1 A súmula 523 do Supremo Tribunal Federal diante do princípio constitucional da ampla defesa.1 Johara Piccoli Zordan Sumário: Introdução – 1 A interpretação do processo penal embasada na Constituição Federal de 1988 – 1.1 A análise constitucional do processo penal: bases de um sistema acusatório – 1.2 O princípio do devido processo legal – 1.3 O princípio da ampla defesa – 1.3.1 A defesa técnica e a autodefesa – 1.4 O princípio do contraditório – 2 A defesa plena e efetiva no processo penal – 2.1 A defesa efetiva – 2.2 A falta de defesa e a defesa deficiente – 2.3 O sistema de nulidades no processo penal – 2.4 A súmula 523 do Supremo Tribunal Federal: histórico e conteúdo – 2.5 A não-recepção da súmula 523 do Supremo Tribunal Federal pela amplitude da defesa assegurada pela Constituição Federal de 1988 – 2.6 Proposta de revisão da súmula 523 do Supremo Tribunal Federal consoante o princípio constitucional da defesa plena e efetiva – Conclusão – Referências. Resumo: A investigação versa sobre o processo penal brasileiro, a partir dos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, e analisa a não-recepção da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal pela amplitude da defesa garantida pela Constituição Federal de 1988. Palavras-chave: devido processo legal; ampla defesa; contraditório; efetivação do direito de defesa; deficiência da defesa; Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal. INTRODUÇÃO O Código de Processo Penal, datado de 1941, remonta uma idéia eminentemente inquisitiva. A Constituição Federal de 1988, conhecida como Constituição Cidadã, por sua vez, aproximando-se dos ideais do Estado Democrático de Direito, instituiu o sistema processual acusatório, em oposição ao vigente até então. Considerando-se, pois, a hierarquia das normas e o fato de que a Constituição Federal embasa todo o ordenamento jurídico, faz-se necessário examinar as normas processuais penais a partir das disposições constitucionais. O presente trabalho concentra-se na interpretação dos preceitos do Código de Processo Penal fundamentando-se nos princípios constitucionais do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, todos garantidos pelo artigo 5.º. E, neste contexto, aborda o sistema de nulidades processuais brasileiro e examina a não-recepção da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal pela Constituição Federal de 1988. Isso porque a Lei Fundamental assegura aos litigantes e acusados em geral a amplitude da defesa, a qual não pode ser suprida por uma defesa técnica deficiente. 1 Artigo extraído do Trabalho de Conclusão de Curso intitulado “A súmula 523 do Supremo Tribunal Federal diante do princípio constitucional da ampla defesa e das recentes reformas processuais penais”, apresentado como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovado pela banca examinadora composta pelo orientador Prof. Me. Alexandre Lima Wunderlich, Prof. Me. Rodrigo Moraes de Oliveira e Prof. Dr. Paulo Vinícius Sporleder de Souza, em 28 de novembro de 2008. 2 Por fim, propõe o cancelamento da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, já que tal enunciado mostra-se incompatível com as garantias do contraditório e da ampla defesa asseguradas constitucionalmente, assim como a jurisprudência apresenta divergência quanto à sua aplicação, do que se constata não mais se tratar de entendimento consolidado e pacífico nos Tribunais. 1 A INTERPRETAÇÃO DO PROCESSO PENAL EMBASADA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. 1.1 A ANÁLISE CONSTITUCIONAL DO PROCESSO PENAL: BASES DE UM SISTEMA ACUSATÓRIO. O Código de Processo Penal, editado em 1941, por meio do Decreto–Lei presidencial n.° 3.689, de 3 de outubro de 1941, ainda na vigência da Constituição Federal de 1937, remonta ao período do Estado Novo, tendo sido concebido dentro de uma lógica autoritária e inspirado no modelo fascista italiano, de ideologia eminentemente inquisitiva. Eugênio Pacelli de Oliveira2 aponta as principais características deste Código, ressaltando, contudo, que a Lei n.º 5.349, de 1967, assim como outras grandes modificações, especialmente, nos anos de 1973 e 1977, além das recentemente aprovadas Leis n.º 11.689, 11.690 e 11.718, todas de 2008, tornaram menos rígidas as normas restritivas do direito à liberdade: a) o acusado é tratado como potencial e virtual culpado, sobretudo quando existir prisão em flagrante, para a qual, antes da década de 1970, somente era cabível liberdade provisória para crimes afiançáveis, ou quando presente presunção de inocência, consubstanciada na possível e antevista existência de causas de justificação (estado de necessidade, legítima defesa etc.) na conduta do agente (art. 310, caput); b) na balança entre a tutela da segurança pública e a tutela da liberdade individual, prevalece a preocupação quase exclusiva com a primeira, com o estabelecimento de uma fase investigatória agressivamente inquisitorial, cujo resultado foi uma conseqüente exacerbação dos poderes dos agentes policiais; c) a busca da verdade, sinalizada como a da verdade real, legitimou diversas práticas autoritárias e abusivas por parte dos poderes públicos. A ampliação ilimitada da liberdade de iniciativa probatória do juiz, justificada como necessária e indispensável à busca da verdade real, descaracterizou o perfil acusatório que se quis conferir à atividade jurisdicional [...]; d) o interrogatório do réu era realizado, efetivamente, em ritmo inquisitivo, sem a intervenção das partes, e, exclusivamente como meio de prova, e não de defesa, estando o juiz autorizado a valorar, contra o acusado, o seu comportamento no aludido ato, seja em forma de silêncio (antiga redação do art. 186 e o ainda atual art. 198, já revogado implicitamente), seja pelo não-comparecimento em juízo. É autorizada, então, a sua condução coercitiva (art. 260, CPP). A Constituição Federal de 1988, por sua vez, seguindo a tendência do direito processual penal, afasta-se desta ideologia marcante autoritária, aproximando-se dos ideais 2 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 6-7. 3 democráticos do Estado de Direito, e estabelece um sistema de amplas garantias individuais, fortalecendo o valor da dignidade humana. Dentre as principais inovações referentes ao processo penal, Geraldo Prado3 destaca que a Carta Magna de 1988 assegura ao Ministério Público a legitimidade para propositura de ações penais, não havendo mais a possibilidade de o juiz e/ou a autoridade policial darem início ao processo criminal ex officio, assim como garante aos acusados o devido processo legal, com ampla defesa e contraditório, e a presunção da inocência, além de garantir o julgamento por um juiz competente e imparcial. E conclui que, em conseqüência desta estrutura democrática em relação ao direito, a Constituição Federal de 1988 elegeu o sistema processual acusatório. De fato, Luigi Ferrajoli4 assinala que o sistema processual acusatório é aquele no qual se tem [...] o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre convicção. Constatado, pois, que a Constituição Federal de 1988 instituiu o sistema processual acusatório, opondo-se ao sistema inquisitivo adotado pelo Código de Processo Penal de 1941, verifica-se a necessidade de interpretação das regras processuais penais em consonância com a norma constitucional. Isso porque, além da manifesta hierarquia das regras dispostas na Constituição, assim como assevera Cândido Rangel Dinamarco5, “É natural que, como instrumento, o sistema processual guarde perene correspondência com a ordem constitucional a que serve, inclusive acompanhando-a nas mutações por que ela passa”. Assim, nas palavras de Ada Pellegrini Grinover6, comprova-se que “O importante é ler as normas processuais à luz dos princípios e das regras constitucionais. É verificar a adequação das leis à letra e ao espírito da Constituição”. 1.2 O PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. A Constituição Federal de 1988 prevê entre os direitos e garantias fundamentais, o princípio do devido processo legal, no inciso LIV do artigo 5.º: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. 3 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 195. 4 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de: Ana Paula Zomer Sica et al. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 519-520. 5 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993. p. 30. 6 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 14. 4 Paulo Rangel destaca que “O princípio significa dizer que se devem respeitar todas as formalidades previstas em lei para que haja cerceamento da liberdade (seja ela qual for) ou para que alguém seja privado de seus bens”. Ada Pellegrini Grinover7 ainda registra que não se trata o devido processo legal de uma garantia exclusiva das partes, mas especialmente da jurisdição, visto que [...] de um lado, é interesse dos litigantes a efetiva e plena possibilidade de sustentarem suas razões, de produzirem suas provas, de influírem concretamente sobre a formação do convencimento do juiz; do outro lado, essa efetiva e plena possibilidade constitui a própria garantia da regularidade do processo, da imparcialidade do juiz, da justiça das decisões. Para Rogério Lauria Tucci8 o princípio do devido processo legal no Estado de Direito exige os seguintes pressupostos: a) processo legislativo de elaboração da lei previamente definido e regular, bem como razoabilidade e senso de justiça de seus dispositivos, necessariamente enquadrados nas preceituações constitucionais [...]; b) aplicação das normas jurídicas, sejam do ius positum, sejam de qualquer outra forma de expressão do direito, por meio de instrumento hábil à sua interpretação e realização, que, como visto, é o processo (judicial process): o denominado substantive due process of law reclama, para sua plena efetivação, um instrumento hábil à determinação exegética das preceituações disciplinadoras dos relacionamentos jurídicos entre os membros da comunidade; e c) assecuração, no processo, de paridade de armas entre as partes que o integram como seus sujeitos parciais, visando à determinação de igualdade substancial: esta somente será atingida quando, ao equilíbrio de situações, preconizado abstratamente pelo legislador, corresponder a realidade processual. Em conclusão, Paulo Rangel9 destaca que todos os demais princípios do ordenamento jurídico derivam do princípio ora analisado, “[...] pois não há verdade processual sem que, para que se possa descobri-la, respeitem-se os procedimentos delineados em lei”. Neste mesmo sentido, João Batista Marques Tovo e Paulo Cláudio Tovo10 asseguram que o devido processo legal representa “[...] a síntese de todos os princípios que se referem ao direito natural de defesa em juízo, síntese de princípios e não propriamente um princípio isolado [...]”. 1.3 O PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA. O inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal consagra o princípio da ampla defesa, assim: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. 7 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 2. 8 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 64-67. 9 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 4. 