no § 1º do art. 12, que está assim redigido: § 1° O
produto é defeituoso quando não oferece a segurança que dele legitimamente se espera,
levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, entre as quais: I - sua apresentação; II
- o uso e os riscos que razoavelmente dele se esperam; III - a época em que foi colocado em
circulação. Deveras, o defeito a que alude o dispositivo consubstancia-se em falha que se desvia
da normalidade, capaz de gerar uma frustração no consumidor ao não experimentar a segurança
que ordinariamente se espera do produto ou serviço. Assim, o defeito previsto no artigo não pode
dizer respeito a uma capacidade própria do produto de gerar danos, presente em todas as
unidades, mas a algo que escapa do razoável, discrepante do padrão de outros produtos
congêneres ou de outros exemplares do mesmo produto. Até porque, em sendo acolhida a tese e
considerado o produto defeituoso, seria possível a troca do produto viciado por outro em perfeitas
condições de uso, o que é impossível de se imaginar no caso do cigarro, pela simples razão de
que todos os demais exemplares ostentam os mesmos problemas apontados (por exemplo, a
nicotina viciante, ou as muitas alegadas substâncias tóxicas e potencialmente cancerígenas),
sendo incontornável a conclusão de que o cigarro é um produto de risco inerente. É essa a
conclusão que se chega, inclusive ao se interpretar o CDC à luz da Constituição Federal de 1988
- o que é absolutamente recomendável. Não por acaso a Carta Maior agrupou, no art. 220, § 4º,
"tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias", mas precisamente porque se
cuida de produtos e serviços de categorias assemelhadas, de periculosidade inerente, cujos
riscos de dano decorrem do seu próprio uso. Equivale dizer, pois, que é inerente ao tabaco a
circunstância de ser ele fator de risco de diversas enfermidades, tal como o álcool o é em relação
a tantas outras moléstias, inclusive patologias de impacto social, como o alcoolismo, além de ser
fator intimamente relacionado a acidentes de trânsito. A nicotina, por sua vez, é inerente não só
ao cigarro. Mais que isso, é inerente à própria folha do tabaco, recebendo essa planta o nome
235
científico de nicotiana tabacum, em homenagem a Jean Nicot, diplomata francês em Lisboa, que
ministrara à Rainha Maria Catarina de Médicis a inalação de sua queima, como paliativo à
enxaqueca (DELFINO, Lúcio. Responsabilidade civil e tabagismo. Curitiba: Juruá, 2007, p. 30).
Vale dizer, não há cigarro que não seja um fator de risco à saúde, assim como não há bebida
alcoólica que não embriaga e possa causar danos ao usuário e a terceiros, assim como não há
medicamento fármaco ou agrotóxico que não tenha a aptidão de causar intoxicação. No particular,
valho-me do magistério de Cláudia Lima Marques, para quem "o art. 9º refere-se a produtos e
serviços 'potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança', daí incluir, segundo a
doutrina (Denari, p. 149), bebidas alcoólicas, tabaco, agrotóxicos, fogos de artifício, material
radiativo, pilhas, dedetização de prédios, serviços, como piscinas, esportes radicais, ou serviços
públicos, como energia elétrica" (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 2 ed. São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p.243). Com efeito, à luz da legislação vigente, em
meu juízo, resta firmada a premissa de ser o cigarro um produto de periculosidade inerente,
seguindo-se que o fornecedor somente se responsabilizará por eventuais danos causados pelo
uso do produto em caso de informação inadequada alusiva aos seus riscos, se também, por outro
lado, o dano figurar como consectário da implementação do risco (nexo). Sob a égide do Código
de Defesa do Consumidor, a doutrina é clara em prever o dever de informação do fornecedor
acerca dos riscos que potencialmente o produto pode causar ao usuário: Nas hipóteses
elencadas, o fornecedor deverá informar de maneira ostensiva e adequada a respeito da
respectiva nocividade e periculosidade. Uma informação é ostensiva quando se exterioriza de
forma tão manifesta e translúcida que uma pessoa, de mediana inteligência, não tem como alegar
ignorância ou desinformação. É adequada quando, de uma forma apropriada e completa, presta
todos os esclarecimentos necessários ao uso ou consumo de produto ou serviço. Assim, por
todos esses fundamentos, a responsabilidade civil pretensamente imputada à ré há que ser
excluída, pois comprovou, com quase mil laudas de documentos, que o produto por ela fabricado
atende às políticas públicas que o regulamentam, de modo a realçar a legitimidade do livre arbítrio
exercido pelo autor, concluindo-se que as lesões – ainda que supostamente – ocasionadas pelo
consumo de cigarro são, legitimamente, dele esperadas, por se tratar de produto de
periculosidade inerente, sendo, pois, inaplicável o artigo 12, §1º, inciso II, do Código de Defesa do
Consumidor. Por derradeiro, a solução dada a esta demanda encontra amparo na jurisprudência
do Eg. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Veja-se: 1) INDENIZAÇÃO - Ação movida por
doente de câncer em face de fabricante de cigarros - Inexistência de prova de consumo exclusivo
de produtos da ré - Inexistência de prova de nexo entre a doença e o tabagismo, apesar do
truísmo de que o cigarro causa câncer - Adesão espontânea ao vício - Dever de indenizar não
reconhecido - Ação improcedente - Apelação não provida. Ap. 110.454.4/3; órgão julgador: 4a
Câmara de Direito; Relator: NARCISO ORLANDI. 2) INDENIZAÇÃO - Responsabilidade civil Dano moral - Morte por câncer de pulmão - Fato atribuído ao tabagismo - Ação proposta em face
da fabricante dos cigarros consumidos pelo falecido - Improcedência - Admissibilidade - Vício
atrelado ao livre-arbítrio do indivíduo - Recurso não Provido. Ap 235.799.4/9; órgão julgador: 1ª
Câmara de Direito Privado; relator: LAERTE NORDI. 3) SENTENÇA. Nulidade. Cerceamento de
prova. Requisito da utilidade da prova que não está configurado. Julgamento no estado permitido.
Preliminar rejeitada. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. Tabagista que,
voluntariamente, entregou-se a este vício. Culpa exclusiva do consumidor. Atividade lícita da ré.
Exercício regular do direito a ser pronunciado, atraindo a excludente de indenização também por
esse motivo (inteligência do artigo 188, II, do CC). Indenização descabida. Sentença mantida.
Recurso improvido (Ap. 228.659-4/4-00; órgão julgador: 6ª Câmara de Direito Privado; relator:
JOSÉ JOAQUIM DOS SANTOS; j. 21.01.10, v.u.). 4) INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E
MORAIS. Ex-fumante que responsabiliza a empresa fabricante do cigarro pelo vício e suas
conseqüências. Desacolhida a tese sobre a nulidade da r. sentença e reafirmada a tese da
impossibilidade da responsabilização da empresa-ré. 'Volenti non fit injuria', reconhecido o livre
arbítrio do viciado. RECURSO NÃO PROVIDO (Ap n. 541.059-4/9; órgão julgador: 7ª Câmara de
Direito Privado; relator: GILBERTO DE SOUZA MOREIRA; j . 30.01.2008, v.u.). Ante ao exposto,
JULGO IMPROCEDENTE O PEDIDO, extinguindo o feito com resolução de mérito, nos
termos do artigo 269, inciso I, do Código de Processo Civil. Condeno o autor ao pagamento
das custas processuais e dos honorários advocatícios do patrono da ré no valor de R$ 2.000,00,
nos termos do artigo 20, §4º, do Código de Processo Civil, respeitada a gratuidade judiciária que
lhe foi deferida a fls. 132/135. P.R.I. Ibiúna, 28 de setembro de 2011. Wendell Lopes Barbosa de
Souza - Juiz de Direito.
236
17 O DIREITO DE IMPRENSA BRASILEIRO
17.1 Notas Introdutórias e Disciplina Constitucional
Pode-se afirmar que o termo imprensa não tem apenas o significado restrito
de meio de difusão de informação impressa, mas deve-se levar em conta sua
acepção ampla de significar todos os meios de divulgação de informação ao público,
principalmente quando através dos modernos e poderosos veículos de difusão como
a internet, cujo alcance sobre a grande massa é ilimitado.
Segundo Claudio Luiz Bueno de Godoy, “a função jornalística, não se pode
negar, cumpre mais que uma finalidade informativa”, já que “forma, a rigor, a
consciência de uma comunidade”, e “quando menos, a tanto concorre, de forma
decisiva”, forjando “valores culturais e sociais, divulgando e estimulando a produção
artística, literária e econômica, fomentando a relação entre os povos e países”.380
Como já mencionado
É certo que, em tempos atuais, ao termo imprensa não se reserva apenas
seu sentido estrito e original, vinculando mesmo a própria descoberta da
maquina de imprimir, a prensa. Não se concede mais a imprensa adstrita às
informações impressas, geralmente em jornais e periódicos, ou ainda em
qualquer produto impresso. A liberdade de imprensa passa a abarcar todos
os meios de divulgação de informação ao público. Destarte, tem-se hoje a
liberdade de imprensa como a de informação por qualquer meio jornalístico,
381
aí compreendida a comunicação e o acesso ao que se informa.
Veja-se a postura constitucional assumida pelo Estado brasileiro com relação
à atividade da imprensa quando da promulgação da Constituição Federal de 1988:
Art. 5º, IV – É livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o
anonimato;
Art. 5º, IX – É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e
de comunicação, independentemente de censura ou licença;
Art. 220. A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a
informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer
restrição, observado o disposto nesta Constituição.
§ 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à
plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de
comunicação social, observado o disposto no art. 5º, IV, V, X, XIII e XIV.
380
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 1.
381
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 52.
237
§ 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e
artística.
§ 3º - Compete à lei federal:
I - regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público
informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que não se
recomendem, locais e horários em que sua apresentação se mostre
inadequada;
II - estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a
possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e
televisão que contrariem o disposto no art. 221, bem como da propaganda
de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio
ambiente.
§ 4º - A propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos,
medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais, nos termos do
inciso II do parágrafo anterior, e conterá, sempre que necessário,
advertência sobre os malefícios decorrentes de seu uso.
§ 5º - Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente,
ser objeto de monopólio ou oligopólio.
§ 6º - A publicação de veículo impresso de comunicação independe de
licença de autoridade.
17.2 Histórico
No Brasil, na época da monarquia, era total a proibição de imprimir
informações.
Em 13 de maio de 1808, suspendeu-se a proibição, todavia ainda não existia
a livre atividade da imprensa. Nesse mesmo ano, surgiu o primeiro jornal no Brasil,
“A Gazeta do Rio de Janeiro”, submetido à censura prévia.
Posteriormente, o Príncipe Regente Dom Pedro editou o aviso de 28 de
agosto de 1821, no qual constava “que não se embarace por pretexto algum a
impressão que se quiser fazer de qualquer escrito”, abolindo a censura prévia.
O primeiro anúncio relativo à legislação de imprensa surgiu com a portaria
baixada em 19 de janeiro de 1822, pelo Ministro José Bonifácio de Andrada e Silva,
que proibiu os impressos anônimos, atribuindo responsabilidade, pelos abusos, ao
seu autor ou, na sua falta, ao editor ou impressor.
O Senado da Câmara do Rio de Janeiro preocupado com essa portaria, pediu
ao Príncipe Regente a criação de um juízo para o julgamento dos abusos de opinião
imprensa. Dom Pedro atendeu ao pedido e por meio do Decreto de 18 de junho de
1822 criou o júri de imprensa.
Após a independência do Brasil, a primeira Assembleia Constituinte cuidou de
elaborar uma Lei de Imprensa. Mesmo com a dissolução da Assembleia
Constituinte, o governo aproveitou o projeto de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada e
transformou-o no Decreto de 22 de novembro de 1823. Essa lei repudiava a censura
238
e declarava livres a impressão, a publicação, a venda e a compra de livros e escritos
de toda a qualidade, com algumas exceções. Essa foi, então, a nossa primeira Lei
de Imprensa, na qual se inseriu o princípio da liberdade de informação, bem como o
processo contra os eventuais abusos que se praticassem.
A Constituição do Império de 1824, inspirada na Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, manteve o princípio da liberdade de imprensa.
Uma lei de 20 de setembro de 1830 procurou regulamentar o dispositivo
constitucional relativo à liberdade de imprensa, todavia teve rápida vigência, porque,
em 16 de dezembro de 1830, foi sancionado o primeiro Código Criminal brasileiro,
que incorporou as disposições dessa lei com pequenas alterações.
Em 11 de outubro de 1890, entrou em vigor um novo Código Penal,
englobando, também, os dispositivos relativos à imprensa.
A Constituição da República de 1891 proclamou, no art. 72, § 2º, que “em
qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento pela imprensa ou pela
tribuna, sem dependência de censura, respondendo cada um pelos abusos que
cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar”.
Mas o período republicano, ao contrário da época monárquica, acabou
marcado por vários atentados à liberdade de imprensa, como, por exemplo, o
Decreto nº 4.269, de 17 de janeiro de 1921, de repressão ao anarquismo, incluindo
normas relativas à imprensa.
A primeira Lei de Imprensa da era republicana foi a de nº 4.743, de 31 de
outubro de 1923, que retirava do Código Penal os crimes de imprensa. Essa lei
fixava as penas aplicáveis aos crimes de injúria, difamação e calúnia, quando
cometidos pela imprensa, bem como os atos definidos como anarquismo pelo
Decreto nº 4.269/21, quando praticados através dos instrumentos de comunicação.
Puniam-se os atos de incitação ao anarquismo, os atentados à honra alheia, a
publicação de segredos do Estado e de matéria que violasse a segurança pública,
de ofensa a nação estrangeira, de ofensas à moral e aos bons costumes, de
anúncios de medicamentos não aprovados pela Saúde Pública, de escritos visando
à chantagem. Instituiu-se o direito de resposta e reformou-se o processo dos delitos
de
imprensa.
Não se
instituiu, entretanto,
a
censura prévia.
Quanto à
responsabilidade, esta era apurada após a prática do abuso, segundo o princípio da
liberdade responsável de cada um.
239
Com a Revolução de 1930, vigorou o arbítrio e a vontade pessoal do ditador
Getúlio Vargas quanto aos destinos da imprensa.
A Carta Constitucional de 1934 restabeleceu, no art. 113, inciso 9º, a regra da
Constituição de 1891, excetuando-se a censura prévia quanto aos espetáculos
públicos.
Em 14 de julho de 1934, dois dias antes da promulgação da nova
Constituição, o então Presidente Getúlio Vargas, baixou o Decreto nº 24.776, que foi
a nossa segunda Lei de Imprensa no período republicano. Esse decreto sofreu
alterações com o advento da Constituição outorgada em 10 de novembro de 1937,
data do golpe de Estado e instauração do Estado Novo.
O art. 122, inciso 15, da Carta de 1937, prescrevia que “todo cidadão tem o
direito de manifestar o seu pensamento oralmente, por escrito, impresso ou por
imagens, mediante as condições e nos limites prescritos em lei”. Contudo, a
Constituição não deixou essa questão para o legislador ordinário, prescrevendo, em
pormenores, uma série de limitações à imprensa.
Dispunha, ainda, o referido art. 122, inciso 12, da Carta de 1937, que “a lei
pode prescrever: a) com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a
censura prévia da imprensa, do teatro, do cinematógrafo, da radiodifusão, facultando
à autoridade competente proibir a circulação, a difusão ou a representação; b)
medidas para impedir as manifestações contrárias à moralidade e aos bons
costumes, assim como as especialmente destinadas à proteção da infância e da
juventude; c) providências destinadas à proteção do interesse público, bem-estar do
povo e segurança do Estado.
Constava que a imprensa regular-se-ia por lei especial, de acordo com os
seguintes princípios: a) a imprensa exerce uma função de caráter público; b)
nenhum jornal pode recusar a inserção de comunicados do Governo, nas dimensões
taxadas em lei; c) é assegurado a todo o cidadão o direito de fazer inserir,
gratuitamente, nos jornais que o infamarem ou injuriarem, resposta, defesa ou
retificação; d) é proibido o anonimato; e) a responsabilidade se tornará efetiva por
pena de prisão contra o diretor responsável e pena pecuniária aplicada à empresa; f)
as máquinas, caracteres e outros objetos tipográficos, utilizados na impressão do
jornal, constituem garantia do pagamento da multa, reparação ou indenização, e das
despesas com o processo nas condenações pronunciadas por delito de imprensa,
excluídos os privilégios eventuais derivados do contrato de trabalho da empresa
240
jornalística com os seus empregados; g) não podem ser proprietários de empresas
jornalísticas as sociedades por ação ao portador e os estrangeiros, vedado tanto a
estes como às pessoas jurídicas participar de tais empresas como acionistas.
Esse regime da censura durou até 1945, fim do estado ditatorial, voltando a
viger o Decreto nº 24.776, com a promulgação da Constituição Federal de 1946.
Em 12 de novembro de 1953, foi promulgada a Lei nº 2.083, que, em seu art.
63, revogou o Decreto nº 24.776/34.
A Constituição de 1967 também proclamou a liberdade de imprensa,
inserindo-a em seu § 8º do art. 150.
Com o advento da Lei nº 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, foi revogada a Lei
nº 2.083/53. Essa lei veio para regular, além da liberdade de imprensa, a liberdade
de manifestação do pensamento e da informação. A lei declarou intolerável a
propaganda de guerra, de processos de subversão da ordem pública e social ou de
preconceitos de raça ou de classe (artigo 1º, § 1º). O § 2º do art. 1º da referida lei
excluiu, expressamente, da liberdade de manifestação de pensamento, os
espetáculos e diversões públicas. Havia a proibição de publicações clandestinas e
as que atentassem contra a moral e os bons costumes, a necessidade de permissão
ou concessão federal para a exploração de serviços de radiodifusão e a livre
exploração do agenciamento de notícias, desde que registradas as empresas (artigo
2º da Lei nº 5.250/67). Também havia a vedação a propriedade de empresas
jornalísticas, sejam políticas ou simplesmente noticiosas, a estrangeiros e a
sociedades por ações ao portador, nos termos do art. 3º, caput, da Lei nº 5.250/67.
