XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
A FORMAÇÃO MORAL E A DIVERSIDADE CULTURAL NA ESCOLA
Luiz Câmara – PUC-Rio
RESUMO
A comunicação apresenta o resultado de um levantamento bibliográfico das pesquisas
mais recentes sobre a relação entre a educação moral e a diversidade de identidades
presentes no cotidiano escolar, e as conclusões de uma pesquisa sobre a resolução de
dilemas morais referentes à injustiça, preconceito e discriminação no cotidiano de uma
escola de ensino médio da cidade do Rio de Janeiro, que teve como referencial teórico a
ética do discurso de Jürgen Habermas e a teoria do desenvolvimento moral de Lawrence
Kohlberg. A coleta de dados se efetuou em duas etapas: (1) observação do campo de
pesquisa, focalizando o comportamento e relacionamento dos estudantes nos momentos
de intervalo e lazer no pátio da escola; e (2) a realização de grupos focais, que
discutiram a resolução de dilemas morais, que versavam sobre conflitos envolvendo
questões de justiça, dignidade humana, preconceito e discriminação referentes às
características de gênero, etnia e orientação sexual. A pesquisa foi motivada pela
constatação da existência de muitas relações conflitivas no cotidiano escolar, causadas,
em grande parte, pela falta de reconhecimento e respeito às diferenças interpessoais,
bem como, pelos limites na formação docente para lidar com esses conflitos. Dentre as
principais conclusões do estudo merecem destaque: (1) as situações de injustiça,
preconceito e discriminação, apresentadas nos dilemas, embora hipotéticas, fazem parte
do cotidiano dos estudantes; (2) a ausência de reconhecimento e da autoridade e da
credibilidade dos adultos para a resolução de conflitos nos quais os estudantes se acham
envolvidos. A pesquisa aponta para a necessidade de se aprofundar a compreensão das
complexas relações entre os sujeitos envolvidos no cotidiano escolar, partindo do
pressuposto de que a escola deve cada vez mais se tornar um espaço em que as novas
gerações possam construir suas diferentes identidades, reconhecendo como riqueza a
pluralidade presente em seu interior.
Palavras-chave: educação, ética, moral, dilemas morais, diversidade cultural.
1 - INTRODUÇÃO
Esta comunicação se propõe a apresentar uma reflexão sobre a necessidade e
possibilidade de uma educação moral que se atente para a diversidade cultural presente
nas sociedades contemporâneas e em especial no cotidiano escolar. Os elementos aqui
discutidos representam o resultado de um levantamento bibliográfico das pesquisas
mais recentes sobre o tema e as conclusões de uma pesquisa sobre a resolução de
dilemas morais referentes à injustiça, preconceito e discriminação no cotidiano de uma
escola de ensino médio da cidade do Rio de Janeiro.
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O referencial teórico utilizado na pesquisa foi a ética do discurso de Jürgen
Habermas e a teoria do desenvolvimento moral de Lawrence Kohlberg. A investigação
esteve inserida em um projeto de pesquisa institucional, de um programa de pósgraduação em educação, e culminou com a elaboração de minha dissertação de
mestrado, defendida em março de 2011.
A coleta de dados se efetuou em duas etapas, das quais participou toda a equipe
do grupo de pesquisa ao qual estou vinculado. A primeira consistiu na observação do
campo de pesquisa, a saber, uma escola pública de ensino médio localizada na Zona Sul
da Cidade do Rio de Janeiro, cuja clientela pertence às classes populares das
comunidades do entorno e de alguns bairros mais distantes, nomeada aqui Colégio
Guarani. Tínhamos como foco principal o comportamento e relacionamento dos
estudantes nos momentos de intervalo e lazer no pátio da escola, a partir dos quais
construímos algumas categorias que nos orientaram a interpretar suas idéias e opiniões
expressas na próxima etapa. A segunda etapa foi a realização de grupos focais, que
discutiram a resolução de dilemas morais, previamente elaborados. Os dilemas trataram
de conflitos envolvendo questões de justiça, dignidade humana, preconceito e
discriminação referentes às características de gênero, etnia e orientação sexual. Foram
realizados quatro encontros com um grupo de 14 estudantes, entre 16 e 18 anos, de
ambos os sexos, que se voluntariaram para a pesquisa. Cada encontro, com duração
aproximada de 60 minutos, foi coordenado por um integrante da equipe de pesquisa e
acompanhado por outros pesquisadores, que observaram e realizaram anotações para
posterior discussão nas reuniões do grupo. As discussões foram registradas em áudio,
transcritas e depois analisadas a partir do referencial teórico que orientou a pesquisa.
