A VIOLAÇÃO DO PRIMADO DO TRABALHO PELA LEGISLAÇÃO PREVIDENCIÁRIA
THE SOCIAL SECURITY SYSTEM AND THE VIOLATION OF THE PRIMACY OF LABOR
Christina de Almeida Pedreira
Zélia Luiza Pierdoná
RESUMO
Nos últimos tempos tem sido observado um aumento do número de concessões do benefício de auxíliodoença e aposentadoria por invalidez em níveis superiores às demais prestações previdenciárias. Um dos
motivos do referido aumento é a própria legislação, já que o valor recebido a título dos referidos benefícios
é, muitas vezes, superior à remuneração recebida pelo trabalhador em atividade. Com isso, o atual
ordenamento jurídico tem sido um estimulador para que os trabalhadores brasileiros busquem ficar doentes
ou incapazes para o trabalho, efetiva ou fraudulentamente. Assim, além de contrariar o objetivo da
previdência social que é a substituição dos rendimentos do trabalho, a legislação previdenciária está
violando o valor social do trabalho.
PALAVRAS-CHAVES: PRIMADO DO TRABALHO; PREVIDÊNCIA SOCIAL; BENEFÍCIOS POR
INCAPACIDADE.
ABSTRACT
In recent times has been observed an increase in the number of concessions from entitlement to aid-sickness
and invalidity pensions at higher levels to other social security benefits. One of the reasons for this increase
is the legislation itself, since the value received the title of such benefits is often higher than the
remuneration received by the worker in activity. With this, the current legal system has been a stimulator for
Brazilian workers seek becomes sick or unable to work, effective or fraudulently. Thus, in addition to
counteract the goal of the social security system, the social security benefits replace the worker’s incomes,
which violates the Brazilian’s constitutional labor’s social value.
KEYWORDS: LABOR’SVALUE, SOCIAL SECURITY SYSTEM, SOCIAL SECURTY BENEFIC FOR
INCAPACITY
INTRODUÇÃO
A Constituição de 1988 consagrou, dentre os fundamentos do Estado brasileiro, o valor social do
trabalho e, como base da ordem social, o primado do trabalho. Isso demonstra a importância dada ao
trabalho pelo constituinte que elegeu uma das áreas componentes da seguridade social para proteger
especialmente os trabalhadores: a previdência social, a qual tem como objetivo a substituição dos
rendimentos do trabalho, quando diante de situações que impedem o trabalhador de exercer atividade
laboral.
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Os benefícios de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez são prestações previdenciárias
concedidas nas situações em que o trabalhador está impedido de exercer atividade remunerada em virtude
de incapacidade laboral. Assim, o valor recebido deve corresponder à remuneração do trabalho.
Entretanto, em razão da forma como o cálculo vem sendo feito e da ausência de limitador, os
valores recebidos têm sido, muitas vezes, superiores àqueles recebidos como remuneração do trabalho, o
que tem estimulado a busca dos referidos benefícios em detrimento da continuidade do exercício laboral.
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar que o mencionado fato viola o primado do
trabalho, o qual deve ser entendido como único elemento viabilizador do desenvolvimento econômico e
social do Estado brasileiro. Para tanto, num primeiro momento discorreremos sobre o valor social do
trabalho e, a partir disso, abordaremos o primado do trabalho. Na sequência, apresentaremos o contexto em
que a previdência social está inserida e, finalmente, analisaremos a questão dos valores pagos a título de
auxílio-doença e aposentadoria por invalidez e a repercussão em relação à base da ordem social.
DESENVOLVIMENTO
1 - O trabalho como valor social
A proposta deste texto é resgatar o princípio constitucional de valor social do trabalho como
princípio concretizador de elemento de cidadania; para tanto, afastamo-nos do conceito marxista sobre a
“teoria do valor do trabalho”1 no qual considera o trabalho como mercadoria que reflete determinado valor
na sociedade. Nossa proposta é resgatar a noção formadora da cidadania pelo trabalho, insculpida no texto
constitucional brasileiro.
Importa-nos firmar, desde já para esta pesquisa, que tomaremos a noção de cidadania posta por
Fábio Konder Comparato, segundo quem a idéia de cidadania “consiste em fazer com que o povo se torne
parte principal do processo de seu desenvolvimento e promoção social, que é a idéia de participação”; e esta
se deve instaurar em cinco níveis: na distribuição dos bens, materiais e imateriais, indispensáveis a uma
existência socialmente digna; na proteção dos interesses difusos ou transindividuais; no controle do poder
político; na administração da coisa pública e na proteção dos interesses transnacionais2 .
Esta concepção nos chama a atenção, por considerar o fato de que o modelo de Estado Social em
que vivemos exige determinadas percepções. Afinal, num Estado do tipo Social, deixamos de considerar tão
somente as liberdades individuais, para ponderá-las no contexto da coletividade. Para os fins desta pesquisa,
a noção de trabalho deve ser examinada como elemento-parte da sociedade de massas em prol do
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desenvolvimento econômico e social. O trabalho deve ser reconhecido como elemento de formação de toda
a sociedade e não, tão somente, do ser humano individualmente considerado.
Mas isso não é tão simples como possa parecer.
