Anais Eletrônicos do III Seminário Nacional Literatura e Cultura
São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 3, 6 a 8 de junho de 2011.
ISSN: 2175-4128
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Luiz Eduardo da Silva Andrade (UFS)ii
A tarefa de nomear o outro é sempre complexa. A começar pela noção de
“outro” que remete a um ser desconhecido e diferente daquele que observa.
Contudo, vemos que essa condição de ser o “mesmo” ou o “outro” – familiar ou
estranho (Freud, 1976) – depende da perspectiva de quem busca nomear. Nessa
tentativa de se colocar no mundo, podemos observar que o nome identifica e dá
limites. Ainda que não seja o nome propriamente dito, mas aquela partícula pela
qual o sujeito é identificado em meio aos demais. Pois ela revela muita coisa,
tanto de quem atribuiu, quanto de quem porta. Configurando-se como um
recipiente, no nome “estão vertidas as avaliações conscientes ou involuntárias de
quem nomeia” (STRAUSS, p. 35, 1999). Inscrevendo os sujeitos na história de um
grupo social, familiar ou religioso, por exemplo. O nome categoriza. De modo que
o sujeito desprovido ou que não o tenha pode ser considerado sem identidade,
uma alteridade em meio aos demais.
A tarefa de nomear o outro é sempre complexa. A começar pela noção de
“outro” que remete a um ser desconhecido e diferente daquele que observa.
Contudo, vemos que essa condição de ser o “mesmo” ou o “outro” – familiar ou
estranho (Freud, 1976) – depende da perspectiva de quem busca nomear. Nessa
tentativa de se colocar no mundo, podemos observar que o nome identifica e dá
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limites. Ainda que não seja o nome propriamente dito, mas aquela partícula pela
qual o sujeito é identificado em meio aos demais. Pois ela revela muita coisa,
tanto de quem atribuiu, quanto de quem porta. Configurando-se como um
recipiente, no nome “estão vertidas as avaliações conscientes ou involuntárias de
quem nomeia” (STRAUSS, p. 35, 1999). Inscrevendo os sujeitos na história de um
grupo social, familiar ou religioso, por exemplo. O nome categoriza. De modo que
o sujeito desprovido ou que não o tenha pode ser considerado sem identidade,
uma alteridade em meio aos demais.
Essa é uma das características do ser monstruoso, a imprecisão. Miguel
Mix (1993) dirá que ao monstro se apartam a estética e a ética, se fosse comparado
a um homem, este homem seria um estrangeiro, ou seja, um indivíduo que está
deslocado momentaneamente da realidade. O monstro é um ser fronteiriço, vive
no limite do mundo conhecido e do imaginário, característica a qual corrobora o
fato de ele ser inapreensível tanto fisicamente quanto em pensamentos e
motivações. É justamente nessa fronteira do conhecido e do imaginário que Freud
(1976) discute a relação do que é o estranho (Unheimliche) e do que é familiar
(Heimliche). Para o estudioso eles são parte de um mesmo corpo, variando de
acordo com a circunstância de identificação: “Direi, de imediato, que ambos os
rumos conduzem ao mesmo resultado: o estranho é aquela categoria do
assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”
(FREUD, 1976, p. 277).
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Em A menina morta (1954), de Cornélio Penna encontramos várias
discussões acerca da identidade. Se por um lado temos a figura do Comendador,
ancorada no sistema patriarcal, imprimindo uma forte marca identitária,
sustentada pela violência da dominação. Por outro, encontramos personagens de
resistência como D. Mariana, sua esposa, e as escravas. Não obstante, as
identidades estão diluídas e fragmentadas no decorrer da narrativa, como se
lutassem constantemente pelo espaço. Prova disso é o silêncio que permeia as
relações entre os senhores, quebrado apenas pelas micro-narrativas das negras
que ora elucidam ou omitem a memória da família.
