O amor é um lapso da imaginação:
amor, gozo e desejo na literatura da primeira modernidade.
Paulo José Carvalho da Silva
No seminário XX, Lacan insiste que há sempre um impasse na relação amorosa porque a
essência do objeto do desejo é da ordem do fracasso. Com efeito, o encontro amoroso em seu
ideal de completude parece não existir na vida, é motivo para muito sofrimento que ecoa na
clínica psicanalítica, restando como matéria para a literatura, que não cessa de criar imagens do
amor. Na literatura da chamada primeira modernidade, isto é, dos séculos XVI e XVII, a dor de
amar é um lugar-comum absolutamente dominante. O caráter inconstante e faltoso do amor
aparece na arte poética, no teatro, nas novelas e até nas cartas e sermões então produzidos. Esta
comunicação propõe discutir definições de amor e sua relação com o gozo e o sofrimento em
obras literárias dessa época. Conclui-se que as representações letradas do amor revelam, para
além da vivência da paixão amorosa, a condição humana da falta-a-ser, sempre vulnerável,
portanto, ao pathos, enredada no gozo e, ainda assim, movida pelo desejo.
Amor, gozo, desejo, literatura, Lacan.
Apoio: Fapesp.
Conforme o ensino de Lacan, o encontro amoroso em seu ideal de completude
não passa de uma ilusão, o que, inclusive, desencadeia muito sofrimento. Embora
embasada em uma ontologia e uma ética radicalmente distintas, a mesma ideia pode ser
identificada na literatura da chamada primeira modernidade, isto é, dos séculos XVI e
XVII, na qual a dor de amor é um lugar-comum absolutamente dominante. O caráter
inconstante e faltoso do amor aparece na arte poética, no teatro, nas novelas e até nas
cartas e sermões então produzidos. Esta comunicação propõe discutir definições de
amor e sua relação com o gozo e o sofrimento em obras literárias dessa época.
A natureza do amor era colocada em questão, sobretudo, quando este tinha um
fim, ou melhor, quando os sonhos de perpetuidade e constância, reciprocidade e
harmonia, por um motivo ou outro, eram mais ou menos violentamente contrariados.
Com efeito, era comum representar o gozo pleno, sereno e satisfeito do encontro
amoroso nos limites do continente onírico, além dos quais resta acordar para a desilusão
e a dor, como no soneto do poeta e magistrado lisboeta Antônio Barbosa Bacelar (16101663), intitulado “A um sonho”:
Adormeci ao som do meu tormento,/E logo vacilando a fantasia,/Gozava mil portentos
de alegria,/Que todos se tornaram sombra, e vento:/Sonhava, que tocava o
pensamento/Com liberdade o bem que mais queria,/Fortuna venturosa, claro dia:/Mas
ai! Que foi um vão contentamento!/ Estava ó Clori minha possuindo/Desse formoso
gesto a vista pura,/Alegres glórias mil imaginando:/Mas acordei, e tudo
resumindo,/Achei dura prisão, pena segura,/Ah quem estivera assim sempre sonhando!
(Bacelar, in: Pécora, 2002, p. 136).
Numa época em que se afirmava a vida ser sonho (verdadeiro lugar-comum, não
apenas título da famosa peça do madrileno Pedro Calderón de la Barca (1600-1681), o
amor era constantemente descrito como o mais doce dos prazeres, mas também como
uma experiência que perturba, ao fazer o que era prazer transformar-se em dor, dor da
dúvida, da perda, etc. Tudo isso é muito conhecido, comentado. Do gozo do sofrimento
na tentativa imaginária de manter um objeto de amor perdido fala-se muito menos,
embora também seja um lugar-comum poético expressivo na literatura do período.
Isto é, a perpetuação do descontentamento é um mote recorrente em toda sorte
de discurso da Idade Moderna sobre a dor do amor, como, por exemplo, na lírica
camoniana:
Erros meus, má fortuna, amor ardente/Em minha perdição se conjuraram;/Os
erros e a fortuna sobejaram,/ Que para mi[m] bastava amor somente./Tudo passei; mas
tenho tão presente/A grande dor das cousas que passaram,/Que as magoadas iras me
ensinaram/A não querer já nunca ser contente (Soneto 140 (1616), 2005, p. 536).