Historicamente, a noção de trabalho, que para Jessé Souza, é conhecida como o caminho
especificadamente protestante de salvação é revolucionário em dois sentidos: primeiro, ele reverte o ideário,
que vingava deste a antiguidade, da preponderância da contemplação sobre a ação, ou do trabalho
contemplativo sobre o trabalho manual e prático; e, segundo, a noção é revolucionária no sentido em que a
dignidade individual ou, em termos políticos, o direito à cidadania passa a ser vinculado ao trabalho. São
dois os sentidos bem claros: um é a ascensão da burguesia que se deu quando a crítica à aristocracia, como
classe ociosa, que não trabalhava; e, outro, a ascensão do proletariado se deve ao prestígio do valor-trabalho.
Conclui a autora: “o trabalho é o pressuposto da idéia de cidadania moderna baseada na noção da igualdade
do valor de cada um, na medida em que todos trabalham e contribuem igualmente para o desenvolvimento
da coletividade” 3 .
Contudo, de outra parte, inevitavelmente temos que entender o trabalho como ação exclusiva do ser
humano; e, este, como “agente, beneficiário e juiz do próprio progresso, como meios primários de toda a
produção”4 . É preciso desenvolver o raciocínio a partir da “avaliação da mudança social em termos do
enriquecimento da vida humana dela resultante”, ou seja, a qualidade da vida humana deve ser considerada
como “um conjunto de atividade e de modos de ser que se denominam efetivações e relaciona o julgamento
sobre a qualidade da vida à avaliação da capacidade de funcionar ou de desempenhar funções” 5 .
Ainda sobre a noção de trabalho como elemento exclusivo do ser humano, segundo Xico Lara,
devemos entender que “o trabalho humano se refere às ações pelas quais se realiza a reposição criativa desse
bem viver”. Contudo, ao longo da história da humanidade, o trabalho passou por fases: escravatura, servil
até ser capturado pelo capital, reconhecendo-o como assalariado. E foi somente neste último estágio quando
se considerou o valor social do trabalho, pois como diz o autor, “uma vez que o capital passou a ser visto
como um avanço da racionalidade e um estágio superior do progresso da humanidade, tendo assim
capturado, além do sentido do trabalho, o significado do próprio bem viver humano”. Assim, conclui ele,
“nada que fosse considerado ainda preso ao reino natural, biológico, no qual o capital não houvesse posto as
mãos, não chegava propriamente a ter valor” 6 .
Agora, já considerando o trabalho como elemento inerente ao ser humano, mas estes inseridos na
sociedade, trazemos o entendimento de Leonel França, para quem o trabalho é “um gesto fraterno”; pois, o
grande preceito do amor, síntese da perfeição, é vivido numa vida de trabalho em toda a extensão de suas
exigências divinas e humanas. Segundo o autor, quando o primeiro homem começou a existir na história da
criação, surgiu o trabalho e, com ele, a cooperação livre da inteligência e da energia criada na realização do
plano criador. Em resumo, “trabalhar é continuar o ato criador, submeter as energias da natureza bruta à
cultura, isto é, ao desenvolvimento do espírito, contribuir para que as coisas sejam fiéis ao seu destino e
sirvam a Deus servindo ao homem” 7 .
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Nosso objetivo nesta pesquisa é compreender a qualificação de social que foi atribuída ao termo
trabalho no texto constitucional; de modo que o valor social do trabalho é reconhecido não só como
princípio da ordem social brasileira, mas principalmente como um fundamento da própria República.
Para que isso seja possível, lembramos do fato de que o texto constitucional expressa os elementos
históricos, políticos e culturais vislumbrados pelo poder constituinte originário. Assim, devemos considerar
o trabalho como elemento vivo naquela sociedade responsável pela elaboração do Texto Constitucional.
Adverte, contudo Xico Lara8 , que o conceito de trabalho encontra-se eivado por aquele de coação,
nos sentido de “coação social, quando não se tem outra escolha senão trabalhar, por não se dispor de
propriedades suficientes, o que distinguiria o tal do cidadão”; e, no de coação natural, “quando se tem que se
submeter à maldição do trabalho “comendo o pão com o suor do próprio rosto”.
As décadas de 1930 e 1940, quando, basicamente, o direito do trabalho brasileiro foi construído,
foram marcadas por aquilo que Ângela Maria de Castro Gomes chamou de “governamentabilidade”, por
meio do qual se voltou o Estado especificamente para a montagem do cidadão-trabalhador. A partir desse
período, entendeu-se que “só o trabalho podia constituir-se em medida de avaliação do valor social dos
indivíduos e, por conseguinte, em critério de justiça social”. Afinal, “somente o trabalho podia ser o
principio orientador das ações de um verdadeiro Estado democrático, de um Estado ‘administrador do bem
comum’”9 .
Tais configurações estão insculpidas na legislação infraconstitucional trabalhista – a CLT.
Contudo, tal perfil não foi preceituado no texto constitucional de 1988, notadamente preocupado com a
ampliação dos direitos sociais.
Ressaltamos, aqui, a diferença conceitual nítida daquele período – em que os direitos ditos sociais
limitavam-se à declaração de direitos trabalhista mínimos aos trabalhadores – e o atual, após a Constituição
de 1988 – em que os direitos sociais são todos aqueles que pretendem redução das desigualdades de toda a
coletividade.
Em resumo, a legislação social brasileira que antecedeu a Constituição de 1988 “não era um meio
de acabar com a pobreza, era um expediente necessário que, associado a outras medidas, poderia dar ao
trabalhador uma situação mais humana e cristã, conforme aconselhava a doutrina social da Igreja desde a
Encíclica Rerum Novarum”10.
