Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura
São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128
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CONHECIMENTO CIENTÍFICO, SENSO COMUM E EXPERIÊNCIA
Francisco Gomes de Andrade (UFS)
... Guardemo-nos de crer também que o universo é uma máquina;
certamente não foi construído com um objetivo, e usando a palavra
‘máquina’ lhe conferimos demasiada honra [...] ele não é tocado por
nenhum de nossos juízos estéticos e morais! Tampouco tem impulso
de auto-conservação, ou qualquer impulso; e também não conhece
leis. Guardemo-nos de dizer que há leis na natureza. Há apenas
necessidades... Guardemo-nos de dizer que a morte se opõe à vida. O
que está vivo é apenas uma variedade daquilo que está morto...
Quando poderemos começar a naturalizar os seres humanos com
uma pura natureza, de nova maneira descoberta e redimida?
(NIETZSCHE, A gaia ciência, aforismo 109)
No advento da modernidade, a Ciência Moderna (Ciências naturais e Ciências
sociais) se desenvolve de modo constitutivo ao lado do surgimento vitorioso das
conseqüentes descobertas do universo e das terras africanas, orientais e americanas.
Seu surgimento baseou-se nos pontos de vistas arquimediano e cartesiano, que
lançou os fundamentos capacidade cognitiva daquele que observa com olhar
distanciado. Por meio de seu telescópio voltado para fora da terra, em função de sua
estrutura mental introspectiva, o homem, essa criatura terrena, colocou-se diante não
só do universo, mas diante da terra e dele próprio, com a permissão para medir,
calcular e explorar tanto o sistema solar quanto sua morada terrestre. Essa visão
arquimediana parece ter acarretado a alienação da terra e do homem mediante uma
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focalização de fora (ponto arquimediano) e ao mesmo tempo dentro do sujeito
(cogito artesiano), mesmo sendo ele um prisioneiro da terra e do próprio corpo.
O olhar exterior arquimediano foi transferido do universo para dentro do
observador introspectivo cartesiano por meio de fórmulas matemáticas elaboradas
pela sua própria mente intelectiva. Segundo Hannah Arendt, “o raciocínio cartesiano
baseia-se no pressuposto implícito de que a mente só pode conhecer aquilo que ela
mesma produz e retém de alguma forma dentro de si mesma” (ARENDT, 1995, p.
295). Seu ideal principal deve ser o conhecimento matemático moderno a partir de
formas produzidas pela estrutura mental sem necessitar dos estímulos dos sentidos
em relação a outros objetos além de si mesma (mente). Isto representa a vitória do
intelecto sobre os sentidos ocasionando também a perda do senso comum, na medida
em que foram substituídos por um sistema de equações matemáticas a fim de
demonstrar verdades convincentes. Assim, somos tentados a dizer que tal
perspectiva mecanicista e alienadora – que postulou a supremacia do intelecto sobre
o conhecimento vulgar, da razão sobre os sentidos – acarretou o distanciamento em
relação ao próprio sujeito e a sua experiência de vida, a utilizar-se de um vocabulário
específico bem como de um especialista. Pois ao longo de seu desenvolvimento, a
ciência, passando pela ampliação e aprofundamento no século das Luzes e
desaguando no positivismo oitocentista, tornou-se inacessível à maioria dos cidadãos
tal como sugere Edgar Morin:
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Os desenvolvimentos da ciência levam, porém, à redução do campo de
competência dos cidadãos. Por quê? Porque, de um lado, o conhecimento
científico é cada vez mais formalizado, mais apoiado em procedimentos
matemáticos, torna-se hermético para a maioria dos cidadãos, e mesmo de
especialistas para especialistas. De outro lado, os cidadãos são mantidos à
distância pela tecno-ciência (MORIN, 2001, p. 33).
Então a ciência permanece nas mãos de peritos especializados para atender às
necessidades e demandas da técnica, da indústria, da sociedade burguesa e do
Estado centrando-se num círculo vicioso que, segundo Morin, cria “uma máquina
que produz especialistas”. A propósito, isso caracteriza, em outras palavras, a
atividade do homo faber, analisado por Hannah Arendt, em função de sua atividade
de medir objetivamente as coisas e de fabricar produtos. E os problemas vitais e as
decisões, que deveriam competir também aos homens comuns e que dizem respeito à
vida ordinária e cultural deles, permanecem no poder desses especialistas
intelectuais ou técnicos. Isso faz com que os homens, na condição de cidadãos, sejam
desapropriados por força desse distanciamento, permanecendo numa “espécie de
ignorância selvagem” (MORIN, 2001, p. 34).