No exercício da liberdade de manifestação do pensamento e de informação, proibia
o anonimato, e, no entanto, assegurava o respeito ao sigilo quanto às fontes e
origens de informações recebidas ou recolhidas por jornalistas (art. 7º, caput).
Esta Lei nº 5.250/67 acabou declarada como não recepcionada pela
Constituição Federal pelo Supremo Tribunal Federal, no ano de 2011, no julgamento
da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130, conforme será visto.
A Emenda Constitucional de 17 de outubro de 1969 repetiu o princípio da
liberdade de imprensa constante da Constituição de 1967 e o inseriu no § 8º do art.
153, somente acrescentando, ao final, a intolerabilidade para “as publicações de
exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes”.
241
Hoje nós temos a disciplina do direito de imprensa na Constituição Federal de
1988, sem nenhuma pormenorização infraconstitucional, pelo motivo abaixo.
17.3 A Não Recepção da Lei de Imprensa pela Constituição Federal
Recentemente, no ano de 2009, o Excelso Supremo Tribunal Federal, na
Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130,
julgou procedente o pedido para o efeito de declarar como não recepcionado pela
Constituição de 1988 todo o conjunto de dispositivos da Lei Federal nº 5.250, de 9
de fevereiro de 1967, a Lei de Imprensa, definindo-se que, nas causas decorrentes
das relações de imprensa, aplicam-se as normas da legislação comum,
notadamente o Código Civil, o Código Penal, o Código de Processo Civil e o Código
de Processo Penal.382
382
EMENTA: ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF). LEI DE
IMPRENSA. ADEQUAÇÃO DA AÇÃO. REGIME CONSTITUCIONAL DA “LIBERDADE DE
INFORMAÇÃO JORNALÍSTICA”, EXPRESSÃO SINÔNIMA DE LIBERDADE DE IMPRENSA. A
“PLENA” LIBERDADE DE IMPRENSA COMO CATEGORIA JURÍDICA PROIBITIVA DE
QUALQUER TIPO DE CENSURA PRÉVIA. A PLENITUDE DA LIBERDADE DE IMPRENSA
COMO REFORÇO OU SOBRETUTELA DAS LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO
PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL
E COMUNICACIONAL. LIBERDADES QUE DÃO CONTEÚDO ÀS RELAÇÕES DE IMPRENSA E
QUE SE PÕEM COMO SUPERIORES BENS DE PERSONALIDADE E MAIS DIRETA
EMANAÇÃO DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. O CAPÍTULO
CONSTITUCIONAL DA COMUNICAÇÃO SOCIAL COMO SEGMENTO PROLONGADOR DAS
LIBERDADES DE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO, DE INFORMAÇÃO E DE EXPRESSÃO
ARTÍSTICA, CIENTÍFICA, INTELECTUAL E COMUNICACIONAL. TRANSPASSE DA
FUNDAMENTALIDADE DOS DIREITOS PROLONGADOS AO CAPÍTULO PROLONGADOR.
PONDERAÇÃO DIRETAMENTE CONSTITUCIONAL ENTRE BLOCOS DE BENS DE
PERSONALIDADE: O BLOCO DOS DIREITOS QUE DÃO CONTEÚDO À LIBERDADE DE
IMPRENSA E O BLOCO DOS DIREITOS À IMAGEM, HONRA, INTIMIDADE E VIDA PRIVADA.
PRECEDÊNCIA DO PRIMEIRO BLOCO. INCIDÊNCIA A POSTERIORI DO SEGUNDO BLOCO
DE DIREITOS, PARA O EFEITO DE ASSEGURAR O DIREITO DE RESPOSTA E ASSENTAR
RESPONSABILIDADES
PENAL,
CIVIL
E
ADMINISTRATIVA,
ENTRE
OUTRAS
CONSEQUÊNCIAS DO PLENO GOZO DA LIBERDADE DE IMPRENSA. PECULIAR FÓRMULA
CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO A INTERESSES PRIVADOS QUE, MESMO INCIDINDO A
POSTERIORI, ATUA SOBRE AS CAUSAS PARA INIBIR ABUSOS POR PARTE DA IMPRENSA.
PROPORCIONALIDADE ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E RESPONSABILIDADE CIVIL
POR DANOS MORAIS E MATERIAIS A TERCEIROS. RELAÇÃO DE MÚTUA CAUSALIDADE
ENTRE LIBERDADE DE IMPRENSA E DEMOCRACIA. RELAÇÃO DE INERÊNCIA ENTRE
PENSAMENTO CRÍTICO E IMPRENSA LIVRE. A IMPRENSA COMO INSTÂNCIA NATURAL DE
FORMAÇÃO DA OPINIÃO PÚBLICA E COMO ALTERNATIVA À VERSÃO OFICIAL DOS FATOS.
PROIBIÇÃO DE MONOPOLIZAR OU OLIGOPOLIZAR ÓRGÃOS DE IMPRENSA COMO NOVO E
AUTÔNOMO FATOR DE INIBIÇÃO DE ABUSOS. NÚCLEO DA LIBERDADE DE IMPRENSA E
MATÉRIAS APENAS PERIFERICAMENTE DE IMPRENSA. AUTORREGULAÇÃO E REGULAÇÃO
SOCIAL DA ATIVIDADE DE IMPRENSA. NÃO RECEPÇÃO EM BLOCO DA LEI Nº 5.250/1967
PELA NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL. EFEITOS JURÍDICOS DA DECISÃO. PROCEDÊNCIA
DA AÇÃO.
242
Entendeu-se que o corpo normativo da Constituição Federal prevê a liberdade
de informação jornalística e a liberdade de imprensa, rechaçantes de qualquer
censura prévia a um direito que é signo e penhor da mais encarecida dignidade da
pessoa humana, assim como do mais evoluído estado de civilização. Segundo
constou na decisão,
[...] o art. 220 da Constituição radicaliza e alarga o regime de plena
liberdade de atuação da imprensa, porquanto fala: a) que os mencionados
direitos de personalidade (liberdade de pensamento, criação, expressão e
informação) estão a salvo de qualquer restrição em seu exercício, seja qual
for o suporte físico ou tecnológico de sua veiculação; b) que tal exercício
não se sujeita a outras disposições que não sejam as figurantes dela
própria, Constituição.
Afirmou-se que “os direitos que dão conteúdo à liberdade de imprensa são
bens de personalidade que se qualificam como sobredireitos”, resultando que “as
relações de imprensa e as relações de intimidade, vida privada, imagem e honra são
de mútua excludência, no sentido de que as primeiras se antecipam, no tempo, às
segundas”, ou seja, “antes de tudo prevalecem as relações de imprensa como
superiores bens jurídicos e natural forma de controle social sobre o poder do Estado,
sobrevindo as demais relações como eventual responsabilização do pleno gozo das
primeiras”.
Segundo o decisório, “Não há liberdade de imprensa pela metade ou sob as
tenazes da censura prévia, inclusive a procedente do Poder Judiciário”, conforme se
asseverou. Consta também na decisão da ADPF que
[...] a Lei Fundamental do Brasil veicula o mais democrático e civilizado
regime da livre e plena circulação das ideias e opiniões, mas sem deixar de
prescrever o direito de resposta e um regime de responsabilidades civis,
penais e administrativas.
A plena liberdade de imprensa, segundo a r. decisão,
[...] é um patrimônio imaterial que corresponde ao mais eloquente atestado
de evolução político-cultural de todo um povo. Pelo seu reconhecido condão
de vitalizar por muitos modos a Constituição, tirando-a mais vezes do papel,
a Imprensa passa a manter com a democracia a mais entranhada relação
de mútua dependência ou retroalimentação. Assim visualizada como
verdadeira irmã siamesa da democracia, a imprensa passa a desfrutar de
uma liberdade de atuação ainda maior que a liberdade de pensamento, de
informação e de expressão dos indivíduos em si mesmos considerados.
Mas o direito de resposta que era previsto na antiga Lei de Imprensa
subsiste por força de dispositivo constitucional, como passa a ser observado.
243
17.4 O Direito de Resposta
Com efeito, estando previsto em norma constitucional de eficácia plena e
imediata, não há motivo algum para que não se reconheça o exercício do direito de
resposta ao argumento de ausência de legislação infraconstitucional que o preveja.
Dispõe o inciso V do artigo 5º da Constituição Federal: é assegurado o direito
de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral
ou à imagem.
Em voto de fevereiro de 2013, o Desembargador Beretta da Silveira, do
Tribunal de Justiça de São Paulo, relator da apelação nº 9000005-5.2008.8.26.0011,
conferiu o direito de resposta ao jornalista Luis Nacif contra a Editora Abril, em
virtude de uma publicação na Revista Veja, afirmando que “não se pode coibir o
direito de a imprensa divulgar, noticiar e comentar qualquer tipo de assunto, ainda
mais quando dizem respeito diretamente a pessoas públicas, sejam elas do mundo
público/político lato sensu, ou privado”, mas “de outro lado, entretanto, também não
se pode tirar o direito daquele que se sentiu ofendido a possibilidade de responder
ao que lhe foi imputado, seja falso ou verdadeiro”. Para ele, “o direito de resposta,
que se manifesta como ação de replicar ou de retificar matéria publicada é
exercitável por parte daquele que se vê ofendido em sua honra objetiva, ou então
subjetiva, conforme estampado no inciso V do art. 5º da Constituição Federal, norma
essa de eficácia plena e de aplicabilidade imediata”. Em suma, afirmou, “não se
pode deixar de ter em conta que a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão
devem, sempre, vir junto com a responsabilidade da imprensa e de expressão, de
molde a que, em contrapartida ao poder-dever de informar, exista a obrigação de
divulgar a verdade, preservando-se a honra alheia, ainda que subjetiva”. E concluiu
“que nenhuma liberdade é e nem pode ser absoluta” e “a interpretação de qualquer
lei e da Constituição há de atender a essa contingência elementar”.
O acórdão acabou assim ementado:
Direito de resposta - Matéria jornalística - Excesso no dever/direito de
informação – Não recepção da Lei de Imprensa pela Constituição Federal
que não tem o condão de extinguir o direito de resposta - Garantia
constitucional - Ponderação entre os direitos à informação, à honra e à
dignidade da pessoa humana - Existência de excesso a ensejar o exercício
do direito de resposta – Sentença mantida – Recurso improvido.
244
17.5 O Controle da Atividade da Imprensa: Preventivo x Repressivo
Acerca do controle da atividade da imprensa, posicionam-se a doutrina e a
jurisprudência em dois sentidos extremamente opostos, cada qual com firmes
argumentos de suas teses.383
Primeiro, orientam-se os estudiosos do tema pelo controle preventivo da
atividade, permitindo-se que o Poder Judiciário proíba a veiculação de informações
que atinjam a privacidade de outrem. Note-se que a proibição aqui ventilada é de
competência exclusiva do juiz de direito, jamais podendo partir de órgãos da
Administração Pública.
Segundo, posicionam-se outros pensadores pelo controle repressivo, não se
permitindo a proibição prévia da informação sequer pelo juiz, mas deferindo-se a
reparação pelos danos materiais e morais decorrentes do abuso do direito de
informar.
Pelo controle preventivo, posicionam-se Luiz David Araújo e Vidal Serrano
Nunes Júnior, no seguinte sentido:
Fica proibida a censura ideológica, política e artística. É evidente que a
proibição, imposta pelo Poder Judiciário, com fundamento em outros valores
constitucionais, não configura exercício de censura, já que o próprio texto
constitucional garantiu o direito, “observado o disposto nesta Constituição”.
O que está proibido, portanto, é a censura administrativa, levada a efeito por
órgãos do Poder Executivo.
E complementam os doutrinadores afirmando que:
A limitação com fundamento constitucional não poderia constituir censura
em nenhuma de suas fórmulas, pois o conflito concretamente surgido pelo
exercício de dois direitos constitucionais deve ser resolvido pelo Poder
Judiciário que, desta feita, pode impor limites à manifestação do
384
pensamento.
Alexandre de Moraes se posiciona pelo controle posterior ou repressivo,
impondo-se responsabilização civil e penal ao agente informador que abusa de seu
direito:
O texto constitucional repele frontalmente a possibilidade de censura prévia.
Essa previsão, porém, não significa que a liberdade de imprensa é absoluta,
383
SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista
Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 196.
384
ARAÚJO, Luiz Alberto; NUNES, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2001. p. 397-398.
245
não encontrando restrições nos demais direitos fundamentais, pois a
responsabilização posterior do autor e/ou responsável pelas notícias
injuriosas, difamantes, mentirosas sempre será cabível, em relação a
eventuais danos materiais e morais.
Terminando o constitucionalista por asseverar que:
A liberdade de imprensa em todos os seus aspectos, inclusive mediante a
vedação de censura prévia, deve ser exercida com a necessária
responsabilidade que se exige em um Estado Democrático de Direito, de
modo que o desvirtuamento da mesma para o cometimento de fatos ilícitos,
civil ou penalmente, possibilitará aos prejudicados plena e integral
indenização por danos materiais e morais, além do efetivo direito de
385
resposta.
Veja-se, dessa sorte, que a Carta Constitucional brasileira permite ambas as
interpretações, cabendo ao estudioso adotar a que entender adequada segundo sua
visão, primando pelo controle preventivo da imprensa com possibilidade de ordem
judicial para a não exposição de notícias alheias ou postergando para depois da
reportagem supostamente ofensiva a indenização por danos morais e materiais.
17.6 Os Artigos 12 e 20 do Código Civil – Controle Preventivo
Disciplina o Código Civil:
Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da
personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções
previstas em lei.
Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça
ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão
da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma
pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da
indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a
respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Pois bem, ao que parece, a legislação infraconstitucional, consubstanciada
nos artigos 12 e 20 do Código Civil, permite não só a reparação posterior por meio
de ação de indenização por danos morais, como também autoriza, expressamente,
que a ordem judicial seja dirigida à cessação imediata e até preventiva da eventual
ofensa a ser perpetrada por meio da imprensa contra os direitos da personalidade,
dentre eles a honra a, imagem, o nome, a intimidade e a privacidade.
385
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2006. p. 128.
246
Resta saber se se trata, esta decisão judicial, de uma espécie de censura
prévia, proscrita pela Constituição Federal.
O texto mais franco a tal respeito nos pareceu escrito por Pedro Frederico
Caldas, em sua dissertação de mestrado da Pontifícia Universidade Católica, no ano
de 1996.
Aduz o autor que “a liberdade de imprensa tem limites internos e limites
externos”; “os limites internos traduzem-se nas responsabilidades sociais e um
compromisso com a verdade” e “os limites externos encontrariam muros justamente
nos limites de outros direitos de igual hierarquia constitucional”.386
Segundo ele, “as limitações à liberdade de impressa, por mais liberal o
sistema, se justificam por não ser tal liberdade um fim em si mesmo”, mas “uma
garantida para que o direito à informação se consume, principalmente”; e “o direito à
informação e tudo mais se justifica como meio de promoção da pessoa, esta, sim, é
o centro gravídico e a razão ultima da ordem jurídica”.
E isto, afirma o autor,
Quer dizer que se qualquer direito ou garantia desanda e desborda, no seu
exercício, para atingir a dignidade humana, obviamente que o próprio
sistema deve oferecer, como efetivamente oferece, a terapêutica jurídica
necessária à sanação do mal causado, não sendo rara a oferta legal de
dispositivos eficientes em prevenir, com a cautela, o mal potencial ou
iminente. Aliás, sempre que possível, o judiciário pode, presentes
determinados pressupostos legais, antecipar a prestação jurisdicional
387
reclamada pela via cautelar.
E prossegue afirmando que “o dispositivo citado interdita qualquer censura de
natureza política, ideológica e artística”, e “não parece indicar, seja pela sua dicção
ou literalidade, seja pelo viés teleológico, que a intervenção judicial para prevenir o
dano moral ou material esteja abarcada pelas palavras do dispositivo”, concluindo
que “parece-nos buscar o versículo constitucional o impedimento da censura
administrativa, ou seja, a censura estatal, seja qual for o órgão de controle social”.388
Assim, para ele, “não parece que a intervenção do judiciário esteja abarcada
pela vedação constitucional”, “pelo contrário, a Constituição diz que não se pode
386
CALDAS, Pedro Frederico. Vida Privada, Liberdade de imprensa e dano moral. Dissertação de
mestrado pela PUC/SP, 1996. p. 100.
387
CALDAS, Pedro Frederico. Vida Privada, Liberdade de imprensa e dano moral. Dissertação de
mestrado pela PUC/SP, 1996. p. 100.
388
CALDAS, Pedro Frederico. Vida Privada, Liberdade de imprensa e dano moral. Dissertação de
mestrado pela PUC/SP, 1996. p. 101.
247
excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito (artigo
5º, XXXV)”.389
E conclui que:
Assim, perante o caso concreto em que o jurisdicionado compareça a juízo
para requerer a cautela liminar judicial para prevenir ato da imprensa
atentatório à dignidade, traduzido em matéria que injustamente implique
violação e sua honra, imagem ou vida privada, caso venha ser editada,
caberá à autoridade judicial agir preventivamente, determinando a não
edição da matéria ou sua cessação na hipótese de já estar sendo
390
editada.
Adere a esta mesma opinião Cláudio Luiz Bueno de Godoy, constatando que,
“em matéria de tutela preventiva, não raro suscita a divergência com a aferição
sobre se ela, em algum instante, pode representar indevida censura à atividade da
imprensa”, se posicionando no sentido de que “todavia, a resposta a essa
indagação, com efeito, só pode ser negativa, a começar pela verificação, já
externada, de que a liberdade de expressão do pensamento não é direito
absoluto”391, com a conclusão de que
Isso não deve ser entendido como censura. Não se trata de, previamente e
de forma injustificada, obstar o exercício da liberdade de imprensa. Cuidase, antes, de garantir a própria função institucional que lhe é inerente. Não
faria sentido algum, por exemplo, permitir publicação ou programa que,
frise-se, de antemão, já se saiba falso ou sensacionalista, em nome da
preservação de um direito que não é absoluto e que, se indevidamente
exercido, causará danos irreparáveis. Sim, porque, como se sabe o dano
moral é daqueles que não comportam reparação ou restituição integral,
392
retorno completo à situação anterior.