Analisando este contexto, Carmem Lucia Rocha11 destaca que
O trabalho e a condição do homem-trabalhador enfatizam a extinção da figura do escravo, tendo-se o
homem como o sujeito de sua produção e não objeto que com ela se confunde. Todavia, a sociedade
ocidental, de uma forma muito especial, assimilou, desde a Revolução Industrial, o trabalho ao
emprego. Passou-se a garantir o emprego como direito fundamental e não mais apenas o trabalho, o que
estabeleceu, então, a valorização do empregado e não do cidadão trabalhador. Ao emprego associou-se
a idéia de trabalho e de força de trabalho na sociedade e o empregado passou a ser dignificado em
detrimento do trabalhador não-empregado.
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Como dito acima, precisamos nos afastar da noção individualista de trabalho, mas inseri-lo como
elemento formador de sociedade.
E, para nos afastarmos destas concepções, conforme aponta Leonel França12,
não basta melhorar as condições materiais do operário. É preciso descer-lhe às raízes de sua vida
espiritual. É ai que nasce a alegria, o entusiasmo, o amor. Sem a consciência viva de que a ocupação de
quase toda a nossa existência não se limita a uma simples necessidade de prover à subsistência material,
mas se prende à grande missão da vida e aumenta em nós os bens espirituais, o trabalho perde o seu
significado supremo e cessa de contribuir à expansão da personalidade.
A idéia de trabalho deve estar ligada a de promoção de igualdade e estabilidade social. Pois como
já está pacificado pela doutrina de direitos humanos, não basta declará-los, mas devemos buscar meios para
garanti-los.
Para fins desta pesquisa, temos que entender o trabalho “como todas aquelas atividades que
realizam – não a valorização do capital, mas a reposição criativa das condições do bem viver”, afinal “o
trabalho humano é não só criador das culturas, mas, em ação continuada de geração em geração, o repositor
criativo dessa própria criação”13.
2 - O princípio constitucional do primado do trabalho
O trabalho está protegido no texto constitucional em inúmeros dispositivos. Está consagrado como
fundamento da república no art. 1º, IV; como princípio da república, no art. 3º, incisos II e III, afinal,
garantindo o desenvolvimento nacional e erradicando a pobreza e a marginalização, bem como reduzindo as
desigualdades sociais e regionais; como direito social, no art. 6º, como garantias mínimas ao trabalhador, no
art. 7º, como princípio da ordem econômica no art. 170 e, finalmente, como princípio da ordem social, no
art. 193.
Mas é importante desatarmos que em cada momento o constituinte pretendeu um tipo de tutela.
Não estamos falando do direito do trabalho constitucionalmente protegido, mas, sim, do trabalho
reconhecido na Constituição como direito.
Enquanto fundamento da república, o trabalho inserido no art. 1º, inciso IV vem consagrado como
elemento de cidadania, ou melhor, como elemento formador de cidadania. O Estado brasileiro deve
prevalecer, dentre qualquer outra medida, o trabalho como forma de construção de cidadania, considerando
sentimentos de solidariedade coletiva, bem busca de melhores condições de vida para todos.
No art. 6º, declarado como direito social, temos o direito ao trabalho; já no art. 170, caput e inciso
VII, temos a valorização do trabalho e a busca do pleno emprego como princípios da ordem econômica
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brasileira. Sobre estes aspectos Jacques Freyssinet14 adverte que são concepções diferentes, pois durante o
século XX, o direito ao trabalho foi uma reivindicação social e política emanada da classe operária em
crítica ao modelo de organização econômica. Mas que após a Segunda Grande Guerra, o direito ao trabalho
não foi considerado como uma obrigação de resultado, mas, sim, uma obrigação moral, que implica em
obrigações de meio, ou seja, de garantia de tal direito, in verbis:
Au XIXe siècle, le droit au travail est une revendication sociale et politique qui émane de la classe
ouvrière et qui alimente une critique, plus ou moins radicale, du mode d’organisation économique.
Reconnu, au lendemain de la seconde guerre mondiale par des textes constitutionnels ou des chartes
internationales, le droit au travail est analysé comme engendrant pour lês Etats non pas une obligation
de résultat mais un engagement moral impliquant une obligation de moyens.
Já sobre o pleno emprego, pondera o autor fundando-se na teoria keynesiana que aquele é atingido
quando o emprego global para de reagir elasticamente aos crescimentos da demanda efetiva dos produtos
que nele resultam15.
Ainda sobre o trabalho como direito social, pondera Ivam Gerage Amorim16 que
direito ao trabalho não estabelece uma obrigação do Estado em arrumar trabalho para todos os que
estejam desocupados, mas deve assumir um compromisso de empregar recursos para proporcionar
ocupação aos que dela careçam. De outra maneira, a declaração do trabalho como dever social não
implica num reconhecimento da obrigatoriedade do trabalho.
Entendemos que o trabalho seja elemento único e capaz de tornar efetivos os objetivos
fundamentais da república pelo desenvolvimento nacional, erradicando, assim, a pobreza e a
marginalização, bem como, reduzindo as desigualdades sociais e regionais. Afinal, vivemos num modelo de
Estado do tipo desenvolvimentista, como defende Giberto Bercovici, segundo o qual é próprio das
Constituições Econômicas, como a nossa, e exige que esse Estado seja mais do que o Estado Social
tradicional. Em matéria de trabalho, “a luta contra o desemprego exige a atuação do Estado, esta é muito
mais necessária para promover as modificações estruturais necessárias para a superação do
subdesenvolvimento”17.