Destarte, o objetivo deste trabalho é analisar, a partir do episódio da
mucama sem rosto, a identidade monstruosa dos negros no romance. Certamente
há um paradoxo nessa conceituação, pois como é que um ser sem identificação
(face) tem identidade? Seria nesse caso uma alteridade? A própria cena da escrava
sem rosto e sem nome é misteriosa. São questões que procuraremos discutir no
transcorrer do ensaio.
A narrativa inicia com os preparativos para o sepultamento da menina
morta. Ela, que não tem o nome revelado, arrasta consigo todas as virtudes do
lugar, aludidas pela sensação de perda que todos sentem, inclusive os escravos.
Tudo se passa na fazenda do Grotão, situada no Vale do Paraíba, na fronteira
entre as províncias de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Da parte do
Comendador, moravam na casa-grande as suas primas Dª. Virgínia, Dª. Inacinha
e Sinhá Rola; da parte de D. Mariana, apenas Celestina. Sendo que mais adiante
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chega ao Grotão Carlota, a filha do casal trazida da corte. Eram inúmeros
agregados e três centenas de escravos trabalhando na lavoura de café e dentro da
casa-grande, bem como Frau Luísa, a governanta alemã. O clima de mistério é
constante, não se sabe qual o mal que acarretou na morte prematura da criança,
em verdade fala-se pelos cantos muito mais na falta e nas irrealizações para todos
do que na própria vida da menina.
Luís Bueno (2006, p. 525) no livro Uma história do romance de 30 reserva um
capítulo para a obra de Cornélio Penna. Inicia sua crítica comentando um texto
em
que
Gilberto
Freyre
diz
não
considerar
Cornélio
um
escritor
predominantemente telúrico, juntamente com Machado de Assis, pois ambos
quedam mais ao estilo europeu. Telúrico entenda-se como regionalista,
substantivo derivado de terra. Diz Bueno que a consideração de Freyre é
superficial e correta quando analisada a obra de Cornélio sob o prisma do neorealismo, crítica sócio-econômica. No entanto, o sentido de telúrico como
representação da terra não apartaria José Lins do Rego do nosso escritor. Pautado
nas considerações de Maria Arminda Arruda e Manuel Bandeira, Bueno defende
a “mineiridade” de Cornélio, isto estaria expresso na evocação da cidade
interiorana, dos costumes, sem contar o clima e a paisagem serrana. Decerto que
Luís Bueno não adentra em A menina morta, porém estendendo sua análise
encontramos estes traços mineiros na nossa narrativa. Que não se confunda como
romance laudatório dos costumes interioranos, ao contrário, a proposta é abrir a
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cortina e destruir esse mundo falsamente escondido pelo ar religioso, ordeiro e
moralista, onde a identidade negra e a feminina são marginais.
O romance corneliano flui numa atmosfera vaga, mas detalhista na
evocação de determinadas imagens, diz Alfredo Bosi (1978) que
A Menina Morta é um romance de atmosfera mas, ao mesmo
tempo, um conjunto absolutamente coeso e verossímil. O efeito
de mistério que dele se depreende não se deve a intrusões
aleatórias de seres embruxados, mas à própria realidade
material e moral de uma fazenda às margens do Paraíba e às
vésperas da Abolição. (p. 469)
Daí vemos a exposição do mistério como um elemento revelador: de uma
moral desgastada, de uma sociedade em decadência, de uma economia à beira de
crise e, sobretudo, da escravidão como mácula na história do Brasil. Como
comenta Josalba Fabiana dos Santos (2008): “Na obra corneliana, o mistério
encobre com a mesma intensidade que revela: não é um fim, é um meio”. Ou seja,
a lacuna não significa um espaço vazio, mas um intervalo entre o que se tentou
apagar da memória e o que retorna tal qual um fantasma para assombrar.