A pesquisa foi motivada pela constatação da existência de muitas relações
conflitivas no cotidiano escolar, causadas, em grande parte, pela falta de
reconhecimento e respeito às diferenças interpessoais, bem como, pelos limites na
formação docente para lidar com esses conflitos. Essa realidade motivou a necessidade
de se compreender como pensam e que valores fundamentam as ações dos jovens e
adolescentes que estão cursando o ensino médio, quando são confrontados com as
diferentes formas da diversidade (etnia, gênero, orientação sexual, geracional, de origem
social, entre outras).
O momento de vida dos estudantes, por estarem passando pela adolescência,
caracteriza-se pela presença de muitas dúvidas e “certezas”. O mundo adulto é alvo de
questionamentos e a presença de regras e normas provoca, em geral, reações de
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desconforto e desobediência. Este também é o momento de construção e afirmação da
própria identidade e da identidade do grupo de pertencimento, o que pode dificultar o
reconhecimento e respeito pelas diferenças que se apresentam tanto na sociedade quanto
no ambiente escolar. Os valores e crenças adquiridos no ambiente familiar são
colocados em dúvida e precisam ser reafirmados, ou quando não, substituídos por
outros para que o/a adolescente se torne um adulto com princípios que orientem suas
ações e relações interpessoais.
São muitos os exemplos de práticas de preconceito e discriminação nas escolas,
algumas das quais concretizadas por meio do bullying e frequentemente denunciadas
pelos meios de comunicação. Uma pesquisa realizada em 2009, pela Fundação Instituto
de Pesquisas Econômicas (FIPE) para o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas
Educacionais Anísio Teixeira (INEP), em 500 escolas públicas do Brasil, em entrevista
a mais de 18,5 mil alunos, pais, mães, diretores, professores e funcionários, revelou que
99,3% dos entrevistados demonstram algum tipo de preconceito relativo às temáticas de
discriminação pesquisadas (étnico-racial, gênero, geracional, territorial, orientação
sexual, sócio-econômica, necessidades especiais) (FIPE, 2009). Ainda segundo o
resultado da pesquisa, as principais vítimas dessas práticas discriminatórias são os
estudantes, em especial os negros, pobres e homossexuais, os quais em muitos casos são
discriminados, não apenas por seus colegas, mas também, embora em menor grau, por
dirigentes, professores e funcionários.
A Pesquisa Nacional da Saúde Escolar de 2009, realizada pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, com alunos do 9º ano do Ensino Fundamental na
faixa etária de 13 a 15 anos, de 6.780 escolas púbicas e privadas, revelou que 30,8% dos
entrevistados foram vítimas de bullying no período de 30 dias que antecederam a
pesquisa, sendo que 25,4% disseram ter sofrido raramente ou algumas vezes e 5,4% que
sempre sofrem este tipo de violência (IBGE, 2009).
