ENCONTRO COM SALAZAR
Encontro uma pequena pétala de rosa entre as páginas dum Diário
duma rapariguinha provinciana. Que descaminhos levou o meu Diário? Estava
sempre escrito a tinta verde. Infantilmente, dizia-me que era uma esperança.
Assinalei aquele dia de Abril de 1938, quando meu Pai me disse que íamos à
Casa de Belinho visitar o Poeta? Não era a primeira vez, mas aquela visita
possuía especial significado, porque António Correia de Oliveira ia ler-nos o
seu Auto das Oferendas, que eu declamaria na festa do 1.º de Maio, a grande
Festa do Trabalho, diante duma tribuna onde, entre as Autoridades convidadas,
estaria Salazar. Aliás, todo o Auto lhe era dedicado.
Eu procuro descrever com a simplicidade e inexperiência daquele tempo
tão cheio de entusiasmo, tão romanticamente vivido. A grande festa do 1.º de
Maio de 38, o extraordinário Cortejo do Trabalho, o belo Auto do Poeta, não
puderam ter a presença de Salazar. Eu senti, realmente, uma frustração. —
«Eh, lá da tribuna, ó gente / Dizei-me se está presente / Aquele homem —
Salazar / Quero vê-lo ao sol de Deus, / Deitar meus olhos aos seus / Qual se
deita um barco ao mar!».
A jovem que eu era, vestida com o traje de noiva de Viana, naquela
tarde de Sol de Deus, não pôde, então, deitar os olhos a esse homem tão
discutido e admirado, que tanto desejava ver.
— Mas presença é uma aparência, / Porque não anda em ausência /
Quem se traz no coração». Triste consolo! Havia, na ausência, um amargo
travo de desengano. E eu também sofria com a cidade. Não fora António Ferro
guardar a lembrança da beleza do espectáculo, teria o meu sonho morrido
nessa tarde. Mas António Ferro não desistiu de apresentar o espectáculo em
Lisboa, no Salão do antigo S.N.I., para que Salazar, enfim, o visse. E uma
alegre caravana de moças vianesas partiu, um dia, da sua cidadezinha
provinciana, a caminho da Capital. E éramos todas lindas — porque jovens e
deslumbradas, «frescas Marias Lusitanas», como o Poeta as sonhou.
Nas malas, os ricos e variados trajes das camponesas do Distrito de
Viana, da montanha até ao mar. Da montanha, a angélica Flávia, melgacense;
quando envergasse o seu traje de Castreja, transportaria nos braços o peludo
cachorrinho, representante, de boa escolha, do valente e fiel cão pastor de
Castro Laboreiro. Igual tinha sido entregue em Viana ao Dr. Costa Leite
(Lumbralles). E dar-lhe um nome? Eu lembrei o de «Economia». Aprovado por
unanimidade. Em todo o meu caminho, partilhando, embora, do entusiasmo
reinante, eu estava toda virada para uma preocupação que se avolumava, um
receio de não cumprir como desejava. Por isso, a minha memória enchia-se de
versos: — «Ó Lisboa, eu sou o Minho / Que se meteu a caminho / Na estrada
de Salazar / E que vos traz, Homens Bons, para vos dar». «Sempre fresca e
rapariga / Sou a raça nobre, antiga, / A Maria Lusitana...» — «Eh, gente do
varandim! / Eh, lá, olhai para mim / Que sou Maio. Eu Maio sou / Vestida de
Lavadeira, / Qual a terra, a vez primeira / Que de rosas se enfeitou». Assim me
movia como sonâmbula, até à chegada. Só despertei na altura em que
Francisco Ribeiro (Ribeirinho), indicava as entradas no pequeno palco,
compunha a moldura das ofertantes, colocando-as pela ordem da entrega dos
seus dons, seguindo o poema: O linho e a lã, o vinho e o pão, o bordado e a
renda, o barco... «E pombas, lembrando agora / As naves que céus em fora /
Hão-de ir à Índia dos astros». Assim eu ia apresentando, ladeada por duas
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figuras (uma das quais minha irmã) que apoiavam o longo poema com
quadras, no inconfundível estilo do Poeta. Na noite da festa, Salazar estava
finalmente presente, estava frente a mim, a dois passos. Assim, deitando meus
olhos aos seus, «qual se deita um barco ao mar», eu pude dizer com maior
entusiasmo: — «Ou vida, em tal estatura / Que passa de criatura / À força de
ser Nação». Assim, Ele ali estava, entre os que eram o Estado e nós que
éramos Povo — «A lenha do lume novo / Nas raízes do passado». Desciam os