Nossa proposta é mais do que analisar o Estado brasileiro diante de questões voltadas às situações
de ofensa aos direitos mínimos do trabalhador e de desemprego. O objeto central desta pesquisa é alertar
para fato de que a legislação previdenciária privilegia, pelo valor concedido aos benefícios de auxíliodoença e aposentadoria por invalidez, a situação fática de não-trabalho. Ou seja, o trabalhador em gozo dos
referidos benefícios previdenciários tem maiores vantagens financeiras do que se mantivesse trabalhando.
O trabalho tutelado pela ordem social brasileira, no art. 193 deve ser considerado como elemento
de inclusão social, daqueles que por qualquer infortúnio foram levados – total ou parcialmente, provisória
ou permanentemente – à margem da sociedade.
Por óbvio, não pretendemos afastar a constitucionalidade do citado beneficio, mas sim ponderar
que o valor financeiro que lhe foi atribuído pela lei – privilegiando o afastamento do trabalho – fere os
ditames constitucionais de valorização do trabalho.
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De fato, enquanto o trabalhador estiver afastado de sua atividade profissional em razão de doença –
acometida ou não em razão do trabalho – o sistema de seguro social deve suprir a falta da remuneração, a
fim de mantê-lo em mesma condição de vida. Mas o sistema não pode permitir que esta situação seja
financeiramente mais vantajosa que o retorno imediato ao trabalho, tão logo esteja fisicamente habilitado
(ou reabilitado, conforme o caso) para o retorno profissional.
Diante deste quadro, o que se percebe é a falta de integração do sistema jurídico, cujo resultado
permite distorções e até, por que não dizer, estimula fraudes. Afinal, como adverte Gilberto Bercovici, “a
falta de integração social, econômica e política continua exigindo uma atuação do Estado. Sem a restauração
do Estado, não há como propor uma política de desenvolvimento”. Pois, continua o autor, “o
desenvolvimento só pode ocorrer com a transformação das estruturas sociais, o que faz com que o Estado
Desenvolvimentista precise ser um Estado mais capacitado e estruturado que o Estado Social tradicional”18.
Em resumo, defendemos o trabalho garantido ao longo do texto constitucional, como instrumento
real e possível para o desenvolvimento do estado brasileiro.
Por ser o objeto próprio da nossa pesquisa, seguiremos à análise do contexto em que os benefícios
de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez estão inseridos. Os referidos benefícios são prestações de
previdência social, a qual pertence a um conjunto maior de proteção social que a Constituição de 1988
denominou seguridade social.
3 – A previdência social no contexto da seguridade social
A seguridade social foi instituída pela Constituição de 1988 para a proteção de todos os cidadãos nas
situações geradoras de necessidades. Para concretizar o mencionado objetivo, o constituinte uniu três
direitos sociais, os quais, cada um dentro de sua área de atribuição, protege seus destinatários e, no
conjunto, todos serão protegidos. Para tanto, temos defendido19 que a seguridade social apresenta duas
faces: uma garante a saúde a todos e a outra tem por objetivo a garantia de recursos nas situações de
necessidade, quando eles não podem ser obtidos pelo esforço próprio. Nesta segunda face, encontra-se a
previdência e a assistência social.
Assim como as demais áreas da ordem social, a seguridade tem como base o primado do trabalho. Já
referimos, no item 1, que, em diversos dispositivos, a Constituição conferiu tratamento especial aos
trabalhadores.
No que tange à seguridade social, foi destinada uma de suas áreas para proteger o trabalhador nas situações
geradoras de necessidade: a previdência social, a qual tem como pressuposto o trabalho, sendo que a
ausência comprovada de capacidade laboral é condição para a concessão de dois de seus benefícios (auxílio-
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doença e aposentadoria por invalidez).
Temos defendido20 que o direito à previdência social é direito fundamental social assegurado a todos os
trabalhadores e seus dependentes, o qual visa à garantia de recursos nas situações em que não poderão ser
obtidos pelos próprios trabalhadores, em virtude de incapacidade laboral (efetiva ou presumida). A
vinculação dos trabalhadores à previdência é obrigatória, estando eles vinculados ao regime geral de
previdência social ou aos regimes próprios dos servidores públicos.
O regime geral é abrangente e residual e tem por finalidade proteger todos os trabalhadores, salvo os
abrangidos pelos regimes próprios (servidores públicos titulares de cargos efetivos). Assim, o Estado
brasileiro viabiliza a todos os trabalhadores o acesso à previdência, por meio dos dois regimes, garantindo,
dessa forma, a proteção, nas contingências geradoras de necessidades para todos aqueles que vivem com o
fruto do trabalho.
Deve ser ressaltado que a proteção previdenciária é dirigida a todos os trabalhadores, independentemente de
como o trabalho é realizado. Assim, sua proteção é mais ampla que o Direito do Trabalho, o qual se dirige a
um tipo específico de trabalhador: o subordinado. Dessa forma, por meio da previdência social, o Estado
garante aos trabalhadores que as situações de necessidades serão amenizadas pelos benefícios
previdenciários.
Entretanto, de maneira diversa do direito à saúde e à assistência social, o direito à previdência exige
contraprestação por parte do trabalhador (denominado segurado obrigatório pela legislação
infraconstitucional – Leis nº 8.212/91 e 8.213/91).
A Constituição, tanto no art. 201 (trata do regime geral), quanto no art. 40 (trata do regime dos servidores
públicos) estabelece a contributividade como característica da previdência social. Assim, os segurados
devem contribuir para que ele e/ou seus dependentes tenham acesso às prestações previdenciárias
(benefícios e serviços).