Este quadro apresentado por pesquisas quantitativas de instituições de
referência, e corroborado pelas observações de quem vivencia o cotidiano das escolas,
coloca aos professores e gestores educacionais um grande desafio: proporcionar espaços
e práticas, a partir dos quais o diálogo entre e sobre as diferenças possa se efetuar. O
espaço e o tempo da escola devem ser pensados de forma que as diversas características
individuais e de grupo possam se expressar, de modo que sejam conhecidas e
reconhecidas enquanto expressões legítimas das várias identidades que estão em
processo de constituição. Uma educação moral que possibilite a formação de sujeitos
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moralmente autônomos e sensíveis às diferenças me parece ser o caminho que
possibilitará um avanço rumo a relações interpessoais mais respeitosas das diferentes
identidades que estão em processo de construção e reconstrução.
2 - DIVERSIDADE E MORALIDADE NO COTIDIANO ESCOLAR
Diante da presença das diferenças no cotidiano das escolas e dos conflitos que
provocam, logo vêm à tona as questões referentes à moralidade. Uma questão de difícil
solução, sobre a qual alguns pesquisadores têm se debruçado refere-se ao papel que
cabe à escola, à família e às demais instituições na promoção de uma educação moral
de suas novas gerações, moralidade esta que se atente para a diversidade.
Duas importantes revisões bibliográficas (LA TAILLE, SOUZA E VIZIOLI,
2004 e SHIMIZU, CORDEIRO E MENIN, 2006), apesar de algumas diferenças em
relação a suas categorias de análise e à sua abrangência temporal, demonstram que a
preocupação e a atenção dispensada à formação moral pela educação formal tem sido
crescente. Entretanto, merece destaque a pequena quantidade de publicações que
discutem experiências vivenciadas no cotidiano escolar ou mesmo que proponham
metodologias e conteúdos para a educação moral.
As reflexões teóricas indicam algumas pistas para a compreensão da
complexidade de uma educação moral que considere a diversidade de um mundo cada
vez mais plural (ANDRADE, 2009). Apontam, igualmente, alguns princípios gerais e
esboços de metodologias que podem contribuir com a formação da moralidade de
crianças, adolescentes e jovens no espaço da escola. Por outro lado, não podemos deixar
de considerar que pesquisas empíricas muito têm a contribuir, pois possuem o mérito de
partir da realidade concreta do cotidiano escolar, ou do mundo vivido, questionar
teorizações estabelecidas reafirmando-as ou em muitos casos negando-as e construindo
novas teorias.
Partindo do pressuposto teórico de que os valores morais geram em quem tem
consciência de possuí-los o auto-respeito, Souza e Placco (2008) afirmam que a
construção dessa visão de si depende dos tipos de interações das quais as crianças
participam. As autoras realizaram uma pesquisa empírica (utilizando-se da observação)
na tentativa elucidar quais interações e que conteúdos favoreceriam e quais
dificultariam a construção do auto-respeito. Seu estudo constatou que o investimento no
e por parte do outro, a crença em sua capacidade, uma postura de acolhimento e cuidado
e de enfrentamento dos conflitos são conteúdos de interações que favorecem essa
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construção. As pesquisadoras defendem que, em função de diferentes modos de pensar e
ações éticas – muitas das vezes imorais – presentes no ambiente escolar, as propostas
pedagógicas que se dirigem a favorecer a construção do auto-respeito, deveriam se
atentar para essas diferentes interações e investir na formação dos/as profissionais da
educação.
Nucci (2000), por outro lado, alerta para a importância de se considerar as
distinções psicológicas entre moralidade e formas convencionais de certo e errado, nas
abordagens que visam uma educação moral. O autor se reporta a pesquisas empíricas
realizadas por diferentes pesquisadores em diversos países, entre os anos de 1975 e
2001, que demonstram a compreensão diferenciada que crianças, adolescentes e adultos
possuem a respeito de normas morais e convenções sociais. Partindo dessa distinção, o
pesquisador oferece algumas orientações para uma educação moral inserida em uma
sociedade democrática e pluralista, que prepare os estudantes para “coordenar
compreensões morais fundamentais de justiça e bem-estar humano com convenções e
pressupostos informativos potencialmente mutáveis” (op. cit., p. 80).
