Capa da ISTOÉ - 9/11/2005
O Brasil mostra a sua cara
Pesquisa revela quem é o verdadeiro brasileiro, com todas
as suas enormes contradições
Juliana Vilas e Marina Caruso
Colaborou: Eliane Lobato (RJ)
O umbigo nacional – pensando no coletivo. Agindo no individual.
Os brasileiros hoje. O título, sintomático, batiza uma abrangente
pesquisa nacional realizada pela agência de publicidade Ogilvy
Brasil, que traz um diagnóstico não muito positivo sobre o caráter
e a personalidade do brasileiro. Entre 31 de agosto e 6 de
setembro, a agência ouviu 450 homens e 450 mulheres das
principais capitais brasileiras (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo
Horizonte, Brasília, Recife, Salvador, Curitiba e Porto Alegre), de
todas as classes sociais (A/B, C e D/E) e faixas etárias (acima de
18 anos) da população.
Suas conclusões apontam que o brasileiro é no mínimo
contraditório. Solidários em seu discurso e egoístas em suas
ações, 60% condenam pequenas transgressões, como bater o
cartão de ponto para um colega, comprar um CD pirata ou falar
no celular no trânsito, mas 66%, por exemplo, admitem que não
se incomodam em comprar produtos piratas. Não é à toa que
95% concordam que o individualismo e o egoísmo cresceram no
País, nos últimos anos. O que justifica essa afirmação pode ser a
crença de 72% dos entrevistados de que quem faz a coisa certa
nem sempre é recompensado. As considerações da pesquisa
mostram que “criou-se uma espécie de egoísmo produtivo” em
que, para o cidadão prosperar, não é preciso acontecer o mesmo
com o País.
É a prova cabal de que o sociólogo pernambucano Gilberto
Freyre enxergava longe. Em 1933, quando publicou seu Casa
grande & senzala, definiu o brasileiro como um equilibrista das
contradições, como lembra Mirian Goldenberg, antropóloga e
professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Segundo Sergio Amado, presidente da Ogilvy Brasil, a pesquisa
identificou em que situações o tal jeitinho brasileiro vem à tona.
“Ele vive cada dia como se fosse único e, apesar das convicções
moralistas e politicamente corretas, acoberta falhas dos amigos
no trabalho.”
Paulo Napoli, rapper:
"Um software original custa de R$ 1 mil
a R$ 5 mil, o pirata sai por R$ 5. Viva a rua
Santa Ifigênia, em São Paulo!"
Entre os aspectos abordados – que vão da sexualidade à
educação, passando por cidadania e hábitos de consumo –, esse
espírito contraditório entre o “ser” e o “agir” parece ser o mais
expressivo. O rapper paulistano Paulo Napoli, 29 anos, conhece
bem os dois lados dessa moeda. Como músico, sabe da luta das
grandes gravadoras contra a cópia não autorizada de discos. Mas
como artista independente acredita que a pirataria, tanto dos CDs
vendidos em camelôs quanto no ato de baixar músicas pela
internet, ajuda a divulgar seu trabalho. Ele mesmo, para mixar
suas músicas, recorre a softwares pirateados. “Um programa
original custa entre R$ 1 mil e R$ 5 mil. Os piratas saem por
apenas R$ 5”, diz. “O que São Paulo tem de melhor é a rua Santa
Ifigênia, paraíso do comércio informal”, brinca o músico, que
comanda o projeto Latinites, balada descolada da noite
paulistana.
É à noite, aliás, que todos os gatos são pardos. A pesquisa
mostra que a convivência entre ricos e pobres é cada vez maior.
Segundo o estudo da Olgivy, há um crescente diálogo entre as
classes menos favorecidas e a elite. Representantes de
diferentes classes sociais compartilham, cada vez mais, dos
mesmos gostos e hábitos. Tanto que 65% dos entrevistados
concordam – total ou parcialmente – que “o sucesso da música,
das gírias e das roupas dos subúrbios” foi positivo para o País. É
a influência do funk carioca, por exemplo.