Continuando, sobre a importância de A menina morta, Bosi (1978) diz que
“o ‘documento’ é tão rico nesse particular que Augusto Frederico Schmidt pode
dizer: ‘Não se terá escrito sobre a escravidão no Brasil, até hoje, nada mais
impressionante do que alguns dos capítulos de A Menina Morta’” (p. 469). A obra
não tem por obrigação primordial o resgate da história, contudo observe-se que o
resgate histórico do Brasil é tão precário que mesmo uma narrativa brumosa, na
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visão de Schmidt (1958, p. 723), suplanta esta falha. Este é o ponto mais criativo
de Cornélio: trazer à “luz” os fragmentos que na visão “oficial” “mancham” a
nossa história.
Inversamente ao que se imagina como luz – a liberdade, o bem, a verdade,
a razão –, a poética corneliana recupera resíduos com seu mar de metáforas e
densas alegorias. Um dos valores de sua obra está precisamente na redução de
várias imagens à atmosfera de dor e de opressão que a ausência da menina
provoca em cada personagem.
É uma narrativa profunda, beirando o expressionismo, sua visão
apocalíptica do mundo não é colorida – porque nem tudo o é –, Cornélio não
prevê um “fim”, pois compreende que há uma circularidade intrínseca ao mundo.
Haverá sempre o retorno e a constante necessidade de destruição. Diz Adonias
Filho (1958) que
o romancista, sendo dos mais originais da literatura brasileira
contemporânea, submete sua arte aos rigores de um artesanato
consciente. Inimigo da improvisação, sua técnica é lenta, sua
narrativa avança em espiral no sentido da profundeza,
procurando sondar a alma humana até os mais ínvios recantos,
graças ao manejo da introspecção. (XXXIX)
Com a publicação de A menina morta a literatura brasileira deu um salto
quântico em relação à inovação técnica e temática. Adonias Filho (1958) nomeia
este instante como “transcendência em nossa ficção” e continua dizendo que
Cornélio amplia as possibilidades do romance brasileiro. “Mas, se estas
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possibilidades seriam aproveitadas pelas gerações posteriores, refletem o
imediato entrosamento da ficção brasileira com a própria ficção universal na base
dos problemas extremos que torturam a criatura humana” (p. XLIV).
Sem dúvida a literatura de Cornélio Penna vai incidir sobre problemas do
ser, pontuados na imprecisão com que o autor descreve as cenas e caracteriza as
personagens. Como no episódio chave da nossa análise, que é a passagem da
negra sem rosto (PENNA, Cap. XXVI, 1958). Dadade, escrava que fora ama do
Comendador, sempre recebe a visita de Celestina, parenta de D. Mariana que a
negra propositalmente confunde com uma ancestral da família. Certa vez Dadade
conta à jovem a história de uma mucama que aparecera no quarto da antiga
senhora do Grotão, quando esta zangada dispensara as demais escravas.
Impressionada com a destreza da mucama desconhecida, a senhora tenta a todo
custo ver o rosto dela, enquanto a negra se esquiva baixando a cabeça com os
cabelos caídos e movimentos rápidos na execução das tarefas.
A Sinhá não queria mostrar que estava com medo e teve a
lembrança de mandar apagar a vela, e assim, quando a escrava
chegasse o rosto perto da chama, poderia ver quem era sem ter
de ordenar que se mostrasse. Mas a mucama manobrando para
não se voltar estendeu o braço e ia apertar o pavio com os
dedos, sem que fizesse um só gesto para descobrir o rosto,
quando a senhora puxou-lhe a mão e conseguiu chegar a luz
bem perto dos olhos dela, para iluminar em cheio a sua cara...
(PENNA, p. 865, 1958).
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Não conseguindo distinguir o que via, a senhora segurou a negra pelos
cabelos “e deu um grande grito, que todos na fazenda ouviram...” (PENNA, p.
865, 1958). Pois a mucama não tinha rosto.