5 A respeito, José Frederico Marques11 leciona: O direito de defesa, em sua significação mais ampla, está latente em todos os preceitos emanados do Estado, como substractum da ordem legal, por ser o fundamento primário da segurança jurídica na vida social organizada... É essencial à defesa plena que não se rebaixe o indiciado à condição inferior de simples material de investigações. Em outra obra, este mesmo jurista12 acrescenta que a estrutura da Justiça Penal sob o modelo acusatório é conseqüência natural da defesa ampla, para que o conflito na área penal solucione-se por meio do processo, “como instrumento e força operativa da jurisdição penal”. Guilherme de Souza Nucci13 afirma que a ampla defesa justifica-se pelo fato de o réu mostrar-se como parte hipossuficiente da relação processual, enquanto o Estado-acusador revela-se sempre fortalecido, atuando por meio de institutos organizados e tendo disponíveis diversas fontes de informações. Seria, pois, com o intuito de restabelecer o equilíbrio de forças que se confere ao acusado a ampla oportunidade de defesa. Vicente Greco Filho14 assegura que são aspectos estruturalmente ligados à ampla defesa: a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contra-prova; d) ter defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133); e e) poder recorrer da decisão desfavorável. Para Rogério Lauria Tucci15, a garantia da ampla defesa compreende “três realidades procedimentais, a saber: a) o direito à informação (nemo inauditus damnari potest); b) a bilateralidade da audiência (contraditoriedade); e c) o direito à prova legitimamente obtida ou produzida (comprovação da inculpabilidade)”. O princípio da ampla defesa abarca, portanto, segundo Edgar Silveira Bueno Filho16, a ampla publicidade dos atos processuais, com o intuito de proporcionar às partes a defesa por meio do extenso acesso aos atos realizados no processo, evitando-se, pois, a prática de perseguições e arbitrariedades. Ademais, conquanto seja possível em situações especiais a restrição da publicidade para resguardar a defesa da intimidade dos sujeitos ou o interesse social 10 TOVO, João Batista Marques; TOVO, Paulo Cláudio. Princípios de processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 107. 11 Apud PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo penal, o direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 26. 12 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 103. 13 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 78. 14 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989. p. 110. 15 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 210. 6 previsto na legislação, tem-se que tal limitação não pode alcançar o interesse das partes, nem obstar o exercício do direito de defesa. Compreende a ampla defesa, ainda, como acrescenta este autor17, o direito ao silêncio do réu, disposto expressamente no inciso LXIII do artigo 5.º da Constituição Federal, do que se interpreta que os agentes públicos devem informar ao preso o seu direito de permanecer calado quando da prisão ou do interrogatório, e isso não terá qualquer valor negativo à sua defesa, até porque não tem interesse o indivíduo em prover informações que o desfavoreçam, levando-se em conta que compete à acusação comprovar os ilícitos que lhe são imputados. Ademais, o exercício do direito de silêncio do réu deve ser garantido de forma plena, “sem poder vir acompanhado de pressões, diretas ou indiretas, destinadas a induzir o acusado a prestar depoimento”18. Entendem Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho19, porém, que as questões relativas à qualificação do investigado no interrogatório não se incluem no direito ao silêncio, pois em sua resposta o acusado não efetua atividade defensiva. Igualmente, a garantia de acesso ao judiciário (artigo 5.º, inciso LXXIV, da Constituição Federal) inclui-se na ampla defesa. Aliás, neste aspecto, como registram Edgar Silveira Bueno Filho20 e Fernando Capez21, o texto constitucional além de assegurar a assistência judiciária, de cunho processual, garantiu também a assistência jurídica, que é préprocessual, integral e gratuita aos necessitados. Fernando Capez22 anota, ainda, que do princípio da ampla defesa “decorre a obrigatoriedade de se observar a ordem natural do processo, de modo que a defesa se manifeste sempre em último lugar”. Guilherme de Souza Nucci23 também assinala que A ampla defesa gera inúmeros direitos exclusivos do réu, como é o caso de ajuizamento de revisão criminal – o que é vedado à acusação – bem como a oportunidade de ser verificada a eficiência da defesa pelo magistrado, que pode desconstituir o advogado escolhido pelo réu, fazendo-o eleger outro ou nomeando-lhe dativo, entre outros. 16 BUENO FILHO, Edgard Silveira. O direito à defesa na Constituição. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 58. BUENO FILHO, Edgard Silveira. O direito à defesa na Constituição. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 70-72.. 18 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 97. 19 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 97. 20 BUENO FILHO, Edgard Silveira. O direito à defesa na Constituição. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 73. 21 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 20. 22 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 20. 23 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 78. 17 7 Assim, Eugênio Pacelli de Oliveira24 sentencia: “[...] a ampla defesa realiza-se por meio da defesa técnica, da autodefesa, da defesa efetiva e, finalmente, por qualquer meio de prova hábil a demonstrar a inocência do acusado”. 1.3.1 A defesa técnica e a autodefesa. A defesa técnica, também denominada defesa privada, exige a assistência de uma pessoa com conhecimentos técnico-jurídicos. O defensor será um bacharel em Direito regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil. Além de garantia do acusado, como ressaltam Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho25, a defesa técnica é condição da paridade de armas, essencial ao efetivo contraditório e, em conseqüência, à imparcialidade do juiz. Em razão disso, a Constituição Federal de 1988 estabelece, no artigo 133, que o advogado é indispensável à administração da justiça, assim como, no artigo 134, estrutura a Defensoria Pública. Também o Código de Processo Penal prevê, expressamente, a necessidade de defensor no artigo 261. Luigi Ferrajoli26 também esclarece que a necessidade da defesa técnica não consiste em obrigação do denunciado constituir defensor habilitado, mas sim em um direito seu, a que pode inclusive renunciar, restando manifesta a obrigação do Estado de assegurá-la de forma gratuita se o acusado não dispuser de condições para pagar. Em razão disso, Edgar Silveira Bueno Filho27 constata que o texto constitucional prevê a necessidade de o Estado estruturar a Defensoria Pública para, nos termos dos artigos 134 e 135, orientação jurídica e a defesa dos necessitados em todos os graus de jurisdição. Assim, quando alguém estiver sem assistência no processo, deve recorrer ao Estado para que lhe garanta a assistência jurídica, que inclui o advogado e a gratuidade das custas judiciais, efetivando-se o princípio da ampla defesa; os juízes têm o dever de fiscalizar tal princípio, solicitando ou nomeando defensor para a parte hipossuficiente. Antônio Scarance Fernandes28 complementa: Além de a defesa ser necessária, é indeclinável, não podendo o acusado a ela renunciar. O direito de defesa é ao mesmo tempo garantia da própria justiça, havendo interesse público em que todos os acusados sejam defendidos, pois só assim será assegurado efetivo contraditório, sem o qual não se pode atingir uma solução justa. 24 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 34. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 93. 26 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de: Ana Paula Zomer Sica et al. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. P. 565. 27 BUENO FILHO, Edgard Silveira. O direito à defesa na Constituição. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 52-53. 28 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 297. 25 8 Em vista disso, este autor acentua que a defesa deve manifestar-se durante todo o processo, garantindo ao acusado “[...] oportunidade de efetiva contraposição à acusação: garantia de contraditório, garantia do direito à prova, garantia ao duplo grau de jurisdição”29. Ademais, como destaca este doutrinador30 em decorrência do direito à defesa técnica, o acusado tem a possibilidade de escolher o defensor, especialmente porque a relação entre eles é de confiança recíproca. Luigi Ferrajoli31, por sua vez, completa: Para que a disputa se desenvolva lealmente e com paridade de armas, é necessária, por outro lado, a perfeita igualdade entre as partes: em primeiro lugar, a defesa seja dotada das mesmas capacidades e dos mesmos poderes da acusação; em segundo lugar, que o seu papel contraditor seja admitido em todo Estado e grau do procedimento e em relação a cada ato probatório singular, das averiguações judiciais e das perícias ao interrogatório do imputado, dos reconhecimentos aos testemunhos e às acareações. A autodefesa ou defesa pessoal, em contrapartida, como define Antônio Scarance Fernandes32, “[...] é aquela exercida pelo próprio acusado, em momentos fundamentais do processo, não a que é patrocinada por advogado em seu próprio benefício, quando acusado em processo criminal”. Ada Pellegrini Grinover, Antônio Fernandes Scarance e Antônio Magalhães Gomes Filho33 reconhecem dois pressupostos da autodefesa: o direito de audiência e o direito de presença. E assim os caracterizam: O primeiro traduz-se na possibilidade de o acusado influir sobre a formação do convencimento do juiz mediante o interrogatório. O segundo manifesta-se pela oportunidade de tomar ele posição, a todo momento, perante as alegações e as provas produzidas, pela imediação com o juiz, as razões e as provas. Antônio Scarance Fernandes34 reconhece ainda uma terceira garantia da autodefesa: o direito a postular individualmente, o qual conceitua, nos seguintes termos: No processo penal, há momentos em que se dá ao acusado ou sentenciado capacidade para postular, pessoalmente, em sua própria defesa: pode interpor recursos, impetrar habeas corpus, formular pedidos relativos à execução da pena, como o pedido para progressão de regime. Constituem hipóteses em que o acusado ou 29 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 297. 30 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 300. 31 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de: Ana Paula Zomer Sica et al. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 565. 32 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 304. 33 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 93. 34 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 305-306. 9 sentenciado dá, através de seu ato, o impulso inicial ao recurso, ao procedimento incidental, mas, logo em seguida, deve-se-lhe garantir a assistência de defensor. Aury Lopes Júnior35 destaca, outrossim, que a autodefesa tem seu momento de maior relevância no interrogatório policial e judicial, considerando que é neste ato que o acusado, em contato com o juiz, traz a sua versão sobre o fato que lhe é imputado. E completa: “o interrogatório deve ser um ato espontâneo, livre de pressões ou tortura (físicas ou mentais)”, devendo ser fixado um limite para a busca da verdade real. Além disso, como assinalam João Batista Marques Tovo e Paulo Cláudio Tovo36, “a autodefesa e a defesa técnica, como desdobramentos do direito natural de defesa, nem sempre são convergentes, podendo se situar até mesmo em concepções diametralmente opostas”. Nestes casos, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Fernandes Scarance e Antônio Magalhães Gomes Filho37 entendem tratar-se de “mera incompatibilidade lógica, que pode ser excluída apreciando-se sucessivamente as linhas da defesa”. E, com relação à relevância das duas espécies de defesa, João Batista Marques Tovo e Paulo Cláudio Tovo38 asseguram: [...] a autodefesa e a defesa técnica, quando exercidas com perfeição, consubstanciam a plenitude do direito natural de defesa, devendo a defesa técnica, sempre que necessário, suprir as deficiências ou incontinências de conduta do acusado, na sua autodefesa, notadamente nos tempos hodiernos em que os riscos conseqüentes são bem maiores, como se sabe. Por sua vez, Gaetano Foschini39 completa no sentido de que a defesa reclama uma integração dualística e, por isso a defesa técnica não afasta a autodefesa, “embora distintas, são naturalmente conexas e concorrem à função defensiva”. 1.4 O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. O princípio do contraditório além de estar previsto no texto constitucional (artigo 5.º, inciso LV), também encontra respaldo no artigo 8.1 da Convenção americana sobre os direitos humanos, chamada de Pacto de São José da Costa Rica, aprovada pelo Congresso Nacional, por meio do Decreto Legislativo n.º 27, de 26 de maio de 1992. 35 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 187-188; 190-191. 36 TOVO, João Batista Marques; TOVO, Paulo Cláudio. Princípios de processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 50. 