Dessa forma, assim como a maioria dos homens, na qualidade de cidadãos, foi
excluída de partilhar e participar do conhecimento científico, da mesma forma o
conhecimento do senso comum, como vimos já em Descartes, foi banido pela
hegemonia do conhecimento científico fundado nas ciências naturais e leis
matemáticas. A força discursiva desse conhecimento, atrelado ao poder hegemônico,
deslegitimou o conhecimento do senso comum, que os homens e mulheres em suas
culturas têm da natureza e da vida, partilhando seu patrimônio cultural arraigado na
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experiência. A força discursiva do conhecimento científico, atrelado ao poder
hegemônico, deslegitimou o conhecimento do senso comum. Colocado em prática, se
por um lado favoreceu a vida dos homens; por outro lado e em grande escala, ele
orientou e forneceu os instrumentos, necessários ao sistema capitalista e ao Estado
burguês desde os tempos colonizadores, para pesquisar e explorar a natureza, além
de ajudar na destruição do próprio homem e da própria terra, na qual residiam seus
valores, seus deuses, seus antepassados e seu modo de ver a vida.
Se pensarmos no modo como o ideal civilizatório, a política colonizadora e a
exploração da natureza e do próprio homem foram sustentados pelo discurso
científico-racionalista, moral-religioso, jurídico e econômico, veremos o quanto de
conhecimento vulgar e sabedoria prática, ligados a determinados modos de vida na
terra, foram deslegitimados, saber este que era a referência primordial e sagrada para
a vida de homens e mulheres indígenas nas Américas, por exemplo. É o que nos faz
lembrar o líder indígena Marcos Terena ao dizer que:
Aos olhos do colonialismo, a dignidade da existência bárbara do Novo
Mundo foi reconhecida, apenas na sua capacidade de incorporar-se às luzes
da moral cristã, da mentalidade capitalista e do racionalismo progressivo do
mundo industrial, em sua insaciável voracidade por recursos naturais, cada
vez mais distantes. Ontem, à força da dizimação física, hoje, à força da
espoliação e destruição sutil das nações indígenas (TERENA apud MORRIN,
2000, p. 10).
Porém, não só das nações indígenas, mas de toda uma visão de mundo e sabedoria
milenar ligadas ao seu patrimônio cultural.
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Daí, como não lembrar também da “Carta do Cacique Seattle” da tribo
Suquamish do Estado de Washington, enviada em 1855 ao presidente dos Estados
Unidos (Francis Pierce), que pretendia comprar as terras ocupadas pela referida
tribo. Nas palavras do cacique - que não deixa de ser um tipo de ação no sentido
arendtiano - temos o registro de um conhecimento, de uma sabedoria prática de vida
cujo ensinamento é holístico (não distinção entre homem-natureza) e essencial,
porque atende apenas às necessidades pragmáticas da existência. Nesta Carta, o
cacique Noah Sealth (1786-1866) nos informa do interesse que o “Grande Chefe” (o
presidente americano) tem em comprar a sua terra. Diz que vai pensar em sua oferta,
pois se não o fizer tem consciência de que “o homem branco virá com armas e tomará
nossa terra”. Ao mesmo tempo, em suas palavras, soa o estranhamento em relação ao
comportamento do homem civilizado perante a mãe terra:
Como pode querer comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é
estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do esplendor da água,
como então pode comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu
povo. Cada folha reluzente do pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de
neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas
tradições e na consciência do meu povo [...] Somos parte da terra e ela é
parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs: o cervo, o cavalo, a
grande águia - são nossos irmãos. As montanhas rochosas, as fragrâncias
dos bosques, o calor que emana do corpo de um potro e o homem - todos
pertencem à mesma família [...] Os rios são nossos irmãos, eles apagam
nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se
lhe vendermos nossa terra terá de se lembrar e ensinar a seus filhos que os
rios são irmãos nossos e seus, e terá de dispensar aos rios a afabilidade que
daria a um irmão. (SEATTLE, s.d, p. 01)
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Depois, o cacique Seattle diz que homem civilizado não compreende seu modo de
viver e pensa apenas em explorar a terra ao seu bel prazer deixando para traz seu
rastro de destruição:
A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de a conquistar, ele vai
embora. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados, e nem se importa.
