Pergunte a um Expert
Ana Cristina Barreto
Bezerra responde (Parte 1):
Quais os conceitos mais atuais sobre cárie e o que são as lesões de mancha
branca ou cavitações que podem aparecer durante o tratamento ortodôntico?
Quais os estados da arte em relação aos métodos de prevenção de cárie
durante o tratamento ortodôntico e condutas com relação às manchas
brancas e lesões de cárie mais avançadas?
Rosely Suguino
introdução
Inicialmente gostaría de dividir a pergunta em duas partes, devido à complexidade das respostas. Iniciarei tecendo considerações
sobre a primeira parte da questão.
Durante as duas últimas décadas temos presenciado uma evolução ímpar da ciência e especialmente da Odontopediatria, que compreende uma extensa e difícil área da Odontologia. Esse tremendo
progresso deixa-nos maravilhados e, ao mesmo tempo, extremamente preocupados, tanto no sentido da atualização quanto na responsabilidade de transmitir aos nossos alunos e colegas os avanços, sem
que tenhamos a pretensão de nos adiantarmos à comprovação científica, hoje tão bem estabelecida pelos grupos da MacMaster University
(Canadá) e de Oxford (Inglaterra) que estudam e guiam os trabalhos
de pesquisa embasados cientificamente. Atualmente, esses conceitos estão bem estabelecidos tanto na Medicina quanto na Odontologia17,18. A Odontologia baseada em evidências já é um fato a ser
considerado, pois sua prática tornou-se mais complexa e desafiadora
nas últimas décadas. A necessidade de informações confiáveis e a revolução eletrônica uniram-se para permitirem uma mudança radical
de pensamentos e deduções. As informações baseadas em evidências
fecharam um espaço existente entre as pesquisas clínicas e a prática
real da Odontologia em suas diversas áreas. Dessa forma, estão sendo constantemente transmitidos conhecimentos novos, embasados
cientificamente, o que permite ao profissional clínico interpretar e
aplicar os achados das pesquisas em benefício dos seus pacientes.
Os avanços conceituais e técnicos sobre cárie não ficaram à
margem de todo esse progresso. Como atuamos diretamente na
Odontopediatria e na Cariologia, temos tentado acompanhar, com
muito interesse, o ritmo frenético de evolução das novidades. Muitos
trabalhos de revisão sistemática da literatura têm sido publicados
e pesquisas clínicas randomizadas controladas15 realizadas in vivo,
in vitro e in situ. São numerosíssimos os artigos publicados na lite-
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ratura nacional e internacional. Portanto, cabe dentro dos conceitos
da Odontologia embasada cientificamente fazer-se uma seleção dos
trabalhos, filtrando aqueles que realmente atendem a esses conceitos. Assim, aceitamos o desafio de, em um espaço limitado, transmitir de uma forma compilada, as informações mais recentes que
tivemos a oportunidade de ler e aprender. Espero poder acrescentar
um pouco mais para aqueles que trabalham em uma área difícil e
complexa como a Ortodontia, sendo que não lhes caberia mais tempo e trabalho para a atualização em outras.
mais avançada estão sendo utilizados, como o laser de baixa potência (DIAGNOdent), e mais recentemente o tomógrafo odontológico, que nos fornece imagens variadas em três dimensões,
dirimindo dúvidas e exibindo imagens até então inimagináveis na
prática odontológica diária (Fig. 1a, b, c).
Da mesma forma, o avanço na tecnologia dos materiais dentários, principalmente os materiais adesivos e terapêuticos (contendo
flúor e outros minerais), em associação com os novos conceitos, permitiu a prática de uma Odontologia mais conservadora, biológica
e denominada atualmente de Odontologia de Intervenção Mínima
(MI). Em seção subseqüente voltaremos a comentar os princípios dos
conceitos atuais sobre tratamento com a abordagem da intervenção
mínima.
Vários estudos têm descrito a cárie dentária como uma doença presente em todas as populações do mundo e apontada como a
principal causa de processos dolorosos e perda de dentes. Nas últimas duas décadas, pesquisas têm mostrado um declínio drástico na
prevalência da doença em crianças e jovens nos países considerados
desenvolvidos e, por essa razão, considerada erroneamente como
“erradicada”, levando a afirmações de que algumas populações estavam “livres da doença”.
Essas opiniões, aliadas ao fato da dificuldade em se explicar o
porque do real declínio da doença em várias populações do globo e
em um período de tempo que poderia ser considerado curto, indicam
a necessidade de se reconsiderar a definição da cárie dentária dentro
de um contexto mais atual e embasado em evidências científicas.