37 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 104. 38 TOVO, João Batista Marques; TOVO, Paulo Cláudio. Princípios de processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 51. 39 TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993. p. 216. 10 Segundo Robert Wyness Millar40, o princípio do contraditório “é inseparável da administração de uma justiça bem organizada e encontra sua expressão na parêmia romana audiatur et altera parts, pois o juiz deve ouvir ambas as partes para poder decidir e julgar”. Contudo, João Batista Marques Tovo e Paulo Cláudio Tovo41 avaliam que não é suficiente [...] a ouvida, o audiatur et altera pars há de ser interpretado em sentido mais amplo: direito de contestar, de buscar a verdade, mediante fiscalização recíproca, e, acima de tudo, o direito de apresentar a contraprova, ou seja, a consagração do método dialético, na investigação da verdade [...]. Também Aroldo Plínio Gonçalves42 ressalva: [...] o contraditório não é apenas ‘dizer’ e ‘contradizer’ sobre matéria controvertida, não é apenas o debate que as partes realizam no processo sobre a relação de direito material, mas principal e exclusivamente, é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei. É a simétrica paridade de participação no processo, entre as partes. José Frederico Marques43, por sua vez – notoriamente inspirado em Joaquim Canuto Mendes de Almeida –, aponta as seguintes características do contraditório: a) a cada litigante deve ser dada a ciência dos atos praticados pela parte contrária, a qual deve ocorrer por meio de citação, intimação e notificação; b) o termo de contrariedade, pelo qual a citação, intimação e notificação estabelecem um prazo para contestar; c) a indispensabilidade de um defensor técnico, nos termos do artigo 261 do Código de Processo Penal, a fim de garantir o equilíbrio entre as partes; e d) o direito de ambas as partes comprovarem as suas alegações, em igualdade de condições. Ainda, Wilhem Kisch44 explica que o contraditório não obriga as partes a sempre atuarem efetivamente no processo, mas lhes oportuniza “ocasião e possibilidade de intervirem, especialmente, para cada qual externar seu pensamento em face do adversário”. Ademais, Antônio Scarance Fernandes45 reconhece que No processo penal, é necessário que a informação e a possibilidade de reação permitam um contraditório pleno e efetivo. Pleno porque se exige a observância do contraditório durante todo o desenrolar da causa, até seu encerramento. Efetivo porque não é suficiente dar à parte a possibilidade formal de se pronunciar sobre os atos da parte contrária, sendo imprescindível proporcionar-lhe os meios para que tenha condições reais de contrariá-los. Liga-se, aqui, o contraditório ao princípio da paridade 40 Apud MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1998. v.1. p. 89. 41 TOVO, João Batista Marques; TOVO, Paulo Cláudio. Princípios de processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 52. 42 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 17. 43 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1998. v.1. p. 90. 44 Apud MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 102. 45 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 63. 11 de armas, sendo mister, para um contraditório efetivo, estarem as partes munidas de forças similares. Por fim, como sentencia José Frederico Marques46, o nosso ordenamento jurídico adota o sistema constitucional rígido e, em razão disso, os princípios constitucionais traçam diretrizes para o legislador ordinário, apontando os valores assegurados pela Constituição para disciplinar e regular a Justiça Penal, devendo ser considerados preceitos impostos, de imediato, à sujeição de todos. 2 A DEFESA PLENA E EFETIVA NO PROCESSO PENAL. 2.1 A DEFESA EFETIVA. Consoante Antônio Scarance Fernandes47, a defesa técnica ampla, nos termos em que prevê a Constituição Federal, deve mostrar-se no processo como defesa necessária, indeclinável, plena e efetiva. É necessária porque fundamental para assegurar a paridade de armas entre acusação e defesa; indeclinável porque não pode ser renunciada pelo acusado; plena, pois deve manifestar-se durante todo o processo; e efetiva, já que não é bastante a aparência de defesa. Nesta mesma perspectiva, Ada Pellegrini Grinover48 assinala que “A defesa concreta e efetiva é um dos principais requisitos do devido processo legal. Sem o pleno exercício do direito de defesa, não pode haver processo e muito menos condenação”. Por outro lado, José Frederico Marques49 constata que “[...] assegurada ao acusado a defesa ampla, a Constituição obriga o legislador ordinário a outorgar ao réu tutela processual eficaz, para que possa usar, no curso do processo, dos recursos lícitos com que poderá opor-se à pretensão do órgão de acusação”. Dada a importância de uma defesa plena e efetiva, o Projeto de Lei n.º 4.204/2001, apresentado pelo Poder Executivo à Câmara dos Deputados, visava alterar dispositivos do Código de Processo Penal referentes ao interrogatório e previa expressamente a efetividade do direito de defesa. No anteprojeto constava a sugestão de inclusão de um parágrafo ao artigo 261 do Código de Processo Penal, “[...] tornando explícita a exigência de que a defesa técnica não seja meramente formal, mas revele o efetivo empenho do defensor na demonstração 46 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2 ed. São Paulo: Forense, 1965. v. 1. p. 80-81. 47 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 295. 48 GRINOVER, Ada Pellegrini. A reforma do processo penal II. Disponível em: <www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 20 set 2008. 12 fundamentada da tese apresentada em favor do direito de liberdade do acusado”50. A redação do parágrafo a ser acrescentado seria assim: “A defesa técnica será efetiva, exigindo manifestação fundamentada”51. No entanto, este projeto foi parcialmente aproveitado e converteu-se na Lei n.º 10.792/2003, que incluiu um parágrafo único ao artigo 261 do Código de Processo Penal, com a seguinte disposição: “A defesa técnica, quando realizada por defensor público ou dativo, será sempre exercida através de manifestação fundamentada”. Acerca da idéia de efetividade da defesa, Antônio Scarance Fernandes52 registra que o fato de o réu possuir defensor, seja constituído, seja nomeado, não é suficiente para a sua defesa, sendo essencial que se perceba atuação efetiva do advogado no curso do processo, no sentido de assisti-lo. Aliás, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho53 assinalam que A exigência de um contraditório efetivo e equilibrado impõe que se analise, em certos casos, o próprio conteúdo das alegações oferecidas, sob pena de se transformar a participação nesta fase em mera formalidade inócua, desprovida de qualquer aptidão para influenciar o convencimento do julgador. Luís Flávio Gomes54 acrescenta que no modelo de processo penal do Estado Constitucional e Democrático de Direito, A defesa precisa ser concreta, real, efetiva, isto é, fundamentada. Todos os argumentos da acusação devem ser rebatidos, na medida em que puderem sê-lo. Já não condiz com o moderno processo a defesa levada a cabo de modo puramente formal, superficial (escrevendo-se singelamente “que o acusado é inocente” etc.). Seguindo esta idéia, Haroldo Caetano da Silva55 anota: A defesa deve ser efetiva. Não há réu indefensável. Se houver evidências de inocência, ou se houver dúvidas quanto à culpa (ainda não foi revogado o in dubio pro reo), a defesa deve sim persuasivamente sustentar a absolvição, mas com a indicação das respectivas provas e fundamentos doutrinários e jurisprudenciais correlatos. [...] 49 MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1980. p. 103. INTERROGATÓRIO do acusado e defesa efetiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 33, p. 331, jan-mar 2001. 51 INTERROGATÓRIO do acusado e defesa efetiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 33, p. 331, jan-mar 2001. 52 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 299. 53 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 245. 54 GOMES, Luís Flávio. Reformas penais: defesa efetiva e interrogatório. Disponível em: <www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 04 jul 2008. 55 SILVA. Haroldo Caetano da. Ampla defesa: um princípio que não pode ser esquecido. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 8, n. 96, p. 12, nov. 2000. Disponível em: <www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 20 set 2008. 50 13 É essa defesa a defesa em sua plenitude que a Constituição Cidadã confere aos acusados em geral. E é também a defesa plena que deve ser garantida, no processo penal, àquele que se vê acusado da prática de um delito. Também, como verifica Antônio Scarance Fernandes56, para a efetividade da defesa deve ser nomeado defensor ao réu antes do interrogatório, na hipótese de ele ainda não ter constituído advogado, assegurando-lhe, igualmente, o direito de contato prévio com o defensor antes de ser ouvido pelo juiz, conforme previsão do artigo 185, caput, e § 2.º, do Código de Processo Penal.57 Nesta mesma linha, Antônio Scarance Fernandes58 anota que não se pode aceitar que um mesmo advogado assista dois acusados quando suas teses defensivas forem opostas, uma vez que não conseguirá sustentar teses contrárias de forma satisfatória e, assim, um dos acusados será prejudicado. Ada Pellegrini Grinover59 também ressalta a importância de um contraditório efetivo: Assim, a reação, no processo penal, não pode ser meramente eventual, mas há de fazer-se efetiva. O contraditório, agora, não pode ser simplesmente garantido, mas deve ser estimulado. E a contraposição dialógica das partes há de ser real e não apenas formal. O juiz cuidará da efetiva participação das partes no contraditório, utilizando para tanto seus amplos poderes, a fim de que não haja desequilíbrios entre os ofícios da acusação e da defesa. Cabe ao juiz penal, portanto, integrar e disciplinar o contraditório, sem que com isso venha a perder sua imparcialidade, que sairá fortalecida, no momento da síntese, pela apreciação do resultado de atividades justapostas e paritárias, desenvolvidas pelas partes. [...] É ainda necessário que, em cada processo, o juiz estimule e promova um contraditório efetivo e equilibrado, cabendo-lhe verificar se a atividade defensiva, no caso concreto, foi adequadamente desempenhada, pela utilização de todos os meios necessários para influir sobre seu convencimento. Sob pena de considerar o réu indefeso e o processo irremediavelmente viciado. Com relação à efetividade da atuação das partes no processo penal, Heráclito Antônio 60 Mossin sinaliza que não é suficiente o legislador exigir a proficiência do defensor para sempre fundamentar sua manifestação, mas é necessário impor ao juiz ou tribunal prolator da decisão a obrigatoriedade de enfrentar as teses defensivas, uma vez que se isso não for verificado, a defesa perde a sua eficácia. E, em razão de equilíbrio e eqüidade, objetivando-se um processo 56 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 300. 57 Neste ponto, cabe registrar que com as reformas pontuais do Código de Processo Penal introduzidas pela Lei n.º 11.719/2008, dificilmente o réu chegará até o momento do interrogatório sem defensor, uma vez que tal ato passou a ocorrer por último, depois de toda a instrução processual, fortalecendo a ampla defesa. 58 FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 300. 59 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. p. 12-13. 14 ideal voltado para o interesse do Estado e da sociedade, esta observação deve refletir no órgão acusatório. 