A respeito da representação das paixões na poesia seiscentista ibérica, João
Adolfo Hansen, na introdução à coletânea organizada por Alcir Pécora (2002), adverte
que o desengano do amor, a melancolia do ideal inatingível, a angústia da perda da
esperança, a dor do tempo, entre outras paixões da alma não são expressões da
subjetividade do poeta, mas tópicas aplicadas conforme os verossímeis e os decoros
específicos do gênero.1 A análise de Hansen ilumina o contexto poético do paradoxo
apresentado na figura do melancólico, como o “Que hei de viver eterno de ser triste,/E
só posso morrer de ser contente”, também de Bacelar. Ele explica que fórmulas
paradoxais, conhecidas como impossibilia, eram rotineiras quando se tratava de figurar
o irrepresentável da intensidade dos afetos melancólicos de amor e dor.
Talvez a obra portuguesa seiscentista mais significativa sobre a dor da separação
sejam as célebres Cartas de amor, ou mais popularmente conhecidas Cartas
portuguesas, publicadas pela primeira vez na França, em 1669, e atribuídas à irmã
Mariana Alcoforado (1640-1723). No caso deste estudo, importa pouco se a autoria é
mesmo da freira de Beja e, menos ainda, se a história de sua sedução e abandono é real
ou fictícia. O mais interessante é que as cartas remetidas ao conde francês Noel de
Chamilly, que estivera a serviço militar em Portugal, entre 1664 e 1667, e logo
publicadas em francês por Claude Barbin e reeditadas em Colônia, Lyon, Haia e
Bruxelas, ainda no final do século XVII e início do século XVIII, descrevem a paixão
amorosa malograda em seu aspecto mais dolorido.
A primeira carta descreve a crueza e a complexidade da dor da ausência, difícil
de nomear. Aos olhos que antes gozavam da visão do amor, resta senão as lágrimas. A
presença é substituída pelo choro ininterrupto. Ao mesmo tempo em que afirma saber
que se consome em vão, afirma ter um apego pela infelicidade atribuída ao abandono do
outro. Escreve que lhe dedicou a vida quando o viu e, agora que não pode mais vê-lo,
Não se pode afirmar, portanto, nenhum tipo de sinceridade psicológica e, sim, estilística. A autoria
reside, sobretudo, na combinação e recombinação inesperada dos lugares-comuns e imagens pré-definidas
pelas autoridades em vigor, como a lírica de Petrarca, Tasso, Marino, Góngora, Quevedo, entre outros.
1
apega-se desesperadamente a suas lembranças, que a precipitam ainda mais no
sofrimento: “Como é possível que lembranças de momentos tão agradáveis tenham se
tornado tão cruéis? E – como que contra a natureza – não sirvam senão para tiranizar
meu coração?” (Alcoforado, 1669/1992, p. 19).
Na dor da mulher enclausurada e abandonada, à impossibilidade concreta de
uma reconciliação, soma-se a disposição anímica que oscila entre alegrias ilusórias de
esperança e o desespero, inconstância que culmina na consolação no próprio sofrimento,
marca inconteste de algo que chamaríamos de masoquismo, no feminino: “porque só
quero mesmo sentir a minha dor. (...) Adeus. Que você me ame sempre. E me faça
sofrer ainda mais” (Alcoforado, 1669/1992, pp. 20-21).
A segunda carta retoma a tópica do preço do prazer, sempre breve e caro demais.
Fala de movimentos extremos: emoções surpreendentes no amor, mas que custam dores
estranhas no seu afastamento. A grande excitação do encontro precipita-se em também
intensa dor, manifesta por lágrimas, suspiros e no pensamento de uma morte
irremediável.
Adoecer, recusar consolos, anular a si mesmo e, sobretudo, tomar gosto pela
tortura eram características normalmente atribuídas à melancolia amorosa que aparecem
na descrição de si ao longo das Cartas portuguesas. Por exemplo, apesar de queixar-se
de sua partida e maldizer a escolha do amado, na segunda carta, escreve que ainda
prefere o amor marcado por tanto sofrimento. Sabe-se enlouquecida de amor, mas não
pode viver sem o prazer de amar entre tanta dor. Isso se repete nas cartas até que dá
sinais, na quinta e última delas, que o apego à dor, colocada no lugar deixado vazio pelo
amante, é solucionado, pouco a pouco, pela decisão de viver na solidão.