Nessa senda, aliás, conforme a finalização do mesmo doutrinador “o novo
Código Civil, em boa hora, ao dispor sobre a tutela dos direitos da personalidade,
deferiu-a mesmo diante de ameaça, já, de lesão àqueles bens (art. 12)”.393
Na questão versando o controle preventivo do direito à palavra, colhe-se um
caso interessante da justiça da Inglaterra, decidindo-se que ônibus não é lugar para
anunciar tratamento para deixar de ser gay.394
389
CALDAS, Pedro Frederico. Vida Privada, Liberdade de imprensa e dano moral. Dissertação de
mestrado pela PUC/SP, 1996. p. 102.
390
CALDAS, Pedro Frederico. Vida Privada, Liberdade de imprensa e dano moral. Dissertação de
mestrado pela PUC/SP, 1996. p. 102.
391
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 99.
392
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 100.
393
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 101.
248
Uma juíza considerou que a liberdade de expressão garante a colocação de
ideias num debate saudável, mas não um anúncio ofensivo e ostensivo em
transporte público. Para a magistrada, a expressão, dessa forma, gera apenas
revolta e acentua o preconceito. A decisão foi anunciada no dia 22 de março de
2013 e validou a posição adotada pelo departamento de transporte de Londres no
ano passado, quando vetou propaganda de uma ONG anglicana.
A instituição religiosa queria comprar espaço nos ônibus londrinos de dois
andares para divulgar a seguinte frase: NOT GAY! EX-GAY, POST-GAY AND
PROUN. FET OVER IT! (tradução livre “Não gay! Ex-gay, pós-gay e orgulhoso.
Supere isso!”). A proposta da ONG era chamar a atenção para tratamento que ela
diz ser capaz de fazer uma pessoa deixar de ser homossexual. A ONG anglicana
conseguiu, inicialmente, que sua propaganda fosse aprovada. Pouco depois, no
entanto, foi informada de que a companhia de transporte de Londres tinha decidido
vetar o anúncio.
Ao analisar a reclamação da entidade religiosa, a juíza Beverley Lang, do
Tribunal Superior da Inglaterra, reconheceu que se tratava de interferência na
liberdade de expressão, direito garantido pela Convenção Europeia de Direitos
Humanos. A juíza, no entanto, explicou que esse direito não é absoluto e a própria
convenção europeia aceita como legítima interferência que atenda duas exigências:
esteja prevista em lei e seja necessária para garantir a liberdade de outros.
No caso do anúncio, a juíza considerou que o veto respeitou a política de
publicidade adotada pela companhia de transporte, e ponderou que, caso o outdoor
fosse autorizado, ele ofenderia boa parte da população e teria o potencial de
aumentar a discriminação contra os homossexuais, entendendo que um cartaz
pregado em um ônibus é muito mais invasivo do que qualquer outro tipo de
propaganda, já que não existe a possibilidade de trocar o canal, como acontece com
a televisão, ou virar a página da revista. A juíza ressaltou o direito de o grupo
expressar suas ideias sobre o homossexualismo, mas explicou que isso deve ser
feito dentro de um ambiente de debate construtivo, e não apenas com frases
publicitárias de efeito.
Veja-se, assim, que a impossibilidade de controle judicial prévio da atividade
da imprensa poderia até resvalar em concessões a ataques preconceituosos, com o
que não se pode coadunar.
394
Disponível em www.conjur.com.br. Acesso em 22 de março de 2013.
249
17.7 Nosso posicionamento
Com razão, não nos parece que a censura de natureza política, ideológica
ou artística (§ 2º do art. 220 da CF) possa abarcar a decisão judicial proferida em
processo movido por alguém que, de alguma forma, tome conhecimento de futura
veiculação de notícia injuriosa a seu respeito e promova ação com requerimento de
tutela de urgência visando que seja obstada a publicização do conteúdo inverídico.
Destarte, os posicionamentos exarados pelo Poder Judiciário não têm
conteúdo político, ideológico e muito menos artístico, de sorte que não se
subsumem à dicção posta no dispositivo constitucional em exame.
De outro turno, dentre os direitos fundamentais positivados na mesma
Constituição Federal está a inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV),
conferindo a cada cidadão a prerrogativa de acionar a justiça seja para reparar lesão
seja a fim de evitá-la, quando haja ameaça a direito.
Com efeito, não se concebe como possa o magistrado, diante do caso
concreto, verificar a demonstração de que haverá a divulgação de notícia, por
exemplo, manifestamente inverídica e difamatória contra alguém, e deixar de tomar
qualquer providência a título de preservar o direito de informação. Ora, mesmo à luz
do princípio da razoabilidade, isso é impensável!
É evidente que esta tarefa deve ser exercida excepcionalmente e com muita
cautela pelo juiz, responsável por constatar a verossimilhança da alegação de futura
veiculação de informação, como se disse, manifestamente, inverídica e injuriosa.
Mas, uma vez constatado este fato, outra solução não lhe resta senão a
concessão do provimento cautelar ou antecipatório e proibir a publicização da
notícia, com fundamento nos artigos 12 e 20 do Código Civil. Isso porque, ademais,
sabe-se que a reparação dos danos de ordem moral nunca pode às completas
apagar o enxovalhamento e a desmoralização de uma pessoa vitimada pela força da
imprensa, como se pode recordar pelo famoso caso da “Escola Base”.
E isso visa inclusive barrar posturas deliberadamente voltadas à ofensa de
terceiras pessoas por maus profissionais da imprensa, como de resto existentes em
todas as carreiras, autorizando a intervenção judicial prévia, como se disse, com
cautela e em ambiente excepcional.
250
18 DANOS MORAIS E PUNITIVE DAMAGES NO CONFLITO ENTRE O DIREITO À
PRIVACIDADE E O DIREITO DE IMPRENSA NO BRASIL E NOS EUA
18.1 Noções Gerais
A respeito do atual embate entre os direitos à privacidade e o direito de
informar por meio das novas modalidades tecnológicas, especialmente a internet,
nos Estados Unidos, apenas pelo nome, duas obras sobre o assunto dão a exata
noção do problema nos dias em curso: uma se chama The computer invasion, de
Craig T. Norback, 1981; e a outra foi denominada Uncle Sam is watching you, de
Alan Barth, 1971.
Destarte, as últimas décadas ficaram marcadas por grandes mudanças na
sociedade em virtude da evolução da ciência e da tecnologia, bem como, por
consequência, dos meios de informação, e em muitos aspectos esse fato simplificou
a vida das pessoas, especialmente quanto à facilidade da comunicação, com a
agilidade na troca de informações, especialmente após o advento da internet.395
No entanto, estas mesmas facilidades trouxeram situações que em outros
tempos não geraram grandes preocupações, como o desrespeito hoje corriqueiro à
privacidade das pessoas, através da utilização dos mais avançados recursos de
comunicação.396
Nesse cenário, as constituições e legislações dos países têm procurado se
adaptar à mencionada nova problemática, buscando meios de, ao mesmo tempo,
garantir o direito à informação e impedir a violação do direito de privacidade do
cidadão.397
Lembre-se que num Estado Democrático de Direito que se alicerça na
dignidade da pessoa humana, a reserva da vida privada se apresenta como cláusula
pétrea. Nesse particular, dispõe a Constituição Federal, em seu artigo 5º, que é livre
a manifestação do pensamento (inciso IV), mas são invioláveis a intimidade, a vida
privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo
dano material ou moral decorrente de sua violação (inciso X).398
395
SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista
Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 186.
396
Ibid., p. 186.
397
Ibid., p. 186.
398
Ibid., p. 186.
251
Vale, para se demonstrar a relevância do tema em exame, recordar do caso
que se perpetuou com a denominação “Escola Base”, em que o casal de
proprietários foi exposto em praticamente todos os veículos de imprensa como tendo
cometido crimes sexuais contra as crianças que estudavam naquela instituição de
ensino, mas depois vieram a ser declarados inocentes pela justiça criminal.399
É nesse contexto que se põe o presente estudo, visando saber, diante desse
quadro constitucional de proteção da privacidade das pessoas e à liberdade de
manifestação do pensamento, qual dos dois interesses prevalecerá quando
entrarem em colisão, a qual se tornou inevitável em virtude do crescimento da
atividade da imprensa.400
Isso porque, ao mesmo tempo em que a privacidade pode ser exercida por
meio da livre expressão de pensamento, esta pode ser usada para atacar aquela,
numa constante tensão entre os dois direitos.401
Relevante dizer que toda a ponderação acerca da colidência dos
mencionados direitos à privacidade e à informação será examinada à vista dos
princípios da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade, orientadores de
toda a hermenêutica constitucional, tratando-se de valiosos instrumentos de
proteção dos direitos fundamentais, sobretudo porque propiciam a aplicação do
Direito à luz de cada um dos casos concretos postos para julgamento, sem espaço
para perigosas generalizações.402
18.1.1 Conceito e conteúdo do direito à privacidade
Como visto, a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso X, declarou
invioláveis a honra, a imagem, a vida privada e a intimidade das pessoas. Como se
vê pelo texto do citado dispositivo, são distintos os direitos à intimidade, à vida
privada, à honra e à imagem das pessoas, porém todos integram o chamado direito
à privacidade, fórmula genérica adotada por José Afonso da Silva, significando “o
conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu
399
Ibid., p. 186.
Ibid., p. 186.
401
MOORE, Adam D. Privacy rigths – moral and legal foundations. University Park: The
Pennsylvania State University Press, 2010. p. 134.
402
SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista
Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 186.
400
252
exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que
condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito”.403
O direito à privacidade situa-se dentre os direitos da personalidade, também
denominados direitos da pessoa ou direitos personalíssimos.404 Na definição de
Adriano de Cupis, os direitos da personalidade, por serem essenciais, são direitos
inatos, inerentes a cada pessoa, que, como tal, nasce provida desse bem, o qual
consiste em, querendo, subtrair-se à publicidade para recolher-se na própria
reserva.405
Luiz Olavo Baptista afirma que a privacidade de uma pessoa “possibilita que
se tenha um retrato ou perfil de sua personalidade pessoal, familiar e social”. 406 No
mesmo sentido segue Manoel Gonçalves Ferreira Filho, para quem a privacidade
pode se traduzir pela “vida em ambiente de convívio, no interior de um grupo
fechado e reduzido, normalmente, ao grupo familiar”.407
Entretanto, a privacidade não foi um valor expressamente reconhecido e
protegido pela legislação dos séculos passados, vindo a ser citada nas disposições
legais somente a partir do final do século XX e início do século XXI, como, por
exemplo, no artigo 21 do Código Civil brasileiro de 2002408: “A vida privada da
pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as
providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma”.
Nos Estados Unidos, a expressão “direito de ser deixado só” foi insculpida em
1888 pelo juiz Thomas Cooley, já prevendo que as invenções e as novas práticas do
mercado iriam exigir uma proteção legal que garantisse a privacidade dos
indivíduos. Depois da leitura do conceito dado pelo magistrado estadunidense,
parece não pairar qualquer dúvida sobre o significado do direito à privacidade,
podendo ser resumido no interesse que tem uma pessoa de não ser perturbada.
Segundo Amaro Moraes e Silva Neto, “[...] as Constituições modernas preconizam
403
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004. p.
205.
404
GRECO, Marco Aurélio. Direito e internet: relações jurídicas na sociedade informatizada. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. p. 46.
405
CUPIS, Adriano de. Os direitos da personalidade. Tradução de Adriano Vera Jardim; Antonio
Miguel Caeiro. Lisboa: Morais, 1961. p. 15.
406
BAPTISTA, Luiz Olavo. (Coord.). Novas fronteiras do Direito na informática e telemática. São
Paulo: Saraiva, 2001. p. 225.
407
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição brasileira de 1988. São
Paulo: Saraiva, 1997. v. 1, p. 35.
408
SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista
Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 187.
253
esse mesmo ideal, e, de uma forma ou de outra, com as mesmas palavras ou
sinônimos, sempre acabam repetindo as ideias de Cooley”.409
Posteriormente, em 1928, o juiz Louis D. Brandeis e o advogado Samuel
Warren, também estadunidenses, conceituaram privacidade como a ideia de estar
só, o direito de ser deixado só.410 As ideias transmitidas por Warren e Brandeis
influenciaram diretamente todos os pensadores e doutrinadores do nosso tempo que
se debruçaram sobre o assunto.
Segundo Daniel J. Solove e Paul M. Schwartz, há uma significante quantidade
de leis regulamentando a privacidade nos Estados Unidos e ao redor do mundo, e
isso é relativamente novo.411 Segundo eles, em nossa Era da Informação,
privacidade é uma questão de primordial importância para a liberdade, para a
democracia e para a segurança412, por isso é que se tornou uma prioridade na
agenda legislativa do Congresso Nacional e em muitas legislaturas estaduais
daquele país.413 Assim, referem, nos Estados Unidos, o direito de privacidade é
protegido por um corpo de normas constituído pelos precedentes do common law,
pelo Direito Constitucional, pelo Direito Estatutário e ainda pelas normas aplicáveis
do Direito Internacional.414 E, embora a Constituição dos Estados Unidos não
mencione especificamente a privacidade, há inúmeros dispositivos que a protegem,
por meio de uma interpretação sistemática e teleológica que se dê a eles, como, por
exemplo, a primeira emenda.415
Assim,
repita-se,
mesmo
a
palavra
privacidade
não
aparecendo
expressamente na Constituição americana, perguntado a qualquer americano a esse
respeito, você ouvirá que este é um direito absoluto dos cidadãos daquele país.416
Nesse senti, noticia Edson Ferreira da Silva que os vizinhos de uma pessoa
na Califórnia desconfiaram que houvesse tóxicos na sua lata de lixo; a polícia foi
acionada, constatou o fato e os viciados foram condenados; entretanto, a Suprema
409
SILVA NETO, Amaro Moraes e. Privacidade na internet – Um enfoque jurídico. São Paulo:
Edipro, 2001. p. 22.
410
Ibid., p. 20.
411
SOLOVE, Daniel J.; SCHWARTZ, Paul M. Privacy, information, and technology. New York:
Aspens Publishers, 2009. p. 1.
412
Ibid., p. 2.
413
Ibid., p. 2.
414
Ibid., p. 10.
415
.
Ibid., p. 3
416
ALDERMAN, Ellen; KENEDDY, Caroline. The rigth to privacy. New York: Alfred A. Knopf, 1995. p.
13.
254
Corte daquele Estado, entendendo que a lata de lixo constituía um apêndice da
economia doméstica, reformou a sentença porque a coleta da prova teria atentado
contra o direito à intimidade.417
Com razão, os dados da opinião pública sugerem que a maioria dos
americanos dá relevante papel à proteção de sua privacidade no dia a dia de suas
vidas.418
Privacidade no seu maior sentido é ter controle de suas próprias ações e
informações419, e é um direito que requer espaço420, sendo que uma boa reputação
é valiosa e é certamente um interesse que o Direito Civil-Constitucional americano
protege com vigor.421
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 12, dispõe que:
Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na família, no
seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e
reputação. Contra tais intromissões, ou ataques, toda pessoa tem direito à
proteção da Lei.
O tratamento da privacidade do homem começou a ser examinado sob nova
ótica devido às mudanças políticas, sociais e econômicas verificadas especialmente
no mundo ocidental a partir do século XIX, sobretudo em virtude dos reflexos da
Revolução Industrial, que culminou, no fim do século XX, com a disseminação das
tecnologias de tratamento da informação e comunicação, gerando a necessidade da
adequação das legislações aos novos direitos, resultando em que a privacidade
passasse a ser objeto de estudo mais acurado pelos juristas.
Diversas foram as conquistas individuais do homem ocidental nos últimos
séculos, com destaque para aquelas defendidas pelos ideólogos da Revolução
Francesa, no século XVIII, pois “[...] era necessário garantir eficazmente os direitos
naturais dos indivíduos contra os abusos do poder”. 422 Nesse sentido, a necessidade
de se proteger a vida privada surgiu da conflitante relação entre o indivíduo e a
417
SILVA, Edson Ferreira da. O direito à intimidade. Dissertação de Mestrado pela PUC/SP, 1996. p.
93.
418
CHAIRMAN, David F. Linowes. Personal privacy in an information society. Washington, D.C.:
US Government Printing Office, 1977. p. 5.
419
DOTY, William Aspray Philip. Privacy in America – Interdisplinary perspectives. Lanham: The
Scarecrow Press Inc., 2011. p. 114.
420
VETRI, Dominick et al. Tort law and practice. New Jersey: LexisNexis West, 2006. p. 1156.
421
GOLDBERG, John C.P.; ZIPURSKY, Benjamin C. Torts. New York: Oxford University Press, 2010.
p. 39.
422
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo. Tradução de Hermínio A.
Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 68.
255
sociedade. Afinal, “o interesse geral e os interesses particulares não podem ser
pesados na mesma balança”.423
Pode-se dizer, diante desse quadro, que, durante quase toda sua existência,
o homem pôde usufruir do seu direito de ser deixado só. Contudo, especialmente a
partir da segunda metade do século XX, sua privacidade passou a ser alvo de
constantes ataques, em virtude do avanço da tecnologia, sobretudo pelos meios
impressos de comunicação, do rádio e da televisão.
Enfim, nas últimas duas décadas, defrontamo-nos com a talvez maior
mudança social de todos os tempos: o desrespeito total à privacidade alheia, devido
à forma como os dados pessoais têm sido divulgados pelos meios de informação,
principalmente a internet.