Araújo (2000), Sastre e Moreno (2000), Timon e Sastre (2003), e La Taille
(2006), chamam a atenção em seus trabalhos para a importância de se atentar para o
papel da afetividade na constituição dos juízos e das ações morais. Estes estudos
apontam que a atenção que se deve dar à temática dos sentimentos não diminui o papel
do conhecimento moral teórico, mas pode contribuir muito para que se compreenda com
mais clareza as situações que envolvem conflitos morais e, em consequência, favorecer
suas resoluções. Uma grande contribuição destes autores é a advertência de que não
basta ter consciência do que é certo ou errado, ou sobre o tipo de vida se queira viver.
Faz-se necessário, ainda, o desejo, a motivação para seguir este ou aquele caminho, para
se viver tal ou qual tipo de vida. Esta clareza sobre o papel da afetividade na moralidade
em muito contribui com o pensar e planejar ações de formação moral, pois chama-nos a
atenção para a insuficiência de intervenções pedagógicas que se dirigem apenas à
racionalidade dos educandos e educandas. Há que se considerar os tipos de intervenções
e interações sociais que possibilitam a mobilização de seus sentimentos, de seus afetos.
Silva (2006) e Marques (2009) desenvolveram pesquisas empíricas a partir do
referencial teórico da ética do discurso. Ambos concordam que práticas discursivas em
espaços democráticos, nos quais os alunos e alunas participam de discursos
argumentativos sobre temáticas de seu interesse, em muito contribuem para o
desenvolvimento do raciocínio moral dos estudantes. Knapp (2007) segue o mesmo
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raciocínio em um estudo teórico abordando pontos pertinentes da relação entre ética e
educação a partir das contribuições do pensamento de Habermas. A pesquisa de
Carvalho (2008), por sua vez, analisa a relação entre as concepções sobre
desenvolvimento moral de professores do Ensino Médio, sua prática pedagógica e o
nível de julgamento moral de seus alunos e conclui defendendo a importância da
formação continuada dos docentes.
Os estudos de Rabelo (2000), Trevisan de Souza (2004), Dutra de Souza (2007),
Inácio (2008) e Souto (2009) se preocupam em analisar as diferentes práticas
pedagógicas e interações sociais que contribuem com o desenvolvimento da moralidade,
e nos possibilitam concluir que professores e orientadores precisam compreender sua
importância e planejarem sua efetivação no cotidiano escolar. As pesquisas empíricas de
Tognetta (2006) e Tardeli (2006), ambas partindo do referencial teórico da ética das
virtudes, nos apontam outras perspectivas para a formação moral no cotidiano escolar.
Tanto a generosidade, referencial do primeiro, quanto a solidariedade, do segundo, são
virtudes éticas que ao serem construídas podem favorecer relações interpessoais mais
respeitosas em relação às diversidades presentes no espaço da escola.
Este breve levantamento bibliográfico aponta que a preocupação com a
educação moral no espaço escolar tem provocado muitas discussões e estudos, e os
resultados da pesquisa que realizei, que agora apresento, pretendem ser mais uma
contribuição para a compreensão sobre como pensam e vivenciam a moralidade
crianças, adolescentes, jovens e adultos que convivem no cotidiano das escolas.
3 - ALGUNS ACHADOS DA PESQUISA
A observação das discussões dos participantes durante os grupos focais, assim
como a leitura e análise de suas transcrições, deixou claro que as temáticas e problemas
referentes à justiça, racismo, homofobia e sexismo estão presentes no cotidiano do
Colégio Guarani. Os/as estudantes demonstraram com sua postura de interesse e
desprendimento
ao
se
posicionarem,
argumentando,
contra-argumentando
e
apresentando exemplos de seu dia-a-dia, que vivenciam e têm consciência de que em
seu ambiente escolar ocorrem situações de injustiça, preconceito e discriminação em
função das diferentes características das identidades dos membros comunidade escolar.