2.2 A FALTA DE DEFESA E A DEFESA DEFICIENTE. Da análise do disposto no artigo 5º, inciso LV, da Constituição Federal, aliado ao que prevêem os artigos 261 e 263 do Código de Processo Penal, Heráclito Antônio Mossin61 assegura não haver dúvida de que para a garantia dos direitos individuais, o legislador elevou à nulidade absoluta o processo ou a relação jurídico-processual em que se verifique a falta de nomeação de defensor ao réu ausente, foragido ou ao presente que não o tenha constituído. Neste mesmo sentido, Guilherme de Souza Nucci62 anota que há nulidade absoluta, pois há prejuízo presumido, que não admite prova em contrário. Contudo, Lúcio Santoro de Constantino63 observa que um estudo mais atencioso indica que “[...] se ocorreu deficiência na defesa é evidente o prejuízo ao acusado. Uma defesa deficiente é uma defesa carente, limitada. Se o acusado tem direito a ampla defesa, jamais esta poderá ser restrita pela deficiência”. E, por isso, conclui que a deficiência da defesa, por violar o preceito constitucional da ampla defesa, também acarreta nulidade absoluta, devido ao manifesto prejuízo. A respeito, Guilherme de Souza Nucci64 disserta: [...] há casos de deficiência tão grosseira que podem equivaler à ausência de defesa, razão por que deve o juiz zelar pela amplitude de defesa, no processo penal, considerando o réu indefeso e nomeando-lhe outro defensor. Caso não o faça, constituída está uma nulidade absoluta, inclusive pelo fato de ter infringido preceito constitucional, natural conseqüência do devido processo legal (ampla defesa). Nas palavras de Nelson Nery Júnior65, o contraditório deve ser “efetivo, real, substancial”. E, por isso, afirma o autor que “[...] se houver defesa desidiosa, incorreta, insuficiente tecnicamente, por parte do advogado do réu no processo penal, o feito deve ser anulado e nomeado outro defensor, tudo em nome do princípio do contraditório, conjugado ao da ampla defesa, ambos garantidos pela Constituição”. 60 MOSSIN, Heráclito Antônio. Comentários ao código de processo penal: à luz da doutrina e da jurisprudência. Barueri: Manole, 2005. p. 530. 61 MOSSIN, Heráclito Antônio. Nulidades no direito processual penal. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1999. p. 103. 62 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 891. 63 CONSTANTINO, Lúcio Santoro de. Nulidades no processo penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. p. 68. 64 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 5 ed. São Paulo: RT, 2006. p. 896. 65 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 130. 15 Também o Ministro Carlos Ayres Brito66, quando Relator do Habeas corpus n.º 82672/RJ, assim ponderou: Existem situações em que a deficiência da defesa promovida pelo advogado demonstra de tal maneira sua desídia, falta de zelo, de iniciativa, de diligência, que o prejuízo, além de patente, se revela insuperável por influenciar direta e indubitavelmente o resultado da causa, acarretando, com isso, prejuízo ao réu. Nesses casos, é possível equiparar a referida deficiência à total ausência de defesa, a implicar a nulidade dos atos afetados por esse defeito e inclusive a nulidade do próprio feito. A propósito, José Frederico Marques67 assinala: Dá-se defensor ao réu, para que haja atuação efetiva daquele órgão em prol dos interesses do acusado. Certo é que não se pode traçar a priori a orientação a ser seguida por aquele a quem a justiça confiou o patrocínio da defesa do réu. Mas se estiver evidente a inércia e desídia do defensor nomeado, o réu deve ser tido por indefeso, e anulado o processo desde o momento em que deveria ter sido iniciado o patrocínio técnico no juízo penal. Abraçar entendimento diverso a respeito do assunto, além de constituir inaceitável posição diante da evidência ictu oculi de real ausência de defesa, é ainda orientação de todo censurável e errônea, mesmo porque pode legitimar situações verdadeiramente iníquas. Além disso, Eugênio Pacelli de Oliveira68 anota que [...] a questão da deficiência da defesa é das mais complexas, pois, em princípio, quem poderá aferir de sua insuficiência, nos termos da Súmula [523 do Supremo Tribunal Federal], é a mesma pessoa de quem se espera a alegação da nulidade, isto é, o defensor, na medida em que a matéria somente seria submetida ao órgão jurisdicional por meio de recurso voluntário. Ocorre que seria justamente o defensor o responsável técnico pela insuficiência da defesa, parecendo-nos bastante improvável que ele se disponha a demonstrar a sua atuação deficiente. E, em razão disso, constata a possibilidade de o Judiciário reconhecer a deficiência da defesa e determinar, de ofício, a substituição ou retificação do defensor, a fim de melhor atender ao princípio constitucional da ampla defesa69. Oportuno referir, ademais, que os tribunais do país já têm se manifestado pela nulidade do processo nos casos em que a defesa mostra-se deficiente a ponto de revelar-se omissa, ferindo o princípio da ampla defesa constitucional. Exemplifica-se com os seguintes julgados oriundos do Supremo Tribunal Federal: Defesa. Deficiência. Prejuízo. Nulidade. No processo penal, quando a defesa é de tal modo omissa e deficiente, em condições que não asseguram o mínimo de diligência e de iniciativa, incorrendo em prejuízo do interesse processual do acusado, a situação deve ser equiparada a falta de defesa, com a conseqüente nulidade absoluta, nos termos da súmula 523. Habeas corpus concedido. (STF, 1.ª Turma, Habeas corpus n.º 57510/SP, Rel. Min. Rafael Mayer, j. 18/12/1979, p. DJ 7/3/1980). 66 STF, 1.ª Turma, Habeas corpus n.º 82672/RJ, Rel. para Acórdão: Min. Marco Aurélio, j. 14/10/2003, p. DJ 1/12/2006. p. 76. 67 Apud MOSSIN, Heráclito Antônio. Comentários ao código de processo penal: à luz da doutrina e da jurisprudência. Barueri: Manole, 2005. p. 1043-1044. 68 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 399. 16 Defesa. Defesa reiteradamente omissa. Inquirição de testemunhas de acusação (ausência do defensor). Alegações meramente formais. É nulo o processo se o defensor dativo não exercitou a defesa prévia, como lhe cumpria, não compareceu a audiência de inquirição de testemunha de acusação, não requereu diligências, nem ofereceu alegações finais puramente formais, num contexto de evidente e prejudicial deficiência da defesa, equiparável a sua falta. Recurso de habeas corpus provido. (STF, 1.ª Turma, Recurso em Habeas corpus n.º 60606/SP, Rel. Min. Rafael Mayer, j. 10/5/1983, p. DJ 17/6/1983. p. 8958). Defesa. Efetividade. O princípio segundo o qual "nenhum acusado, ainda que ausente ou foragido, será processado ou julgado sem defensor" - artigo 261 do Código de Processo Penal - há de ter alcance perquirido considerada a realidade. Exsurgindo dos autos que o defensor designado teve desempenho simplesmente formal, em verdadeira postura contemplativa, forcoso e concluir que o réu esteve indefeso. "A defesa e órgão da administração da Justiça e não mero representante dos interesses do acusado. Isto porque ela se exerce, substancialmente, para a preservação e tutela de valores e interesses do corpo social, sendo, assim, garantia de proteção da própria sociedade" (Nilo Batista - Defesa Deficiente, Revista de Direito Penal, pagina 169) - Por outro lado, "se estiver evidente a inércia e desídia do defensor nomeado, o réu deve ser tido por indefeso e anulado o processo desde o momento em que deveria ter sido iniciado o patrocínio técnico no juízo penal" (Frederico Marques - Elementos do Direito Processual Penal - Volume II, pagina 423). (STF, 2.ª Turma, Habeas corpus n.º 71961/SC, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 6/12/1994, p. DJ 24/2/1995. p. 3678). Com igual entendimento são as decisões do Superior Tribunal de Justiça, conforme arestos que seguem: Processual penal. Habeas corpus. Defensor leigo. Nulidade (súmula 523/STF). Conquanto tenha o defensor leigo apresentado, formalmente, defesa prévia e alegações finais, tais peças, de forma alguma, trouxeram conteúdo apto a contradizer os termos da acusação ou a fornecer subsídios ao julgador para uma possível absolvição. Caso que caracteriza total falta de defesa, o que, nos termos da Súmula 523 do colendo Supremo Tribunal Federal, se constitui em nulidade absoluta. Recurso provido. (STJ, 5.ª Turma, Recurso em Habeas corpus n.º 11254/AM, Rel. Min. Felix Fischer, j. 17/5/2001, p. DJ 13/8/2001. p. 179). Processual penal. Habeas corpus. Tribunal do júri. Homicídio qualificado. Ausência de defesa. Configuração. Revogação da constrição do réu. Impossibilidade. Todo e qualquer réu, não importa a imputação, tem direito a efetiva defesa no processo penal (arts. 261 do CPP e 5º, inciso LV da Carta Magna). O desempenho meramente formal do defensor, em postura praticamente contemplativa, caracteriza a insanável ausência de defesa (Precedentes do Pretório Excelso). Inaceitável, portanto, que, no Plenário do Júri, o defensor do réu apenas requeira sua absolvição, sem, contudo, utilizar-se de argumentação mínima e necessária para sustentar seu ponto de vista, restringindo-se a mero comentário de 05 minutos. De outro lado, entretanto, a manutenção do réu sob cárcere é necessária, porquanto durante a instrução empreendeu fuga, embaraçando o bom andamento processual. Ordem concedida apenas para anular o julgamento do Júri, para que outro seja realizado com a devida observância à ampla defesa, mantendo-se, entretanto, a constrição do acusado. (STJ, 5.ª Turma, Habeas corpus n.º 21938/RJ, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 10/12/2002, p. DJ 17/3/2003. p. 246). 69 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 399400. 17 Encontra-se, ainda, jurisprudência com este mesmo teor no Tribunal Regional Federal da 4.ª Região: Penal. Processo penal. Apresentação de alegações finais. Defensor dativo. Teses de defesa. Imprescindibilidade. Grave deficiência. Nulidade. Tráfico internacional de drogas. Competência. Lei n.º 11.343/06. Vara federal. Circunscrição federal respectiva. 1. Em se tratando de defensor dativo, é ele obrigado a apresentar tanto a defesa prévia como as alegações finais, pela presunção de que a defesa será máxima com a oferta de arrazoados em todas oportunidades legais. Imprescindível é que em algum momento do processo venha o advogado a apresentar teses de defesa, ainda que frágeis ou conflitantes, não bastando a mera apresentação formal da peça técnica. 2. Há nulidade absoluta pela ausência ou relevante deficiência de defesa durante a instrução. 3. Constatada nulidade absoluta, caracterizada pela deficiência de defesa - falta de apresentação de qualquer tese para absolvição da ré - impõe-se a anulação da sentença, com retorno dos autos à Vara competente para o julgamento, para que sejam apresentadas as alegações finais pelo procurador da parte ou por defensor nomeado para o ato. [...] (TRF - 4.ª Região, 7.ª Turma, Apelação criminal n.º 2007.70.99.003776-6, Rel. Néfi Cordeiro, j. 28/8/2007, p. DE 19/9/2007). Processual penal. Habeas corpus. Alegações finais. Deficiência. Nulidade. Ainda que a prova dos autos seja totalmente desfavorável ao réu, não se pode falar em ausência de prejuízo ao acusado, ou pior, em defesa antiética, se postulada a sua absolvição, com a explanação de alguma tese em seu favor. Trata-se, na verdade, de ausência de defesa, que autoriza a intimação do defensor constituído para apresentar novas razões finais. (TRF - 4.ª Região, 8.ª Turma, Habeas corpus n.º 2008.04.00.024354-0, Rel. Artur César de Souza, j. 30/7/2008, p. DE 6/8/2008). E corrobora esta tese a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: Ampla defesa. Defesa meramente formal. Inexistência de defesa. A defesa deficiente é igual à defesa inexistente. As alegações finais com caráter meramente formal, caracterizam defesa deficiente e consideram-se sua ausência, ofendendo às garantias do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. Em circunstâncias que tais, o juiz surge como tutor das garantias processuais, o que não se confunde com atuação supridora da defesa técnica, o que romperia com o princípio da imparcialidade. Nulidade decretada. (TJ/RS, 5.ª Câmara Criminal, Apelação criminal n.º 70024477812, Rel. Aramis Nassif, j. 30/7/2008, p. DJ 15/8/2008). Além do mais, com relação à atividade do defensor, registra Guilherme de Souza Nucci70: O defensor não deve agir com a mesma imparcialidade exigida do representante do Ministério Público, pois está vinculado ao interesse do acusado, que não é órgão público e tem legítimo interesse em manter o seu direito indisponível à liberdade. Deve pleitear, invariavelmente, em seu benefício, embora possa até pedir a condenação, quando outra alternativa viável e técnica não lhe resta (em caso de réu confesso, por exemplo), mas visando à atenuação de sua pena ou algum benefício legal para o cumprimento da sanção penal (como penas alternativas ou sursis). Isso não significa que deve requerer ou agir contra a lei, burlando normas e agindo sem ética, durante o processo penal. Seus desvios, na atuação defensiva, podem tornar-se infrações penais ou funcionais. Em conclusão, João Batista Marques Tovo e Paulo Cláudio Tovo71 assinalam que para garantir a plenitude de defesa ao réu, assegurada pela Constituição Federal, a defesa técnica 18 deverá ser afastada pelo juiz, nos casos em que se mostrar ausente, ineficaz ou deficiente. Convém registrar, por fim, que a ausência e a deficiência da defesa não podem ser examinadas de forma isolada, mas sempre no conjunto de atos processuais que compõem o devido processo penal. 