Nesse cenário, não se discorda da ideia de que a revolução social em
andamento pode tornar impossível a reserva da privacidade de cada um.424
Segundo John L. Mills, palavras normalmente associadas à privacidade são
independência, liberdade, autonomia, individualidade, dignidade e abstenção de
intrusão425, interesses cada vez mais colocados à prova, como se verifica pelo
próprio título da obra do citado autor, denominada Privacy the lost right.
18.1.2 Conteúdo e conceito do direito à palavra
O direito à palavra, considerado como o interesse em informar, coincidindo
com a liberdade de manifestação do pensamento, por escrito ou por qualquer outro
meio de difusão, vem previsto, inicialmente, no inciso IV, do artigo 5º, da
Constituição Federal.
José Afonso da Silva afirma que “a liberdade de informação compreende a
procura, o acesso, o recebimento e a difusão de informações ou ideias, por qualquer
meio, e sem dependência de censura, respondendo cada qual pelos abusos que
cometer”.426
423
DAVID, René. Os grandes sistemas do Direito Contemporâneo. Tradução de Hermínio A.
Carvalho. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 67.
424
MCCLELLAN, Grant S. The right to privacy. New York: The H.W. Wilson Company, 1976. v. 48, n.
1, p. 11.
425
MILLS, John L. Privacy the lost right. New York: Oxford University Press, 2008. p. 4.
426
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2004. p.
205.
256
Para Rosângelo Rodrigues de Miranda, “a liberdade de informação é
pressuposto fundamental para garantir-se o direito ao resguardo da vida privada”.427
A respeito, leciona Celso Ribeiro Bastos que “a liberdade de expressão de
pensamento é tida por uma das mais importantes” e “talvez por isto mesmo seja das
que maior número de problemas levanta”.428
Consta na Declaração dos Direitos do Homem:
Art. 11. A livre comunicação dos pensamentos e das opiniões é um dos
direitos mais preciosos do homem; todo cidadão pode, pois, falar, escrever,
exprimir-se livremente, sujeito a responder pelo abuso desta liberdade nos
casos determinados pela lei.
No tocante à liberdade de pensamento, defende-se que ninguém pode ser
obrigado a pensar de forma diferente de sua convicção, incluindo-se, ainda, o direito
de não manifestá-lo, mantendo-se o pensamento a respeito do que quer que seja
em segredo.
A informação, para Pietro Perlingieri “em uma sociedade democrática,
representa o fundamento da participação do cidadão na vida do País e, portanto, do
próprio correto funcionamento das instituições”.429
É sabido que o homem não se conforma em simplesmente poder ter as
opiniões que quiser. Ele necessita também do aval da sociedade, através da lei,
para ter liberdade de exprimir suas crenças e opiniões, buscando inclusive a
persuasão e a adesão de outros indivíduos às suas ideias.
E é daí que surge a necessidade da proteção e da regulamentação jurídica
para a livre manifestação dos pensamentos, inserindo-se, nesse quadro, o
regramento jurídico dos meios de comunicação, da imprensa, das telecomunicações
e até da correspondência.430
Isso porque, segundo Rui Stoco, “o ser humano é um ser político e, como tal,
integra-se na sociedade, dela sendo célula e parte integrante e nela interferindo e
recebendo eflúvios interferentes” e “do estrato social politicamente organizado
recebe concessões ou direitos e a ele compromete-se com obrigações”.431
427
MIRANDA, Rosângelo Rodrigues de. A proteção constitucional da vida privada. Dissertação de
Mestrado. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1996, p. 142.
428
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 187.
429
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direito Civil Constitucional. Tradução
de Maria Cristina De Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 186.
430
BASTOS, op. cit., p. 187.
431
STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2007. p. 1.661.
257
Nos Estados Unidos, como no resto do mundo, a informação é o lifeblood da
sociedade de hoje, o que, numa tradução livre, seria o seu sangue vital. 432
E, como aqui no Brasil, lá no país da América do Norte, a legislação federal,
mais que a local ou estadual, é mais importante para questões envolvendo
privacidade em sistemas de computador e comunicações computadorizadas, já que
os dados eletrônicos atravessam as linhas dos Estados.433
E, nesse contexto, a internet foi uma das primeiras áreas de comunicação em
que o governo federal americano regulou o direito de privacidade 434, enquanto, por
aqui, ainda se aguarda a edição do chamado Marco Civil da Internet, não se sabe
até quando, que já teve sua votação adiada no Congresso Nacional brasileiro por
mais de seis vezes.
18.1.3 A colisão entre os direitos à privacidade e à palavra
Põe-se debate antigo e polêmico: o direito à privacidade colocado em choque
com o direito à palavra. Trata-se de verdadeiro conflito de direitos constitucionais
individuais. Alguém pretende informar algum fato relativo a outrem – direito esse
previsto no inciso IV do artigo 5º da Constituição Federal. O sujeito da notícia
pretende que ela não seja tornada pública, a fim de preservar sua privacidade –
direito esse previsto no inciso X, também do artigo 5º, da Constituição Federal.435
Como se vê, qualifica-se o mencionado conflito de direitos por serem ambos
previstos na Constituição Federal, de maneira que a preservação dos dois
interesses em dadas situações concretas não conta com solução simples. Por
vezes, um deverá sucumbir ao outro: ou será preservado o direito à informação ou
será preservado o direito à privacidade.436
As regras tradicionais de solução de conflitos de normas (norma de hierarquia
superior derroga norma de hierarquia inferior; norma especial derroga norma geral; e
norma mais nova derroga norma mais antiga) não são suficientes para a solução do
problema proposto, dado que os dois direitos em questão são previstos na mesma
432
SOLOVE, Daniel J.; SCHWARTZ, Paul M. Privacy, information, and technology. New York:
Aspens Publishers, 2009. p. 1.
433
HENDERSON, Harry. Privacy in the information age. New York: Facts On File, Inc., 1999. p. 52.
434
WITH, Andrew B. Serwin; MCLAUGHLIN, Peter F.; TOMASZEWSKI, John P. Privacy, security
and Information Management: an overview. Chicago: American Bar Association, 2011. p. 13.
435
SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista
Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 190.
436
Ibid., p. 190.
258
Constituição Federal, valendo dizer ainda que constam de dois incisos inseridos
dentro de um mesmo artigo, dentro de um mesmo capítulo, dentro de um mesmo
título (Dos Direitos e Garantias Fundamentais).437
É o que Maria Helena Diniz denomina de incompletude dos meios de solução
das antinomias jurídicas, fenômeno que ocorre quando:
[...] em que pese à existência de critérios para a solução dos conflitos
normativos e das antinomias de segundo grau, há casos em que se tem
lacuna das regras de resolução desses conflitos, ante o fato daqueles
critérios não poderem ser aplicados, instaurando-se uma incompletude dos
438
meios de solução e uma antinomia real.
Nota-se, então, a dificuldade para se decidir no caso concreto qual dos dois
interesses prevalecerá – se o direito do indivíduo que pretende informar algum fato
relativo a outrem ou se o direito do sujeito da notícia em preservar sua privacidade.
Os constitucionalistas Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Júnior
denominaram esta situação de limitabilidade dos direitos fundamentais, significando
que o comando de sua aplicação concreta não pode resultar na aplicação da norma
jurídica em toda a sua extensão e alcance.439
Segundo os citados constitucionalistas, apresenta-se a seguinte solução para
a colisão dos direitos fundamentais: a regra de solução do conflito é da máxima
observância dos direitos fundamentais envolvidos e da sua mínima restrição
compatível com a salvaguarda adequada de outro direito fundamental ou outro
interesse constitucional em causa.440
Sobre a questão, Alexandre de Moraes afirma que:
Dessa forma, quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou
garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da
concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar
os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação
aos outros, realizando uma redução proporcional do âmbito de alcance de
cada qual (contradição dos princípios), sempre em busca do verdadeiro
significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas
441
finalidades precípuas.
437
Ibid., p. 190.
DINIZ, Maria Helena. Conflito de normas. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 53.
439
ARAÚJO, Luiz Alberto; NUNES, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2001. p. 81.
440
Ibid., p. 82.
441
MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2006. p. 28-29.
438
259
Tem-se, assim, que a melhor doutrina constitucional propõe que o conflito de
direitos fundamentais seja resolvido de maneira harmônica, respeitando-se no caso
concreto a máxima efetivação possível e mínima restrição de cada um deles.442
Ocorre que, por vezes, a solução genérica proposta pela doutrina
simplesmente não tem aplicação em muitas das lides forenses. E, ao que parece, o
próprio José Joaquim Gomes Canotilho compartilha desta ideia, ao afirmar que:
Os exemplos anteriores apontam para a necessidade de as regras do direito
constitucional de conflitos deverem construir-se com base na harmonização
de direitos, e, no caso de isso ser necessário, na prevalência de um direito
ou bem em relação a outro. Todavia, uma eventual relação de prevalência
só em face das circunstâncias concretas e depois de um juízo de
ponderação se poderá determinar, pois só nestas condições é legítimo dizer
que um direito tem mais peso que outro, ou seja, um direito prefere outro
443
em face das circunstâncias do caso.
A questão recentemente esteve na ordem do dia referente à publicação da
biografia do cantor Roberto Carlos, sem autorização deste. O artista ajuizou ação
civil perante a Justiça do Estado do Rio de Janeiro se insurgindo contra a
publicação, requerendo a antecipação dos efeitos da tutela para que fossem
interrompidas a publicação, a distribuição e a comercialização do livro, tendo o
processo tomado o número 2007.001.006607-2 da 20ª Vara Cível central carioca. O
magistrado deferiu a antecipação de tutela, valendo-se dos seguintes fundamentos:
A biografia de uma pessoa narra fatos pessoais, íntimos, que se relacionam
com o seu nome, imagem e intimidade e outros aspectos dos direitos da
personalidade. Portanto, para que terceiro possa publicá-la, necessário é
que obtenha a prévia autorização do biografado, interpretação que se extrai
do artigo 5º, inciso X, da Constituição da República, o qual dispõe serem
invioláveis a intimidade, a vida privada e a imagem das pessoas. No mesmo
sentido e de maneira mais específica, o artigo 20, caput, do Código Civil/02,
é claro ao afirmar que a publicação de obra concernente a fatos da
intimidade da pessoa deve ser precedida da sua autorização, podendo, na
sua falta, ser proibida se tiver idoneidade para causar prejuízo à sua honra,
boa fama ou respeitabilidade. Registre-se, nesse ponto, não se
desconhecer a existência de princípio constitucional afirmando ser livre a
expressão da atividade intelectual e artística, independentemente de
censura ou licença (inciso IX do mesmo artigo 5º). Todavia, entrecruzados
esses princípios, há de prevalecer o primeiro, isto é, aquele que tutela os
direitos da personalidade, que garante à pessoa a sua inviolabilidade moral
e de sua imagem (negritamos).
442
SOUZA, Wendell Lopes Barbosa de. Reserva da privacidade e o direito à palavra. Revista
Mestrado em Direito, Osasco, n. 1, jan./jul. 2011, p. 191.
443
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina,
2007. p. 1.274.
260
Veja-se que acima o magistrado carioca decidiu pela prevalência do direito à
privacidade, enquanto abaixo, em caso análogo, outro Eminente Magistrado, quando
ainda Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, hoje o Desembargador
aposentado Pedro Gagliardi, decidiu pela preservação do direito à informação:
No cotejo entre o direito à honra e o direito de informar, temos que este
último prepondera sobre o primeiro. Porém, para que isto ocorra, necessário
verificar se a informação é verídica e o informe ofensivo à honra alheia
inevitável para a perfeita compreensão da mensagem [...]. Nesse contexto,
que é onde se insere o problema proposto à nossa solução, temos as
seguintes regras: 1ª – o direito à informação é mais forte do que o direito à
honra; 2ª – para que o exercício do direito à informação, em detrimento da
honra alheia, se manifeste legitimamente, é necessário o atendimento de
dois pressupostos: a informação deve ser verdadeira e inevitável para
passar a mensagem (RJDTACrimSP, 17:206-9).
Para Cláudio Luiz Bueno de Godoy, o “primeiro ponto que se entende
fundamental ao exame da questão está na consideração de que não relação de
hierarquia entre os direitos mencionados, não sendo nenhum deles considerados
absolutos”444, tratando-se “de direitos de igual dignidade constitucional”.445
Acerca desses direitos constitucionais, de igual hierarquia, afirma “forçoso
observar inexistir qualquer ordem cronológica de sua previsão normativa, de sorte a
permitir que um possa ser considerado derrogatório do outro”.446
Da mesma maneira, “nenhum desses mesmos direitos contempla previsão
especial, que, por essa especialidade, sirva a derrogar outro, de conteúdo geral”.447
Então, “não se tem em vista o fenômeno da simples antinomia aparente de
normas”, mas “está-se, em verdade, diante de antinomia real de normas”448, e “não
há, como visto, possível aplicação daqueles critérios de solução da antinomia
aparente”.449
444
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 56.
445
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 56.
446
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 60.
447
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 60.
448
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 61.
449
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 62.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
261
De acordo com o mesmo Cláudio Luiz Bueno de Godoy, “no caso da
antinomia de que ora se cuida, o critério equitativo vem-se exteriorizando em um
juízo de ponderação”, “cuidando-se de, na hipótese concreta, ponderar as
circunstância que, afinal, venham a determinar a prevalência de um ou outro direito
– é a técnica do ad hoc balancing, ou a doutrina do balancing”.450
Mas alerta que “essa doutrina nem sempre passou imune a críticas, como,
por exemplo, que poderia esse juízo representar um perigo na relação entre
preceitos constitucionais”.451
E pondera que “um fato é certo e deve ser reconhecido, inexiste qualquer
standard ou modelo especifico pré-concebido, ou mesmo qualquer regra que
tipifique o que vem a ser este juízo equitativo”452, concluindo que:
É preciso verificar-se, no caso concreto, o sacrifício da privacidade de uma
pessoa se impõe diante de determinada informação ou manifestação que,
de alguma forma, se faça revestida de interesse social, coletivo sem o que
453
não se justifica a invasão da esfera intima ou moral do indivíduo.
Assim, “ao juízo de ponderação, importa a aferição sobre se com a
informação almeja-se a prossecução de um fim legítimo, a ser atingido por meios
idôneos, no sentido de que necessários e adequados, como consequência
verificando-se ainda se presente o dever de verdade e cautela do jornalista”.454
Quanto à questão do político, aduz que este “gere coisa pública ou representa
vontade popular”, agindo, destarte, “em nome e no interesse da coletividade. Sua
atividade se desenvolve de forma pública, sob a fiscalização da sociedade, para o
que, é evidente, necessário que mais se amplie a possibilidade de limitações a seus
direitos da personalidade, sem anulá-los, é certo”.455
450
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 62.
451
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 63.
452
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 64.
453
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 65.
454
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 67.
455
GODOY, Claudio Luiz Bueno de.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 70.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
262
E “da mesma forma que os políticos, há pessoas que, por sua notoriedade,
em qualquer campo – econômico, artístico, desportivo e cultural – igualmente vem
sua esfera de privacidade reduzida”.456
Mas, “mesmo as pessoas públicas e notórias devem estar a salvo da
perseguição sensacionalista, lamentavelmente de ocorrência não tão rara nos dias
que correm”.457
E, por fim, “quanto ao fato de pessoas comuns quando retratadas em locais
públicos, insta examinar se o indivíduo, tal como retratado, se fez incerto no contexto
do cenário”, e “para que não prevaleça o direito à privacidade não pode haver por
parte da imprensa a individualização da pessoa, ou, em outros termos, a imagem do
indivíduo deve ser uma ‘paisagem de fundo’”.458
18.1.4 Exame do conflito à luz dos princípios da dignidade da pessoa humana e da
proporcionalidade
O princípio da dignidade da pessoa humana, conforme nos dá conta a
Professora Anna Cândida da Cunha Ferraz, “alicerça uma série de limitações
restritivas à atuação dos poderes e da sociedade e é o valor inspirador de um
grande
número
de direitos especificados no núcleo
central dos direitos
fundamentais”,459 tendo “tido assento em várias decisões proferidas pelo Supremo
Tribunal Federal, fundamentando e informando a interpretação de uma enorme
gama de diferentes direitos presentes no texto constitucional”.460
No que toca ao tema tratado neste estudo, o princípio da dignidade da pessoa
humana, como não poderia deixar de ser, tem especial relevo, na medida em que
“tem desdobramentos no art. 5º da Carta Magna, sendo de salientar-se, para os
efeitos deste estudo, seu inciso X, que regulamenta, dentre outros, o direito
456
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 71.
457
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 73.
458
GODOY, Claudio Luiz Bueno de. A liberdade de imprensa e os direitos da personalidade. 2 ed.
São Paulo: Atlas, 2008. p. 76.
459
FERRAZ, Anna Cândida da Cunha. Aspectos da positivação dos direitos fundamentais na
Constituição de 1988. Osasco: Edifieo, 2006. p. 132.
460
Ibid., p. 132.
263
fundamental da pessoa de ter sua intimidade e sua vida privada invioladas”, 461 no
dizer da Professora Débora Gozzo.
Já o princípio da proporcionalidade funciona “como a medida com que uma
norma deve ser interpretada no caso concreto para a melhor realização do fim
constitucional nela embutido ou decorrente do sistema”.462
Insta, por primeiro, esclarecer alguma dúvida que possa pairar acerca da
nomenclatura do princípio em análise. Luís Roberto Barroso, não obstante
reconhecer que o princípio da razoabilidade tem origem no Direito anglo-saxão e o
princípio da proporcionalidade no Direito alemão, emprega os termos de modo
fungível, abrigando “os mesmos valores subjacentes de racionalidade, justiça,
medida adequada e senso comum”463, sendo, por essa razão, “conceitos próximos o
suficiente para serem intercambiáveis”464, mesmo deixando isento de dúvidas o fato
de que a equivalência por ele propugnada não é assente na totalidade da doutrina.