O estudo demonstrou, igualmente, que os jovens participantes não hesitam
quando desafiados a se posicionarem sobre problemas que envolvam suas vidas e
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crenças. Esta postura pode ser interpretada como sinalizadora da pertinência e da
importância que as temáticas abordadas pela pesquisa possuem para eles. A qualidade
da sua participação indicou, além disso, que os pesquisados possuem um bom grau de
maturidade e capacidade de ouvir e respeitar as diferentes opiniões de seus pares. Não
podemos afirmar, entretanto, que são ou que não são representativos da totalidade dos
estudantes do Colégio Guarani, pois não houve nenhum critério para sua seleção, e
participaram todos os que se voluntariaram. De certo modo, o fato de terem sido
voluntários já indica que são estudantes que se interessam em participar de atividades
diversificadas.
Algumas características do Colégio Guarani – como sua organização, a não
observação de conflitos violentos, o envolvimento da comunidade escolar em diversas
atividades – podem ser tomadas como fatores que contribuem para essa postura
relativamente amadurecida e respeitosa dos jovens estudantes que participaram da
pesquisa. Esta interpretação está em consonância com a hipótese de Kohlberg (1992),
segundo a qual a “atmosfera moral” de uma instituição em muito contribui para o
amadurecimento moral de seus membros.
Em muitos momentos de suas argumentações, os jovens pesquisados
expressaram que não confiam na capacidade dos adultos de assumirem sua
responsabilidade na resolução de problemas e conflitos. Isto ocorre, por exemplo,
quando, na discussão do dilema de Fernando (dilema sobre orientação sexual), alguns
participantes propõem que o protagonista deveria resolver o conflito diretamente com o
outro estudante, sem a interferência da professora; quando constatam a incapacidade do
pai de Marcos e Fernanda (dilema sobre gênero) de lidar adequadamente com os
comportamentos dos filhos, devido a sua postura sexista; ou ainda, quando propõem
jogar o Capitão Pereira ao mar (dilema sobre justiça), o qual representa a figura da
autoridade.
Por outro lado, os participantes demonstram acreditar em sua capacidade e em
sua autonomia para resolver problemas e conflitos. Defendem que os adultos,
representados por pais e professores, deveriam depositar mais confiança nos jovens e
adolescentes, pois, apesar de serem dependentes em muitos aspectos, já têm capacidade
para tomar algumas decisões. Essa crença em sua autonomia se expressa, por exemplo,
quando Greg e Renato (dilema sobre diferenças étnicas) reconhecem que os pais têm o
direito de desejar o melhor para os filhos e de orientá-los, mas, os jovens deveriam
poder tomar algumas decisões referentes à suas próprias vidas.
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A não credibilidade dos adultos em alguns momentos e a crença na autonomia
dos adolescentes e jovens podem ser compreendidas como duas faces da mesma moeda,
e não deveriam ser interpretadas apenas como consequências uma da outra. Ou seja,
penso que não seria correto afirmar que a falta de credibilidade dos adultos seja uma
consequência direta da crença em uma capacidade de autonomia adolescente, como
também que a crença na autonomia seja consequência pura e simples da carência de
credibilidade dos adultos. Acredito que a construção de uma autonomia pessoal, durante
o processo de amadurecimento moral, possa ser construída no confronto com a
autoridade, sem que necessariamente sua credibilidade reconhecida. A ausência de
credibilidade por parte dos adultos, pode provocar a manutenção de posturas
heterônomas e dificultar o surgimento da própria autonomia.
As observações, interpretações e constatações apresentadas pela pesquisa
provocam algumas indagações quando se pensa na educação escolar, nas instituições e
agentes responsáveis por promovê-la. Ponderando que em seu espaço, os educandos e
educandas vivenciam problemas que envolvem questões de justiça, preconceito e
discriminação, e os consideram importantes em suas vidas, qual seria o papel da escola
frente a eles? Os professores e gestores escolares estão preparados para lidar com essas
questões? Se não estão, que alternativas poderíamos apontar? Se estão, quais processos
foram os mais decisivos para esta formação?