Sobre a história do amor, Mary Del Priore (2005) sumariza a sucessão de ideias
dominantes e seu impacto na cultura brasileira, ordenando diferentes modelos. No
período entre os séculos XVI e XVIII, haveria uma passagem da mentalidade medieval,
que concebia o amor como algo ideal e inatingível para a renascentista, em que se
buscava, mesmo que timidamente, associar espírito e matéria. Mais tarde, na Idade
Moderna, a Igreja e a Medicina não teriam medido esforços para separar paixão e
amizade, alocando uma fora, outra dentro do casamento.
De qualquer forma, retomar tanto a história dos modelos quanto a produção
literária sobre o tema do amor serve a nos lembrar que seu caráter mitológico é o que
define sua essência, longe de ser do campo do natural.
Por exemplo, o célebre pregador jesuíta Antônio Vieira (1644), presença
obrigatória em qualquer compêndio de literatura portuguesa que se preze, desconstrói a
suposta natureza do amor mundano. Para Vieira, o que, no mundo, chama-se amor, na
realidade, não existe. Não passa de ilusão, quimera, mentira, engano, doença da
imaginação. Por tudo isso, o amor é tormento. O amor humano é fonte de dores da alma
porque é da ordem da dúvida e, sobretudo, da incerteza de ser correspondido:
Póde haver maior tormento que amar, quando menos, em perpetua duvida, amar em
perpetua suspeita de ser, ou não ser amado? Pois este é o inferno sem rendempção, a
que se condemnam todos os que amam humanamente, e tanto mais, quanto mais
amarem (Vieira, 1644/1951, vol. II, p. 307).
No Décimo Nono Sermão do Rosário, Vieira critica a característica do amor de
tudo prometer e somente cumprir parcialmente. O amor humano é sempre parcial, por
isso, triste. Não importa se o sujeito do amor é rico ou pobre, humilde ou poderoso, no
ato de dar-se há inevitavelmente divisão e na divisão, parcialidade:
A maior inclinação do amor é dar ou dar-se todo; e a maior mortificação do
mesmo amor é dar sómente parte. (...) Assim se entristece e mortifica o amor, quando dá
parte a quem quizera dar tudo. Mas d'esta mortificação nenhum amor póde se livrar,
ainda quando o maior amor se ajunta com o maior poder (Vieira, s.d./1951, vol. XII, pp.
51-52).
É claro que, sustentado na concepção católica de amor, cujo fundamento central
era a teologia filosofante de Agostinho e a doutrina das paixões da alma de Tomás de
Aquino, a desconstrução da realidade do amor mundano realizada por Vieira serve para
enfatizar a verdade e perfeição de outro amor, esse sim suposto real e permanente, o
amor divino. De qualquer forma, recai numa noção complexa de amor, na qual há a
esperança da possibilidade de sua concretização – numa experiência de completude e
harmonia absoluta ao retornar à casa Paterna após a morte -, mas que não é dada ao ser
enquanto estiver vagando pelo desterro deste mundo. Neste contexto, empreendia-se
essa cruzada contra o gozo do amor mundano, algo que poderíamos formular como “ou
deseje (o outro Amor) ou se entregue ao amor não-amor, melancólico”.
Essa melancolia, chamada de melancolia amorosa, era uma questão importante
para a medicina da alma. Inclusive, muitos médicos da época tratavam o amor
justamente como uma doença da imaginação. Por exemplo, o médico francês Jacques
Ferrand (1575-1623) declara: “Nós diríamos, portanto, sob esses fundamentos, que o
amor ou a paixão erótica é uma espécie de devaneio, procedente de um desejo
desregrado de gozar da coisa amada, acompanhado de medo e de tristeza” (Ferrand,
1623, p. 26, trad. nossa). Esse devaneio pode, porém, causar febre, alterações dos
batimentos cardíacos e no rosto, apetites depravados, tristeza, suspiros, lágrimas sem
motivo, fome insaciável, sede enraivecida, opressões, sufocações, insônia, melancolia,
raiva, furor uterino, entre outros sintomas somáticos.