De qualquer modo, segundo Robert Alexy465, a máxima da proporcionalidade
resulta no fundo da própria essência dos direitos fundamentais. Para ele, a máxima
da proporcionalidade em sentido estrito, é dizer, o mandado de ponderação, se
segue da relativização com respeito às possibilidades jurídicas; se uma norma de
direito fundamental com caráter de princípio entra em colisão com um princípio
oposto, então a possibilidade jurídica da realização da norma de direito fundamental
depende do princípio oposto; para chegar a uma decisão, é necessária uma
ponderação no sentido da lei de colisão; como a aplicação de princípios válidos,
quando devidos, está ordenada e como para a aplicação no caso de colisão se
requer uma ponderação, o caráter de princípio das normas fundamentais implica
que, quando entram em colisão com princípios opostos, está ordenada uma
ponderação.
Para Alexy, agora citado por Gilmar Ferreira Mendes, a ponderação se realiza
em três planos. Começa-se por definir a necessidade da intervenção. Depois, devese saber da importância dos fundamentos justificadores da intervenção. Por fim,
461
GOZZO, Débora. Dignidade humana, inseminação artificial heteróloga e contestação de
paternidade. Osasco: Edifieo, 2006. p. 218-219.
462
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2008.
p. 373.
463
Ibid., p. 373.
464
BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. São Paulo: Saraiva, 2008.
p. 373.
465
ALEXY, Robert. Teoría de los derechos fundamentales. Madri: Centro de Estudos Políticos y
Constitucionales, 2002. p. 112.
264
realiza-se a ponderação sem sentido estrito. Enfatiza-se que o postulado da
proporcionalidade em sentido estrito pode ser formulado como uma lei de
ponderação, segundo a qual, “quanto mais intensa se revelar a intervenção em um
dado direito fundamental, mais significativos ou relevantes hão de ser os
fundamentos justificadores dessa intervenção”.466
Não obstante sua ausência expressa na Constituição Federal, o princípio da
proporcionalidade, decorrente seja da própria noção de Estado Democrático de
Direito seja do princípio da isonomia, assegura as primordiais finalidades do
constitucionalismo, quais sejam, a proteção da liberdade, a contenção dos poderes e
o resguardo dos direitos fundamentais.467
Dito isso, impõe-se mencionar que “o princípio da proporcionalidade vem
sendo utilizado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal como instrumento
para solução de colisão entre direitos fundamentais”, conforme dá conta o Ministro
Gilmar Ferreira Mendes468 que, com relação especialmente ao tema abordado neste
estudo, anota que:
No que refere à tensão entre a liberdade de expressão e de crítica e o
direito à honra e à intimidade, existe, no Supremo Tribunal Federal,
precedente que reconhece a possibilidade de diferenciações, consideradas
as diferentes situações desempenhadas pelos eventuais envolvidos. Assim,
admite-se, tal como na jurisprudência de outros países, que se estabeleçam
critérios diversos para aferição de possível lesão à honra, tendo em vista a
469
maior ou a menor exposição pública das pessoas.
Tratava-se do exame do habeas corpus nº 78.426-6-SP, de relatoria do
Ministro Sepúlveda Pertence, assentando-se que: ao decidir-se pela militância
política, o homem público aceita a inevitável ampliação do que a doutrina italiana
costuma chamar de zona de iluminabilità, resignando-se a uma maior exposição de
sua vida e de sua personalidade aos comentários e à valoração do público, em
particular, dos seus adversários.
466
ALEXY, 1998, apud MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de
constitucionalidade. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 94.
467
TAVARES, André Ramos. Direito constitucional brasileiro concretizado. São Paulo: Método,
2006, p. 73.
468
MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos fundamentais e controle de constitucionalidade. São Paulo:
Saraiva, 2004. p. 67.
469
Ibid., p. 104.
265
18.1.5 Nosso posicionamento sobre a referida colisão de direitos fundamentais
Parece-nos que a solução da máxima aplicação e da mínima restrição dos
direitos constitucionais em conflito não tem, em algumas situações, idoneidade para
resolver os problemas colocados no dia a dia forense.
Realmente, a vida do dia a dia forense nos traz grande inquietude acerca
dessa propagada solução harmônica quando da ocorrência de um conflito entre
direitos fundamentais. Isso porque não cremos na viabilidade desta solução em
grande parte dos problemas que são colocados para julgamento.
Data venia, não significa muito afirmar que um dos direitos em choque deve
ter a máxima aplicação com a mínima restrição do outro. Ora, isso é impossível em
muitos casos concretos, não havendo como restringir “um pouco” um dos direitos.
Por exemplo, no conflito em exame neste trabalho, ou haverá a possibilidade de
informar sobre a vida alheia ou o sujeito da informação conseguirá a proibição da
publicação da notícia. Em determinado momento, haverá necessidade de se ter uma
posição fechada sobre o assunto, de um lado ou de outro.
Imagine-se a hipótese de o sujeito da notícia ajuizar uma ação pedindo que
seja proibida a veiculação da informação. O juiz não poderá – nem terá como –
produzir uma sentença que acolha em parte o pedido. Como se diz, “o martelo vai
ser batido” para um lado ou para o outro. O magistrado deverá julgar procedente ou
improcedente o pedido, proibindo ou liberando a publicação da notícia.
No caso, por exemplo, da questão da biografia do cantor Roberto Carlos, o
magistrado fluminense teria que tomar uma decisão absolutamente contemplativa de
um direito ou de outro. Ou proibia a veiculação da biografia do cantor, preservando
no todo o direito à privacidade, ou liberava a publicação do livro, contemplando em
absoluto o direito à informação. Não havia solução intermediária, sendo inviável a
máxima aplicação de um direito com a mínima restrição de outro.
Pensamos que a verdadeira solução é a seguinte o julgador deve decidir no
caso concreto qual dos direitos deverá prevalecer em detrimento do outro. Qualquer
outra proposta de equacionamento conciliatório está, data maxima venia,
procurando encontrar um caminho inexistente para a solução da problemática, que
só pode ser resolvida por um método, qual seja, a decisão judicial, que deve ser, por
óbvio, fundamentada numa ponderação entre os princípios da proteção da dignidade
da pessoa humana e da livre imprensa.
266
18.2 A Questão nos Tribunais Brasileiros
18.2.1 No Tribunal de Justiça de São Paulo
Basicamente, quando da colisão entre o direito à privacidade e o de imprensa,
como se viu, duas podem ser as tendências jurisprudenciais no assunto: a que
procura resguardar o direito de informação da imprensa e a que tende a proteger a
privacidade do sujeito da notícia.
Não é diferente a questão no Tribunal de Justiça de São Paulo, havendo farta
jurisprudência acolhedora do direito de imprensa, especialmente quando o sujeito da
notícia é uma pessoa pública, como um político, um artista ou até mesmo um
famoso esportista:
A notoriedade do artista, granjeada particularmente em telenovela de
receptividade popular acentuada, opera por forma a limitar sua intimidade
pessoal, erigindo-a em personalidade de projeção pública, ao menos num
determinado momento. Nessa linha de pensamento, inocorreu iliceidade ou
o propósito de locupletamento para, enriquecendo o texto, incrementar a
venda da revista. [...] cuida-se de um ônus natural, que suportam quantos,
em seu desempenho exposto ao público, vêm a sofrer na área de sua
privacidade, sem que se aviste, no fato, um gravame à reserva pessoal da
reclamante (JTJ/Lex 153/196-200, 197/198, Rel. Des. NEY ALMADA – TJSP).
Os políticos estão sujeitos de forma especial às críticas públicas, e é
fundamental que se garanta não só ao povo em geral larga margem de
fiscalização e censura de suas atividades, mas sobretudo à imprensa, ante
a relevante utilidade pública da mesma (JTJ 169/86, Rel. Des. MARCO
CESAR).
AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. MATÉRIA
JORNALÍSTICA SOBRE O AUTOR, EX- FUTEBOLISTA. I - Alegação de
que a matéria implicou em transtornos, vexames e sofrimentos morais. Não
reconhecimento. Abordagem, calcada em fatos noticiados por outros meios
de comunicação, em simetria com a realidade. Veiculação que encerra
análise crítica envolvendo uma pessoa pública, ex-jogador de futebol de
renome, que não vingou como empresário. Inexistência de ato ilícito
decorrente da veiculação a servir de lastro à condenação dos réus por
danos morais. II - Equívocos exibidos pela matéria. Conduta justificada, à
vista da natureza da atividade jornalística, que exige agilidade na
divulgação, franqueando-se pequenos erros de informação. SENTENÇA
REFORMADA.
APELO
PROVIDO
(Apelação
nº
910279638.2008.8.26.0000; Relator(a): Donegá Morandini; Comarca: Campinas;
Órgão julgador: 3ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento:
14/02/2012).
De outro turno, havendo excesso por parte daquele que propaga a notícia, as
indenizações são exemplarmente impostas pelo mesmo Tribunal de Justiça,
transcrevendo-se abaixo parte do acórdão relatado pelo Desembargador Elliot Akel,
267
por meio do qual o jornalista Jorge Reis dos Santos, conhecido como Jorge Kajuru,
foi condenado a indenizar em R$ 50 mil o governador de Goiás, Marconi Perillo
(PSDB), por dizer em programa de televisão que o político teria mandado violentar
sua ex-mulher:
Não se pretende, por certo, cercear a liberdade de manifestação de
pensamento e de informação, nem limitar o direito-dever dos órgãos de
comunicação de massa de denunciar os desmandos, de apontar os agentes
públicos desonestos ou arbitrários. O que não se pode admitir é que, em
nome do dever de informar, sejam lançadas “denúncias” sem a prévia
averiguação de sua seriedade e pertinência. No caso dos autos, não há
comprovação de que Isabela Pinheiro Mendes, ex-mulher do requerido,
tenha de fato sofrido ameaças e “tentativa de agressão” física a mando do
requerente. Insuficiente, para tanto, à evidência, o boletim de ocorrência de
fl. 107. Da mesma forma, não socorre ao réu a alegação de que os conflitos
entre as partes são públicos e notórios. A animosidade entre as partes,
embora patente, não tem o condão de afastar a responsabilidade do
requerido pelas declarações desabonadoras contra o autor. Os fatos
antecedentes ao evento de que aqui se trata não se afiguram relevantes a
ponto de legitimar a conduta do réu. Assim, demonstrados pelo requerente
o fato constitutivo de seu direito, a culpa do agente, o dano e o nexo de
causalidade entre o ato e o prejuízo, não há como eximir o requerido da
responsabilidade de indenizar. Impossível afirmar que as declarações do
réu não representaram, para o autor, profunda perturbação em suas
relações psíquicas, em sua tranquilidade, em seus sentimentos e afetos,
mormente se considerado o meio de difusão empregado (programa de
televisão exibido em rede nacional). E a indenização, em hipóteses como a
dos autos, tem de um lado a função compensatória, para a vítima, a fim de
agir com prudência, ética e bom senso no uso das palavras. Porém, deve o
quantum indenizatório ser fixado em termos razoáveis, “não se justificando
que a reparação venha a constituir-se em enriquecimento indevido, com
manifestos abusos e exageros, devendo o arbitramento operar com
moderação, proporcionalmente ao grau de culpa e ao porte econômico das
partes, orientando-se o juiz pelos critérios sugeridos pela doutrina e pela
jurisprudência, com razoabilidade, valendo-se de sua experiência e do bom
senso, atento à realidade da vida e às peculiaridades de cada caso.
Ademais, deve procurar desestimular o ofensor a repetir o ato” (REsp. nº
245.727/SE). Em tais circunstâncias, levando em consideração a gravidade,
a natureza e a repercussão da ofensa e a situação econômica do réu,
cabível fixar a indenização em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), com juros
de mora desde o evento danoso, por tratar-se de ilícito extracontratual
(Súmula nº 54 do STJ), e correção monetária a partir desta data. Apelação
nº 9102188-74.2007.8.26.0000, 1ª Câmara de Direito Privado.
18.2.2 No Superior Tribunal de Justiça
No Superior Tribunal de Justiça encontram-se expressivos julgados da visão
pertinente à plena legitimidade do direito de crítica fundado na liberdade
constitucional de comunicação, como se pode ver:
268
RESPONSABILIDADE CIVIL – DANO MORAL – [...] DIREITO DE
INFORMAÇÃO – “ANIMUS NARRANDI” - EXCESSO NÃO CONFIGURADO [...].
3. No que pertine à honra, a responsabilidade pelo dano cometido através
da imprensa tem lugar tão-somente ante a ocorrência deliberada de injúria,
difamação e calúnia, perfazendo-se imperioso demonstrar que o ofensor
agiu com o intuito específico de agredir moralmente a vítima. Se a matéria
jornalística se ateve a tecer críticas prudentes (“animus criticandi”) ou a
narrar fatos de interesse coletivo (“animus narrandi”), está sob o pálio das
“excludentes de ilicitude” [...], não se falando em responsabilização civil por
ofensa à honra, mas em exercício regular do direito de informação (REsp
719.592/AL, Rel. Min. JORGE SCARTEZZINI).
RESPONSABILIDADE CIVIL. MATÉRIAS JORNALÍSTICAS. ALEGAÇÃO
DE QUE ESPALHADOS BOATOS INVERÍDICOS DE RELACIONAMENTO
AFETIVO DE CANDIDATA ÀS VÉSPERAS DE ELEIÇÃO PRESIDENCIAL,
DE MODO A DESMORALIZÁ-LA. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE
PELO TRIBUNAL DE ORIGEM À DETIDA ANÁLISE DA PROVA.
IMPOSSIBILIDADE DE REEXAME, NOS TERMOS DA SÚMULA 7/STJ.
RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1 - Tratando-se de panorama fático
que se compõe de várias etapas de ocorrência, não pode este Tribunal
novamente analisar os fatos de modo a chegar à conclusão diversa da
conclusão do Tribunal de origem (Súmula 7/STJ). 2 - No caso de debate
fático-probatório complexo, envolvendo várias informações em variados
momentos, não se tem base fática segura, sobre a qual puramente valorar
conseqüências jurídicas, sem infringência da Súmula 7/STJ, diversamente
do que ocorre em precedentes atinentes a escrito incontroverso, que
encerre todo o manancial fático, de modo que inadmissível o reexame por
esta Corte. 3 - Diante da conclusão do Acórdão recorrido de que os boatos
que a Recorrente considera inverídicos e ofensivos foram por ela mesma
trazidos a debate ao responder, em debate público, a respeito de pergunta
genérica sobre relacionamento afetivo, não há como atribuir a notas
jornalísticas a ilícita disseminação de boatos, matéria, ademais, que não
pode ser discutida neste Tribunal sem nova análise de prova (Súmula
7/STJ). 4 - Fortes termos e expressões, que, em determinadas
circunstâncias, poderiam assumir conotação ofensiva autônoma por
extrapolarem
o
âmbito
da
matéria
jornalística,
não
se
desproporcionalizavam, no contexto do caso, de termos e expressões
também fortes, externados, no mesmo contexto, pela própria Recorrente. 5 Recurso Especial improvido. Processo: REsp 1235637/DF; RECURSO
ESPECIAL 2011/0025153-6; Relator(a): Ministro SIDNEI BENETI; Órgão
Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do Julgamento: 14/02/2012; Data
da Publicação: DJe 07/03/2012.
De outro lado, o direito de informar não pode contemplar a possibilidade de
ofensa, e a ilicitude dessa forma está sendo coibida por meios de julgados do
Superior Tribunal de Justiça como o que abaixo se transcreve, tratando-se do caso
referente ao ex-presidente Collor, chamado pela Revista Veja de “corrupto
desvairado”, rendendo-lhe uma indenização no valor de nada menos que meio
milhão de reais:
Ementa: DIREITO CIVIL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO MORAL.
PUBLICAÇÃO DE MATÉRIA JORNALÍSTICA OFENSIVA À HONRA.
MODIFICAÇÃO DO QUANTUM INDENIZATÓRIO EM SEDE DE RECURSO
ESPECIAL. ELEVAÇÃO NECESSÁRIA, COMO DESESTÍMULO AO
COMETIMENTO DE INJÚRIA. CONSIDERAÇÃO DAS CONDIÇÕES
269
ECONÔMICAS DOS OFENSORES, DA CONCRETIZAÇÃO POR
INTERMÉDIO DE VEÍCULOS DE COMUNICAÇÃO DE GRANDE
CIRCULAÇÃO E RESPEITABILIDADE E DAS CONDIÇÕES PESSOAIS DO
OFENDIDO. PREVALECIMENTO DE VALOR MAIOR, ESTABELECIDO
PELA MAIORIA JULGADORA EM R$ 500.000,00. 1 - Matéria jornalística
publicada em revista semanal de grande circulação que atribui a exPresidente da República a qualidade de “corrupto desvairado”. 2 - De rigor a
elevação do valor da indenização por dano moral, com desestímulo ao
cometimento da figura jurídica da injúria, realizada por intermédio de
veículos de grande circulação e respeitabilidade nacionais e consideradas
as condições econômicas dos ofensores e pessoais do ofendido, exPresidente da República, que foi absolvido de acusação de corrupção
cumpriu suspensão de direitos políticos e veio a ser eleito Senador da
República. 3 - Por unanimidade elevado o valor da indenização, fixado em
R$ 500.000,00 pelo entendimento da D. Maioria, vencido, nessa parte, o
voto do Relator, acompanhado de um voto, que fixavam a indenização em
R$ 150.000,00. 4 - Recurso Especial provido para fixação do valor da
indenização em R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais). Processo: REsp
1120971/RJ; RECURSO ESPECIAL 2008/0112653-7; Relator(a): Ministro
SIDNEI BENETI; Órgão Julgador: T3 - TERCEIRA TURMA; Data do
Julgamento: 28/02/2012; Data da Publicação: DJe 20/06/2012.
Nesse mesmo sentido, ou seja, agasalhando o direito de privacidade quando
do excesso por parte da imprensa, em caso em que foi vítima um juiz de direito
acusado de envio de crianças ao exterior sem observação das diretrizes legais,
inclusive para fins libidinosos, pode ser citado o seguinte julgado:
RECURSO ESPECIAL Nº 997.479/SP (2007/0243255-6); RELATORA:
MINISTRA
NANCY
ANDRIGHI.