Não tenho a pretensão de apresentar saídas e propostas de intervenções, que
julgaria serem soluções para as questões levantadas ou para muitas outras que possam
ser provocadas por possíveis interpretações dos dados desta pesquisa. Entretanto,
algumas considerações e reflexões neste sentido merecem ser partilhadas.
As diversidades e os conflitos a elas inerentes estão presentes dentro da escola e
esta não pode se furtar a exercer o papel de formadora de cidadãos/ãs competentes não
apenas no que diz respeito aos diversos conteúdos disciplinares, mas também no que se
refere à capacidade de se relacionar de forma respeitosa e responsável, dentro de uma
sociedade plural e democrática, na qual todas as identidades têm o direito ao
reconhecimento e ao desenvolvimento de suas potencialidades. Por ser uma instituição
mais plural que a família, a escola poderia ser o espaço, por excelência, no qual a
pluralidade de características, necessidades e interesses de seus educandos pudessem se
expressar. Deveria, talvez, oferecer, em sua estrutura e em sua prática pedagógica,
condições tais que as crianças, adolescentes e jovens pudessem, a partir da convivência
com as diferentes identidades, refletir sobre quem são e sobre quem desejam ser,
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tornando-se cidadãos que reconhecem que as diferenças fazem parte da constituição
humana, e que ser diferente não significa necessariamente ser melhor ou pior, ou seja,
que a diferença não precisa ser sinônimo de desigualdade.
As observações do cotidiano do Colégio Guarani, apontaram que a escola possui
um projeto pedagógico que prioriza as boas relações pessoais e a construção da
autonomia de seus estudantes. Não é possível afirmar, contudo, que todo o corpo
docente está, de fato, envolvido, preparado e motivado para investir em uma formação
integral de seus educandos e educandas, que contemple questões referentes à ética, à
moral e ao respeito às diferenças. O que temos condições de afirmar, por outro lado, é
que o fato de um grupo de treze estudantes participarem com um bom nível de
maturidade, envolvimento e respeito, apresentando argumentos e contra-argumentos,
pode sinalizar que algum investimento em sua formação ética e moral foi feita. É
importante reconhecer, contudo, que a escola partilha este papel de formação com a
família e demais espaços em que os estudantes estão inseridos (círculo de amizade,
vizinhança, igreja)
Não pretendo afirmar que a escola onde foi realizada a pesquisa é uma
instituição modelo, posto que a pretensão de avaliar seu trabalho pedagógico foge ao
escopo do pressente estudo. Como o Colégio Guarani contribuiu para o
amadurecimento de seus educandos, e como eles se comportam frente situações reais de
injustiça e preconceito que envolvem diferenças de etnia, orientação sexual e gênero,
são questões que outros estudos poderiam tentar responder.
Ouso apostar, todavia, que uma dos caminhos possíveis para a superação das
dificuldades encontradas pelas escolas no que se refere às dificuldades de convivência e
ao desrespeito pelas diferenças presentes em seu interior, seja abertura para o diálogo
entre gestores, professores, estudantes e demais agentes envolvidos com a escola.
Partindo do pressuposto que são as práticas discursivas (HABERMAS, 2003; 2004) que
constituem e intermedeiam a construção do conhecimento, os diversos saberes podem
ser questionados e se tornarem objeto de investigação em discursos argumentativos
entre os professores e o grupo de estudantes. Do mesmo modo, as regras e normas que
orientam as relações e o funcionamento da instituição poderiam a ser compreendidas
como produção coletiva e, consequentemente, como responsabilidade de todos.