Portanto, ao se contextualizar a doença nesta nova forma de entendimento, haverá, certamente, conseqüências dramáticas nos conceitos de diagnóstico, nas estratégias dos programas preventivos e nas
decisões de tratamento.
Não se pode ignorar esse novo paradigma oriundo do progresso
científico da cariologia, que nos permite um melhor entendimen-
O que se pode aprender sobre os novos conceitos
em Cariologia
Em primeiro lugar, é interessante fazer-se uma reflexão atualizada sobre a doença cárie dentária. O avanço científico no entendimento da etiologia e progresso das lesões de cárie trouxe
uma modificação na interpretação da doença e, assim, uma modificação nos critérios de diagnóstico e filosofia de tratamento.
Também, em relação ao diagnóstico, é preciso que se diga que
os diferentes métodos empregados para a detecção precoce das
lesões têm sido bem estudados e os avanços tecnológicos esclareceram as dúvidas e questionamentos quanto aos locais que
apresentam lesões iniciais, cujo diagnóstico definitivo é sempre
mais difícil. Os exames visual e tátil continuam sendo de grande valia, porém a utilização da sonda exploradora deve ser feita
cuidadosamente. Vários autores são concordes quanto ao perigo
do uso de uma sonda muito afiada quando, durante a inspeção
tátil, poderá ocorrer a quebra de prismas de esmalte desmineralizados. Portanto, para o diagnóstico de lesões de cárie faz-se necessário um campo bem iluminado, superfícies limpas e secas, um
olhar bastante aguçado e uma soda exploradora de ponta romba.
O exame radiográfico continua sendo um método auxiliar com
diferentes técnicas e aparelhos. Outros métodos com tecnologia
B
A
B
C
C
Figura 1 - A) Tomógrafo odontológico 3DX (Tóquio, Japão). B) Figura demonstrativa dos planos de corte Z (axial), Y (sagital) e X (seccional). C) Imagem tomográfica da profundidade da fissura de um molar: distância A-B = quantidade total de esmalte.
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Ana Cristina Barreto Bezerra
to concernente à natureza da doença cárie. Considerando-se que a
maioria dos dados sobre prevalência e severidade de cárie nas diversas populações é publicada como resultado dos índices CPO-D,
ou seja, o registro de cavidades e restaurações, pode-se inferir que a
doença cárie tem sido diagnosticada e reconhecida pelos seus sinais
e sintomas, que nada mais são do que estágios mais avançados da
doença2. Como nos foi ensinado que lesões de cárie, quaisquer que
fossem as suas dimensões, deveriam ser restauradas, o registro dessas restaurações nos índices CPO-D termina por sugerir a atividade
de cárie pregressa do paciente. Tendo-se em mente essa questão, fica
claro que mudanças no critério de diagnóstico de cárie e na filosofia
de tratamento terão repercussão direta e uma diferença radical nos
dados referentes à prevalência e incidência de cárie14.
Atualmente, a explicação predominante sobre o declínio da
doença cárie tem sido a ampla utilização dos fluoretos nas suas
mais diversas formas (Fig. 2). Entretanto, parece que a utilização
de flúor contribui somente com cerca de 40-50% na redução de
cárie em crianças4. Ainda no que diz respeito ao papel do flúor,
quando se comparou os índices CPO-D de cidades com água de
abastecimento fluoretada e não fluoretada, registrando-se, além
das cavidades abertas, as lesões iniciais de cárie (mancha branca),
não houve diferença nos incrementos de lesões de cárie entre as
mesmas. O significado dessa observação é que os fluoretos têm
o seu mecanismo de ação dirigido para a inibição do progresso
da lesão e, portanto, adiando o período de tempo para a detecção
de uma lesão cavitada. Parece que o flúor, mais do que prevenir o
início da lesão, retarda ou impede o progresso das lesões já estabelecidas, o que está de acordo com a teoria de Fejerskov et al.3,19
sobre o efeito cariostático dos fluoretos.
Uma outra constatação encontrada na literatura é que há um
aumento da incidência e prevalência de cárie com a idade, e que a
atividade da doença não se limita a uma determinada faixa etária,
podendo atingir crianças e adultos10, dependendo das condições em
que cada indivíduo se encontra em um dado momento.
Outro ponto a considerar é que o conceito de cárie como doença
infecciosa e transmissível tornou-se clássico na Odontologia, desde
os excelentes e marcantes estudos realizados por Keys6 em roedores,
nas décadas de 50 e 60. As bactérias encontradas como responsáveis
pelo aumento de cárie nesses animais foram identificadas posteriormente como estreptococos do grupo mutans. Esse fato deu origem
à definição da doença cárie como uma doença infecciosa específica
causada por essas bactérias, conceito que ganhou a confiabilidade
e suporte da comunidade científica durante as quatro últimas décadas1,2.