EMENTA:
CIVIL.
AÇÃO
DE
COMPENSAÇÃO POR DANOS MORAIS. PUBLICAÇÃO DE MATÉRIA
JORNALÍSTICA. OFENSA À HONRA. VALOR FIXADO CONSIDERADO
IRRISÓRIO. POSSIBILIDADE DE REVISÃO PELO STJ. 1. Hipótese de
veiculação de matéria em revista de circulação nacional, em que o
recorrente (Juiz de Direito) foi acusado de “enviar” crianças ao exterior em
desconformidade com a lei e até para fins libidinosos, no exercício da
função jurisdicional. Esse fato deu ensejo à instauração de processo
administrativo no respectivo Tribunal, investigações perante o Poder
Legislativo Local e à Comissão Parlamentar de Inquérito do Congresso
Nacional. 2. Nas ações de compensação por danos morais, se o
arbitramento do valor compensatório foi realizado com moderação,
proporcionalmente ao grau de culpa, ao nível socioeconômico do autor e,
ainda, ao porte econômico do réu, o STJ tem por coerente a prestação
jurisdicional fornecida. 3. Ao STJ, todavia, é dado revisar o arbitramento da
compensação por danos morais quando o valor fixado revela-se irrisório ou
excessivo e destoa daqueles estipulados em outros julgados deste Tribunal,
observadas as peculiaridades de cada litígio. 4. Assim, considerando a
gravidade das acusações levianas veiculadas na revista publicada pelo
recorrido, deve-se reformar o acórdão que reduziu o valor compensatório a
patamar ínfimo. 5. Recurso especial conhecido e provido, para majorar o
valor compensatório para R$ 300.000,00 (trezentos mil reais). Brasília (DF),
28 de setembro de 2010.
270
18.2.3 No Supremo Tribunal Federal
Dado que o conflito acima referido entre o direito à privacidade e o direito à
palavra trata de interesses consagrados na Constituição Federal, impõe-se conhecer
o posicionamento do Supremo Tribunal Federal sobre o embate, o que passa a ser
exposto.
No Recurso Extraordinário nº 208.685-1, julgado em 14 de junho de 2003, a
Segunda Turma do Excelso Tribunal, consagrou, por unanimidade de votos, a
prevalência do direito à informação, sendo válida a leitura de um trecho do relatório
da Ministra Ellen Gracie:
O voto condutor do acórdão recorrido vislumbrando conflito entre dois
princípios fundamentais, o direito à informação (CF, art. 220) e a
inviolabilidade da intimidade (CF, art. 5º, inciso X), entendeu que este último
encontra-se situado em patamar superior ao da liberdade de informação,
admitindo o dano moral por entender, também, que a notícia veiculada pela
recorrente teria ofendido a honra objetiva e subjetiva do recorrido. Na
espécie, o dano moral pretendido pelo recorrido somente se justificaria se
positivado o abuso do direito de informar. Ora, o próprio voto condutor do
acórdão recorrido reconhece que a acusação de mau uso de verbas
públicas, prática de nepotismo e tráfico de influência constou de um dossiê
elaborado por um sindicato e que foi encaminhado ao TST. A notícia
veiculada no texto jornalístico reproduziu, tão-somente, essa acusação
devidamente formalizada junto ao TST para fins de investigação. O texto
jornalístico tido como lesivo à honra do recorrido estava, portanto, sob a
proteção do artigo 220, da CF. Não poderia, portanto, ensejar
responsabilidade por dano moral, porque ausente o abuso de direito. No
mais, a notícia de que o recorrido é primo de um ex-presidente da república
e de que pretenderia candidatar-se a um cargo eletivo em hipótese alguma
poderia caracterizar situação justificadora de reparação por dano moral. De
resto, cabe lembrar que o texto jornalístico em questão resultou em
denúncia por suposta infração dos artigos 21 e 22 da Lei de Imprensa que
foi, entretanto, rejeitada em decisão judicial.
Em outro acórdão, o Supremo Tribunal Federal mais uma vez afirmou a
prevalência do direito de informar sobre o direito à privacidade, constando no r. voto
condutor que:
A questão posta não é de inviolabilidade das comunicações e sim da
proteção da privacidade e da própria honra, que não constitui direito
absoluto, devendo ceder em prol do interesse público (HC 87341 – PR – 1ª
T. – Rel. Min. Eros Grau – DJU 03.03.2006 – p. 73).
E, em junho de 2010, a crítica jornalística foi tida como prerrogativa do
profissional de imprensa, podendo exercê-la com base na Constituição Federal,
segundo o Ministro Celso de Mello ao relatar o Recurso Extraordinário nº
271
705630/SC. De acordo com os autos, o trecho da notícia que motivou a ação foi o
seguinte:
O judiciário catarinense é uma ilha de agilidade. Em menos de 12 horas, o
desembargador Francisco de Oliveira Filho reintegrou seis vereadores de
Barra Velha, após votar contra no mesmo processo. Os ex-cassados
tratavam direto com o prefeito, ignorando a Constituição. A Câmara vai
recorrer. O povão apelidou o caso de “Anaconda de Santa Catarina”.
O autor da ação contra o jornalista responsável foi o desembargador
mencionado no trecho. O Ministro Celso de Mello considerou que o conteúdo da
reportagem está “longe de evidenciar prática ilícita contra a honra” e que ela
representa o verdadeiro exercício da liberdade de expressão, lembrando que a
Constituição assegura o direito de o jornalista exercer o direito de crítica contra
qualquer pessoa ou político. Disse, ainda, que, em uma sociedade democrática, “é
intolerável a repressão estatal ao pensamento, ainda mais quando a crítica revele-se
inspirada pelo interesse coletivo e decorra da prática legítima de uma liberdade
pública”. O Ministro disse também que a crítica pode ser plenamente oponível
àqueles que exercem qualquer atividade de interesse da coletividade geral, já que o
interesse social “sobrepõe-se a eventuais suscetibilidades que possam revelar as
pessoas públicas”. O Ministro Celso de Mello deixou claro que, quando o objeto da
reportagem for uma figura pública, governamental ou não, ainda que a notícia
contenha observações de caráter irônico ou mordaz e incluir críticas severas, a
liberdade “qualifica-se como verdadeira excludente anímica, apta a afastar o intuito
doloso de ofender”.
De outro lado, na medida cautelar em reclamação nº 9.428 do Supremo
Tribunal Federal, no caso que ficou mais conhecido por uma das pessoas
envolvidas, Fernando José Macieira Sarney. Tratava-se de reclamação, com pedido
de liminar, proposta pela empresa jornalística S.A. O Estado de São Paulo, contra a
decisão da 5ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios
que, nos autos do Agravo de Instrumento n° 2009.00.2.010738-6 manteve, com
base no poder geral de cautela (artigo 798, do CPC), a decisão liminar do relator
original da causa para a inibição de publicação de dados sigilosos sobre Sarney.
“Inconstitucional” e “censura prévia” foram as expressões mais repetidas entre
representantes de instituições ligadas às áreas de imprensa e de defesa do Estado
de Direito, em comentários a respeito da decisão judicial contra o jornal. A decisão
272
que manteve a proibição de O Estado de S. Paulo publicar conversas interceptadas
de Fernando Sarney, filho do presidente do Senado José Sarney, não foi baseada
na Lei de Imprensa; por esse motivo, o Supremo Tribunal Federal não analisou a
reclamação apresentada pelo jornal contra a decisão. Esse foi o fundamento central
dos Eminentes Ministros Cezar Peluso e Dias Toffoli ao extinguir tal ação, sem
examinar o mérito. Relevante anotar que seis ministros votaram pela extinção, mas
os Ministros Celso de Mello, Ayres Britto e Cármen Lúcia entenderam que a
reclamação do jornal deveria ser examinada. Mas o fato é que, por força da decisão
do Egrégio Tribunal de Justiça do Distrito Federal confirmando o pronunciamento de
primeira instância, e não cassada pelo Supremo Tribunal Federal, o jornal O Estado
de S. Paulo está há longos anos impedido de publicar notícias sobre os
desdobramentos da operação “Boi Barrica” da Polícia Federal, envolvendo Fernando
Sarney, empresário e filho do ex-presidente do Senado, que, dias após a decisão de
última instância, desistiu da ação, mas que acabou não sendo aceita pelo jornal.
E, por fim, o tema em estudo foi diretamente tocado, com resguardo mais
uma vez do direito de privacidade em detrimento do direito de imprensa na medida
cautelar em petição nº 2.702, julgada em 18 de setembro de 2002, pelo pleno do
Supremo Tribunal Federal, por maioria de votos. Trata-se do caso O GLOBO X
GAROTINHO, em que foi consagrada a prevalência do direito à privacidade sobre o
direito à informação, sendo interessante saber das origens do julgado e do
posicionamento de cada ministro no caso. A Juíza da 1ª Vara Cível Central da
Capital do Rio de Janeiro deferiu em favor de Anthony Garotinho liminar para que a
empresa de comunicação “O Globo” não veiculasse conversa telefônica do político.
A decisão foi agravada e o Egrégio Tribunal de Justiça Fluminense, por maioria de
votos dos integrantes de sua 18ª Câmara, negou provimento ao recurso, sendo
interposto o Recurso Extraordinário em exame. O relator foi o Ministro Sepúlveda
Pertence, com voto vencedor, acompanhado pelos Ministros Gilmar Mendes,
Moreira Alves, Sydney Sanches, Celso de Mello, Carlos Velloso, Ilmar Galvão,
Maurício Corrêa, Nelson Jobim e Ellen Gracie, negando-se a veiculação da
gravação. Ainda assim, nos pareceu que o voto mais interessante foi o único
vencido, lançado pelo Ministro Marco Aurélio Mello, valendo a transcrição de alguns
de seus trechos:
Se analisarmos os incisos do artigo 5º, veremos que a própria Carta confere
ênfase maior ao direito-dever de informar. A interpretação desses
273
dispositivos leva-me a concluir que há de prevalecer a informação, tal como
assegurada no artigo 220 da Constituição Federal. Não vejo como deixar de
pedir licença à Sua Excelência, o relator, e aos demais integrantes da Corte,
para divergir. Vislumbro este julgamento como emblemático quanto à
liberdade de informação jornalística prevista na Carta da República, no que,
mediante medidas acauteladoras, possíveis interessados na ausência da
divulgação de matérias, poderão simplesmente lançar mão do Judiciário
para que este exerça uma censura no tocante a certo material. O interesse
coletivo, a meu ver, porque vivemos em uma sociedade aberta, sobrepõe-se
ao interesse individual. Não posso admitir que alguém – repito – que se
coloque como candidato a um cargo de direção, como o de Presidente da
República, simplesmente receie que alguma coisa venha a público e acabe
prejudicando a campanha. Ao contrário, o interesse maior está na
elucidação, na divulgação – eu mesmo, como cidadão-eleitor, estou curioso
quanto a essas fitas, em que pese a alguns vazamentos já ocorridos pela
imprensa – da gravação para que se elimine qualquer dúvida quanto ao
perfil do candidato. O interesse é do próprio candidato. O interesse, no
caso, é do autor da ação que, numa medida, numa tutela antecipada,
acabou por obstaculizar a divulgação dessas fitas que, sob meu ponto de
vista, já tarda. Estamos a três semanas das eleições e precisamos conhecer
o perfil de cada candidato.
Mais recentemente, ao apreciar a Medida Cautelar na ADI 4.451, relativa à
possibilidade de emprego do humor na propaganda eleitoral, o Supremo Tribunal
Federal voltou a dar guarida ao direito à informação em detrimento da privacidade,
decidindo que:
Não cabe ao Estado, por qualquer dos seus órgãos, definir previamente o
que pode ou o que não pode ser dito por indivíduos e jornalistas. Dever de
omissão que inclui a própria atividade legislativa, pois é vedado à lei dispor
sobre o núcleo duro das atividades jornalísticas, assim entendidas as
coordenadas de tempo e de conteúdo da manifestação do pensamento, da
informação e da criação lato sensu. Vale dizer: não há liberdade de
imprensa pela metade ou sob as tenazes da censura prévia, pouco
importando o Poder estatal de que ela provenha. Isso porque a liberdade de
imprensa não é uma bolha normativa ou uma fórmula prescritiva oca. Tem
conteúdo, e esse conteúdo é formado pelo rol de liberdades que se lê a
partir da cabeça do art. 220 da Constituição Federal. A Magna Carta
Republicana destinou à imprensa o direito de controlar e revelar as coisas
respeitantes à vida do Estado e da própria sociedade. A imprensa como a
mais avançada sentinela das liberdades públicas, como alternativa à
explicação ou versão estatal de tudo que possa repercutir no seio da
sociedade e como garantido espaço de irrupção do pensamento crítico em
qualquer situação ou contingência. Os jornalistas, a seu turno, como o mais
desanuviado olhar sobre o nosso cotidiano existencial e os recônditos do
Poder, enquanto profissionais do comentário crítico. Pensamento crítico que
é parte integrante da informação plena e fidedigna. Como é parte do estilo
de fazer imprensa que se convencionou chamar de humorismo (tema
central destes autos). A previsível utilidade social do labor jornalístico a
compensar, de muito, eventuais excessos desse ou daquele escrito, dessa
ou daquela charge ou caricatura, desse ou daquele programa. Programas
humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação ideias,
opiniões, frases e quadros espirituosos compõem as atividades de
“imprensa”, sinônimo perfeito de “informação jornalística” (§ 1º do art. 220).
Nessa medida, gozam da plenitude de liberdade que é assegurada pela
Constituição à imprensa. Dando-se que o exercício concreto dessa
274
liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas
a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico,
irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de
Estado. Respondendo, penal e civilmente, pelos abusos que cometer, e
sujeitando-se ao direito de resposta a que se refere a Constituição em seu
art. 5º, inciso V. (ADI 4.451 MC-REF, Rel. Min. Ayres Britto, Tribunal Pleno,
STF, j. em 02/09/10).
18.2.4 Um resumo da questão na jurisprudência brasileira
Como se constata, a jurisprudência vacila no enfrentamento do tema, e nem a
cúpula da justiça nacional tem posicionamento fechado sobre a prevalência do
direito à privacidade ou do direito à informação, conforme noticia o Eminente
Ministro Sepúlveda Pertence no seu relatório do citado caso O GLOBO X
GAROTINHO:
A respeito da polêmica assim vislumbrada – que reflete a viva dissensão no
direito comparado, tanto na doutrina, quanto nos tribunais constitucionais –
ainda não se pode divisar, no Brasil, uma orientação firme do Supremo
Tribunal.
18.3 A Questão na Suprema Corte dos Estados Unidos
Antes de examinarmos a tendência da jurisprudência estadunidense sobre o
tema, é bom sabermos que, segundo Richard A. Posner470, os juízes deste país
estão predestinados a ser pragmáticos e que, numa descrição mais esclarecedora
dos magistrados da Suprema Corte dos EUA, particularmente quando eles estão
decidindo questões de Direito Constitucional, são juízes políticos. Em outras
palavras, para ele, os juízes políticos são pragmáticos, se o que estão levando em
conta são as consequências políticas de suas decisões.
18.3.1 O caso New York Times Co. v. Sullivan
Dito isso, serão trazidos para exame os julgamentos dos casos denominados
New York Times Co. v. Sullivan e Curtis Publishing Co. v. Butts, julgados pela
Suprema Corte do Estados Unidos, que são citados por toda a doutrina
470
POSNER, Richard A. How judges think. Cambridge, Massachussets: Harvard University Press,
2010. p. 269.
275
estadunidense como dois dos mais simbólicos decisórios acerca da questão da
aplicação da indenização punitiva quando do conflito entre o direito de privacidade e
o de imprensa.471
De início, vejamos o caso New York Times Co. v. Sullivan, julgado pela
Suprema Corte estadunidense no ano de 1964 (nº 39, 376 EUA 254). Trata-se de
uma das principais decisões de apoio à liberdade de imprensa naquele país,
exigindo que o requerente da indenização civil, num caso de difamação ou calúnia
contra funcionário público, prove que o editor do artigo em questão saiba que a
notícia é falsa, resultando, por conta da carga extremamente elevada de prova que
se impõe ao autor, que as causas desse viés raramente prosperem.
Esse caso tratou da situação de um funcionário público em Montgomery,
Alabama, de nome Sullivan, um comissário de polícia eleito, que ajuizou uma ação
em um tribunal estadual alegando ter sido caluniado por um anúncio publicado no
jornal The New York Times. O anúncio incluiu declarações sobre a ação policial
supostamente dirigida contra os estudantes que participavam de uma manifestação
em defesa dos direitos civis, deixando claro que os policiais “prenderam Martin
Luther King Jr. por sete vezes, com intimidação e violência, e já bombardearam sua
casa, quase matando sua esposa e filho”.
O autor, o comissário de polícia LB Sullivan, alegou que as declarações
publicadas se referiam a ele porque seus deveres incluíam a supervisão do
departamente de polícia. Sullivan processou o jornal e ganhou uma indenização de
US$ 500 mil na primeira e segunda instâncias estaduais ordinárias. De acordo com
a Suprema Corte do Alabama, sustentando a decisão do juiz de primeira instância,
“onde as palavras publicadas tendem a ferir uma pessoa caluniada em sua
reputação, acusá-la de um crime condenável, ou a levar o indivíduo ao desprezo
público”, elas são “difamatórias de per se”, e a “prova de dano pecuniário assim é
implícita”.
Mas em último grau de jurisdição, quando examinada a questão pela
Suprema Corte dos Estados Unidos, o pedido foi julgado improcedente por nove
votos a zero, concluindo-se que as decisões proferidas nas instâncias estaduais do
Alabama eram constitucionalmente deficientes por não preservarem as garantias da
liberdade de expressão e de imprensa que são protegidas pela Constituição Federal
471
Informações disponíveis em: <http://www.bc.edu/bc_org/avp/cas/comm/free_speech/. Acesso em:
20 dez. 2011.