A Lei nº 8.213/91 (lei de benefícios) preceitua as prestações devidas pelo regime geral de previdência social.
O art. 18 estabelece que o segurado faz jus às aposentadorias por idade, por tempo, especial e por invalidez;
ao auxílio-doença e auxílio acidente; ao salário-maternidade e salário família. Seus dependentes têm direito
à pensão e ao auxílio-reclusão e, ambos fazem jus ao serviço social e à reabilitação profissional.
4 – Os benefícios previdenciários por incapacidade: auxílio-doença e aposentadoria por invalidez
Dos benefícios elencados no art. 18 da Lei de Benefícios, acima nominados, o auxílio-doença, a
aposentadoria por invalidez e o auxílio-acidente são concedidos em razão de incapacidade laboral.
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Nos dois primeiros, a incapacidade deve ser total, sendo que no auxílio-doença ela é temporária e, na
aposentadoria por invalidez, deve ser insuscetível de reabilitação. As referidas prestações substituem o
rendimento do trabalho, já que, em razão da incapacidade total, o trabalhador não pode exercer atividade
laboral.
No auxílio-acidente a incapacidade é parcial e permanente. Assim, por ser parcial, ele pode trabalhar, o que
dá o caráter de benefício complementar aos rendimentos do trabalho. Neste trabalho não abordaremos o
referido benefício, uma vez que ele não está relacionado ao objeto tratado, especialmente porque é pago
juntamente com a remuneração do trabalho. O trabalhador fica parcialmente incapacitado e retorna ao
trabalho, recebendo, portanto, o seu salário e o benefício de auxílio-acidente, o qual a legislação
previdenciária classifica como indenizatório (art. 86 da Lei nº 8.213/91).
O auxílio-doença é um benefício concedido ao segurado que for considerado, pela perícia médica, incapaz
temporariamente para o exercício de atividade laboral por mais de 15 dias consecutivos. Para fazer jus ao
citado benefício, o segurado tem que ter contribuído por, no mínimo, 12 meses (carência). A referida
carência é dispensada nos casos de acidente de qualquer natureza, de doença profissional ou do trabalho,
bem como nos casos de segurado acometido por alguma das doenças especificadas em lista elaborada pelos
Ministérios da Saúde e do Trabalho e da Previdência Social.
O art. 15 da Lei de Benefícios (Lei nº 8.213/91) estabelece o que é denominado período de graça, o qual
garante que o segurado, mesmo sem contribuir, conserve todos os seus direitos perante a previdência social,
já que mantém a qualidade de segurado pelo período que varia de 3 a 36 meses.
O valor do benefício de auxílio-doença corresponde a 91% do salário-de-benefício (apurado na forma
prevista no art. 29, II da Lei nº 8.213/91 - média aritmética simples dos oitenta por cento maiores saláriosde-contribuição, corrigidos monetariamente, de todo o período contributivo, desde julho de 1994 ou a partir
de quando o trabalhador começou a contribuir). Durante o período em que recebe a prestação, o segurado
não paga contribuição, cujas alíquotas podem variar de 8, 9, 11 ou 20%, conforme a remuneração auferida
ou a espécie de segurado. O pagamento do benefício não é limitado, sendo pago enquanto perdurar a
incapacidade.
Se a incapacidade se tornar insuscetível de reabilitação para o exercício de qualquer atividade laboral, o
auxílio-doença é convertido em aposentadoria por invalidez, a qual corresponde a 100% do salário-debenefício.
A aposentadoria por invalidez exige a mesma carência do auxílio-doença a qual também é dispensada nas
mesmas hipóteses. Normalmente é concedida após o auxílio-doença, mas poderá ser concedida diretamente
se a perícia médica inicial constatar incapacidade total e insuscetível de reabilitação (art. 43, §1º da Lei nº
8.213/91). Conforme referimos no parágrafo anterior, o valor da aposentadoria por invalidez corresponde a
100% do salário de benefício, apurado na forma mencionada acima.
Embora o segurado receba a aposentadoria por invalidez, não significa que ele sempre receberá o citado
benefício, uma vez que, em perícia posterior, poderá ser detectada a capacidade laboral, oportunidade em
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que a prestação será cancelada.
Assim, enquanto durar a incapacidade laboral, o trabalhador/segurado faz jus aos benefícios de auxíliodoença ou aposentadoria por invalidez, não existindo21 limite de tempo previsto na legislação para a
cessação dos mencionados benefícios.
Os valores dos referidos benefícios podem ser superiores aos valores recebidos pelo trabalhador a título de
remuneração pelo trabalho. Esse fato tem sido um grande estímulo para buscar os benefícios de auxíliodoença e aposentadoria por invalidez ou a continuidade de seu recebimento. Ou seja, o trabalhador, muitas
vezes, recebe mais quando está doente/incapaz do que se estivesse trabalhando.
A causa disso é a forma de cálculo estabelecida pela legislação e a ausência de qualquer limitador, salvo o
teto do regime geral de previdência social.
O referido fato foi observado por Mônica Mora em uma nota técnica22 do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada - IPEA, a qual teve como objetivo “identificar os motivos que levaram ao crescimento do auxíliodoença”. Na citada nota técnica, foi observado que um dos motivos para o crescimento de concessões do
auxílio-doença é o atual mecanismo de cálculo do benefício. Segundo a autora, “dada a regra atual de
cálculo do benefício, observaria um aumento de renda, caso solicitasse o auxílio-doença entre 2003 e 2004,
o que se configura como uma distorção e um incentivo à utilização imprópria ou mesmo fraudulenta do
benefício”. A autora mencionou dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística que
demonstram queda na renda real dos trabalhadores em atividade.