Figura 2 - Tipos variados de fluoretos tópicos disponíveis no Brasil.
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Entretanto, questiona-se, atualmente, se esse conceito satisfaz os requisitos dos critérios clássicos de uma doença infecciosa transmissível. De acordo com Last9, doença infecciosa é “uma
doença que tem como causa um agente infeccioso específico ou
seus produtos tóxicos e se estabelece através da transmissão de
uma pessoa, animal ou reservatório infectados para um hospedeiro susceptível”... Alguns aspectos devem ser considerados quando
se faz referência ao papel exercido pelos estreptococos do grupo
mutans. Em primeiro lugar deve-se enfatizar que esses microorganismos são nativos da cavidade bucal de todas as populações do
mundo. Sua relação com o processo da doença cárie não deve ser
considerada absoluta, pois muitos indivíduos portadores de altas
contagens de estreptococos do grupo mutans não desenvolvem a
doença, enquanto outros, pouco contaminados, são portadores de
lesões de cárie. Um segundo fato a considerar é que alguns estudos
mostram que a presença dessa bactéria é responsável por somente
6-10% da experiência de cárie em algumas populações5. Outros
têm mostrado que a contagem dessas bactérias na saliva de crianças não pode predizer o futuro incremento de cárie nessa faixa
etária e, quando somado a outros parâmetros ditos convencionais,
não aumentam a confiabilidade na predição de cárie futura. Todas
essas observações parecem nos informar que os estreptococos do
grupo mutans não exercem papel específico no processo de cárie.
Entretanto, quando houver um aumento no metabolismo bacteriano e multiplicação das colônias, pode-se dizer que se estabeleceu
um desequilíbrio na homeostase da microbiota bucal, dando lugar
a uma infecção oportunista, derivada de microorganismos que já
estavam presentes no ambiente bucal do hospedeiro. Dessa forma,
a teoria da placa ecológica de Marsh e Martin12 sugere que, quando
se estabelecer um desequilíbrio da homeostase da microbiota, o
tratamento da infecção oportunista deverá ser direcionado para
o re-equilíbrio da microbiota residente. Se esses conceitos forem
aceitos, fica claro que uma nova abordagem no diagnóstico e tratamento da doença cárie deverá ser estabelecida.
Cárie Dentária – Desmineralização / Remineralização: desequilíbrio fisiológico entre os fluidos
do biofilme e a Hidroxiapatita
A lesão de cárie pode ocorrer em qualquer superfície dentária
onde o biofilme se instala e permanece durante algum tempo sem
que seja perturbado em sua estruturação, metabolismo ou deslocamento. Assim, durante os processos de desmineralização, quando há
uma queda do pH do meio (<5,5) decorrente da presença de ácidos
orgânicos, resultante da glicólise do metabolismo bacteriano, que
por sua vez foi ativado pela presença de carboidratos fermentáveis,
estabelece-se uma troca iônica resultante da diferença da pressão
osmótica entre o biofilme e a superfície dentária. Nessa situação,
acontece a dissolução de íons da hidroxiapatita (HA) para o meio
16
Rev. Clín. Ortodon. Dental Press, Maringá, v. 5, n. 2 - abr./maio 2006
externo. Inicialmente essa perda é representada pelos íons mais solúveis do cristal de HA como carbonato e magnésio para, em seguida,
íons importantes como o cálcio e fosfato também serem solubilizados. Quando o pH chega em níveis mais baixos, até aproximadamente 4,5, o íon flúor também é perdido2,8,13,19.
É importante lembrar que a saliva tem capacidade de neutralização dos ácidos orgânicos através do seu sistema tampão bicarbonato/fosfato, elevando o pH, que retorna aos níveis de neutralidade
em condições normais. Durante a elevação do pH ocorrem os processos de remineralização, ocasião em que, novamente acontece um
dinamismo iônico entre o biofilme e a superfície dentária, havendo o
retorno dos íons perdidos para dentro dos cristais da HA. A disponibilidade de flúor no meio ambiente favorece a incorporação também
desse íon, que é extremamente eletronegativo e de fácil ligação. Em
decorrência, temos um cristal de HA fluoretado, ou a fluorhidroxiapatita, sendo menos solúvel a um novo desafio cariogênico.