Todavia, dentre muitas terapêuticas propostas em tratados da época, sobressai
justamente aquela consagrada por um poeta. O poeta latino Ovídio (43 a.C.-17) em seu
Os remédios do amor, propõe, para esquecer a pessoa amada: uma vida ativa, mudar de
cidade, refletir sobre os defeitos da tal pessoa ou compará-la a alguém mais bela, ter
várias amantes, pretender-se frio e indiferente, meditar sobre os tormentos do amor,
fugir da solidão, evitar o convívio com casais enamorados, evitar encontrar-se com a
pessoa amada, não reclamar, não cultivar o ódio ou as doces lembranças, ficar longe dos
concertos, danças, peças de teatro e, sobretudo, dos banquetes e do vinho que estimulam
a paixão erótica.
Das lições de Ovídio, além daquelas mais comportamentais, pode-se destacar as
que pressupõem uma modificação na representação do objeto amoroso. Hoje, nós
diríamos que nenhuma modificação seria efetiva se não ocorresse na fantasia
inconsciente que sustenta a paixão. Caso contrário, haverá apenas um deslocamento
externo, quase que meramente cosmético, e a escolha objetal estará fadada a se repetir.
Em A Transitoriedade (Vergänglichkeit), de 1916, Freud fala de uma revolta
psíquica contra o luto, mesmo antes da perda. Ele explica que o desprendimento da
libido de seu objeto só pode ser um processo muito doloroso: “(...) Só percebemos que a
libido se apega a seus objetos e, mesmo quando dispõe de substitutos, não renuncia
àqueles perdidos. Isso, portanto, é o luto.” (Freud, 1916/2010, p. 250). Luto esse que o
Eu lírico das Cartas portuguesas custou a realizar.
Assim, mesmo sabendo que a exigência de perpetuidade é claramente um
produto de nossos desejos que não pode reivindicar valor de realidade, não é nada fácil
renunciar a essa ilusão.
O estudo da literatura seiscentista mostra que as representações letradas do
amor revelam, para além da vivência da paixão amorosa, a condição humana da falta-aser, sempre vulnerável, portanto, ao pathos, enredada no gozo e, ainda assim, movida
pelo desejo. Como acabamos de mencionar, para representar o amor, usava-se
amplamente de figurações da impossibilidade.
Ora, há algo de mais freudiano do que afirmar que o amor é vivido na
impossibilidade? Em O mal estar na cultura (1930/1976, p. 441), Freud sentencia:
“nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão
desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu
amor.”
Portanto, os impossibilia da literatura não estão desatualizados, pelo contrário.
Aliás, é com uma aporia, retirada da lógica, que Lacan tenta representar o que está em
jogo no amor entre seres sexuados. Logo no primeiro capítulo do seminário XX, ele
afirma justamente que o gozo do corpo do Outro promete-se apenas no infinito,
retomando, como metáfora, o célebre paradoxo de Zenon de Eleia (c. 495 a.C. - 430
a.C.): Aquiles nunca poderá alcançar, reencontrar a tartaruga, que sai na frente, por ser
não-toda. Ele pode ultrapassá-la, mas só poderá alcançá-la no infinito, mesmo porque,
arremata Lacan, o passo da tartaruga será cada vez menor e não chegará jamais ao
limite.
Referências bibliográficas
ALCOFORADO, M. Cartas de amor. Trad. e apresentação de Marilene Felinto. Rio de
Janeiro: Imago, 1992.
CAMÕES, L. Obra Completa. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar: 2005.
DEL PRIORE, M. História do Amor no Brasil. São Paulo: Editora Contexto, 2005.
FERRAND, J. De la maladie d'amour ou mélancholie érotique. Discours curieux qui
enseigne à cognoitre l'essence, les causes, les signes et les remedes de ce mal
fantastique. Paris: Denis Moreau, 1623.
FREUD, S. Vergänglichkeit. Gesammelte Werke. V. X (p. 358-361). Frankfurt am
Main: Fischer Verlag, 1981. (Originalmente publicado em 1916).
FREUD, S. Das Unbehagen in der Kultur. Gesammelte Werke. V. XIV (p. 421-513).
Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1981. (Originalmente publicado em 1930).
LACAN, J. Le Séminaire – Livre XX. Encore. Paris: Éditions du Seuil, 1975.
OVÍDIO. L’Art d’aimer. Les Remèdes à l’amour. Les produits de beauté pour le visage
de la femme. Trad. francesa de H. Bornecque. Paris: Gallimard, 2007.
PÉCORA, A. (org.). Poesia Seiscentista. São Paulo: Hedra, 2002.
VIEIRA, A. Sermões. Porto: Lello e Irmão, vols. II e XII, 1951.
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