Funk – A tataraneta da princesa Isabel, Paola Maria Bourbon de
Orleans e Bragança Sapieha, 22 anos, vive entre dois mundos
absolutamente diferentes. Herdeira do trono brasileiro (caso
existisse monarquia no Brasil), Paola nasceu em Londres e foi
criada em Petrópolis (RJ), de onde saiu há quatro anos para
dividir um apartamento de dois quartos com amigas na zona sul
do Rio de Janeiro.
Naquela época, a jovem, então com 18 anos, estava apenas
começando a misturar sua vida de princesa com a de plebéia.
Estudante de desenho industrial, passou a andar de ônibus,
dividir despesas em restaurantes comuns, colocou piercing no
nariz, no umbigo e na língua, adotou a calça de cós baixo e
passou a freqüentar bares e bailes populares. É figura fácil nas
festas do Circo Voador, na Lapa, e exímia dançarina de funk. No
melhor estilo Raíssa, a personagem burguesa de Mariana
Ximenes na novela América, Paola deu até um show na
inauguração da loja de Ocimar Versolato (que já fechou) no Rio
há cerca de três meses. Loirona “bateu bundinha” como uma
qualquer funkeira. “Só não vou a bailes funks na favela porque
não achei ninguém com coragem para ir comigo. E sozinha é
perigoso”, garante a bela.
E se de um lado a elite está mais aberta à cultura da massa, de
outro a massa tem mais possibilidades de se parecer com a elite.
Tornou-se comum comprar cópias idênticas de acessórios Louis
Vuitton, Prada ou Dior em qualquer camelô. Afinal, como diria a
musa do funk carioca Tati Quebra-Barraco: “Não importa ser feia
ou pobre, o que interessa é estar na moda.”
Orgulho – Tati transformou-se numa das figuras mais badaladas
e representativas da genuína musicalidade brasileira. E é
justamente dessa diversidade musical que o povo brasileiro tem
mais orgulho, superando, inclusive, a paixão nacional pelo
futebol. Além de Kaká, Ronaldo e Ronaldinho Gaúcho, a música
nacional envaidece os brasileiros que moram no Exterior. Cria-se
aí outra contradição interessante entre o “ser brasileiro” e o “viver
no Brasil”. Enquanto 64% dos brasileiros que moram no País têm
medo da violência e da criminalidade e 11% temem o
desemprego, fora do cercado verde-amarelo, motivos de
entusiasmo não faltam.
E se o orgulho do Brasil, com suas mazelas e maravilhas, como
revela a pesquisa, só é crescente para cerca de metade dos
entrevistados, a admiração pela instituição “brasileiro” (povo
lutador, criativo e guerreiro) fica cada vez mais intensa.
Atualmente 70% da população tem mais orgulho de ser brasileiro
do que tinha há alguns anos.
A bióloga Vera Fernandez Alarcón conhece bem esse sentimento.
Mora há três anos em Barcelona, na Espanha, e vê na
desigualdade social e na violência motivos contundentes para
não retornar à terra natal. Apesar disso, não esconde o orgulho
de ter nascido no país da diversidade cultural, da natureza
exuberante e da alegria. “Fico desanimada quando vejo o
noticiário sobre o Brasil, mas jamais abriria mão da minha
cidadania brasileira”, diz a jovem, que tem dupla nacionalidade
por conta do pai espanhol.
Planos de voltar? Não tão cedo. Vera e o marido acabam de
financiar, em 25 anos, um apartamento na capital catalã. Para
driblar a saudade da família, Vera fala todos os dias por telefone
com a mãe, que está no Brasil, e com a irmã, Carina, que mora
em Viena. E ainda confere o dia-a-dia na casa dos pais por meio
de uma webcam. Mesmo vivendo tão distante, é possível que
Vera tenha mais contato com seus parentes do que muitos pais e
filhos de famílias brasileiras que vivem sob o mesmo teto.
