Comarca de Porto Alegre
2ª Vara da Fazenda Pública do Foro Central
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Processo nº: 001/1.05.0276762-0 (CNJ:.2767621-04.2005.8.21.0001)
Natureza: Usucapião
Autor: Guerino S A Construções e Incorporações
Réus: Estado do Rio Grande do Sul
Sucessão de Marcílio Santana Bastos
Adão Batista de Oliveira
Ernesto Correa de Oliveira
Terezinha Carneiro de Oliveira
Alberto Hodara
Jorge Abrahao
Odette Abrahao Moraes
Leonidas Menin de Moraes
Maria Leonice Abrahao Moraes
Pedro Motta Romeu
Iracema Abrahao Romeu
Marilia Abrahao Romeu
Pedro Jorge Abrahao Molloona
Maria Rosaria Abrahao Mollona
Celi Ivone Silva Abrahao
Vera Abrahao
Lorena Abrahao
Juarez Abrahao
Joelmar Abrahao
Joel Abrahao
Joelcir Abrahao
Renato Paulo Nunes Abrahao
Marisa Abrahao
Maria Helena Abrahao Schorr
Arthur Chagas Gerdau Johannpeter (assistente dos réus).
Juíza Prolatora: Carmen Carolina Cabral Caminha.
Vistos etc.
Trata-se de ação de usucapião ajuizada, originariamente, por GERALDO DA SILVA FIGUEIRÓ
contra ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e ERNESTO CORREIA DE OLIVEIRA, objetivando, em
apertada síntese, o reconhecimento do domínio de área de terras localizadas na Ilha das
Flores, com aproximadamente 47 hectares.
Sustentou que ocupava o terreno de forma mansa e pacífica, há mais de vinte (20) anos.
Alegou que sua posse, somada a de seu antecessor, datava de mais de oitenta (80) anos.
Pediu a procedência da ação. Juntou documentos.
Realizada audiência de justificação, citado, o Estado do Rio Grande do Sul contestou (fls.
140/153) arguindo, em preliminar, a impossibilidade jurídica do pedido, na medida em que o
imóvel pretendido usucapir tratava-se de ilha fluvial, constituindo bem de domínio do Estado,
pertencente ao Parque Estadual Delta do Jacuí, insuscetível de usucapião. Arguiu, ainda, a
nulidade do processo por falta de citação do(s) cônjuge(s) do(s) confinante(s). No mérito,
alegou, em suma, não ter sido provado o domínio sobre a área objeto do usucapião, tampouco
que fora desmembrada do patrimônio público. Pediu o acolhimento das preliminares ou, no
mérito, a improcedência da ação. Juntou documentos.
O autor manifestou-se.
Processado o feito, sobreveio sentença (fls. 224/229), a qual foi anulada pelo Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, desde a contestação, diante da ausência de citação das
esposas dos confinantes (fls. 279/283), o que foi levado a efeito.
Ernesto Correia de Oliveira contestou arguindo, em preliminar, a ausência de citação pessoal
daquele em cujo nome estava transcrito o imóvel. No mérito, asseverou, em síntese, ser
possuidor da área usucapienda (fls. 294/296). Pediu o acolhimento da preliminar ou, no
mérito, a improcedência da ação. Juntou documentos.
A Massa Falida de Guerino S/A Construções e Incorporações requereu sua habilitação no feito
(fl. 632), na condição de sucessora de Geraldo da Silva Figueiró, em face de cessão dos direitos
possessórios, tendo sido deferida sua intervenção na qualidade de assistente.
Posteriormente, foi autorizado pelo juízo, a sua habilitação no polo ativo de Guerino S.A
Construções e Incorporações.
Instadas quanto às provas que pretendiam produzir, o autor requereu o julgamento do feito
no estado em que se encontrava, ao passo que Alberto Hodara requereu a realização de
perícia e produção de prova oral.
Durante a instrução, foram colhidos os depoimentos de testemunhas, bem assim como
realizadas duas perícias no processo (fls. 656/669 e 1436/1471).
Foi determinada a citação dos sucessores de Simão Abraão, os quais seriam lindeiros do
imóvel, inicialmente pela via editalícia e, após, pessoalmente, os quais se manifestaram
objetivando a preservação dos limites da área de sua propriedade (fls. 727/729).