2.3 O SISTEMA DE NULIDADES NO PROCESSO PENAL. De início, conforme anota Guilherme de Souza Nucci72, registra-se que à margem das nulidades, há os atos processuais chamados inexistentes, os quais, por violarem de forma tão grave à lei, não chegam a tratar-se de nulidade, pois estão longe do mínimo admitido para satisfazerem às formalidades legais. Acerca dos atos inexistentes, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho73 dizem que são, de fato, não-atos, pois não podem ser considerados atos processuais dada à gravidade do seu vício. Neste ponto, Eugênio Pacelli de Oliveira74 assegura que os atos inexistentes não produzem quaisquer efeitos jurídicos. Além dos atos processuais inexistentes, cabe fazer menção aos atos irregulares, os quais, nas palavras de Guilherme de Souza Nucci75, representam “infrações superficiais”. Isso porque embora tenham sido praticados em desconformidade com a lei, são convalidados pelo andamento do processo. Com relação aos atos irregulares, Paulo Rangel76 afirma que apesar do ato estar em desacordo com o modelo legal, atinge o fim objetivado pela norma e, por isso, não há declararse a sua ineficácia. De outro lado, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho77 observam que Dentre os atos processuais imperfeitos, os atos nulos são aqueles em que a falta de adequação ao tipo legal pode levar ao reconhecimento de sua inaptidão para produzir efeitos no mundo jurídico. 70 NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 511. 71 TOVO, João Batista Marques; TOVO, Paulo Cláudio. Princípios de processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 51. 72 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 889. 73 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 22. 74 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 667. 75 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 889-890. 76 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 702. 77 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 23. 19 Dizemos que nesses casos, a desconformidade pode levar ao reconhecimento da ineficácia do ato porque, ao reverso do que sucede no direito privado, a nulidade dos atos processuais não é automática, dependendo sempre seu reconhecimento de um pronunciamento judicial em que seja não somente constatada a atipicidade do ato, mas também analisados os demais pressupostos legais para decretação da invalidade [...]. Conforme a definição de Guilherme de Souza Nucci78, nulidade “é o vício, que impregna determinado ato processual, praticado sem a observância da forma prevista em lei, podendo levar à sua inutilidade e conseqüente renovação”. No que concerne aos atos nulos, cabe diferenciar as hipóteses de nulidade absoluta e nulidade relativa. No caso das nulidades absolutas, consoante destacam Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho79, “[...] a gravidade do ato viciado é flagrante e manifesto o prejuízo que sua permanência acarreta para a efetividade do contraditório ou para a justiça da decisão; o vício atinge o próprio interesse público de correta aplicação do direito [...]”. A respeito, Eugênio Pacelli de Oliveira80 esclarece que o vício das nulidades absolutas atinge [...] questões de fundo, essenciais à configuração de nosso devido processo penal, não se pode nunca perder de vista a proteção das garantias constitucionais individuais inseridas em nosso atual modelo processual. [...] os vícios processuais que resultam em nulidade absoluta referem-se ao processo penal enquanto função jurisdicional, afetando não só o interesse de algum litigante, mas de todo e qualquer (passado, presente e futuro) acusado, em todo e qualquer processo. O que se põe em risco com a violação das formas em tais situações é a própria função judicante, com reflexos irreparáveis na qualidade da jurisdição prestada. Configuram, portanto, vícios passíveis de nulidades absolutas as violações aos princípios fundamentais do processo penal, tais como o do juiz natural, o do contraditório e da ampla defesa, o da imparcialidade do juiz, a exigência de motivação das sentenças judiciais etc., implicando todos eles a nulidade absoluta do processo. Lúcio Santoro de Constantino81, ainda, registra que “[...] a mácula na nulidade absoluta é incondicional, pois não depende de prova de qualquer prejuízo. O circunlóquio nulidade absoluta traz a idéia de incontestabilidade, ou seja, ausência de controvérsia quanto à existência do vício prejudicial”. 78 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 889. 79 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 24. 80 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 668669. 81 CONSTANTINO, Lúcio Santoro de. Nulidades no processo penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. p. 29. 20 Ademais, Fauzi Hassan Choukr82 acrescenta que, por constituir tema de “ordem pública”, a nulidade absoluta não depende de provocação da parte, podendo ser suscitada a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição e do procedimento; cabendo, ainda, ao juiz, de ofício, decretar a invalidade do ato. Registra, também, que o reconhecimento da nulidade retroage ao momento do ato absolutamente nulo. Paulo Rangel83 destaca, ainda, que a nulidade absoluta não é acobertada pela sentença condenatória, uma vez que pode ser objeto de discussão em revisão criminal ou habeas corpus, ressalvando, contudo, que se houver sentença absolutória e a referida nulidade não for argüida em grau de recurso, restará acobertada pela coisa julgada, já que não há revisão pro societate. Por outro lado, quanto à nulidade relativa, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho84 verificam que “o legislador deixa à parte prejudicada a faculdade de pedir ou não a invalidação do ato irregularmente praticado, subordinando também o reconhecimento do vício à efetiva demonstração do prejuízo sofrido [...]”. E, por isso, conforme Fauzi Hassan Choukr85, a nulidade relativa não pode ser declarada pelo próprio juiz, ex officio. Consoante Paulo Rangel86, “A parte a quem interessa a nulidade pode abrir mão da formalidade estabelecida em lei [...]”. E constata este autor87 que “[...] enquanto não declarada a nulidade do ato, ele produz regularmente seus efeitos jurídicos [...]. A declaração judicial de nulidade do ato tem efeitos ex tunc, ou seja, retroage à data da prática do fato”. Fauzi Hassan Choukr88, por sua vez, verifica que a nulidade relativa está amparada na tempestividade de argüição, pois se não for alegada em prazo próprio, está sujeita à preclusão, nos termos do artigo 572, inciso I, do Código de Processo Penal. Sob este aspecto, Paulo Rangel89 ressalta que ficará acobertada pela coisa julgada na hipótese de não ter sido alegada antes do ato sentencial. Analisados os conceitos de atos inexistentes, nulos e irregulares, cumpre examinar o sistema de nulidades adotado pelo Código de Processo Penal. Segundo Ada Pellegrini Grinover, 82 CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de processo penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 771. 83 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 709. 84 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 24. 85 CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de processo penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 771. 86 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 709. 87 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 700. 88 CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de processo penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. p. 771. 89 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 709. 21 Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho90, para que se reconheça a invalidade dos atos processuais é necessário uma decisão judicial que a declare, sendo imprescindível que o juiz averigúe em cada caso concreto determinados requisitos para tanto. O Código de Processo Penal brasileiro adota os seguintes princípios para o pronunciamento da nulidade de ato imperfeito: o do prejuízo, o da causalidade, o do interesse e o da convalidação. O princípio do prejuízo, previsto no artigo 563 do Código de Processo Penal, na opinião da doutrina majoritária norteia o sistema de nulidades. Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho91 constatam: O prejuízo que autoriza o reconhecimento da nulidade do ato processual imperfeito pode ser visto sob um duplo aspecto: de um lado, o dano para a garantia do contraditório, assegurada pela Constituição; sob outra ótica, o comprometimento da correção da sentença. Paulo Rangel92, por sua vez, posiciona-se da seguinte forma: Há que se ter relação de causalidade entre o ato imperfeito e o prejuízo alegado pelas partes, pois, se, não obstante o ato for imperfeito, mas não houver prejuízo para as partes, atingindo o ato, desta forma, seu fim, não se deve declarar nulidade em nome dos princípios da economia e da celeridade processual. Neste tópico, convém destacar que as nulidades absolutas não requerem comprovação do prejuízo, uma vez que nelas ele é evidente. De outra forma, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho93 afirmam que nas nulidades relativas, “[...] o prejuízo não é constatado desde logo, em razão do que se exige alegação e demonstração do dano pelo interessado no reconhecimento do vício”. No que tange ao princípio da causalidade, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho94 verificam que está relacionado ao fato de que ao reconhecer a invalidade de certo ato processual, compete ao juiz constatar se a atipicidade não refletiu em outros atos do procedimento, ligados ao primeiro, hipótese em que os últimos também deverão ser declarados nulos. Estes autores ainda destacam que a nulidade dos atos postulatórios propagam-se para os atos subseqüentes, enquanto que a nulidade dos atos instrutórios, em regra, não afeta os demais. 90 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 30. 91 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 32. 92 RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 702. 93 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 34. 94 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 35. Magalhães. As Magalhães. As Magalhães. As Magalhães. As 22 Neste ponto, Eugênio Pacelli de Oliveira95 anota que “Se a conseqüência jurídica do ato irregular é a declaração de sua nulidade, nada mais lógico que aludida nulidade estenda-se também aos atos que sejam subseqüentes àqueles e, mais que isso, que sejam deles dependentes ou conseqüentes”, conforme disposição do artigo 573, § 1.º, do Código de Processo Penal. Quanto ao princípio do interesse, com respaldo no artigo 565 do Código de Processo Penal, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho96 afirmam: “[...] a decretação de invalidade do ato praticado de forma irregular, com sua conseqüente renovação, segundo o modelo legal, deve estar igualmente sujeita a uma apreciação sobre as vantagens que a providência possa representar para quem invoca a irregularidade”. Assim, tal regra restringe-se às nulidades relativas, nas quais a invalidade do ato depende de argüição do interessado; enquanto que nas absolutas, “o vício atinge o próprio interesse público, razão pela qual deve ser reconhecida pelo juiz, independentemente de provocação”. Também o legislador não reconhece o interesse de quem tenha dado causa à irregularidade. Neste particular, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho97 destacam que “dar causa, nesta hipótese, não exige dolo ou culpa da parte, mas apenas o fato objetivo”. Aramis Nassif98, ainda, registra que para alguns autores a falta de interesse processual decorre da ausência de sucumbência. O princípio da convalidação, por sua vez, relaciona-se à idéia de celeridade e economia processual. Da mesma forma que o ordenamento jurídico estabelece a nulidade para atos irregulares, também determina que, em alguns casos, previstos em lei, sanada a irregularidade ou reparado o prejuízo, é possível que o ato irregularmente praticado produza os seus efeitos. Sendo assim, nestes casos, haverá convalidação dos atos praticados em desacordo com a legislação. Dentre as hipóteses de convalidação, Ada Pellegrini Grinover, Antônio Scarance Fernandes e Antônio Magalhães Gomes Filho99 citam a preclusão da possibilidade de argüir a irregularidade, a prolatação da sentença e a coisa julgada. Cumpre relembrar, por fim, que tão-somente os atos relativamente nulos podem ser convalidados, pois a nulidade absoluta não está sujeita à convalidação. 