Ironicamente em A menina morta são as negras que delineiam o andamento
da narrativa. Como se dentro daquela estrutura narrativa elas organizassem e
imprimissem a identidade negra, inclusive narrando aos moradores da casagrande episódios fantásticos, e de alguma forma inserindo os brancos no seu jogo
de claro-escuro. Tão próprias da escrita alegórica e carregadas de sinais de
Cornélio Penna. São as negras quem controlam a vida dos brancos. Esse é o poder
da identidade que Castells (2008) discute no seu livro, o de imprimir significados
à ordem vigente, contrariando e se instituindo como mais um núcleo de poder.
Nesse misto de realidade e fantasia, como no episódio narrado por Dadade, elas
vão imprimindo suas micro-narrativas, já identificadas por Josalba Fabiana dos
Santos quando a estudiosa diz: “labirínticas, essas histórias não apenas simulam o
romance em questão, mas igualmente simulam a arquitetura da casa-grande, com
muitos corredores e quartos que faziam os mais desavisados se perderem” (p. 70,
2008)
Retomando a história da anciã, Josalba Fabiana dos Santos (p. 97, 2004)
argumenta que “a mucama sem rosto e que fala coisas incompreensíveis é a
síntese do que todos os escravos são para o sistema patriarcal: gente que não tem
o que expressar e que tampouco possui um rosto, uma identidade”. Podemos
pensar que essa destituição da identidade do negro durante a escravidão é uma
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tentativa de afastar o medo premente de alguma revolta. Prática social que é na
verdade uma ação ingênua, pois que se suprime – ou se tenta – a identidade
individual, deixando implícito na sensação de medo dos senhores que há uma
identidade coletiva – do negro, do escravo – a questionar diuturnamente o
patriarcalismo. O fato é que retirando a face do outro não se é obrigado a ver o
que não se quer. Ou como diz Freud sobre a repressão e transformação do
estranho, aqui alinhado com a figura do negro:
Entre os exemplos de coisas assustadoras, deve haver uma
categoria em que o elemento que amedronta pode mostra-se ser
algo reprimido que retorna. Essa categoria de coisas
assustadoras constituiria o estranho. [...] Pois esse estranho não
é nada de novo ou alheio, porém algo que é familiar e há muito
estabelecido na mente, e que somente se alienou desta através
do processo da repressão. (FREUD, p. 300-301, 1976.)
Para o sistema patriarcal, a única imagem do negro que é familiar é a do
seu corpo, enquanto mão-de-obra usada na lavoura de café, dentre outros
afazeres. O horror da Sinhá não está no simples fato de saber da mucama sem a
face, mas na memória “reprimida” que vem à tona quando se procura ver aquilo
que tinha sido histórico-socialmente desfamiliarizado. O rosto da negra nesse
caso, representaria a identidade fraturada no olhar do branco, pois este de
alguma forma se reconhece naquilo que vê na face do outro, do contrário seria
impossível estabelecer as relações de estranhamento e familiarização. Luiz
Nazário (1998) define o ser monstruoso como sendo naturalmente deformado, de
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modo que nunca estará em conformidade com o homem, a sociedade, o espaço ou
o momento histórico. Representa sempre uma diferença, uma anomalia do que
está social e culturalmente instituído. O fato de Cornélio Penna trazer a baila em
1954, auge do desenvolvimento industrial do país com o governo Vargas, essa
narrativa ambientada no século XIX, com figuras fantasmagóricas, é uma prova
de que tamanho estranhamento frente ao sujeito negro só endossa a histórica
“dívida” que ficou para trás quando da formação do ideal nacional. Leia-se da
literatura brasileira. Corroborando o que comentamos anteriormente sobre o
valor histórico que Augusto Frederico Schmidt (1958) atribui ao romance
corneliano. Ao apresentar esse episódio, bem como toda a narrativa de A menina
morta, Cornélio Penna dialoga com a toda a “história do esquecimento” no Brasil
que de alguma forma legou ao negro papéis marginais na sociedade.