Alberto Cesar Hodara requereu sua intervenção, na condição de assistente, em virtude da
aquisição dos direitos possessórios de Ernesto Correia de Oliveira (fls. 1172/1177), o que foi
deferido pelo juízo (fl. 1233).
Juntado laudo técnico pericial pela parte autora e, após, pelo assistente Alberto Cesar Hodara.
Arthur Chagas Gerdau Hohannpeter requereu sua admissão para intervir no processo na
condição de assistente dos réus (fls. 1375/1378), o que foi deferido (fl. 1405).
Sobreveio o segundo laudo pericial, do qual as partes manifestaram-se, inclusive elaborando
quesitos suplementares.
Declarada encerrada a instrução, as partes foram instadas a apresentar memoriais (fl. 1583).
O Estado requereu a realização de perícia (levantamento planialtimétrico), a fim de identificar
e delimitar área de reserva, o que foi indeferido pelo juízo (fls. 1677/1678).
Irresignado, o Estado agravou de instrumento, o qual foi convertido em retido, segundo
consulta no sistema Themis.
O Ministério Público exarou parecer final opinando pela procedência da ação.
Vieram-me os autos conclusos.
É O RELATO. PASSO A DECIDIR.
A nulidade de citação editalícia dos sucessores da família Abraão merece rejeição, vez que
compareceram nos autos espontaneamente, tendo ciência do processo o que, na ausência de
causação de prejuízo, não se vislumbra motivo para anular referido ato.
A preliminar de impossibilidade jurídica do pedido confunde-se com o mérito da lide
propriamente dito, motivo pelo qual com esse será enfrentada.
Inicialmente, mantenho a decisão que indeferiu a perícia requerida pelo Estado a fim de
identificar e delimitar área de reserva, pelos seus jurídicos e próprios fundamentos, já que o
Tribunal de Justiça converteu o Agravo de Instrumento em Agravo Retido, conforme consulta
feita no Sistema Themis.
Outrossim, diante do fato de que a presente ação tramita há longos 38 anos, faz-se necessário
prestar a almejada jurisdição, pondo um fim à lide, de modo a não eternizá-la no tempo,
malgrado as determinações dadas no feito em apenso, estreitamente ligado a este, as quais
ora caem por terra, porquanto prejudicadas com a prestação jurisdicional neste e no feito em
apenso.
Gizo que as partes foram regularmente intimadas acerca do encerramento da instrução,
apresentando memoriais sem qualquer irresignação, motivo pelo qual preclusa a questão
atinente à prova.
Tecidas essas considerações, as quais reputo necessárias ao enfrentamento da quaestio, como
muito bem apanhado pela nobre Promotora de Justiça, em seu judicioso parecer de fls.
1703/1719, a qual peço vênia para me reportar durante essa sentença, tenho que para o
desate da matéria posta à apreciação do Poder Judiciário, faz-se necessário averiguar se a área
usucapienda é ou não integrante do domínio público, na medida em que os bens públicos são
insuscetíveis de aquisição prescritiva.
O art. 183, parágrafo 3º, da Constituição Federal reza que “os imóveis públicos não serão
adquiridos por usucapião”.
Na mesma linha, o art. 102, do Código Civil Brasileiro dispõe que “os bens públicos não estão
sujeitos a usucapião”.
A Súmula nº 340 do STF enuncia que “Desde a vigência do Código Civil, os bens dominiais,
como os demais bens públicos, não podem ser adquiridos por usucapião”.
Ora, nessa perspectiva, não paira dúvida de que o terreno objeto da ação de usucapião situase na Ilha das Flores, uma das ilhas fluviais que formam o Delta do Jacuí, cumprindo verificar,
como bem apontou o parquet a partir de que data as ilhas fluviais localizadas em áreas não
fronteiriças passaram a ser consideradas bens públicos de domínio dos Estados-membros.
A fim de evitar fastidiosa tautologia, transcrevo o parecer ministerial neste ponto, porque bem
analisa a matéria, fazendo uma digressão desde a Constituição de 1934.
“A Constituição de 1934, em seu artigo 20, fez referência somente às ilhas fluviais nas zonas
fronteiriças, atribuindo o domínio destas à União. Aos Estados-membros, por sua vez, conferiu
o domínio sobre as margens dos rios e lagos navegáveis, destinadas ao uso público, se por
algum título não forem de domínio federal, municipal ou particular, bem como sobre os bens
de propriedade estatal por força da legislação em vigor (artigo 21, inc. II).