Vera Fernandez Alarcón, bióloga,
que mora em Barcelona: "Fico desanimada
quando vejo notícias sobre a violência no Brasil,
mas jamais abriria mão de ser brasileira"
Ausência – Dois terços dos 900 entrevistados pelo Listening
Post admitem que seu contato com familiares é bem menor do
que
no
passado.
Para
a
psicanalista
Malvina
Muszkat,
especialista em casais e família pela Sociedade Brasileira de
Psicologia Analítica, esse afastamento tem relação com o
enfoque maior que as pessoas têm dado para o trabalho. “Os
pais, principalmente as mães, estão muito preocupados com a
competição profissional, o que os torna ausentes e, ainda que
sem querer, mais permissivos na educação”, explica Malvina.
Com esse novo cenário, a hierarquia no lar foi diluída e a
autoridade passou a ser compartilhada por todos os integrantes
do núcleo, inclusive pelas crianças.
De acordo com o levantamento da Ogilvy, um terço dos
entrevistados concorda plenamente com o direito de os filhos
terem mais voz ativa na casa. Porém, nesse contexto em que
“todo mundo manda um pouco” ficou mais difícil educar jovens e
crianças.
Praticamente
sete
em
cada
dez
entrevistados
concordam que a maior proximidade entre as gerações
prejudicou a autoridade dos pais. Conflito ainda mais evidente
quando pensamos em crianças que substituem brincadeiras com
os amigos por jogos eletrônicos, tevê e internet. Por essas e
outras, 85%
dos brasileiros ouvidos afirmam que as crianças
ficam adultas mais cedo e que isso não é bom.
Mulher fácil – Nessa avalanche de informações que transformam
as crianças e os jovens em adultos precoces, o despertar da
sexualidade também ocorre mais cedo. Cedo até demais,
segundo 94% dos que responderam à pesquisa. A maioria das
pessoas escutadas considera que as mulheres de hoje têm mais
iniciativa na hora da conquista. O que seria fruto de uma grande
liberação sexual do brasileiro, entretanto, nem sempre é visto
com bons olhos; 90% dos entrevistados acham que as mulheres
estão mais “fáceis” hoje em dia. O que nem sempre é bem
interpretado. “Tem mulheres que acham que conquistar é fazer
tudo sozinha. Não é por aí. Nós homens também temos que fazer
a nossa parte”, reivindica o produtor cultural Rafael Neves, 28
anos.
Rafael Neves, produtor
cultural:
"Na minha opinião, mulher
fácil é pra zoar e moça boa,
pra casar"
Galanteador, Neves tem o perfil do jovem brasileiro retratado na
pesquisa. Adora badalar, paquerar e curte o sexo casual, mas
também sonha em montar uma família e, como 77% da
população, acredita: “Na hora de casar, ainda vale para os
homens o princípio da boa moça.” Numa rima sincera e
debochada, se entrega: “Mulher fácil é pra zoar e moça boa, pra
casar!”. Haja brasilidade...
A MÚSICA É PAIXÃO NACIONAL
No terreiro de candomblé, na Igreja Evangélica ou na lida
das lavadeiras à beira do rio. Lá está a musicalidade a
embalar o dia-a-dia do brasileiro. Por isso, 65% dos entrevistados do
Listening Post, da Ogilvy, afirmam que a música é o principal motivo de
orgulho do Brasil.
O futebol aparece em segundo lugar, com 46% das
repostas. Democrática, a música foi eleita maior patrimônio nacional em
todas as classes sociais e faixas etárias do universo pesquisado.
O produtor baiano Ruy César Silva, criador do Fórum Cultural Mundial,
nota que, ultimamente, a mídia tem dado mais atenção ao tema. “A
música está na alma do brasileiro e é um dos maiores patrimônios
imateriais do Brasil. Não há país com tanta diversidade rítmica”, diz.
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