Arrebata a terra das mãos de seus filhos e não se importa. Ficam esquecidas
a sepultura de seu pai e o direito de seus filhos à herança. Ele trata sua mãe a terra - e seu irmão - o céu - como coisas que podem ser compradas,
saqueadas, vendidas como ovelhas ou miçangas cintilantes. Sua voracidade
arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto. (SEATTLE, s.d, p.
02)
Se decidir aceitar a oferta do presidente americano, o chefe indígena diz que o fará
mediante uma condição: “o homem branco deve tratar os animais desta terra como
se fossem seus irmãos”. Arrematando em seguida palavras que demonstram uma
sabedoria louvável e desejável para qualquer homem ou mulher sobre a face da terra,
ele diz constatando a barbárie civilizatória do homem branco e seu “cavalo de ferro”:
Sou um selvagem e desconheço que possa ser de outro jeito. Tenho visto
milhares de bisões apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem
branco que os abatia a tiros disparados do trem em movimento. Sou um
selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser
mais importante do que o bisão que (nós - os índios) matamos apenas para o
sustento de nossa vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os
animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito.
Porque tudo quanto acontece aos animais, logo acontece ao homem. Tudo
está relacionado entre si. (SEATTLE, s.d, p. 03)
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Logo depois, ele constata a condição degradante em que foram lançadas as
populações indígenas no confinamento e prisão das “reservas” forjadas pelo Estado
barbaramente civilizador, além de vislumbrar o desaparecimento de seu povo:
Os nossos filhos viram os seus pais humilhados na derrota. Os nossos
guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o
tempo em ócio, envenenando seu corpo com alimentos adocicados e bebidas
ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos
dias - eles não são muitos. Mais algumas horas, mesmo alguns invernos, e
nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que tem
andado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar, sobre
nossos túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança
como o nosso. (SEATTLE, s.d, p. 03)
Então, nessas sábias palavras do cacique americano da tribo Suquamish, proferidas
há 154 anos, percebemos a força e o senso prático da sabedoria indígena que vai na
contra-mão do conhecimento e do desenvolvimento técnico-científico e eurocêntrico
colocados em prática no processo civilizador do Ocidente. É impossível não perceber,
nessas sábias palavras do índio, o valor de uma ação fundado no seu modo de ver o
mundo e viver a vida. Essa ação reflexiva sobre o mundo configura-se exatamente no
conhecimento vulgar dos indígenas arraigado na experiência prática herdada dos
seus antepassados e transmitida a sua geração.
É necessário, então, seguirmos um atalho para pensar a condição da
experiência nos tempos modernos e, se possível, relacionar com o conhecimento
científico que acarretou de certa forma modificou a visão de mundo dos homens na
sociedade burguesa. No ensaio “Experiência e pobreza”, Walter Benjamin faz um
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diagnóstico de uma nova barbárie por força da “Pobreza de experiência” dos homens
modernos no mundo burguês. A experiência de que nos fala Benjamin é
exemplificada por uma pequena narrativa:
Em nossos livros de leituras havia a parábola de um velho que no momento
da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus
vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do
tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer
outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido
uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho
(BENJAMIN, 1994, p. 114).
De acordo com Benjamin, essa pequena narrativa em forma de parábola corrobora o
fato de que as experiências são passadas de pais para filhos, como legado de um
patrimônio cultural fundamentado no conhecimento do senso comum enquanto um
tipo de sabedoria transmitido de vários modos:
Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou
ameaçador, à medida que crescíamos... Sabia-se exatamente o significado da
experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com
a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com sua
loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países
longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo
isso?