O Decreto nº 21.235/32, de outro giro, assegurava aos Estados o domínio dos terrenos
marginais e acrescidos dos rios navegáveis, que correm em seus territórios, das ilhas formadas
nesses rios, e das lagoas navegáveis, em todas as zonas não alcançadas pela confluência das
marés, conforme afirmado no art. 1º do diploma legislativo em questão, in verbis:
Art. 1º Fica assegurado aos Estados o domínio dos terrenos marginais e acrescidos
naturalmente dos rios navegáveis que correm em seus territórios, bem como das ilhas
formadas nesses rios, e o das lagoas navegáveis, em todas as zonas não alcançadas pela
influência das marés.
Parágrafo único. Igual domínio será exercido sobre os terrenos marginais e acrescidos dos rios
que, embora não navegáveis, mas caudais e sempre corredios, contribuam com suas águas
para tornar outros navegáveis, estendendo-se esse domínio às respectivas ilhas.
Nessa trilha, a lição de Hely Lopes Meirelles:
“As ilhas dos rios e lagos públicos interiores pertencem aos Estados-membros e as dos rios e
lagos limítrofes com Estados estrangeiros são do domínio da União. É o que se infere do
disposto no art; 20, IV, da DF, que, embora não se refira às águas públicas internas, declara
expressamente que se incluem entre os bens da União 'as ilhas fluviais e lacustres nas zonas
limítrofes com outros países.' Essas reservas das ilhas das zonas limítrofes para a União
importa reconhecimento de que as demais, das águas públicas interiores, permanecem no
domínio dos Estados-membros, à semelhança das terras devolutas que lhes foram transferidas
pelo art. 64 da CF de 1891.
Este entendimento não é pacífico entre os autores e julgados, que ora consideram tais ilhas
pertencentes à União, ora ao Estado-membro. O Código de Águas nada esclareceu a respeito,
limitando-se a dispor, sobre as ilhas ou ilhotas que se formarem no álveo de uma corrente,
que pretendem ao domínio público, no aso das águas públicas, e ao domínio particular, no
caso das águas comuns ou particulares (art. 23). Mas, precedentemente, o Dec. 21.235, de
2.4.32, já havia assegurado aos Estados-membros o domínio dos terrenos maginais acrescidos
naturalmente dos rios navegáveis que corem em seus terrtórios, bem como o das ilhas
formadas nesses rios e o das lagoas navegáveis, em todas as zonas não alcançadas pela
influência das navegáveis, em todas as zonas não alcançadas pela influência das marés (art. 1).
Tal decreto, embora esparso e originário do Governo Provisório, não colide com o Código de
Águas, nem afronta a Constituição, pelo que continua em vigência. A confusão sobre o
domínio das ilhas fluviais resulta da indevida sujeição ao regime das águas que as cercam. Mas
ilha é terra e, como tal, há de subordinar-se ao regime jurídico das terras.”
Posteriormente, a Constituição Federal de 1967, em seu artigo 5º, dispôs, expressamente, que
as ilhas fluviais se incluem dentre os bens de domínio dos Estados, desde que não se
enquadrem como ilhas cujo domínio é reconhecido à União, segundo o artigo 4º da mesma
Carta Política.”
Diante das considerações feitas pela nobre Promotora, a ilha fluvial na qual se situa o imóvel
objeto da ação de usucapião possui status de bem público desde o longínquo ano de 1932.
A prova carreada aos autos demonstra que a posse da área pretendida originariamente por
Geraldo da Silva Figueiró, sucedida por Guerino, remonta ao ano de 1935, no mínimo, o que
somado à posse dos antecessores daquele, que remonta ao século XIX, considerada a
possibilidade conferida pelo art. 552, do Código Civil de 1916 (acessio possessionis), conferelhe o direito de usucapir o imóvel objeto da lide.
Parte da gleba foi adquirida por transmissão hereditária, parte, mediante posse antiga.
Constam, ainda, dos autos, títulos de propriedade de porção da gleba datados de 1891 (fls. 78
e seguintes). No mesmo sentido, a prova testemunhal colhida tanto em sede de justificação
(fls. 132/133), como por ocasião da instrução (fls. 383 e seguintes).