Em outras palavras, o mineral das superfícies dentárias pode se
dissolver e se re-depositar sob o biofilme sempre que as condições
químicas nessa interface forem favoráveis. Portanto, sempre que
houver uma superfície dentária com acúmulo de biofilme metabolicamente ativo haverá o perigo de uma modificação estrutural no
esmalte, representada pela perda mineral e modificação na composição dos cristais de HA. O esmalte jovem (dentes com menos de dois
anos na cavidade bucal) é mais susceptível aos processos de desmineralização, pois ainda não incorporou uma quantidade maior de
íons minerais à sua estrutura, tornando-se mais susceptível à solubilização durante os desafios cariogênicos. Esse processo de aquisição
de minerais é chamado de maturação pós-eruptiva.
Com a continuidade desses processos por longo período de tempo, onde a desmineralização se sobrepõe à remineralização havendo, portanto, um desequilíbrio na fisiologia da cavidade bucal, uma
quantidade significativa de íons é perdida e a conseqüência é o aparecimento da lesão inicial de cárie.
Clinicamente essa modificação estrutural no esmalte pode ser
vista como uma mancha branca, opaca e áspera em sua superfície
(esmalte cretáceo), localizada em locais onde o acúmulo do biofilme
é patente (Fig. 3). A mancha branca, ou lesão inicial de cárie, é histologicamente reconhecida como lesão de sub-superfície (Fig. 4).
Dependendo da intensidade da ocorrência dos processos de desmineralização e remineralização, podemos afirmar que o paciente
está sob um alto desafio cariogênico ou o próprio ambiente bucal é
o fator de cariogenicidade.
Com o passar do tempo e a continuidade dos processos de desmineralização, a perda mineral pode ser tão intensa que a re-deposição
de íons na área atingida não acompanha a velocidade de solubilidade
ocasionada pelo alto desafio cariogênico. Portanto, a formação de
cavidade é uma possibilidade. Atualmente, com o reconhecimento
da necessidade de controle do biofilme através da higiene bucal e o
Ana Cristina Barreto Bezerra
Figura 3 - Lesão inicial de cárie (lesão de sub-superffície) visível clinicamente, com esmalte de aspecto cretácio, branco e opaco.
Figura 4 - Lesão de sub-superfície, vista em um corte com luz polarizada.
Figura 5 - Lesão de cárie não tratada, com evolução em dentina.
contato com os fluoretos, esse processo pode levar vários meses ou
anos, até que a desmineralização atinja o limite amelo-dentinário e
progrida para uma cavidade em dentina (Fig. 5).
A perda mineral em qualquer superfície dentária pode ser revertida se o equilíbrio do ambiente bucal for restaurado ou modificado
e, principalmente, pelo controle ou remoção do biofilme. À medida
em que a remineralização retorna aos padrões fisiológicos, isto é,
houver um equilíbrio entre a desmineralização e a remineralização,
os efeitos podem ser vistos clinicamente quando as lesões iniciais
de cárie (mancha branca) adquirem outra característica, qual seja, a
de uma mancha de tamanho menor, de cor branca ou acastanhada,
lisa e brilhante (Fig. 6). A reversão ou remineralização também pode
ocorrer em lesões cavitadas, desde que mantidas sem a presença
do biofilme.
É conveniente enfatizar que os processos de desmineralização
e remineralização, que ocorrem na interface da superfície sólida do
dente e da fase líquida do biofilme, são eventos extremamente dinâmicos. A atividade metabólica desses processos resulta em graus
diferentes de intensidade de solubilidade da HA, demonstrando
uma flutuação constante no equilíbrio do micro ambiente que circunda os elementos dentários. A extensão e a velocidade dessas
perdas minerais (desenvolvimento e progressão da lesão) são determinadas por uma variedade de fatores intrabucais chamados de
fatores determinantes (composição bacteriana do biofilme, fluxo
Rev. Clín. Ortodon. Dental Press, Maringá, v. 5, n. 2 - abr./maio 2006
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Pergunte a um Expert
Classe Social
Saliva - Secreção
depósito
microbiano
pH
flúor/dieta
composição
freqüência
Co
mp
o
r ta
me
nto
dieta
tempo
depósito
microbiano
pH
dente
Saliva - Composição
Atitude
a
nd
Re
ão
aç
c
u
Ed
capacidade
tampão
tempo de
eliminação
do açúcar
nto
me
eci
h
n
Co
Figura 6 - Lesão inicial de cárie em fase de remineralização. Notar o aspecto
liso e brilhante do esmalte.