Os comentários feitos na referida nota técnica, em relação ao cálculo do valor do benefício, aplicam-se à
aposentadoria por invalidez, já que são os mesmos. A única diferença é o percentual aplicado ao salário-debenefício que, no auxílio-doença, é 91% e na aposentadoria por invalidez, é de 100%.
Assim, os trabalhadores que estão em atividade recebem, muitas vezes, remuneração inferior aos valores
recebidos a título de auxílio-doença e aposentadoria por invalidez. Isso porque os salários-de-contribuição
utilizados para apurar o salário-de-benefício, são corrigidos pelos índices legais, os quais não podem ser
inferiores à inflação, nos termos do art. 201, §3º, da Constituição: “todos os salários de contribuição
considerados para o cálculo de benefício serão devidamente atualizados, na forma da lei”.
Em razão do citado preceito constitucional, é garantido o reajuste dos salários-de-contribuição que
participarão do cálculo do benefício, enquanto os trabalhadores em atividade não têm garantido,
constitucionalmente, o reajuste de seus salários pela inflação. Dessa forma, os benefícios previdenciários
podem ter valores superiores à última remuneração do trabalhador em atividade, o que estimula a busca
pelos mencionados benefícios. E, quando concedidos, o desestímulo ao retorno ao trabalho.
Isso porque, não há limite fixado, salvo o do teto23 da previdência. Assim, é possível que o trabalhador
ganhe mais quando recebe benefício previdenciário, o que contraria os objetivos da previdência social que é
o de substituir os rendimentos do trabalho quando eles não podem ser obtidos em razão da incapacidade
laboral ou de outras causas.
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Para evitar o fato mencionado no parágrafo anterior, o ordenamento jurídico veda, no que tange aos
benefícios concedidos pelos regimes próprios dos servidores públicos, que o valor seja superior à
remuneração concedida aos servidores em atividade. O §5º do art. 1º da Lei nº 10.887/04 determinou que, ao
calcular o benefício, o valor não poderá exceder a remuneração do servidor no cargo efetivo em que se deu a
aposentadoria, conforme se pode observar no texto legal abaixo transcrito:
Art. 1º No cálculo dos proventos de aposentadoria dos servidores titulares de cargo efetivo de qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, incluídas suas autarquias e
fundações, previsto no § 3 do art. 40 da Constituição Federal e no art. 2 da Emenda Constitucional n 41,
de 19 de dezembro de 2003, será considerada a média aritmética simples das maiores remunerações,
utilizadas como base para as contribuições do servidor aos regimes de previdência a que esteve
vinculado, correspondentes a 80% (oitenta por cento) de todo o período contributivo desde a
competência julho de 1994 ou desde a do início da contribuição, se posterior àquela competência.
§ 1º As remunerações consideradas no cálculo do valor inicial dos proventos terão os seus valores
atualizados mês a mês de acordo com a variação integral do índice fixado para a atualização dos
salários-de-contribuição considerados no cálculo dos benefícios do regime geral de previdência social.
§ 5º Os proventos, calculados de acordo com o caput deste artigo, por ocasião de sua concessão, não
poderão ser inferiores ao valor do salário-mínimo nem exceder a remuneração do respectivo servidor no
cargo efetivo em que se deu a aposentadoria. (grifamos)
Conforme podemos observar no caput do art. 1º, o cálculo para se apurar o valor do benefício no regime dos
servidores é o mesmo utilizado no regime geral (média das maiores remunerações - salário-de-contribuição,
correspondente a 80% de todo o período.
Pelas disposições do §1º, verificamos que, tanto no regime geral (art. 201, §3º, da Constituição), quanto no
dos servidores (art. 40, § 17 da Constituição) os valores de remuneração considerados para o cálculo do
benefício são devidamente atualizados.24
Assim, mesmo a Constituição determinando que os salários-de-contribuição devam ser corrigidos, a
legislação infraconstitucional, no caso dos servidores públicos, estabeleceu como teto a remuneração
auferida em atividade. Com isso, no regime dos servidores estão sendo atendidos os fins da previdência que
é a substituição dos rendimentos do trabalho e não um plus em relação a eles.
Como já referimos acima, no momento que o valor do benefício previdenciário é maior do que aquele
recebido como remuneração do trabalho, há um estímulo para que o trabalhador busque o benefício ou a
continuidade dele, na hipótese de já o ter recebido.
A mencionada atitude que vem sendo estimulada pela legislação previdenciária, no caso do regime geral de
previdência, viola a base da ordem social, comentada no item 2 – primado do trabalho.
Para evitar a citada violação, a legislação brasileira estabeleceu a hipótese de limitação no caso dos
servidores públicos, o que também poderá ocorrer em relação aos benefícios do regime geral, em especial,
aos benefícios por incapacidade, para, com isso, não estimular comportamentos que não encontrem
fundamento de validade no ordenamento jurídico.
Em 21/02/2008, o então Ministro da Previdência Social, Nelson Machado, declarou ao Jornal “O Estado de
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São Paulo”, ao comentar o aumento substancial do benefício de auxílio-doença, que o referido aumento está
relacionado, em parte, às fraudes, as quais, “foram estimuladas pelas regras de concessão do auxíliodoença”.