De tudo que se colhe no presente processado é que, com efeito, a fração de terras objeto da
lide se encontrava no domínio particular pelo tempo hábil à caracterização da prescrição
aquisitiva extraordinária por ocasião do advento da regra que declarou as ilhas fluviais de
domínio público, sendo evidente que referida norma protegeu os direitos de propriedade em
face do princípio da garantia ao direito adquirido, não sendo possível expropriar pura e
simplesmente terras pertencentes a particulares.
Como a posse já se encontrava consolidada em mãos do requerente pelo transcurso do tempo
e constituindo o usucapião modo originário de aquisição da propriedade, a qual se
perfectibiliza, com efeitos ex tunc no último dia do prazo previsto para sua consecução,
aperfeiçoado o suporte fático, como bem referiu a Promotora de Justiça, o possuidor adquire a
propriedade independentemente de declaração judicial. A sentença que reconhece o
usucapião possui natureza meramente declaratória, o que significa dizer que apenas
reconhece/chancela uma situação fática preexistente.
Assim, adquire-se pelo usucapião no momento em que se implementam os requisitos legais,
de forma que admissível o reconhecimento judicial da possibilidade de usucapir áreas situadas
em ilhas fluviais, porque positivado o transcurso do prazo prescricional aquisitivo
anteriormente ao advento da norma antes referida.
No mesmo sentido da fundamentação constante dessa sentença encontra-se o
posicionamento do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul:
“APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO (BENS IMÓVEIS). ILHA DA PINTADA. BEM PÚBLICO.
IMPRESCRITIBILIDADE APÓS A VIGÊNCIA DO DECRETO Nº 21.235/32. AUSÊNCIA DE PROVA DA
POSSE QUANTO AO PERÍODO ANTERIOR. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. I. Consoante o
disposto no artigo 26, inciso III, da Constituição da República, as ilhas fluviais e lacustres não
pertencentes à União se incluem entre os bens dos Estados. Dessa forma, como bens públicos
que são, dotados da característica da imprescritibilidade, não há falar em aquisição da
propriedade com base em prescrição aquisitiva. Aplicação da Súmula nº 340 do Supremo
Tribunal Federal. II. Contudo, considerando o domínio pelo Estado apenas após a vigência do
Decreto nº 21.235 de 1932, que regulou a matéria no âmbito federal, para fins de procedência
do pedido formulado em ação de usucapião, no mínimo deve ser comprovada a existência de
posse com animus domini no período anterior àquele ano. Caso concreto em que a parte
autora não se desincumbiu de tal demonstração, quando o ônus lhe competia, a teor do artigo
333, inciso I, do Código de Processo Civil. RECURSO DESPROVIDO À UNANIMIDADE.” (Apelação
Cível Nº 70032347718, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege
Puricelli Pires, Julgado em 21/01/2010).
“APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO. ILHAS FLUVIAIS. PROPRIEDADE DE PARTICULAR ANTERIOR ÀS
NORMAS CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS QUE TRANSFERIRAM O DOMÍNIO DAS
ILHAS FLUVIAIS E LACUSTRES NÃO PERTENCENTES À UNIÃO AO ESTADO. POSSIBILIDADE
JURÍDICA DE RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. 1. POSSIBILIDADE JURÍDICA DE
RECONHECIMENTO DA PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. No caso, assentando-se a pretensão resistida
do Estado unicamente na tese de impossibilidade jurídica do pedido do autor, vez que a ilha
fluvial onde esta localizada a área usucapienda constitui bem público, resta superada diante da
prova documental colacionada nos autos que demonstra que há muitos anos a área integra o
patrimônio privado, sendo possível o reconhecimento da prescrição aquisitiva. 2. REDUÇÃO
DOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Fixação que atende as especificidades do caso concreto.
Sentença mantida. APELAÇÃO DESPROVIDA.” (Apelação Cível Nº 70025843343, Vigésima
Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Glênio José Wasserstein Hekman, Julgado em
18/02/2009).