276
estadunidense, além de ponderar que um funcionário público que pretenda
indenização por difamação deve provar que a declaração em questão foi feita com
má-fé, que é o conhecimento da falsidade ou a falta imprudente de investigação.
Afirmou-se na decisão da Suprema Corte que em muitas jurisdições, incluindo
a do Alabama, a prova do dolo (o conhecimento real da falsidade ou desrespeito
imprudente da verdade) é pressuposto necessário para a fixação de punitive
damages. Colhe-se da decisão que a proteção constitucional da liberdade de
expressão e de imprensa limitam o poder do Estado e de seus agentes em uma
ação de difamação ajuizada por um funcionário público contra os críticos de sua
conduta oficial. Asseverou-se que qualquer outra conclusão viria desencorajar os
jornais de cumprir “publicidade editorial” desse tipo, e assim poderia fechar-se uma
saída importante para a propagação de informações e ideias. Segundo a decisão
final, o interesse do público aqui supera o interesse do requerente ou de qualquer
outro indivíduo; conduta política e pontos de vista que algumas pessoas respeitáveis
aprovam e outras condenam são constantemente imputadas aos congressistas;
erros de fato, particularmente em relação aos estados mentais de um homem, são
inevitáveis; tudo o que é adicionado ao campo de calúnia é retirado do campo de
debate livre. Concluiu-se que a proteção do público requer não apenas a discussão,
mas a informação.
18.3.2 O caso Curtis Publishing Co. v. Butts
Vejamos agora o caso Curtis Publishing Co. v. Butts, julgado pela Suprema
Corte estadunidense no ano de 1967 (nº 37, 388 EUA 130).
Esse caso deriva de um artigo publicado no Saturday Evening Post que
acusou Butts de conspirar para “consertar” um jogo de futebol entre a Universidade
da Geórgia e a Universidade do Alabama, em 1962. Na ocasião do artigo, Butts era
o diretor esportivo da Universidade da Geórgia e tinha a responsabilidade geral pela
administração do programa atlético daquela instituição. Butts anteriormente havia
sido treinador chefe de futebol da Universidade da Geórgia e era uma figura
conhecida e respeitada nas fileiras esportivas.
277
O artigo foi intitulado “The Story of a College Football Fix” 472 e prefaciado por
uma nota dos editores com a seguinte afirmação:
Desde que o Chicago White Sox jogou a World Series em 1919, não houve
uma história esportiva tão chocante quanto esta. Antes da Universidade da
Georgia jogar contra a Universidade de Alabama, Butts Wally deu ao
treinador adversário os padrões de defesa de seu time, além de todos os
significativos segredos que a Georgia possuia.
O texto revelou que uma pessoa de nome George Burnett, um vendedor de
seguros em Atlanta, acidentalmente, ouviu, por causa de um erro eletrônico, uma
conversa telefônica entre Butts e o treinador chefe da Universidade do Alabama,
Paul Bryant, que ocorreu aproximadamente uma semana antes do jogo entre as
equipes da Geórgia e do Alabama. Burnett disse que ouviu enquanto “Butts
descrevia jogadas ofensivas da Georgia” e disse “como a Georgia pretendia se
defender”. Segundo Burnett, “Butts mencionou os jogadores e as jogadas pelo
nome”. Os leitores foram informados que Burnett tinha feito notas a respeito da
conversa. O artigo passou a discutir o jogo e a reação dos jogadores, concluindo
que “os jogadores da Georgia, tendo seus movimentos analisados e previsíveis,
como os de ratos em um labirinto, levaram uma surra terrível”. O artigo culminou na
demissão de Butts dos assuntos esportivos da Universidade da Georgia, por razões
de saúde e negócios. A conclusão do artigo deixou claro o seu esperado impacto:
“As chances são de que Butts Wally nunca mais venha a treinar qualquer time de
futebol outra vez”.
Então, Butts intentou a presente ação por difamação na justiça da Geórgia
buscando cinco milhões de dólares por indenização compensatória e mais cinco
milhões de indenização punitiva, afirmando que a “conduta do réu foi irresponsável e
arbitrária, em vista da natureza devastadora das afirmações do artigo”.
A
ação
teve
seu
julgamento
concluído
antes
da
Suprema
Corte
estadunidense proferir a sua decisão no caso New York Times Co. v. Sullivan, e a
única defesa levantada pela ré Curtis Publishing Co. foi a da verdade substancial. A
prova produzida no processo foi direcionada tanto para a verdade do artigo como
para a sua preparação investigativa. As evidências mostraram que Burnett
realmente tinha ouvido uma conversa entre Butts e o treinador do Alabama, mas o
conteúdo da conversa era contraditório. Butts alegou que a conversa tinha sido para
472
A história de um jogo de futebol americano universitário “arrumado” (tradução livre do autor).
278
falar de futebol em geral e que nada tinha falado a respeito de alguma informação
especial ao técnico adversário. Os peritos que testemunharam apoiaram a versão de
Butts. Através da análise que foi feita entre as notas de Burnett sobre a conversa
que ouviu e o filme do jogo em si, os peritos constataram severa divergência. Assim,
concluiu-se que havia sérias dúvidas sobre a adequação da investigação subjacente
ao artigo difamatório.
O júri foi instruído de que, diante da tese de defesa sobre a verdade do artigo,
era “necessário que a verdade fosse substancialmente retratada no artigo”. O júri
também foi instruído de que poderia atribuir indenização punitiva “para deter o
ofensor de repetir a transgressão”, em uma quantidade dentro de seu exclusivo
critério, se decidisse que a má-fé realmente tinha sido provada. Por fim, o júri
chegou a um veredicto de US$ 60 mil (sessenta mil dólares) em indenização
compensatória e de US$ 3 milhões (três milhões de dólares) em indenização
punitiva, mas o tribunal de segunda instância reduziu o total para US$ 460 mil
(quatrocentos e sessenta mil dólares).
Logo depois da decisão em segunda instância no caso do jogo de futebol
americano, foi proferida a decisão no caso New York Times Co. v. Sullivan,
mencionda no item anterior, no qual se deu guarida ao direito de imprensa, e a ré
Curtis Publishing Co. imediatamente trouxe o fato à atenção, pedindo um novo
julgamento. O juiz rejeitou o requerimento, justificando que o caso The New York
Times v. Sullivan era inaplicável, porque Butts, apesar de ter sido encarregado com
a importante responsabilidade de gerir os assuntos atléticos de uma universidade
estadual, não era tecnicamente um funcionário do Estado, e, assim, ao contrário do
outro processo, neste, a publicidade não havia sido dirigida a funcionário do
governo.
As decisões das instâncias ordinárias nesse caso foram confirmadas pela
Suprema Corte dos Estados Unidos, fundamentando-se que:
[...] os jornais, revistas e emissoras são negócios conduzidos pelo lucro e
muitas vezes se tornam muito grandes como outras empresas que infligem
danos no curso da realização de um serviço de grande utilidade para o
público; e pessoas feridas não devem ser relegadas a fazer coleção de suas
reivindicações difíceis ou impossíveis; a liberdade de discussão deve
abraçar todas as questões sobre as quais as informações são necessárias
ou apropriadas para permitir aos membros da sociedade lidar com as
exigências do seu período; é significativo que a garantia da liberdade de
expressão e de imprensa seja uma necessidade social para a manutenção
do nosso sistema político e uma sociedade aberta, e é por causa da
natureza pessoal deste direito que se tem rejeitado todo o tipo de censura
279
prévia à publicação; a divulgação de opiniões do indivíduo sobre assuntos
de interesse público é, nas palavras históricas da Declaração de
Independência, um direito inalienável; mas o fato de a disseminação de
informação e opinião sobre questões de interesse público ser normalmente
uma atividade legítima e protegida não significa que alguém possa em todos
os aspectos exercer essa atividade isento de sanções destinadas a
salvaguardar os legítimos interesses dos outros; um negócio não está
imune a regulamentação, porque é uma agência de imprensa; o editor de
um jornal não tem imunidade especial a partir da aplicação de leis gerais;
ele não tem nenhum privilégio especial para invadir os direitos e liberdades
dos outros; o direito de comunicar informações de interesse público não é
incondicional; o instituto da calúnia, é claro, mudou substancialmente desde
os primeiros dias da República, e essa mudança é a consequência direta do
atrito entre ele e o direito a muito acalentado de liberdade de expressão; a
verdade tornou-se uma defesa absoluta em quase todos os casos, e
privilégios destinados a promover a livre comunicação são quase
universalmente reconhecidos; mas a teoria básica de calúnia não mudou;
assim, alguma colidência entre a liberdade de expressão e de imprensa e
as ações de difamação persistem, porque a difamação permanece como
premissa do conteúdo do discurso e limita a liberdade do editor para
expressar certos sentimentos, pelo menos sem a garantia de prova legal da
sua precisão substancial.
Negando a pretensa extensão da solução do caso New York Times Co. v.
Sullivan ao caso do treinador de futebol Butts, ponderou a Suprema Corte que
naquele processo o demandante era um funcionário cujo cargo no governo era tal
“que o público tinha um interesse independente na qualificação e desempenho da
pessoa”, concluindo que os funcionários do governo estão autorizados a ser
indenizados por difamação apenas quando eles puderem provar que a publicação
envolvida foi deliberadamente falsificada, ou publicada de forma imprudente, apesar
da consciência da editora de falsidade provável.
Sobre as provas do processo, ponderou a decisão da Suprema Corte que:
[...] o júri do caso Butts foi instruído, ao considerar os danos punitivos, a
avaliar a confiabilidade, a natureza das fontes de informação do réu, sua
aceitação ou rejeição das fontes, e seu cuidado em verificar as afirmações;
estas considerações foram mencionadas como relevantes para a
determinação se o réu tinha procedido com “indiferença”; consideramos que
o júri deve ter decidido que a investigação realizada pelo Saturday Evening
Post era totalmente inadequada para as circunstâncias; as evidências
mostraram que a história sobre a conduta de Butts se tratava de “notícias
quentes” e os editores da revista reconheciam a necessidade de uma
investigação minuciosa das acusações graves, mas precauções
elementares foram ignoradas; The Saturday Evening Post sabia que Burnett
tinha sido colocado em liberdade condicional recentemente, mas começou a
publicar a história com base em seu depoimento sem apoio substancial
independente; as anotações de Burnett não foram sequer vistas por
qualquer um dos funcionários da revista antes da publicação; John
Carmichael, que era quem supostamente teria conversado com Butts
quando o telefonema foi ouvido por Burnett, tampouco foi entrevistado;
nenhuma tentativa foi feita, por meio dos filmes do jogo, para ver se a
informação de Burnett era precisa, e nenhuma tentativa foi feita para saber
se o time do Alabama tinha ajustado seus planos após a divulgação da
280
informação alegada; o escritor do artigo sobre a história não era um
especialista em futebol e nenhuma tentativa foi feita para verificar a história
com alguém experiente no esporte; The Saturday Evening Post estava
ansioso para mudar sua imagem, instituindo uma política de
“sensacionalista sofisticada”, e a pressão para produzir uma exposição bem
sucedida pode ter induzido na publicação; editoras como a Curtis Publishing
se envolvem em uma grande variedade de atividades que podem levar
delitos a termo, onde danos punitivos são uma possibilidade.
E, ao finalizar pela confirmação da indenização punitiva no caso Curtis
Publishing Co. v. Butts, a Suprema Corte afirmou que os punitive damages exigem
um veredicto de “má-vontade” do ofensor, e servem a um propósito inteiramente
legítimo na proteção da reputação individual.
18.3.3 Um resumo da questão na jurisprudência da Suprema Corte
Postos os dois divergentes julgados para análise, pode-se dizer que duas
foram as grandes e cabais afirmações na conclusão de cada um deles, segundo a
Suprema Corte dos Estados Unidos.
No caso New York Times Co. v. Sullivan, a negativa de indenização ao
comissário de polícia eleito veio calcada na afirmação de que “homens públicos,
são, por assim dizer, a propriedade pública”. Já no caso Curtis Publishing Co. v.
Butts, arrematou-se a questão conferindo-se o direito indenizatório ao treinador de
futebol contra o órgão de imprensa sob o fundamento de que “a liberdade de
expressão não inclui a liberdade de transgressão”.
281
CONCLUSÕES
1) O dinamismo e a eficiência da Justiça americana resultam de determinados
fatores que deveriam ser observados para que a Justiça brasileira pudesse gozar do
mesmo prestígio, como se quis demonstrar ao longo do trabalho. Realmente,
posturas sérias e eficazes precisam ser tomadas com urgência, caso contrário o
Poder Judiciário brasileiro, em espaço de tempo muito curto, entrará em verdadeiro
colapso.
Quanto ao cerne deste estudo, como uma das posturas a serem assumidas
para a tentativa de dar celeridade e eficiência ao Poder Judiciário nacional, no que
se refere às grandes questões de Direito Privado, já se faz momento de rigorosa
observância dos precedentes sumulados constituídos pelo Superior Tribunal de
Justiça por parte da magistratura brasileira de primeira e segunda instâncias,
evitando-se demandas decididas de diversas formas em um único grau de jurisdição
e mesmo a desnecessária proliferação de recursos aos níveis superiores.
De rigor, também, nesse quadro, que o próprio Superior Tribunal de Justiça
adote soluções uniformes para as questões ainda não sumuladas que lhe são
submetidas a julgamento, de sorte a contribuir para a formação de precedentes
portadores de força e legitimidade, resolvendo, por exemplo, de forma definitiva, a
celeuma que se instalou no ano de 2012 acerca da possibilidade ou não de se impor
dever indenizatório em prol do filho em virtude do abandono afetivo praticado pelo
genitor, já que, como explanado, cada uma de suas Turmas de Direito Privado tem
diverso posicionamento a respeito da questão.
Outrossim, é essencial a aprovação, no bojo do projeto do novo Código de
Processo Civil, do incidente de Resolução de Demandas Repetitivas, este sim um
instrumento ainda inexistente no ordenamento jurídico brasileiro e que trará de uma
vez por todas a obrigatoriedade da observância de precedentes formulados até
mesmo nos tribunais estaduais e regionais federais, com possibilidade de
nacionalização da decisão vinculante.
Outro grande exemplo americano a ser seguido são as preliminares formas
de tentativa de composição dos litígios, de maneira que deságuem no Judiciário tãosomente as demandas absolutamente carentes de decisão estatal sobre a lide,
enxugando a tarefa judicial, visando melhor qualidade e eficiência na prestação
jurisdicional.
282
Veja-se que a proposta em comento não se trata de mera previsão legal de
institutos tendentes à obtenção da conciliação, o que já se faz presente na
legislação brasileira, como, por exemplo, a Lei 9.099/95. Pugna-se por uma postura
mais pró-ativa dos atores do sistema judiciário (juízes, advogados privados e
públicos e promotores de justiça) e das pessoas físicas e jurídicas envolvidas nas
lides forenses, buscando de maneira efetiva a solução do litígio antes mesmo do
ajuizamento das ações, sobretudo quando se tem em mira as demandas dirigidas
contra grandes empresas na área do consumidor, a fim de enxugar e conferir
qualidade aos Juizados Especiais do país, hoje atolados de serviço.
2) Mesmo admitindo-se que se consiga no Brasil, um dia, a observância dos
precedentes, a uniformização da jurisprudência brasileira constitui um objetivo de
difícil alcance, dada, sobretudo, a inútil e equivocada proliferação da legislação
nacional em temas desnecessários. Nesse sentido, apenas para não ficar na
informação vaga, propugna-se hoje por reformas em praticamente todos os grandes
diplomas nacionais, como o Código Comercial, inclusive em temas que acabaram de
ingressar na disciplina do Código Civil de 2002, e o Código de Defesa do
Consumidor, que recentemente completou duas décadas de vida e ainda nem foi
suficientemente interpretado pelos tribunais.
Além disso, é clara a carência de disposições legais em pontos cruciais à
completude do sistema jurídico nacional, como se viu, exaustivamente, com relação
à indenização por danos morais.
Como visto, passou sem a atenção do legislador uma questão que, no campo
doutrinário, desde o início do século passado, por interpretação do “pai” do Código
Civil de 1916, Clóvis Beviláqua, e, no campo jurisprudencial, desde a metade do
mesmo século XX, por meio da orientação do Supremo Tribunal Federal, tinha
posicionamento tranquilizado e apenas aguardava sua inserção no âmbito legal com
alguma minúcia, o que acabou frustrado. Em outras palavras, parece não ter
bastado ao legislador do Código Civil de 2002 que o intérprete mais autorizado do
diploma civil revogado e a jurisprudência da mais alta corte nacional de justiça
tenham afirmado categoricamente a possibilidade de indenização pelos danos
morais.
Com efeito, repita-se, tendo o diploma civil feito apenas uma breve menção à
possibilidade de indenização por danos morais (artigo 186), acabou praticamente
por desconsiderar a questão por completo, porquanto tal autorização indenitária já
283
era constante de disposição de eficácia imediata da Constituição Federal (inciso X
do artigo 5º).
Em outros termos, a indenização por danos morais já era de tranquilo
deferimento por entendimento da mais eminente doutrina centenária, por orientação
da mais elevada jurisprudência nacional há 50 anos e nada menos que por
disposição expressa e de aplicação imediata da Constituição da República do país.
Dessa sorte, a eficácia prática do artigo 186 do Código Civil, na parte em que
ressalvou expressamente a possibilidade de indenização por danos morais, foi
rigorosamente nenhuma.
Ainda, paralelas ao problema da omissão, encontram-se a incorreção e a
imprecisão legislativas, resultando na produção de diplomas legais portadores de
dispositivos contraditórios entre si e alguns absolutamente incompreensíveis, como
se exemplificou, respectivamente, com a problemática da responsabilidade civil do
incapaz e do instituto jurídico por alguns classificado como desapropriação e por
outros como usucapião de imóvel, pela realização de “relevantes obras e serviços”,
por “considerável número de pessoas”, “a critério do juiz”, sem qualquer indicação
do que isso se trate.