Na mencionada reportagem, há a informação de que “mais da metade dos beneficiários recebeu, a título de
auxílio-doença, um valor 30% superior ao que teria recebido se estivesse trabalhando. Isto provocou a
formação de quadrilhas especializadas na obtenção do benefício, suspeitando-se da participação de
funcionários do INSS. Caracterizou-se, então, uma verdadeira 'indústria de perícias' funcionando nos
Estados de São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul - ou seja, nos Estados mais
populosos e nos quais a clientela tem maior poder econômico, mas também em Estados como a Bahia e
Pernambuco”.
Assim, se as regras de cálculo para apurar o valor do benefício de auxílio-doença garantem, a mais da
metade dos segurados que recebem o mencionado benefício, que o valor recebido seja 30% superior à
remuneração auferida pelo exercício da atividade, a legislação está estimulando a doença/incapacidade,
quando, conforme referimos acima, a base da Ordem Social brasileira é o primado do trabalho (art. 193 da
Constituição).
Deve ser afastado o argumento de que não é a legislação que precisa ser alterada, mas a fiscalização que
deve ser mais efetiva, já que a legislação não pode ser estímulo a comportamentos que não encontrem
fundamento de validade no ordenamento jurídico. Além disso, conforme já referimos, o objetivo da
previdência é manter o nível de vida do trabalhador, substituindo os rendimentos do trabalho.
A legislação, da forma como está, acaba criando um plus em relação aos rendimentos auferidos pelo
trabalho. Assim, o trabalhador tem uma situação financeira mais vantajosa estando doente/incapaz. Isso
estimula a doença, quando a Constituição elegeu como um dos fundamentos do Estado brasileiro o valor
social do trabalho (art. 1º, IV), além de violar os princípios específicos do direito previdenciário.
Dessa forma, a norma vigente permite algumas situações que contrariam a finalidade da previdência social,
pois, conforme demonstramos acima, é possível que o valor recebido a título de auxílio-doença seja superior
à remuneração do trabalhador pelo exercício de atividade laboral.
Assim, considerando que a legislação atual, além de violar a base da ordem social – primado do trabalho,
estimula a busca dos benefícios previdenciários por incapacidade, inclusive por meio de fraudes, ela deve25
ser alterada.
Buscando sua alteração, em 2005 o Presidente da República editou a Medida Provisória nº 242,
acrescentando o §10 ao art. 29 da Lei nº 8.213/91 (Lei de Benefícios), que assim preceituava “a renda
mensal do auxílio-doença e aposentadoria por invalidez, calculada de acordo com o inciso III, não poderá
exceder a remuneração do trabalhador, considerada em seu valor mensal, ou seu último salário-decontribuição no caso de remuneração variável”. A mencionada Medida Provisória foi rejeitada pelo plenário
do Senado Federal.
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Em vista do arquivamento, foi apresentado, no mesmo ano, o Projeto de Lei nº 261/05 que também
acrescenta o §10 ao art. 29 da Lei nº 8.213/9, estabelecendo que “a renda mensal do auxílio-doença não
poderá exceder a média aritmética simples dos 24 (vinte e quatro) últimos salários-de-contribuição ou o
último salário-de-contribuição considerado, o que for maior”. O citado projeto foi encaminhado, em 12-062007 à Câmara dos Deputados e ainda está pendente de votação.
Assim, desde 2005 está em andamento no Congresso Nacional o projeto de lei que fixa limite ao auxíliodoença e à aposentadoria por invalidez, de modo que o trabalhador não seja estimulado a “ficar
doente/incapaz”, mesmo que de forma fraudulenta.
Por fim, também não pode ser alegado que, em relação ao auxílio-doença e à aposentadoria por invalidez,
não deveria ser estabelecida a limitação referida, pois o trabalhador, por estar doente/incapaz, necessita de
maiores recursos para sua manutenção. A referida alegação não se sustenta por dois motivos.
Primeiro porque, conforme sustentamos, o objetivo da previdência social é a substituição dos rendimentos
do trabalho, quando eles não podem ser obtidos em razão da incapacidade laboral e não a obtenção de um
plus.
Segundo, o fato gerador do benefício de auxílio-doença é a incapacidade laboral temporária advindo da
doença, a qual também é abarcada por outro direito fundamental social, que inclusive faz parte da
seguridade social: a saúde. Assim, a doença que gera a incapacidade é tratada pela saúde.
No que tange ao direito à saúde, o art. 196 da Constituição preceitua que “a saúde é direito de todos e dever
do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de
outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação”.
Dessa forma, verificamos que a promoção à saúde está incluída no direito fundamental em referência. Isso é
ressaltado no inciso II do art. 198, também da Constituição, o qual estabelece que:
Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e
constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:
I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços
assistenciais;
Observamos, pelo texto constitucional transcrito, que a Constituição estabelece prioridade às ações
preventivas de saúde.
Em sentido oposto à prioridade eleita pela Constituição está a legislação previdenciária que garante ao
trabalhador benefício previdenciário superior ao valor recebido pelo exercício de atividade laboral. O
referido fato é estimulador da doença e não medida preventiva de saúde. Portanto, a legislação
previdenciária em discussão viola, também, o dispositivo acima transcrito.
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Em suma, por estimular a doença/invalidez, a legislação previdenciária referente ao valor recebido a título
de benefício por incapacidade viola a prioridade eleita pela Constituição de ações preventivas em relação à
saúde; viola ainda, a base da ordem social (primado do trabalho), bem como os princípios previdenciários,
em especial o que garante a substituição dos rendimentos do trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A legislação previdenciária relacionada à apuração dos valores devidos a título de auxílio-doença e
aposentadoria por invalidez precisa ser alterada, especialmente na fixação de um teto, impedindo que o
valor dos citados benefícios seja superior àquele recebido pelo trabalhador em razão do exercício de
atividade remunerada.