Figura 7 - Esquema dos fatores determinantes e confundidores ou modificadores11.
salivar e capacidade tampão da saliva, presença de carboidratos
fermentáveis e presença de flúor, cálcio e fosfato). Associados aos
fatores determinantes existem, segundo Manji et al.11 (Fig. 7), os
fatores confundidores, cujo desenho esquemático tenta explicar
a relação entre os fatores etiológicos que são responsáveis pela
doença cárie.
cárie recorrentes deve-se reconhecer que o evento é um simples
reflexo de controle insuficiente da doença e não uma entidade
diferente da doença cárie20.
Embora não seja possível uma discussão detalhada e longa em
um único artigo, esta visão atual sobre a doença cárie pode ser
concluída com a certeza de que o progresso científico nos conduz
continuamente a mudanças de paradigmas em diferentes situações e áreas da Odontologia. Pode-se afirmar, de acordo com essas
novas visões, que a cárie dentária não pode ser considerada uma
doença infecciosa causada por um agente específico, mas reflete
uma mudança na composição e atividade metabólica do biofilme,
onde pode ocorrer um desequilíbrio do meio em relação às estruturas mineralizadas. Assim, a cárie dentária deve fazer parte de um
grupo de doenças consideradas complexas ou multifatoriais como
o câncer, diabetes, doenças cardiovasculares e tantas outras de difícil abordagem. Não se pode determinar que essas doenças tenham
um único fator causal, como atribuir sua etiologia a mutações de
um único gene, ou a um único fator ambiental. Essas doenças são
uma associação de mutações de vários genes, possuem fatores ambientais modificadores e alguns comportamentos e estilos de vida
são considerados de risco para o aparecimento da doença. Um dos
maiores desafios dos pesquisadores da área das ciências da saúde é
verificar qual desses fatores pode contribuir para o estabelecimento de estratégias de diagnóstico, terapia e prevenção7.
Diante dos conhecimentos atuais no campo da Odontologia
e da Cariologia, podemos empreender uma abordagem multifacetada para o tratamento dos pacientes. Reconhecemos que
a substituição contínua de restaurações gera tratamentos mais
complexos e onerosos com um imenso prejuízo para o indivíduo,
que certamente terá seus dentes cada vez mais enfraquecidos
pela perda de estrutura.
Discussão
Deve ser lembrado que, pelas características do ambiente bucal, onde a exposição das superfícies dentárias ao biofilme metabolicamente ativo é constante, a doença cárie pode ser considerada cumulativa. Esse fato leva às seguintes implicações: a cárie
não pode ter uma única abordagem de cura, deve ser controlada
durante toda a vida. As intervenções preventivas são consideradas tratamentos não invasivos na filosofia da Odontologia
de mínima intervenção13,20, que tem como objetivo restaurar o
equilíbrio do micro ambiente bucal. Quando se faz o diagnóstico
dos estágios não cavitados das lesões iniciais recomenda-se um
monitoramento dos efeitos de programas preventivos individuais
ou populacionais16, quando são preconizados ou implementados.
Infelizmente, com todo o progresso da ciência, até o momento não foi identificado um único teste que, isoladamente, possa
predizer o risco individual à cárie. A Odontologia restauradora
invasiva é considerada exclusivamente sintomática, ou seja, os
procedimentos invasivos, mesmo os mais conservadores, sofrem
deterioração e estão sujeitos aos diferentes fatores hostis proporcionados pelas características inerentes ao ambiente bucal:
umidade, presença de microorganismos, grandes diferenças de
temperatura e texturas diversas de alimentos, entre outros. Assim,
todo tratamento restaurador deve ser seguido por um programa
específico de manutenção de saúde. Quando ocorrem lesões de
18
Rev. Clín. Ortodon. Dental Press, Maringá, v. 5, n. 2 - abr./maio 2006
Ana Cristina Barreto Bezerra
Conclusão
Com as novas luzes dos conhecimentos trazidos pela ciência,
é possível evitar-se danos extensos e estabelecer uma nova atitude, levando à adoção de uma Odontologia biológica e preventiva
no controle da doença e, quando da necessidade de intervenção
invasiva, adotar a filosofia dos cuidados restauradores de mínima
intervenção.
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- Especialista em Odontopediatria e em Bioquímica Oral.
- Mestre em Odontopediatria.
- Doutora em Odontologia.
- Pós Doutorado na Universidade de Michigan.
- Professora Orientadora do Programa de Pós Graduação em Ciências da Saúde da
Universidade de Brasília.
Endereço para correspondência
Ana Cristina Barreto Bezerra
SHIS QI 17 conj. 15 casa 03 Lago Sul
CEP: 71645-150 Brasília - DF
E-mail: [email protected]
Rev. Clín. Ortodon. Dental Press, Maringá, v. 5, n. 2 - abr./maio 2006
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