Então, Benjamin afirma que “as ações da experiência”, que são a base do
conhecimento vulgar, estão em decadência. Essa perda da experiência marcou
justamente a geração que viveu, de modo catastrófico e traumático, as experiências
da Primeira Guerra, em que todos os combatentes retornaram mudos e em que tais
experiências foram “desmoralizadas” pela técnica mortífera da Guerra: “Uma nova
forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica,
sobrepondo-se ao homem” (BENJAMIN, 1994, 115). Assim, essa pobreza de
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experiências diz respeito não só aos indivíduos, mas sim à toda humanidade. Foram
abolidos os vestígios sobre a terra. Apagaram-se os rastros e os vestígios das
experiências do patrimônio cultural que se desvinculou da vida quotidiana dos
homens. A pobreza desses homens tornou-se superficialmente externa e interna. E
pelo visto, segundo Benjamin, tanto os cientistas (Descartes, Einstein, Newton)
quanto os artistas (Paul Klee, Adolf Loos, Paul Scheerbart) foram os construtores
modernos de uma espécie de homem-máquina, tal como as figuras de Klee, pois sua
expressão fisionômica foi forjada a partir de dentro, análogo à carroceria de um
automóvel obedecendo a necessidade interna do motor: “Ao que está dentro, e não à
interioridade: é por isso que elas são bárbaras” (BENJAMIN, 1994, 116). Enfim a
perda da experiência, base do conhecimento do senso comum, significou a perda de
orientação para as necessidades mais vitais da vida sobre a terra.
Mas, em nossa contemporaneidade, nota-se uma compreensão revalorativa da
sabedoria e do conhecimento prático da vida, vislumbrando aí a possibilidade de seu
retorno. Essa compreensão se faz presente, por um outro viés e de modo
complementar, nas palavras de Marcos Terena, embora este seja já um índio
aculturado, buscando constatar que o conhecimento indígena contribui para o
desenvolvimento da ciência. Ele afirma que houve o desaparecimento de mais de 700
povos indígenas e de sua língua, que expressava o conhecimento prático e partilhado
com os seus, isto
porque a nossa comunicação era falar com as pessoas. Contar para as
pessoas, como quero contar agora, a beleza da filosofia indígena. As pessoas
sempre consideraram este grande manancial de sabedoria como fonte, como
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um banco de dados, uma biblioteca para sugar o conhecimento dos povos
indígenas e depois fazerem as suas teses, as suas recomendações (TERENA
apud MORRIN, 2000, p. 18)
Para ele, conhecimento indígena, fincado na experiência da vida, foi usurpado pelos
pesquisadores em nome do desenvolvimento intelectual, deturpado e transformado
em produto e lucro econômico, relegando os índios a condição degradante da miséria
social gerada pelo sistema capitalista. O que Marcos Terena propõe é um diálogo
entre o conhecimento indígena e o conhecimento dos cientistas para que ambos
sejam partilhados e úteis para tais povos.
Essa parece ser também, por outro lado, a proposta de Boaventura em função
do “paradigma emergente” do conhecimento científico pós-moderno em que deixa
de existir a distinção homem versus natureza. O próprio conhecimento então passa a
ser visto em sua totalidade, dialogando, revalorizando e incorporando outras formas
de conhecimento, em especial “o conhecimento do senso comum, o conhecimento
vulgar e prático com que no quotidiano orientamos as nossas acções e damos sentido
à nossa vida” (BOAVENTURA, 1987, p. 55-56). Este teórico afirma que a ciência
moderna, na mesma perspectiva de Hannah Arendt, foi forjada em contraposição ao
conhecimento do senso comum, encarado como superficial, ilusório e falso. O grande
mérito da “ciência pós-moderna” é buscar a reabilitação do conhecimento vulgar e
prático por considerá-lo enriquecedor na relação dos homens com o mundo.
Também sua importância reside em “uma dimensão utópica e libertadora que pode
ser ampliada através do diálogo com o conhecimento científico” (BOAVENTURA,
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1987, p. 56). Assim, a ciência pós-moderna ao postular a revalorização pragmática do
senso comum não tende a desprezar o conhecimento científico-tecnológico, mas
compreende que o “desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de
vida” (BOAVENTURA, 1987, p. 57).