“AÇÃO DE USUCAPIÃO ORDINÁRIO. IMÓVEL LOCALIZADO EM ILHA FLUVIAL. PROPRIEDADE
EXERCIDA POR PARTICULARES DESDE OS IDOS DE 1895. POSSIBILIDADE DE DECLARAÇÃO DA
PRESCRIÇÃO AQUISITIVA. 1.Demonstrado pela prova colhida que o imóvel, localizado em ilha
fluvial, era de propriedade de particulares desde o ano de 1895, época em que não havia
qualquer restrição legislativa a impedir o título de domínio em nome deles, possível se mostra
a declaração da prescrição aquisitiva, pois ditas terras não passaram ao domínio do Estado. Na
verdade, nos termos do art. 5º da Constituição Federal de 1967, somente passaram para o
domínio do Estado as terras, localizadas em ilhas fluviais, não incluídas no patrimônio privado,
o que não é o caso. 2. Comprovado que os autores exercem a posse há mais de trinta anos,
com justo título, animus domini, e sem oposição, impõe-se a procedência da ação com a
declaração de domínio postulada. APELAÇÃO PROVIDA.” (Apelação Cível Nº 70006352363,
Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: José Francisco Pellegrini,
Julgado em 26/08/2003).
Consoante já asseverado alhures, a parte autora preenchia, por ocasião da formulação do
pedido, os pressupostos para a pretensão aquisitiva extraordinária, quais sejam: a) posse; b)
tempo; c) animus domini e d) objeto hábil.
De outro turno, mais uma vez corroborando o parecer ministerial, tenho que mesmo que o
imóvel integre o Parque Estadual do Delta do Jacuí tal circunstância não tem o condão de elidir
a pretensão exposada na inicial, porque o autor já se constituíra em proprietário da área em
data anterior ao advento da normativa já referida alhures, de modo que o reconhecimento
posterior de que se trataria de área de preservação permanente, por força do Decreto
Estadual nº 24.385/1976, que instituiu o Parque Estadual Delta do Jacuí, apenas se constitui
em restrição administrativa, mero fator limitativo do uso e gozo dos direitos decorrentes da
propriedade do imóvel.
Aliás, diga-se de passagem, que o referido Decreto ressalva, em seu artigo 5º, os direitos de
propriedade e posse da área de sua abrangência.
Outro não é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado, consoante seguem
exemplificativamente as ementas abaixo:
“APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO. OPOSIÇÃO DO MUNICÍPIO. REQUISITOS DA POSSE. ÁREA DE
PRESERVAÇÃO PERMANENTE. LIMITES DA PROPRIEDADE PÚBLICA. A parte usucapiente
comprovou a posse mansa, pacífica e ininterrupta de um imóvel exercida desde 1992. A
titularidade sobre imóvel, se pública ou privada, não guarda relação com a existência de área
preservação permanente no local, nem afeta a pretensão de usucapir, cuja procedência
encontra fundamento na prova e na lei, de acordo com as circunstâncias demonstradas O
Município apelante não demonstrou ser a área de propriedade pública, de acordo com a prova
documental produzida, corroborada pela sentença de improcedência em reintegração ajuizada
em face dos usucapientes.” (Apelação Cível Nº 70054140322, Vigésima Câmara Cível, Tribunal
de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em 08/05/2013).
“APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO DE USUCAPIÃO. ÁREAS DE PRESERVAÇÃO. POSSIBILIDADE.
RESTRIÇÕES ADMINISTRATIVAS. DESISTÊNCIA. DISCORDÂNCIA. PROSSEGUIMENTO.
SUCUMBÊNCIA. Ainda que determinadas áreas possuam restrições quanto ao uso, por se
tratarem de áreas de preservação permanente, possível é a aquisição de domínio pelo
usucapião. A desistência da autora não foi eficaz, pois a discordância do réu fez prosseguir a
demanda. A discussão sobre a matéria encontra-se, todavia preclusa ante a inércia do réu
apelante frente aos fatos. Art. 183 do CPC. O feito foi reativado sem que o requerido tenha
manifestado qualquer oposição à época. Redimensionamento da sucumbência e sua
redistribuição para o fim de refletir o real decaimento de cada parte. Preliminares rejeitadas,
apelação da autora improvida e parcialmente provida a do autor.” (Apelação Cível Nº
70015741747, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Guinther Spode,
Julgado em 05/12/2006).
Por outro lado, gize-se que eventual condição de posseiro de Ernesto Correia de Oliveira sobre
parte da área postulada não altera os rumos do presente processado, porque o domínio
derivado da prescrição aquisitiva extraordinária já se encontrava implementado à época em
que o réu passou a ocupar parte da área usucapienda.