degraus do palco as jovens camponesas, hieráticas, cintilantes de vidrilhos de
luar e oiros amigos, ou desembaraçadas nos seus polícromos trajes de
trabalho, graciosas nos seus chapéus de palha ou bioco montanhês, e
depunham as ofertas aos pés dos Homens Bons. Não temesse Lisboa, de nós,
nenhum mal. Porque, «Ela por nós, nós por ela, / — Foram sempre a serra e a
vela / Quem deu a alma a Portugal». Salazar tinha lágrimas nos olhos e
apertava nervosamente as luvas brancas que poisara no regaço. Estava
imensamente comovido e deslumbrado pelo ineditismo do espectáculo, a
vibração que se sentia no ar. — «Agora adeus! Que Deus fique / Sobre Vós,
como em Ourique, / Cruz de estrela em que ficou. / Amigas, vamos embora, /
Cantando caminho fora, / Pois Maio sempre cantou». O Auto findava ali. O
resto do espectáculo continuava. No intervalo, fui, com o Poeta, à presença de
Salazar. Timidamente lhe agradeci. Depois, alguém teve a boa ideia de instalar
aquele colorido grupo de jovens nos degraus do palco. Fiquei quase aos pés
de Salazar e reparei que abanava, com o programa, as pobres pombas de bico
aberto, acaloradas, porventura sedentas. Discretamente, com um sinal,
mandou que cuidassem delas, como do pequenino cão. — «Já tem nome?»
Perguntou-me. Respondi-lhe que sim, que eu lhe tinha dado o nome de
«Economia». Com grande espanto meu, sorriu-se abertamente, riu-se, quase,
e assinalou o facto àqueles que o ladeavam. Principiou, então, a fazer
pequenas perguntas alegres e vivas, por vezes propositadamente
embaraçantes. A uma, e outra, e outra; quebrada a timidez e afastado o
protocolo, todas respondiam como sabiam. A vivacidade e alegria vianesa
criavam um ambiente especial. Eu é que lhe estava mais perto e saía da
crisálida do temor. — «Como o se faz a boroa, como esta que me deram?»
«Valeu-me a minha infância de brincar no forno de um velho padeiro, a ver
amassar e cozer. Riu-se à descrição da benzidela — «São Clemente te
acrescente, São Mamede te levede». Passou, no palco, do Ribatejo bem
batido; passou o bracarense Rei do Cavaquinho, o fado na voz de Ercília
Costa. Passou a alegria e o talento de Beatriz Costa vestindo um traje
sofisticado de vianesa, em setim verde, saia de balão, chinelas prateadas.
Alguém resolveu improvisar um vira minhoto para fecho do espectáculo. O par
escolhido foi o Rei do Cavaquinho e eu. Nunca mais esquecerei esse vira.
Quando regressei, disse-me Salazar: — «Não sabia que era mentirosa». —
Porquê, Excelência? — «Porque disse há pouco que tinha chinelinhas
prateadas e as suas chinelinhas são pretas. Prateadas são as da Senhora D.
Beatriz Costa.» Lembrou Salazar, simultaneamente, um passo do poema: —
Chinelinhas prateadas / — Que são as ondas bailadas...», e apontou as minhas
chinelas (tradicionalmente pretas) e as chinelinhas prateadas de Beatriz.
Voltámos a Viana. Dias depois, aparecia no Século Ilustrado um retrato
de Salazar com as suas duas pupilas e o seu cão «Dão». Creio que fiquei
triste. O Século era de 21. A 24, escrevia-me Salazar.
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«24/5/38.
Exma. Senhora.
Deve ter visto pelo Século de 21 que o cão mudou de nome. Custava
muito dizer «Economia» e passou por isso a chamar-se «Dão». Ficou com este
nome por me dizerem que o outro cachorrinho entregue em Viana ao Sr.
Ministro do Comércio se chamava «Minho». Teremos assim os dois cães com
que tiveram a gentileza de presentear-me portadores dos nomes dos rios que
banham a província de V. Exa. e a minha. Peço no entanto a V. Exa. e suas
gentis companheiras desculpa da troca. Com os melhores agradecimentos, de
V. Exa. adm. mt.º grt.
A. Oliveira Salazar»
Um encontro. Uma pétala de flor nas páginas dum Diário de rapariga. E um
pobre soneto —
«Tinhas de ser qual és..........
..............................................
E, ao contemplar-te, eu fico na incerteza
Se te admiro como portuguesa
Se te adoro o teu perfil como mulher».
Maria Manuela Couto Viana
In A Rua, n.º 56, 28.04.1977, pág. 19.
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