95 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 676. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 36. 97 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 37. 98 NASSIF, Aramis. Considerações sobre nulidades no processo penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 32. 99 GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 38-39. 96 23 2.4 A SÚMULA 523 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL: HISTÓRICO E CONTEÚDO. A Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, publicada em 1969 (DJ de 10/12/1969, p. 5933; DJ de 11/12/1969, p. 5949; DJ de 12/12/1969, p. 5997), possui o seguinte teor: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”. O referido dispositivo tem referência legal nos artigos 563 e 564, inciso III, alínea c, ambos do Código de Processo Penal de 1941100, e como precedentes jurisprudenciais os seguintes acórdãos: HC 42.274 (publicado no DJ de 11/8/1965 e RJ 33/717)101, RHC 43.501 (publicado no DJ de 19/10/1966 e RTJ 38/581)102, HC 45.015 (publicado no DJ de 26/4/1968)103 e RHC 45.336 (publicado no DJ de 4/10/1968)104. Dentre estes precedentes, cabe destacar o HC 42.274/DF, no qual o impetrante alega a nulidade do processo por falta de defesa, considerando que, em determinado momento da instrução processual, a defesa foi executada por estagiário, sem condições legais de cumprir com o encargo. Ao negar a ordem pleiteada, o eminente Relator, Ministro Victor Nunes105, ponderou que [...] a defesa prévia foi firmada por defensor habilitado, e os demais depoimentos, tomados igualmente na presença de defensor habilitado. Do mesmo modo, as razões finais foram apresentadas por quem tinha habilitação legal. Somente em uma audiência, onde duas testemunhas de acusação depuseram sobre a situação do co-réu, e não do paciente, é que funcionou o estagiário. E êste defeito não foi alegado nas razões, quando o defensor habilitado teve ocasião de examinar o processo. Nessa oportunidade, deveria alegar quanto favorecesse ao paciente, inclusive as nulidades que, pelo seu silêncio, ficaram sanadas. E êle não mencionou o defeito da defesa na citada audiência. E concluiu: O que o CPC [sic] institui como nulidade absoluta, no art. 564, letra c, é a falta de defesa, não a deficiência da defesa. Deficiência da defesa é problema que já 100 Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa. Art. 564. A nulidade ocorrerá nos seguintes casos: III - por falta das fórmulas ou dos termos seguintes: c) a nomeação de defensor ao réu presente, que o não tiver, ou ao ausente, e de curador ao menor de 21 anos. 101 STF, Tribunal Pleno, Habeas corpus n.º 42.274/DF, Rel. Min. Victor Nunes, j. 10/6/1965, p. DJ 11/8/1965. p. 359. 102 STF, 1.ª Turma, Recurso em Habeas corpus n.º 43.501/SP, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, j. 22/8/1966, p. DJ 19/10/1966. p. 1.358. 103 STF, 2.ª Turma, Habeas corpus n.º 45.015/SP, Rel. Min. Adaucto Cardoso, j. 20/2/1968, p. DJ 26/4/1968. p. 681. 104 STF, 3.ª Turma, Recurso em Habeas corpus n.º 45.336/GB, Rel. Min. Hermes Lima, j. 29/31968, p. DJ 4/10/1968. p. 725. 105 STF, Tribunal Pleno, Habeas corpus n.º 42.274/DF, Rel. Min. Victor Nunes, j. 10/6/1965, p. DJ 11/8/1965. p. 359. 24 temos apreciado algumas vêzes, e sempre procuramos verificar se dela resultou efetivo prejuízo para o acusado. Tais são, por exemplo, os casos em que o defensor ofereceu razões omissas, ou não repergunta as testemunhas, ou tem pouco tirocínio – embora com habilitação legal –, circunstâncias que se traduzem em deficiências da defesa. Mas o Tribunal verifica se essa deficiência foi de tal ordem que chegou a comprometer efetivamente a defesa do réu. Em outras palavras, é caso de nulidade relativa, que haveria de ser denunciada nas razões.106 Também merece análise o RHC 43.501/SP, no qual o impetrante requer a nulidade do processo, pois teria a paciente sido processada à revelia, não obstante a nomeação de defensor. Analisando a instrução processual, o eminente Relator, Ministro Oswaldo Trigueiro107, observou: A paciente foi processada à sua inteira revelia. Não teve defesa, a despeito de ter-lhe sido dado defensor, na forma da lei. Mas êste não apresentou defesa prévia, não arrolou testemunha, não teve qualquer intervenção no sumário da culpa e, à guisa de razões finais, escreveu as poucas linhas que constam da fotocópia de fl. 26. Nestas condições não é de estranhar-me que os outros co-réus hajam sido absolvidos e sómente a paciente seja, afinal, tida como responsável pela trama delituosa. Ao conceder a ordem, motivou a sua decisão da seguinte forma: Nossa jurisprudência tem se firmado no sentido de que “o advogado dativo não tem a lata faculdade de se omitir da apresentação de defesa, a pretexto de ela era ou podia ser inconveniente ao réu. O exercício da defesa é indeclinável injunção da lei, que não se preenche apenas com a nomeação forma de um defensor” (RHC 43.011, in RTJ, 36/198). Além disso, o Tribunal recorrido já absolveu os demais co-réus no processo, dessa maneira, reconhecendo a inexistência do crime que foi objeto da denúncia. Parece-me, assim, de tôda justiça que essa solução seja extensiva à impetrante108. No que se refere ao HC 45.015/SP, o paciente, menor de 21 anos, não compareceu na ocasião da inquirição de duas testemunhas de acusação, sendo-lhe nomeado defensor ad hoc. No entanto, o referido defensor não assinou no encerramento dos depoimentos, o que significa que não esteve presente. E, quando da oitiva da vítima, por carta precatória, somente nomeou-se defensor ao co-réu, sequer mencionando-se o nome do paciente como denunciado; ou seja, novamente, o réu não foi acompanhado por defensor. Considerando tais fatos, o eminente Relator, Ministro Adaucto Cardoso109, deferiu a ordem, para o fim de anular o processo a partir da inquirição das testemunhas em que o paciente não teve defensor, salientando que “O réu menor não teve defensor em fase culminante da instrução criminal”. 106 STF, Tribunal Pleno, Habeas corpus n.º 42.274/DF, Rel. Min. Victor Nunes, j. 10/6/1965, p. DJ 11/8/1965. p. 360. 107 STF, 1.ª Turma, Recurso em Habeas corpus n.º 43.501/SP, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, j. 22/8/1966, p. DJ 19/10/1966. p. 1.358. 108 STF, 1.ª Turma, Recurso em Habeas corpus n.º 43.501/SP, Rel. Min. Oswaldo Trigueiro, j. 22/8/1966, p. DJ 19/10/1966. p. 1.359. 109 STF, 2.ª Turma, Habeas corpus n.º 45.015/SP, Rel. Min. Adaucto Cardoso, j. 20/2/1968, p. DJ 26/4/1968. p. 681. 25 No caso do RHC 45.336/GB, o paciente foi revel tanto em sede policial quanto na fase judicial. Ainda que haja referência ao nome do defensor público quando do sumário, não consta ao fim dos depoimentos testemunhais a sua assinatura, o que indica que “não poderia estar presente ao ato se não assinou”110. Por fim, o eminente Ministro Thompson Flores111, ao acompanhar o voto do ilustre Relator, Ministro Hermes Lima, destacou que “o Defensor Público não assinou o têrmo, não fês defesa, nem formulou perguntas. O paciente foi realmente prejudicado. Por essa razão, é de se anular e renovar o processo”. Com efeito, do exame dos precedentes legais e jurisprudenciais da Súmula sob comento, verifica-se que esta foi aprovada com o objetivo de resolver questões quanto à nulidade do processo nos casos de omissão e deficiência da defesa técnica. A sua redação aponta que haverá nulidade absoluta na hipótese de ausência de defesa técnica, o que, na verdade, já estava inserido no artigo 564, inciso III, alínea c, do Código de Processo Penal; assim como o artigo 572 do Código de Processo Penal, ao não fazer referência à possibilidade de sanar-se tal vício, também evidencia tratar-se a falta de defesa de nulidade absoluta, a qual não é passível de convalidação. E, para os casos em que a defesa revela-se deficiente, a Súmula adotou a nulidade relativa, segundo a qual há necessidade de se comprovar o prejuízo do acusado para a declaração da nulidade. Este posicionamento com relação à intenção da Súmula de estabelecer como nulidade absoluta a falta de defesa e, relativa, a sua deficiência é compartilhado pela maior parte da doutrina brasileira, a exemplo de Eugênio Pacelli de Oliveira112 e Guilherme de Souza Nucci113. Contudo, estes mesmos juristas abordam que, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual instituiu o sistema processual acusatório, contrário ao sistema inquisitivo adotado pelo Código de Processo Penal de 1941, devem-se adotar certos cuidados na sua aplicação, pois há casos em que a deficiência da defesa técnica equipara-se à sua ausência, devendo, nestes casos, ser afastada pelo juiz para melhor atender aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório. Como destaca Berenice Maria Giannella114, a partir da edição da Súmula sob comento, surgiram controvérsias quanto à sua aplicação nos casos concretos, por vezes esquadrinhando a 110 STF, 3.ª Turma, Recurso em Habeas corpus n.º 45.336/GB, Rel. Min. Hermes Lima, j. 29/31968, p. DJ 4/10/1968. p. 725. 111 STF, 3.ª Turma, Recurso em Habeas corpus n.º 45.336/GB, Rel. Min. Hermes Lima, j. 29/31968, p. DJ 4/10/1968. p. 727. 112 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 113 NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. 114 GIANNELLA, Berenice Maria. Assistência jurídica no processo penal: garantia de efetividade do direito de defesa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 121-122. 26 atuação da defesa em atos individualizados do processo de conhecimento e, por outras, examinando como um todo, dentro do processo. E assim complementa: O estudo de numerosos acórdãos que julgaram com base na referida Súmula nos leva ao entendimento de que ela não preenche a necessidade de se identificar quando a defesa é ausente ou deficiente. No que toca à ausência de defesa, a Súmula é desnecessária, na medida em que repete regra contida no art. 564, inciso III, letra “c”, do CPP. Quanto à denominada deficiência de defesa com necessidade de demonstração do prejuízo para a nulidade do ato ou do processo, verificamos que ela também não resolve o problema, uma vez que a demonstração do prejuízo é motivo para que se admitam situações verdadeiramente esdrúxulas, em que o direito de defesa foi flagrantemente desrespeitado, mas não teria trazido prejuízo para o acusado porque o fato se encontrava devidamente comprovado, porque o réu confessara. E, por isso, conclui, formando uma posição minoritária na doutrina, que a melhor interpretação a ser dada à Súmula em questão é aquela que embora reconheça a deficiência de defesa como nulidade absoluta, questione o prejuízo, o qual pode vir a ser mera decorrência da atuação deficiente da defesa somada à condenação do acusado. 115 Neste mesmo sentido, Vinicius Borges de Moraes116 entende que a deficiência da defesa não pode ser enquadrada como nulidade relativa, uma vez que se refere à ampla defesa, direito que compõe o rol das garantias fundamentais, assim como a defesa é “ato estrutural do processo penal e, portanto, trata-se de uma questão de ordem pública, gerando a obrigação ao Estado de preservar a sua efetividade”. Esclarecendo, assim, que a deficiência da defesa constitui nulidade absoluta, ainda que seja imprescindível a prova do prejuízo ao acusado, o que configura exceção à regra geral das nulidades absolutas, segundo a qual o prejuízo é presumido. Portanto, verifica-se que a aprovação da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal tinha por finalidade sedimentar o entendimento de que a falta da defesa técnica constitui nulidade absoluta, enquanto que a sua deficiência é caso de nulidade relativa, dependendo da prova do prejuízo pela defesa para a declaração da nulidade. Contudo, juntamente com a amplitude da defesa garantida pela Constituição Federal de 1988, surgiram novas interpretações deste dispositivo sumulado, visando adequá-lo aos preceitos constitucionais, a exemplo daquela que se posiciona no sentido de que a deficiência da defesa é nulidade absoluta, por violar preceitos constitucionais, ainda que seja necessária a prova do prejuízo. 