Neste ponto lembramos Manuel Castells (2008) quando este entende que
os papéis sociais “são definidos por normas estruturadas pelas instituições e
organizações da sociedade” (p. 23), que nesse caso sempre foram dominadas
pelos brancos, ou melhor, pelo regime patriarcal presente em A menina morta. Já
as “identidades, por sua vez, constituem fontes de significado para os próprios
atores, por eles originadas, e constituídas por meio de um processo de
individuação” (CASTELLS, p. 23, 2008). Novamente, o episódio da mucama sem
rosto dá uma mostra de como funciona esse processo de formação da identidade.
Como que um ser sem nome e sem face passaria pela individuação? A passagem
em questão lança o foco sobre essa massa de pessoas que para o regime patriarcal
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vigente tanto na obra, quanto na sociedade, só é identificada pela cor da pele.
Configurando-se como seres estranhos e, portanto, monstruosos.
Eles são a memória forçada ao esquecimento, como se a mucama tivesse
seu rosto apagado com o tempo. A identidade nacional branca vê os negros como
seres marginais, o branco familiar e os negros como estranhos. Só que, como nos
adverte Freud (1976), o familiar e o estranho são ontologicamente semelhantes. E
esse é o maior susto do branco, descobrir que aqueles seres Outros que estavam
para além das fronteiras do imaginário europeu, agora irrompem no seio da
sociedade patriarcal. A monstrificação do negro está na esfera do que é diferente
do instituído, justifica-se aí a fratura que o negro representa na história do Brasil.
Ele é o intervalo entre o imaginário branco e a realidade diária que assombra a
nação.
Para o projeto nacional esses sujeitos fogem à instituição do que se
entende por comum e nomeável, restando-lhe a alcunha de monstro. Como nos
mostra José Gil (p. 173, 2000):
o outro toma forma no intervalo que vai do Ego-homem ao
animal e aos deuses, resultando sempre de uma transformação
da humanidade do homem. É a natureza dessa transformação
que temos de definir em cada caso se quisermos compreender o
significado do Outro. É por isso que as diferentes formas do
Outro tendem para a monstruosidade. [...] Por exemplo, embora
os índios e negros descobertos nos séculos XV e XVI em África e
nas Américas se encontrassem aquém das fronteiras da
monstruosidade, a sua humanidade foi objecto de dúvida: eram
monstros, animais?
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Em A menina morta, sobretudo na passagem chave da nossa análise, o
contato da Sinhá com a mucama sem rosto representa o encontro do patriarcado
com o desconhecido, com o sujeito sem nome, sem identidade, um estrangeiro.
Ideia de Gil (2000) que se coaduna com Mix (1993), quando eles chamam a
atenção para a imagem do Outro que os europeus montaram, juntando seu
imaginário com a realidade de um novo ambiente – América – repleto de
estranhos.
Dessa forma, vemos que é o estranhamento do patriarcado, frente ao
sujeito negro, que atribui ao escravo a identidade monstruosa, a qual não se
desfaz com o fim da narrativa, já que a libertação dos escravos promovida por
Carlota, filha do Comendador, não significa a resolução do problema. Prova disso
está no próprio diálogo que podemos fazer entre a narrativa corneliana e a
posição do negro historicamente na sociedade brasileira.
Libertar os escravos não significa dar-lhes identidades individuais. De
alguma forma continuam como seres sem nomes, visto que não constituíram na
história, nem significados, nem significações, tal qual condiciona Castells (2008)
para a formação de uma identidade coletiva que fizesse frente ao sistema
patriarcal. Situação que não é imutável, pois que é pontual, assim como anunciara
Freud (1976), o estranho e o familiar nasceram e convivem na fronteira do real
com a imaginação, inscrevendo(-se) aqui e acolá constantemente.
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Disponível
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Gerson de Souza. São Paulo: Edusp, 1999. p. 35-48.
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