Trazendo essas reflexões para analisar a visão de mundo do romancista
Guimarães Rosa, presente na obra Grande sertão: veredas, diríamos que esse escritor
mineiro parece assumir uma postura de contraposição ao conhecimento intelectual e
científico, entendido desde a teoria cartesiana e o ponto vista arquimediano até o
século XX. Enquanto pensador do sertão-mundo, Guimarães Rosa tende a valorizar
os sentidos e o conhecimento do senso comum do homem sertanejo, onde não havia
o distanciamento entre ele, seu saber e o próprio mundo por força de sua ação
reflexiva e tino prático. Segundo o escritor,
o homem não é composto apenas de cérebro. Eu diria mesmo que, para a
maioria das pessoas, e não me excetuo, o cérebro tem pouca importância no
decorrer da vida. O contrário seria terrível: a vida ficaria limitada a uma
única operação matemática, que não necessitaria da aventura do
desconhecido e inconsciente, nem do irracional. (ROSA apud LORENZ,
1983, p. 93).
Assim, para ele, suas personagens, tal como o semi-civilizado Riobaldo, “que são um
pouco de mim mesmo... não devem, não podem ser intelectuais, isso diminuiria sua
humanidade”. Por isso, o saber de Riobaldo não se funda na lógica da mente, mas
nas veredas de suas experiências e do “viver perigoso”, em função da condição
humana de sua sobrevivência no mundo com os outros. O sentido da ação, em plena
época moderna, na perspectiva de Guimarães Rosa e de seu personagem Riobaldo,
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está em desmistificar, talvez na segurança dos cinco sentidos e talvez envolvido por
dúvida, o pesadelo demoníaco do homem e da terra e libertando-os de um passado
mergulhado na ignorância, mesmo se mantendo um católico libertino que bebe “de
toda água e de todo rio”. Pela e na experiência, no senso comum, em prol dos
próprios homens guiando-se pela sua sabedoria popular, a vida e o mundo, o
presente e o passado, começa a relampejar, para usar um termo de Walter de
Benjamin, na consciência inquieta e desassossegada do homem: “o real não está nem
na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é nomeio da travessia” (ROSA,
2001, p. 80). Já na velhice de Riobaldo, por exemplo, suas conjecturas não surgiram
das leis da mente, mas de suas memórias revisitadas e ao mesmo tempo avaliadas de
modo reflexivo. Não nasceram das idéias para as coisas, como em Descartes, mas das
coisas para as idéias, para a reflexão.
Desse modo, o intelecto se constitui é na experiência, é na vivência e na
sabedoria da própria vida em comum dos homens. Para Riobaldo formular suas
certezas, ele teve de formulá-las com base nos sentidos vividos e revividos das suas
experiências, quer sejam de modo inconsciente ou irracional dionisíaco, para
compreender o mundo e o próprio homem buscando transformá-los.
Portanto, o intelecto não é o único ponto de referência em que, como mostra
Hannah Arendt, “lidamos apenas com configurações de nossa própria mente, a
mente que projetou os instrumentos e submeteu a natureza às suas condições no
experimento – impôs à natureza suas leis” (ARENDT, 1993, p. 299). Com isso, surge o
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homo faber que, na sua atividade de calcular e de fabricar produtos, aliena-se dele
próprio e do mundo em detrimento da ação reflexiva sobre o mundo. A preocupação
de Guimarães Rosa é com o homem e com o mundo, por meio da atividade da ação e
com a capacidade de reger sua liberdade e seu próprio destino, revelando assim a
sua verdadeira condição humana. A condição de agir no próprio mundo, em cada
aldeia, para que o valor das experiências do presente-passado junto com o auxílio do
pensamento (mente) busque resolver os diversos problemas da humanidade e
transformar o mundo, quem sabe orientado naquela premissa nietzschiana de que
temos de ter “fidelidade à terra”.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1995.
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e Técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: ROSA, João Guimarães. Ficção
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MORIN, Edgar. Saberes Globais e saberes locais: o olhar transdiciplinar. Rio de
Janeiro: Garamond, 2000.
PENA-VEJA, Alfredo, ALMEIDA, Cleide R. S. e PETRAGLIA, Izabel (orgs). Edgar
Morin: ética, cultura e educação. São Paulo: Cortez, 2001.
ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Coimbra:
Edições Afrontamento, 2001.
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SEALTH, Noah. A Carta do Cacique Seattle, em 1855. Disponível em:
http://www.culturabrasil.pro.br/seattle1.htm. Acesso em 10 Dez. 2009, 22:30:00.
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