Da forma como está atualmente, a legislação estimula a doença/incapacidade e, com isso, não
encontra fundamento de validade no texto constitucional que elegeu o primado do trabalho como a base da
ordem social.
Embora tramitando no Congresso Nacional, por mais de 4 anos, o projeto de lei que introduz o
referido limite ainda não foi aprovado. Assim, os representantes do povo brasileiro estão em mora, devendo
a citada mora ser sanada para que a previdência social brasileira tenha condições de garantir, tanto aos
atuais, quanto aos futuros beneficiários, uma proteção social adequada e, assim, garantir a dignidade de
todos os trabalhadores e seus dependentes.
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1 MARX, Carl. O capital – crítica da econômica política, p. 99.
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* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
8973
3SOUZA, Jessé. A atualidade de Gilberto Freyre, in KOSMINSKY, Ethel Volfzon; LÉPINE, Claude;
PEIXOTO, Fernanda Arêas, Gilberto Freyre Freire em Quatro Tempos. p. 77-78.
4SEN, Amartya, O desenvolvimento como expansão de capacidades. In Lua Nova – Revista de Cultura
Política: Estado, reforma e desenvolvimento, n. 28/29, p. 313.
5SEN, Amartya, O desenvolvimento como expansão de capacidades. In Lua Nova – Revista de Cultura
Política: Estado, reforma e desenvolvimento, n. 28/29, p. 315.
6LARA, Xico. Trabalho, educação e cidadania: reflexões a partir de educação entre trabalhadores, p. 4647.
7FRANÇA, Leonel. A crise do mundo moderno, p. 242.
8LARA, Xico. Trabalho, educação e cidadania: reflexões a partir de educação entre trabalhadores, p. 13.
9GOMES, Ângela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo, p. 238.
10GOMES, Ângela Maria de Castro. A invenção do trabalhismo, p. 198.
11ROCHA, Carmen Lucia Antunes. O princípio da dignidade da pessoa humana e a exclusão social in
Revista
de
Direito
Público.
Disponível
em:
http://www.paf.adv.br/artigos/artigos/PrincipiodaDignidadedaPessoaHumana.pdf
12FRANÇA, Leonel. A crise do mundo moderno, p. 243.
13LARA, Xico. Trabalho, educação e cidadania: reflexões a partir de educação entre trabalhadores, p. 48.
14FREYSSINET, Jacques. Plein emploi, droit au travail, emploi convenable. Revue de l'IRES, n° 34, p. 28.
Disponível em: http://www.ires-fr.org/IMG/File/r34-2.pdf. Acesso em: 02 de abril de 2010.
15FREYSSINET, Jacques. Plein emploi, droit au travail, emploi convenable. Revue de l'IRES, n° 34, p. 29.
Disponível em: http://www.ires-fr.org/IMG/File/r34-2.pdf. Acesso em: 02 de abril de 2010.
16AMORIN, Ivam Gerage. Cidadania e Direito ao Trabalho, in Revista Internacional de Direito e
Cidadania, n. 4, p. 85.
17BERCOVICCI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento, in Revista da FBDE nº 01, p. 170.
18BERCOVICCI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento, in Revista da FBDE nº 01, p. 170171.
19PIERDONÁ, Zélia Luiza. A proteção social na Constituição de 1988 in Revista Internacional de Direito e
Cidadania, nº 1, p. 238.
20PIERDONÁ, Zélia Luiza. Previdência Social in Dicionário brasileiro de direito constitucional.
Coordenador Geral: Dimitri Dimoulis, p. 296/297.
21De forma diversa, o seguro-desemprego (regulado pelas Leis nº 7.998/90 e 8.900/94) é pago pelo prazo
determinado na legislação, mesmo quando o trabalhador permanecer desempregado por período superior.
O referido fato tem gerado a busca, muitas vezes indevida, dos benefícios previdenciários de auxílio-doença
e aposentadoria por invalidez em situações de desemprego, já que o período de graça, nesse caso é de 24 a
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36 meses (art. 15, II e §§ 1º e 2º da Lei nº 8.213/91.
22MORA, Mônica. Auxílio-doença: contribuição para um diagnóstico.
www.ipea.gov.br/sites/000/2/boletim_conjuntura/boletim_77/bc_77l_Nota_monica.pdf.
Disponível
em
23Atualmente o teto do Regime Geral de Previdência Social é de R$ 3.416,54.
24A partir da EC nº 41/03, os benefícios dos servidores públicos também são calculados com base nos
salários-de-contribuição. A referida emenda modificou a forma de apuração do valor dos benefícios no
serviço público, pois antes, tanto a aposentadoria como as pensões correspondiam ao valor da última
remuneração do servidor.
25Defendemos isso no trabalho apresentado ao Concurso de Comunicaciones da Prevencia 2009, realizado
em Santiago do Chile em 2009 pela Organização Iberoamericana de Seguridade Social – OISS intitulado “A
legislação previdenciária brasileira precisa ser modificada para deixar de estimular a doença”. In.
Comunicaciones
Prevencia
2009,
disponível
em
http://www.serviprevencia.org/spip.php?
article986&var_recherche=zelia.
* Trabalho publicado nos Anais do XIX Encontro Nacional do CONPEDI realizado em Fortaleza - CE nos dias 09, 10, 11 e 12 de Junho de 2010
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a violação do primado do trabalho pela legislação previdenciária