Ademais, quaisquer pretensões possessórias esgrimidas posteriormente ao ano de 1975 não
se mostram relevantes para o deslinde da causa, porque a oposição – requisito exigido pela lei
para a prescrição aquisitiva extraordinária – à posse somente se deu quando já implementado
o período da prescrição aquisitiva.
Segundo Caio Mário da Silva Pereira1: “usucapião é a aquisição da propriedade ou outro
direito real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos
requisitos instituídos em lei. Mais simplificadamente, tendo em vista ser a posse que, no
decurso do tempo e associada às outras exigências, se converte em domínio, podemos repetir,
embora com a cautela de atentar para a circunstância de que não é qualquer posse senão a
qualificada: Usucapião é a aquisição do domínio pela posse prolongada.”
Da lição acima colacionada, conclui-se que a posse é elemento básico da usucapião, mas não é
qualquer posse que gera aptidão à obtenção da usucapião. A posse ad usucapionen deve ser
contínua, pacífica, incontestada, com intenção de dono, no prazo estipulado. Portanto, a posse
não pode ter intervalos, vícios, defeitos, tampouco contestação.
De outra banda, diversamente do sustentado pelos réus, a posse atual não é requisito para a
caracterização do usucapião, bastando, como já dito alhures, o preenchimento dos requisitos
legais ensejadores da prescrição aquisitiva.
Ademais, é de se salientar que a prova pericial elaborada traz a pá de cal sobre esse ponto da
matéria, na medida em que a expert concluiu que a área usucapienda encontrava-se
perfeitamente delineada, referindo não haver descrição apta a situar a gleba adquirida,
mediante cessão, por Ernesto Correia de Oliveira. Adiante, em seu laudo, a perita afirma que
não existe confusão entre a área usucapienda e aquela que era de propriedade de Ernesto
Correia de Oliveira e que presentemente é parcialmente ocupada por Hodara e Arthur
Johannpeter, havendo identidade apenas em relação à porção de terras que posteriormente
foi ocupada por Ernesto Correia de Oliveira.
Por fim, é de se chamar à atenção para o fato de que o próprio interveniente, Alberto Cesar
Hodara, admite, na ação correlata, mais precisamente na petição inicial, que o imóvel
originariamente pertenceu a Geraldo Figueiró, referindo que o seu imóvel (de Alberto)
encontrar-se-ia dentro de um todo maior que pertencia a Geraldo da Silva Figueiró.
Diante dessas considerações, tenho que malgrado o longo e tortuoso iter percorrido pelo
processo, as formalidades legais foram cumpridas, do que eventuais modificações no contexto
de fato acerca de lindeiros, como bem asseverou a Promotora de Justiça atuante nesta vara,
possuidores ou interessados, decorrente do longo tempo transcorrido desde a propositura da
ação – junho de 1975 – desimportam ao desfecho da causa, pena de eternização da demanda,
motivo pelo qual com a prolatação da presente decisão cai por terra a ordem dada no feito em
apenso (fls. 787 e verso e seguintes).
Relativamente à arguição de nulidade da citação editalícia dos sucessores da família Abraão, já
rechaçada ao início dessa fundamentação, insta relembrar que a perícia levada a efeito é
conclusiva no sentido de que não há identidade entre a área pretendida e a extensão titulada
pelos sucessores de Simão Abraão, sendo que atenta análise da petição por eles protocolizada
revela que apenas pretendiam resguardar os limites de sua propriedade no feito.
ANTE O EXPOSTO, julgo procedente a ação de usucapião intentada por GERALDO DA SILVA
FIGUEIRÓ em desfavor de ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL e ERNESTO CORREIA DE OLIVEIRA.
Sucumbentes, arcarão os réus com o pagamento das custas de forma proporcional, sendo 50%
para cada um deles. Os honorários advocatícios do procurador do autor, observada a mesma
proporcionalidade, serão pagos pelos réus no montante de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) para
cada um, corrigidos pelo IGP-M desde a data da prolatação desta sentença, até o efetivo
pagamento, o que faço com base no art. 20, § 4º, do CPC, devido ao tempo de tramitação da
demanda.
Intimem-se, inclusive os assistentes.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Porto Alegre, 26 de setembro de 2013.
Carmen Carolina Cabral Caminha,
Juíza de Direito.
(1) PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil: direitos reais. 18 ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2004. v. 4. p. 138.
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