Não se poderia, entretanto, desconsiderar os limites e dificuldades que os
próprios docentes e gestores possuem. Sem um corpo docente com formação que lhe
ofereça condições e instrumentos teóricos e metodológicos para tratar e encaminhar
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adequadamente os conflitos provocados pelas dificuldades de convivência com as
diferenças, tanto nos momentos de urgência quanto preventivamente, dificilmente as
escolas conseguirão superar o quadro de injustiça, preconceito e discriminação que os
educandos vivenciam.
Considerando que a formação docente pode ser pensada em, pelo menos, dois
grandes momentos, a formação inicial e em exercício, estas seriam as duas frentes que
precisariam de atenção e investimento. A responsabilidade das universidades que se
propõem a formar professores não deve ser minimizada. Formar professores não deve se
limitar a equipá-los com os conteúdos de uma disciplina específica, mas proporcionarlhes um referencial teórico sobre o processo de educação, esta entendida como uma
formação integral do ser humano, e, como tal, deve ser muito bem planejada. Cabe,
portanto, às universidades explicitarem em seus cursos de licenciatura conteúdos
referentes. Algumas instituições de ensino superior explicitam em seus cursos de
licenciatura conteúdos referentes à formação sobre ética, moral, cidadania e diversidade,
o que poderia considerado como um possível modelo a ser tomado como referência
(CÂMARA 2005).
O investimento na formação continuada, por sua vez, enfrenta grandes
dificuldades por não estar explicitado que instância é por ele responsável. Seriam as
instituições de ensino, que deveriam se responsabilizar em promovê-lo, ou deveria ser
responsabilidade de cada profissional ? Penso que a formação continuada deveria ser
vista como uma co-responsabilidade das instituições escolares e dos profissionais da
educação. Deveria ser encarada como parte integrante da formação docente, pois
possibilita que enquanto se vivencia o fazer docente se mantém o acesso à reflexão
teórica, elemento imprescindível para a prática pedagógica.
Uma postura da direção do Colégio Guarani que chamou positivamente a
atenção da equipe de pesquisa, e que demonstra o comprometimento dos gestores
escolares, foi sua referência, no primeiro contato feito com o objetivo de solicitar a
abertura do espaço da escola para a pesquisa, à necessidade de uma contrapartida dos
pesquisadores para com a escola, no sentido de contribuir com a formação de seus
docentes e discentes. Esta preocupação – e, de certa forma, cobrança – dos gestores
escolares pode ser interpretada como um compromisso da direção com a formação
continuada de seus quadros.
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4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Revendo a questão inicial que mobilizou a presente pesquisa, considero que os
elementos e reflexões apresentados oferecem uma contribuição, mesmo que parcial e
provisória, para a compreensão sobre como os jovens pesquisados pensam e buscam
solucionar dilemas morais relacionados à justiça e às diversidades. Algumas lacunas,
entretanto, permanecem em aberto, bem como outras questões que surgiram no
percurso. Concluí, a partir do envolvimento e dos elementos que os participantes da
pesquisa apresentaram, que as situações dos dilemas hipotéticos fazem parte do
cotidiano dos estudantes, todavia, seria importante investigar que outros dilemas reais
eles vivenciam e quais são mais intensos e recorrentes. Aponto como um problema
central a ser enfrentado, por professores e gestores educacionais, o não reconhecimento,
por parte dos jovens, da autoridade e da credibilidade dos adultos. Seria pertinente,
além disso, caracterizar a compreensão que os adultos (professores, gestores e demais
profissionais da educação) possuem sobre as situações apresentadas pelos dilemas,
ainda que hipotéticos, e como as enfrentam.
Essas são questões sobre as quais pretendo continuar me debruçando, na
tentativa de aprofundar a compreensão das complexas relações entre os sujeitos
envolvidos no cotidiano escolar, partindo do pressuposto de que a escola deve cada vez
mais se tornar um espaço em que as gerações mais jovens possam construir suas
diferentes identidades, reconhecendo como riqueza a pluralidade presente em seu
interior.
5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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a formação moral e a diversidade cultural na escola