115 Esta mesma interpretação foi adotada pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça nos seguintes julgados: STJ, 5.ª Turma, Habeas corpus n.º 57425/RJ, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 20/11/2006, p. DJ 18/12/2006. p. 422; e STJ, 5.ª Turma, Habeas corpus n.º 48556/RJ, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 20/6/2006, p. DJ 1/8/2006. p. 471. 116 MORAES, Vinicius Borges de. A Súmula 523 do STF e a deficiência de defesa: uma breve análise acerca da nulidade absoluta e nulidade relativa no processo penal. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8139>. Acesso em: 09 set 2007. 27 2.5 A NÃO-RECEPÇÃO DA SÚMULA 523 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL PELA AMPLITUDE DA DEFESA ASSEGURADA PELA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988. A Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal foi aprovada em 1969, sob a vigência da Constituição Federal de 1967. Breves comentários acerca desta Constituição destacam: “Essa Carta preocupou-se, fundamentadamente, com a segurança nacional. Deu mais poderes à União e ao presidente, além de restringir direitos e garantias fundamentais dos cidadãos brasileiros”117. Posteriormente, a Constituição Federal de 1988, seguindo uma tendência mundial, nas palavras de José Frederico Marques118, “foi elaborada em função dos ideais democráticos do Estado de Direito”. Neste aspecto, Geraldo Prado119 observa que ao passo em que a Constituição da República opta por tutelar os direitos fundamentais, a estrutura do processo penal deve necessariamente harmonizar-se a todos estes direitos. Nesta mesma linha de pensamento, Aury Lopes Júnior120 anota: “[...] a uma Constituição democrática, como a nossa, necessariamente deve corresponder um processo penal democrático, visto como instrumento a serviço da máxima eficácia do sistema de garantias constitucionais do indivíduo”. Levando em conta tais considerações e constatado que a Constituição Federal de 1988 assegura, no inciso LV do artigo 5.º, aos litigantes e acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, verifica-se, de plano, que a Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal não foi recepcionada pela Carta Magna. Isso porque na medida em que a Lei Fundamental assegura a amplitude da defesa que, na opinião de grande parte da doutrina quer dizer plenitude de defesa, não há espaço para se tolerar a possibilidade de a defesa apresentar-se limitada, restrita, anêmica, desidiosa, pois há evidente afronta ao texto constitucional. Embora de forma ainda tímida a doutrina e a jurisprudência já têm se manifestado quanto à não-recepção da Súmula em comento pela Constituição Federal de 1988. Aramis Nassif121 já se posicionou a respeito: No meu entendimento, a orientação da Corte Suprema viola o preceito constitucional da ampla defesa que, sendo deficiente, obviamente não será ampla. 117 AS CONSTITUIÇÕES do Brasil. Notícias do Supremo Tribunal Federal. Brasília, 4 de outubro de 2008. Disponível em: <www.stf.gov.br/portal/cms/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=97174>. Acesso em: 05 out 2008. 118 MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1998. vol. 1. p. 81. 119 PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 47. 120 LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 7. 121 NASSIF, Aramis. Considerações sobre nulidades no processo penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 29. 28 Toda violação de preceito constitucional gera nulidade absoluta e, por isto, o prejuízo é presumido. Inclusive este mesmo jurista122, quando Relator da Apelação Criminal n.º 70008083081, reconheceu, ex officio, a nulidade do processo crime devido à não-observância do princípio da ampla defesa, nos termos em que previsto na Constituição Federal. Nesta oportunidade, esmiuçou seu posicionamento sobre a não-recepção da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal pelo texto constitucional, assim: Preliminarmente, tenho que o processo é nulo em relação ao apelante, a contar da fls. 158, inclusive. Conforme se percebe, mais que evidente que o acusado teve sua defesa prejudicada em razão da limitada peça formulada por seu defensor constituído, no prazo que rege o artigo 500 do CPP, e que, sabe-se, é o momento do exercício pleno da defesa. A luz da Súmula 523 do STF verifica-se que a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas sua deficiência só anulará o processo quando em prejuízo ao réu. O devido processo legal aplica-se na integralidade quando há defensores eficientes concretizando a defesa técnica, quase sempre a única. É a maneira da confirmação do preceito constitucional insculpido do Art. 5º, LV, da Constituição brasileira ao assegurar “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”. É possível a convivência da expressão sumulada e a regra constitucional? É possível uma defesa ser ampla (ou plena, como mais corretamente de ser lida a norma), e ao mesmo tempo toleravelmente deficiente? Certamente que não! Esta Súmula da Corte Suprema data 1969, coincidindo, sua emissão, com um dos mais graves momentos na história política brasileira, quando quase todos os direitos dos cidadãos estavam sob controle do estado ditatorial e, ao meu ver, ela não expressa mais que a ânsia antidemocrática que contaminou, lamentavelmente, o espírito dos intérpretes e guardiões da Carta ofendida e humilhada por atos como E.C. 1/79, AI 5, etc. O enunciado não resiste ao significado do momento histórico e ao espírito democrático da Constituição de 1988, que, se não expressamente, ao menos tacitamente a revogou. Deve ser recusada, portanto, no processo penal, aplicação da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal. No presente caso, o prejuízo restou estampado haja vista que análise da prova nenhuma foi realizada pelo defensor no prazo que lhe incumbia. Meras alegações, vagas e sem sustentação alguma não devem ser tidas como suficientes para sustentar a efetividade da ampla defesa prevista na carta maior. Anula-se o feito para que, repetido o ato, siga o processo com regularidade, garantindo-se, assim a aplicação da norma constitucional. O voto é no sentido de, ex officio, declarar a nulidade do processo a partir de fls. 158, inclusive, por vulnerado o Art. 5º, LV, da Constituição Federal, devendo o ato ser renovado, seguindo o processo seu trâmite regular123 [grifos no original]. Neste mesmo sentido é a manifestação de Lenio Luis Streck124, ao emitir Parecer na Apelação Criminal n.º 70011360054, in verbis: 122 TJ/RS, 5.ª Câmara Criminal, Apelação criminal n.º 70008083081, Rel. Aramis Nassif, j. 17/3/2004. 29 O entendimento esposado na Súmula 523 do STF, de origem anterior a 1988, é atentatório à ampla defesa, uma vez que a deficiência desta pode acarretar os mesmos prejuízos ao réu, como os ocasionados pela “ausência de defesa”. Também Lúcio Santoro de Constantino125, ao observar que são incompatíveis a norma constitucional e a redação da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, assinala que se houve deficiência na defesa técnica, há afronta à garantia da ampla defesa assegurada pelo texto constitucional, assim como o prejuízo ao acusado é manifesto, sendo desnecessária a sua comprovação. Sob outro aspecto, Antonio Carlos Tovo Loureiro126 observa que a disposição da Súmula em comento revela desconformidade com a Constituição, sugerindo uma nova interpretação: Este entendimento provoca a violação dos direitos do réu tanto pela deficiência de defesa quanto por sua oneração com a comprovação de prejuízo. É despiciendo exercício intelectivo elaborado para se chegar à conclusão que uma defesa que se reputa deficiente tenderá a não conseguir provar o prejuízo. A discricionariedade para a definição do limite absoluta/relativa contribui com um mecanismo para que os magistrados imbuídos do formalismo judicial transformem em nulidades relativas a maior parte dos defeitos processuais. Com efeito, no que diz respeito ao prejuízo, é necessária uma inversão do pensamento, porquanto atribuir a comprovação deste prejuízo pelo acusado consiste em distorcer o sistema, para satisfação da estabilidade do trâmite. Obrigar o acusado a comprovar equivale a negar-lhe a vigência do interesse danificado. Destarte a lógica a orientar casos de descumprimento de formas que impliquem violação a princípios de tutela do imputado é de uma presunção de prejuízo. Apenas se demonstrado que não ocorreu conseqüência concreta o defeito não será reparado. Adauto Suannes127, por sua vez, enfatiza a não-recepção da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal pela nova ordem constitucional: [...] ou algo é amplo ou é restrito. Uma mesa é larga ou é estreita. O contrário de mesa larga não é, até onde o bom senso permite afirmar, mesa inexistente. Logo, o contrário de defesa ampla é defesa restrita, reduzida, parca, escassa. Se a Constituição Federal exige que a defesa seja ampla, pena de nulidade, tem-se que – a menos que se revoguem os dicionários – uma defesa escassa, parca, reduzida, restrita implicará a nulidade do processo. Contrapor amplo a existente é escamotear a garantia constitucional [...]. Desta forma, não há dúvida de que o teor da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal viola a ordem constitucional vigente, pois não se pode admitir uma defesa restrita pela deficiência, enquanto a Constituição Federal garante a amplitude da defesa, com todos os meios 123 TJ/RS, 5.ª Câmara Criminal, Apelação criminal n.º 70008083081, Rel. Aramis Nassif, j. 17/3/2004. TJ/RS, 5.ª Câmara Criminal, Apelação criminal n.º 70011360054, Rel. Aramis Nassif, j. 27/7/2005. 125 CONSTANTINO, Lúcio Santoro de. Nulidades no processo penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. p. 68. 126 LOUREIRO, Antonio Carlos Tovo. Nulidades e limitação do poder de punir: análise de discurso de acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 2008. 114 f. p. 105-106. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais)-Faculdade de Direito, PUCRS, Porto Alegre, 2008. 127 SUANNES, Adauto. O ativismo judicial. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 27, p. 350, jul-set 1999. 124 30 e recursos a ela inerentes. Há evidente incompatibilidade entre estes dispositivos, devendo, pois, prevalecer, por óbvio, a norma constitucional, base fundamental para o Direito do País. Oportuno referir, outrossim, que se optou pela expressão não-recepção da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal pela nova ordem constitucional e não pela denominação inconstitucional, pois, conforme a lição de Nelson Nery Júnior128, ainda que em ambos os casos o dispositivo legal, por estar em desacordo com a norma constitucional, não poderá ser aplicado, o fenômeno da não-recepção aplica-se aos casos de divergência em que a norma legal tenha sido editada antes da nova Constituição Federal e mostre-se incompatível com esta, o que foi verificado com relação à Súmula em questão. Assim, constata-se que embora a doutrina e a jurisprudência ainda se mostrem um tanto quanto receosas com relação à não-aplicação da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal por evidente afronta ao texto constitucional, já se pode verificar um certo avanço a respeito, o que indica uma forte tendência de sedimentação dos preceitos constitucionais referentes à efetividade da defesa. 