Ressalte-se também o péssimo trabalho legislativo decorrente da revogação,
na surdina, do § 3º do artigo 192 da Constituição Federal, que previa a limitação dos
juros remuneratórios bancários em 12% ao ano.
Este nos pareceu o exemplo mais escancarado de contradição entre a
vontade do povo e a de seu representante no Congresso Nacional, visando,
naturalmente, ao atendimento dos interesses das instituições financeiras. Tal nos
leva a dar razão aos que admitem, com tristeza, a existência de leis nascidas de
valores aparentes que só o legislador reconhece.
Ora, já é momento de se exigir do legislador nacional uma postura de mais
atenção com relação ao seu trabalho-fim, fornecendo à sociedade boas leis para a
disciplina das relações intersubjetivas, e principalmente que atendam aos anseios do
povo brasileiro.
3) Infelizmente, a sinceridade nos obriga a admitir que uma das questões que
causavam mais curiosidade acabou não respondida, apesar do esforço. Destarte, a
cada livro que se pesquisava, se encontrava uma resposta num e noutro sentido a
respeito da atual ocorrência ou não do descontrolado número de decisões judiciais
impondo altas quantias a título de indenização punitiva nos EUA.
284
Por um lado, diz-se que a tendência é a queda no número de decisões nesse
sentido. A própria Suprema Corte americana, como visto, traçou os pressupostos
para aplicação dos punitive damages e os limites para sua valoração, e os Estados
da federação, por meio da denominada tort reform, fazem o mesmo usando a lei.
Todavia, também como já mencionado, numa das obras mais recentes e
específicas sobre a matéria, elaborada a partir de um estudo mais que jurídico, de
caráter também sociológico, a conclusão foi que os punitive damages estão em
plena efervescência nos dias de hoje naquele país, não nos valores versados há
tempos atrás, mas aplicados em hipóteses as mais variadas e fixados em valores
ainda bastante excessivos.
4) Por aqui, no Direito brasileiro, foram postas para exame as duas formas
doutrinárias de se pensar a indenização punitiva. Por uma primeira, à vista da
ausência de expressa autorização legislativa, e mais, por conta de dois vetos a duas
tentativas de enunciá-la no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, dáse pela impossibilidade de fixação da denominada indenização punitiva. Por outra
orientação, à luz dos valores humanos constantes do ordenamento jurídico nacional
e, especialmente, tendo-se em conta o princípio da irrestrita indenizabilidade ao
lesado, encontra-se lastro jurídico à sanção civil na forma de indenização.
Nada obstante entender-se como relevante o argumento exarado pela
primeira corrente doutrinária, admite-se como legítima a fixação pelo Poder
Judiciário de indenizações punitivas sob determinadas condições, como nos casos
de ilícitos dolosos, praticados por meio de culpa grave, ou mesmo em reiteradas
práticas prejudiciais, levando-se em consideração o anseio da sociedade quanto à
proteção de seus direitos civis, fundamentalmente na qualidade de consumidores de
produtos e serviços.
Pode-se afirmar, assim, ser cada vez mais vigorosa a jurisprudência nacional
no sentido da fixação reiterada de indenizações punitivas em valores que só fazem
aumentar, calcada em posição doutrinária que tem em mira o princípio da irrestrita
indenizabilidade da vítima, numa tendência absolutamente contraditória com a
orientação emitida por expresso pelo Poder Legislativo, que, como se disse, obstou
duas tentativas de positivação dos punitive damages.
Trata-se, isso pode ser dito, de uma postura legislativa omissiva que dá
pujança ao denominado ativismo judicial no que toca ao tema da indenização
punitiva, mesmo se tendo em consideração que a decisão judicial nesse caso, além
285
de não encontrar respaldo em disposição legal expressa, se depara, como dito, com
uma lacuna intencional por parte do legislador.
Isso poderia levar a crer que, dessa forma, tal decisório impositivo da
indenização punitiva estaria eivado de uma nulidade absoluta, por ferimento da
cláusula de harmonia e independência entre os Poderes da República. Sim, tal
raciocínio é plenamente razoável.
Mas o fato é que, seja justificada pelo princípio da irrestrita indenizabilidade à
vítima, seja por qualquer outro elemento que se insira como fundamentação do
decisório, como, por exemplo, o dolo ou culpa grave por parte do agente danoso, e
até mesmo a situação financeira das partes, não há como frear a tendência do
Poder Judiciário brasileiro à fixação da indenização punitiva, desde o primeiro grau
de jurisdição dos juizados especiais, passando pelos Colégios Recursais, na
primeira e segunda instâncias da Justiça Comum, além de, é claro, como se viu,
chegar ao Superior Tribunal de Justiça e até mesmo ao Supremo Tribunal Federal.
Nesse panorama, pensa-se, já é momento das poderosas empresas
fornecedoras de serviços e produtos, e também o Poder Público, em última análise
os grandes alvos das indenizações punitivas, assumirem posições mais pragmáticas
no trato do tema, já que parece não mais encontrar guarida judicial a alegação de
ausência de disposição legal expressa para a imposição de punitive damages ou
indenizações punitivas, que estão sendo fixadas em situações e quantias as mais
variadas e crescentes, devidamente confirmadas nas instâncias superiores e
especiais, e posteriormente executadas.
5) E não há como negar a correção desta postura judicial, certo do fato de
que nem sempre o direito criminal, sobretudo em tempos de adoção de sua noção
como última ratio, consegue fazer frente às aspirações da sociedade por uma
proteção mais efetiva de seus direitos civis fundamentais.
Assim, a fixação de indenização punitiva é muito bem vinda, e não há
necessidade alguma de se promover qualquer mudança relativa à sua nomenclatura
ou posicionamento no âmbito da responsabilidade civil.
Em outras palavras, a utilização de critérios como grau de culpabilidade, dolo,
reiteração da conduta lesiva, elevado potencial econômico do ofensor e extensão do
prejuízo para a vítima, são o bastante para se introduzir na própria indenização por
danos morais o conteúdo punitivo ao agente danoso.
286
O fato é que a importação de institutos jurídicos de outros países nem sempre
se dá de forma natural, em virtude das peculiaridades de cada país, de sorte que
não há necessidade de se falar em pena privada europeia ou mesmo punitive
damages americanos no Brasil, bastando que a indenização por danos morais seja
praticada com mais intensidade no dia a dia pelos juízes e tribunais para que vá
ganhando seus contornos definitivos com o tempo, de forma natural e à moda
brasileira.
6) Com todas estas considerações e sem que isso se constitua numa
contradição quanto ao que foi dito a respeito da inútil proliferação da legislação
nacional – já que, nesse ponto, repita-se, há um vácuo enorme e injustificado no
ordenamento jurídico pátrio – se mostra necessária a edição daquilo que poderia ser
denominado de “Estatuto do Dano Moral”, evidentemente por meio de lei federal,
que traçaria uma disciplina um tanto detalhada – mas sem a pretensão de
exaurimento – das questões envolvendo o tema.
Como exemplo, a indenização punitiva teria oportunidade para ser discutida
em termos de normatização genérica e abstrata, disciplinando sua aplicação em
determinadas situações de fato, como em condutas ilícitas dolosas ou impulsionadas
por culpa grave, além de se estabelecer quais seriam seus limites mínimo e máximo.
Tal legislação deveria ter como base, sobretudo, os pronunciamentos do
Superior Tribunal de Justiça e a mais cristalizada jurisprudência dos Tribunais
Estaduais acerca da indenização por danos morais, permitindo-se que, a partir deste
sonhado estatuto, as cortes de justiça possam, ao interpretá-lo e aplicá-lo, criar os
necessários precedentes judiciais, agora sim verdadeiramente legitimados, porque
resultantes de pronunciamento judicial acerca de conteúdo legal.
Nesse sentido, no Congresso Nacional brasileiro tramita perante a Câmara
dos Deputados o Projeto de Lei nº 523/11, que, segundo sua ementa, dispõe sobre o
dano moral e sua reparação. Veja-se que, nesse momento, o que se propugna nada
mais é do que a adoção, num determinado e específico diploma legislativo, dos
caracteres benéficos de ambos os sistemas jurídicos examinados ao longo deste
estudo – o civil law e o common law.
Isso é perfeitamente possível e necessário. Hipóteses, por exemplo, de morte
de parentes como pais e filhos, além dos cônjuges, podem, perfeitamente, por se
tratar de fatos objetivos, constarem de uma lista de casos passíveis de indenização
por danos morais, além de contarem com predeterminação de valores indenizatórios
287
mínimo e máximo, com fixação final à luz de cada caso concreto pelo juiz,
propciando-se uma essencial coesão das decisões judiciais nestes casos, de forma
que não se permita mais que um filho que perdeu um de seus pais consiga 50
salários mínimos como reparação por danos morais, enquanto outro seja
compensado com 500 mil reais por ter sido vítima da mesma infelicidade.
Pensando-se, então, na tramitação do Projeto de Lei nº 523/11 da Câmara
dos Deputados, que poderia ser denominado eventualmente de “Estatuto do Dano
Moral”, para aproximá-lo da melhor técnica legislativa possível, sugere-se que, ao
lado das mencionadas hipóteses concretas de indenização, se deveria prever,
subsidiariamente, uma cláusula geral de exame judicial de possíveis outras
situações passíveis de compensação por danos morais, de sorte que novas
ocorrências não fiquem excluídas do crivo do magistrado. Respeitosamente, esta é a
ideia que, resumidamente, se entende como a mais adequada a promover uma
melhora no texto do Projeto de Lei nº 523/11 da Câmara dos Deputados, que dispõe
sobre o dano moral e sua reparação, propiciando que decisões judiciais sobre o
tema tenham um mínimo de lastro legal.
Não se desconhece a torrencial orientação jurisprudencial dando pela
inconstitucionalidade da tarifação da indenização por danos morais, numa tentativa
de preservação do princípio da irrestrita reparação à vítima. Mas, o que se propugna
é que, por lei, sejam fixados os valores mínimo e máximo necessários e suficientes
para a compensação devida por lesão a direito da personalidade em determinados
casos, com preservação da apreciação judicial quanto ao valor da indenização no
caso concreto, sem prejuízo da verificação pelo juiz de outras situações danosas, o
que visa a garantia da preservação de interesses constitucionais de grandeza
também relevantes, como o princípio da igualdade entre as vítimas de atos ilícitos.
7) E, no trato desta imaginária correlação entre a decisão judicial e a
manifestação legal, no tocante aos chamados grandes sistemas de Direito
examinados, civil law e common law, pode-se dizer unicamente para fins didáticos
que tenham sido adotados com exclusividade, respectivamente, pelo Brasil e pelos
Estados Unidos, no que se refere à existência ou não de um ordenamento jurídico
traduzido em legislação positivada.
Isso porque, da forma como mencionado, em temas da mais alta relevância
para a sociedade moderna, tem falhado o legislador brasileiro, tanto se equivocando
288
no momento da produção da lei quanto se fazendo omisso no que toca à confecção
de disposições normativas atinentes, por exemplo, à indenização por danos morais.
De outro turno, como se viu, o país norte-americano, além de uma
constituição escrita e já muito antiga, emendada poucas vezes, dispõe de
considerável legislação federal e, mais que isso, como resultado da acentuada
autonomia de cada um de seus 50 Estados Membros, possui farta normatização
estadual, que, não obstante em princípio não abrangente de todo o Direito Privado,
já alcança, com considerável força, os temas relativos à responsabilidade civil,
especialmente com relação aos punitive damages.
Evidenciada está, dessa forma, segundo se entende, uma verdadeira
interface entre os sistemas do civil law e do common law, aqui no Brasil e nos
Estados Unidos, guardadas as peculiaridades de cada ordenamento jurídico.
8) Já que mencionados expressamente, então, no que toca aos punitive
damages, pode-se dizer que sua aplicação tem seguido caminhos opostos nos
Estados Unidos e no Brasil. Lá, mitigando extraordinariamente a força dos
precedentes, a legislação estadual vem reduzindo seu campo de incidência a certas
e determinadas situações, além de estabelecer limites ao próprio valor atribuído a
título de indenização punitiva. Aqui, como reiteradamente se abordou, e já se faz
enfadonho nesse particular, a carência legislativa em pontos cruciais do
ordenamento jurídico tem gerado a verdadeira substituição da disciplina legal pela
prestação jurisdicional na forma de consolidada jurisprudência.
Dessa sorte, repita-se, ainda que verificada alguma preponderância da lei no
Brasil e, de outro lado, dos precedentes nos Estados Unidos, mesclam-se aspectos
do civil law e do common law tanto no sistema de Direito brasileiro quanto no
estadunidense. Gozam, então, hoje, os dois países, dos pontos positivos, ao mesmo
tempo em que suportam os inconvenientes, de cada um dos sistemas de Direito
mencionados.
Destarte, o civil law padece da impossibilidade de a lei conseguir regular
todas as situações fáticas ocorrentes na vida das pessoas, gerando o problema das
lacunas, e, mesmo na parte em que pretensamente disciplina os futuros
acontecimentos, dá margem a dúbias interpretações de suas disposições, de forma
que cresce o anseio por uma jurisprudência consolidada em determinadas áreas da
seara jurídica. O common law, de outro lado, entrega nas mãos do Poder Judiciário,
e, lembre-se, em se tratando dos Estados Unidos, nas mãos do júri popular e não de
289
um juiz togado, a grande maioria das decisões, ao menos em primeira instância, de
tal modo que, no tema desse estudo, não se pode prever em quais situações e em
que valores serão fixadas as indenizações punitivas, dando isso margem ao
movimento pela legalização da questão.
Na verdade, agrada em muito a conclusão acerca da interface entre os dois
sistemas jurídicos do Brasil e dos Estados Unidos, na medida em que se afasta a
aplicação radical da lei ou do precedente, podendo a sociedade de cada nação
valer-se dos benefícios de cada um deles, suportando, naturalmente, seus
inconvenientes.
Ao cabo das contas, aliás, houvesse necessidade de se posicionar sobre qual
seria o melhor sistema jurídico, se é que se pode falar nisso, na comparação entre o
civil law e o common law, concluir-se-ia pela adoção, como fizeram os dois países
em comento, daquilo que já se tem como norte para a solução das lides judiciárias
como magistrado e nos problemas rotineiros do dia a dia: o meio-termo, a solução
intermediária, que, no mais das vezes, representa naturalmente a decisão mais justa
e adequada.
9) Com relação ao direito de imprensa e ao controle preventivo ou repressivo
de sua atividade, entende-se cabível a concessão de medida de urgência visando o
controle antecipado em casos de flagrante publicidade de informação que se sabe
de antemão inverídica e injuriosa, sem que isso represente de qualquer maneira
exercício de censura ao trabalho informativo. Destarte, os posicionamentos
exarados pelo Poder Judiciário não têm conteúdo político, ideológico e muito menos
artístico, de sorte que não se subsumem à dicção de censura posta no § 2º do artigo
220 da Constituição Federal.
De outro turno, dentre os direitos fundamentais positivados na mesma
Constituição Federal está a inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV),
conferindo a cada cidadão a prerrogativa de acionar a justiça para reparar lesão ou
mesmo a fim de evitá-la, quando haja ameaça a direito, dentre eles o de privacidade.
E, com efeito, não se concebe como possa o magistrado, diante do caso concreto,
verificar a demonstração de que haverá a divulgação de notícia, por exemplo,
manifestamente inverídica e difamatória contra alguém, e deixar de tomar qualquer
providência a título de preservar o direito de informação. Ora, mesmo à luz do
princípio da razoabilidade, isso é impensável!
290
É evidente que esta tarefa deve ser exercida excepcionalissimamente e com
muita cautela pelo juiz, responsável por constatar a verossimilhança da alegação de
futura veiculação de informação, como se disse, manifestamente inverídica e
injuriosa. Uma vez constatado este fato, entretanto, outra solução não lhe resta
senão a concessão do provimento cautelar ou antecipatório para proibir a
publicização da notícia, com fundamento nos artigos 12 e 20 do Código Civil.
10) Como se pôde notar, existe, no que toca aos entendimentos
jurisprudenciais brasileiro e estadunidense, uma enorme divergência, que na
verdade mais parece um abismo, acerca do tratamento da questão envolvendo o
conflito entre o direito à intimidade e o direito de imprensa quando envolvida uma
pessoa pública de cargo eletivo. Nesse passo, foi colhido um caso na justiça
brasileira em que um político encontrou guarida em seu pedido de reserva de sua
privacidade e a consequente não publicação de matéria jornalística a seu respeito,
enquanto a justiça estadunidense decidiu que a figura pública de que se reveste um
cidadão eleito pelo povo lhe impõe um maior grau de exposição, negando seu
pedido indenizatório pela publicação de sua imagem e informações a seu respeito.
Após tal constatação, por mais ilógico que isso possa parecer, autoriza-se
concluir o trabalho com duas indagações, quando, na verdade, deveríamos fornecer
dados afirmativos. Por que será a americana a maior democracia que já se teve
notícia em toda a evolução da raça humana? E por que a nossa democracia
brasileira convive com ataques diários como, por exemplo, a tentativa frustrada de
criação do chamado Conselho Federal de Jornalismo, no ano de 2004, por meio de
um projeto de lei do Executivo Federal que previa “orientar, disciplinar e fiscalizar” o
exercício do jornalismo?
Para não terminarmos apenas com indagações, todavia, lembremos que a
Constituição dos Estados Unidos foi promulgada em 1787, contando até hoje com
apenas 27 emendas, enquanto a nossa, promulgada no recente ano de 1988, já foi
emendada mais de 70 vezes. Assim, talvez se possa encontrar alguma resposta
para as duas perguntas acima, a respeito da condição das democracias americana e
brasileira, dentre outros, num fator fundamental: o respeito ao ordenamento jurídico
posto no país, sem que se permita sua alteração ao gosto de interesses
momentâneos, devendo esta ser uma busca incessante daquele que se dedica ao
Direito como o mais importante instrumento da Democracia já desenvolvido pelo ser
humano.
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