2.6 PROPOSTA DE REVISÃO DA SÚMULA 523 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL CONSOANTE O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA DEFESA PLENA E EFETIVA. A Súmula, nos dizeres do Ministro Sepúlveda Pertence129, é “uma pura declaração solene do Tribunal de que considera determinada questão pacificada, e conseqüentemente, dispensa novas discussões, citações de precedentes, longas e eruditas fundamentações”. Também o artigo 102 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal dispõe: “A jurisprudência assentada pelo Tribunal será compendiada na Súmula do Supremo Tribunal Federal”130, por deliberação da maioria absoluta do Tribunal, em sessão plenária. Contudo, conforme justificado ao longo dos tópicos anteriores, verifica-se que a redação da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal mostra-se incompatível com a atual Constituição Federal. Isso porque os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa revelam, de plano, que a defesa, especialmente no processo penal, que protege o status libertatis do indivíduo, deve ser a mais ampla possível, não podendo ser confundida com uma defesa deficiente. 128 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 20. 129 STF, Tribunal Pleno, Habeas corpus n.º 85.185, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 10/8/2005, p. DJ 1/9/2006. p. 18. 130 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Regimento Interno. Brasília: STF, 2007. 31 E, em vista disso, sustenta-se o cancelamento da referida Súmula, justamente por não estar de acordo com os preceitos constitucionais, compartilhando do entendimento de Aramis Nassif, já esboçado anteriormente (item 2.5), mas que vale a pena repisar: a Súmula em testilha foi aprovada no ano de 1969, ocasião em que vigorava no país a Constituição Federal de 1967, de cunho ditatorial, e, neste momento histórico brasileiro, os cidadãos estavam sob controle do Estado, além de terem sofrido limitações dos seus direitos e garantias fundamentais. De outro modo, a Constituição Federal de 1988 instituiu o Estado Democrático de Direito, ampliando o rol de direitos e garantias dos indivíduos. Assim, não se mostra condizente com a realidade constitucional atual, que assegura aos acusados a amplitude da defesa, tolerar-se uma defesa deficiente. Igualmente, vale registrar que a Constituição Federal representa a base essencial de todo o ordenamento jurídico brasileiro e, por isso, vincula todas as normas infraconstitucionais, as quais devem adequar-se ao seu espírito. E, por este motivo, o artigo 103 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal possibilita a proposição, por qualquer Ministro, de revisão de Súmula assentada em matéria constitucional. Inclusive, até causa estranheza o fato de ainda não ter sido proposta a revisão do entendimento sumulado sob comento. Além disso, cabe mencionar que há posição no sentido de que a Súmula, por se tratar de enunciado que reflete a jurisprudência de um Tribunal, somente a esta está vinculada, exemplo deste entendimento é aquele sustentado pelo Ministro Carlos Velloso131, quando Relator da ADIn n.º 594. Neste ponto, também é de se destacar que a jurisprudência não se mostra pacífica quanto à aplicação da Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, sobretudo em sua parte final, quando se refere à deficiência da defesa técnica. Aliás, ainda que de uma forma tímida, a jurisprudência já tem afastado a aplicação da Súmula em questão, considerando que há casos em que a defesa deficiente equipara-se à omissão de defesa, constatando-se prejuízo manifesto ao acusado e, conseqüentemente, declarando-se a nulidade do feito. Isso pode ser verificado em julgados de diversos tribunais, inclusive dos Tribunais Superiores, conforme excertos de decisões já transcritos no item 2.2, o qual versa sobre a falta e a deficiência da defesa. Desta forma, sustenta-se seja cancelada a Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, pelos argumentos já apresentados, seja porque não foi recepcionada pela Constituição Federal, mostrando-se incompatível com os seus preceitos, seja porque a jurisprudência apresenta 131 STF, Tribunal Pleno, Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 594, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 19/2/1992, p. DJ 15/4/1994. p. 8046. 32 divergência quanto à sua aplicação, do que se verifica não mais se tratar de entendimento sedimentado e pacífico nos tribunais. CONCLUSÃO Após a investigação realizada no presente trabalho estabelece-se as seguintes conclusões: 1) Considerando-se a ordem essencialmente inquisitiva do Código de Processo Penal de 1941 é indispensável que as normas processuais penais sejam interpretadas sob a ótica da Constituição Federal de 1988, que instituiu o sistema processual acusatório, assegurando aos indivíduos um amplo rol de garantias e direitos. 2) O princípio constitucional do devido processo legal, o qual rege o ordenamento jurídico brasileiro, servindo de ponto de partida para todos os demais princípios, assegura aos litigantes um conjunto de garantias imprescindíveis para que o processo siga regularmente e atinja a sua finalidade. 3) A ampla defesa assegurada constitucionalmente garante ao acusado uma série de direitos para efetivar a sua defesa, dentre os quais cita-se o direito de informação, a bilateralidade de audiência, o direito à prova regular, assim como a publicidade dos atos processuais, o direito de silêncio e a garantia de acesso ao Judiciário. O direito de defesa consiste na integração da defesa técnica e da autodefesa. A primeira é indisponível e manifestase pela atuação de um advogado, garantindo a paridade de armas entre defesa e acusação, enquanto a segunda é exercida pelo próprio acusado no decorrer do processo, tendo no interrogatório seu momento de maior relevância. 4) O princípio do contraditório garante às partes a possibilidade de contra-argumentar as alegações da parte contrária durante todas as fases do processo. 5) A defesa no processo penal, a fim de coadunar-se aos preceitos constitucionais há de ser plena e efetiva, o que significa que não basta mera aparência de defesa. A defesa deve mostrar-se ativa, concreta, real, efetiva e qualitativamente adequada, especialmente porque no processo penal está em jogo o status libertatis do indivíduo. 6) A falta e a deficiência da defesa são incompatíveis com o sistema instituído pela Constituição Cidadã, uma vez que esta garante a amplitude de defesa, o que, por óbvio, não pode ser suprida por uma defesa deficiente. O exame acerca da deficiência da defesa não pode ser feito isoladamente, mas por meio do conjunto de atos processuais que constituem o devido processo legal. Inclusive os tribunais brasileiros orientam-se no sentido de que há casos em que 33 a deficiência da defesa equipara-se à sua omissão, quando é evidente, portanto, o prejuízo ao acusado, assim como a necessidade de declarar-se a nulidade do processo. 7) Dentre os atos viciados pode-se distinguir os atos inexistentes, que, por violarem de forma tão grave à lei, não chegam a ser considerados atos processuais; os atos irregulares, que apesar de apresentarem desacordo superficial com a legislação, são convalidados pelo prosseguimento do processo; e os atos nulos, dentre os quais tem-se a nulidade absoluta e a relativa. As nulidades absolutas são aquelas em que se descumpre formalidade essencial, de interesse público, podendo ser argüidas a qualquer tempo, assim como declaradas de ofício pelo juiz, ante à evidência do prejuízo. As nulidades relativas, por sua vez, consistem em atos viciados, cujo prejuízo deve ser demonstrado pela parte interessada em prazo próprio para a declaração da invalidade, sob pena de convalidação. 8) A Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, com o seguinte teor: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”, aprovada em 1969, não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, pois a Carta Magna garante aos acusados uma defesa ampla, com todos os meios e recursos a ela inerentes, que não pode ser confundida com uma defesa deficiente, a qual gera manifesto prejuízo ao acusado. 9) Por fim, defende-se seja cancelada a Súmula 523 do Supremo Tribunal Federal, pois incompatível com os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, assim como pela constatação de que a jurisprudência não mais se apresenta sedimentada quanto à sua aplicação. REFERÊNCIAS AS CONSTITUIÇÕES do Brasil. Notícias do Supremo Tribunal Federal. Brasília, 4 de outubro de 2008. Disponível em: <www.stf.gov.br/portal/cms/vernoticiadetalhe.asp?idconteudo=97174>. Acesso em: 05 out 2008. BUENO FILHO, Edgard Silveira. O direito à defesa na Constituição. São Paulo: Saraiva, 1994. CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2006. CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de processo penal: comentários consolidados e crítica jurisprudencial. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007. CONSTANTINO, Lúcio Santoro de. Nulidades no processo penal. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2006. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1993. FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradução de: Ana Paula Zomer Sica et al. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. GIANNELLA, Berenice Maria. Assistência jurídica no processo penal: garantia de efetividade do direito de defesa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. GOMES, Luiz Flávio. Reformas Penais : júri (julgamento em plenário). Disponível em: <www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 10 out 2008. 34 GRECO FILHO, Vicente. Tutela constitucional das liberdades. São Paulo: Saraiva, 1989. GRINOVER, Ada Pellegrini. A reforma do processo penal II. Disponível em: <www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 20 set 2008. GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antônio Scarance; GOMES FILHO, Antônio Magalhães. As nulidades no processo penal. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990. INTERROGATÓRIO do acusado e defesa efetiva. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 33, p. 330-332, jan-mar 2001. LOPES JÚNIOR, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. LOUREIRO, Antonio Carlos Tovo. Nulidades e limitação do poder de punir: análise de discurso de acórdãos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. 2008. 114 f. p. 105-106. Dissertação (Mestrado em Ciências Criminais)-Faculdade de Direito, PUCRS, Porto Alegre, 2008. MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. Campinas: Bookseller, 1998. v. 1. MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2 ed. São Paulo: Forense, 1965. v. 1. MARQUES, José Frederico. Tratado de direito processual penal. São Paulo: Saraiva, 1980. MORAES, Vinicius Borges de. A Súmula 523 do STF e a deficiência de defesa: uma breve análise acerca da nulidade absoluta e nulidade relativa no processo penal. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8139>. Acesso em: 09 set 2007. MOSSIN, Heráclito Antônio. Comentários ao código de processo penal: à luz da doutrina e da jurisprudência. Barueri: Manole, 2005. MOSSIN, Heráclito Antônio. Nulidades no direito processual penal. 2 ed. São Paulo: Atlas, 1999. NASSIF, Aramis. Considerações sobre nulidades no processo penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001. NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. 3 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. NUCCI, Guilherme de Souza. Código de processo penal comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 10 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. PEDROSO, Fernando de Almeida. Processo penal, o direito de defesa: repercussão, amplitude e limites. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. RANGEL, Paulo. Direito processual penal. 14 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. SILVA. Haroldo Caetano da. Ampla defesa: um princípio que não pode ser esquecido. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v. 8, n. 96, p. 12, nov. 2000. Disponível em: <www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 20 set 2008. SUANNES, Adauto. O ativismo judicial. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, n. 27, p. 350, jul-set 1999. TOVO, João Batista Marques; TOVO, Paulo Cláudio. Princípios de processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. TUCCI, Rogério Lauria. Direitos e garantias individuais no processo penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1993.