Atrás dos muros:
O silêncio das palavras ditas e o ruído do que fica por dizer
Selda Soares
[email protected]
Universidade do Porto
Porto, Agosto de 2010
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Resumo
O presente artigo procura dar a conhecer um modo de intervenção no espaço Oficina de S. José, do
Porto, que fundou raízes nas artes performativas e na continuidade do gesto. O projecto de suporte
foi concebido no contexto de uma Prova de Aptidão Profissional (PAP) do Curso de Animação
Sociocultural, do jovem Vasco Vitória, aluno da Escola Profissional de Nossa Senhora do Perpétuo
Socorro. “Inclui(a)rte – Projecto de Animação para a inclusão social, através das artes, para jovens
institucionalizados”, foi o nome do projecto que sustentou a intervenção junto destes jovens rapazes.
Olhar este projecto e a sua implementação, bem como acompanhar a intervenção, participando nela,
foi uma experiência que devolveu, nas práticas, o sucesso de um agir muito para lá das palavras que
aqui tentaremos desenhar. A presença tem a vantagem do testemunho vivido e, sobretudo, sentido.
Transportar esse material para estas palavras é uma tentativa de aproximação, para que uma
prática possa ser um alibi para tantos outros sucessos, noutros territórios semelhantes, marcados
pela aridez das vidas, pelo silêncio dos pedidos de ajuda, atrás dos muros, que o conforto dos nossos
dias tantas vezes nega, neste cómodo lado de fora da causa.
Palavras-chave: arte, afectos, intervenção, inclusão.
Abstract
This article aims to illustrate a type of workshop intervention at Oficina de S. José, of the Porto, a
space that has its roots in the performing arts and gestural continuity. The context of the support
project was that of a Professional Apptitude Test (PAP) within the Sociocultural Animation Course, for
Vasco Vitória, a young pupil at the Professional School of Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
“Inclui(A)rte – an Animation Project for social inclusion through the arts for institutionalized young”,
was the name of the intervention project for these young boys. Overseeing this project and its
implementation, following up on it as well as participating in it, was, in practical terms, an experience
that developed success beyond words.
Being present (during the project) has the advantage of making this a living heartfelt testimony. Being
able to transfer this material into words is an attempt at proximity, to put things into reality, so that in
practical terms it can serve as an alibi for other successes in other similar situations, marked by the
aridness of their lives, by the silence of their request for help, behind the walls, they are denied the
comforts that we have on the other side of the wall.
Keywords: art, affect, intervention, inclusion.
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Duas palavras: eu contigo/tu comigo
Esta reflexão resulta de um trabalho a dois: o jovem Vasco Vitória e eu mesma, sua
mãe. E apesar dos laços de sangue que nos unem, uniu-nos uma vontade comum de
agir para mudar alguma coisa. O Vasco, na sua juventude, trazia os conceitos da sua
área de formação, a Animação Sociocultural e eu, mais madura, tinha comigo duas
longas décadas de trabalho em Teatro, nas escolas públicas portuguesas. E por
considerarmos que estamos ambos em áreas específicas, que não se confundem, foi
nossa vontade intervir, num território difícil, escolhido pelo jovem Vasco. Talvez
estes laços pudessem marcar o nosso gesto de uma forma inequívoca e pudessem
resgatar o que de melhor os sujeitos têm para dar. Foi nisso que acreditámos e foi isso
mesmo que nos guiou.
Querer e poder: uma questão de escolha
Há histórias que, construídas ou não com o olhar presente, se contam e se arrastam
pelos dias até cristalizarem em lendas, há outras que, circunscritas a um tempo mais
curto, se constroem distantes do olhar e outras há que se constroem do lado de
dentro de quem olha. Seja pelo tempo ou pela presença, há uma história, feita de
pessoas, que parece desafiar os contornos de Cronos e ins(es)creve-se na presença do
olhar e na permanência do gesto.
Referimo-nos a pessoas e ao resgate de um certo humanismo urgente nas práticas,
porque ausente de muitas políticas. Referimo-nos a vida, a uma atitude de cidadania
e a uma dose de amor depositada na bagagem e espalhada pelos caminhos possíveis
de cada aproximação. De cada intervenção. Referimo-nos à arte como plataforma de
diálogos possíveis e à especificidade das artes performativas que implicam o corpo e a
palavra, na comunicação consigo e com o mundo. Referimo-nos à urgência em rasgar
uma porta nas quartas paredes que erguemos todos os dias entre nós, sujeitos de
linguagens e de acção.
Não se trata de convocar uma cidadania disfarçada, assente numa caridade pontual
de que nos podemos servir para hastear as nossas próprias bandeiras. Trata-se de dar
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a conhecer uma abordagem, através das artes (projecto “Inclui(A)rte”), num
território diabolizado (Oficina de S. José), que inscreveu alguma mudança nos
sujeitos institucionalizados que ali vivem. Trata-se, pois, de contar a história de
alguns jovens, verdadeiros heróis, que não podem ser esquecidos quando as políticas
não servem, não actuam e não transformam. E é precisamente aqui que todos nós
devemos entrar em acção, na luta por políticas mais humanas e menos imediatistas,
economicistas e desestruturadas, mas, sobretudo, na luta pela dignidade destes
jovens, cujo crescimento não pára, enquanto lutamos e aguardamos a mudança e
perante os quais temos o dever de comprometimento presente, mesmo enquanto
lutamos, mesmo enquanto sofremos. É que o nosso sofrimento (nós: professores,
técnicos, investigadores, políticos, cidadãos) é qualitativamente diferente do
sofrimento destes jovens (e de tantos outros não institucionalizados), desapossados
de tudo aquilo que ainda nos estrutura e que é, precisamente, a consciência de
podermos, querermos e sabermos fazer a mudança, de procurar o entendimento,
muito mais do que o êxito, como explica Habermas. Somos, ou devemos ser,
eticamente responsáveis neste fazer que nos coloca nos lugares, por opção. Nós
estamos porque queremos. Estes jovens (e tantos outros) estão (na instituição, ou na
escola) por serem obrigados.
Iniciemos, então, a história.
Oficina de S. José: diabolização ou o reverso da medalha?
Na instituição Oficina de S. José, no Porto, estão cerca de 50 rapazes, com idades
compreendidas entre os 7 e os 21 anos. Aquele espaço é o seu refúgio, o único que têm
(para uns), o local onde apenas dormem e comem (para outros). O modo como olham
o espaço é ditado pelo tempo e pela história de vida que trazem colada ao corpo e à
alma. Alguns destes olhares sobre o espaço enunciam alguma esperança e
agradecimento, outros olhares alternam entre os rancores de um passado violento (e
que justificou a sua entrada na instituição) e um resto de esperança no próprio
futuro.
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Os rapazes institucionalizados têm acesso às escolas mais próximas e beneficiam de
algumas intervenções de âmbito cultural que são levadas à instituição. Integram-se
em horários e rotinas rigorosos, que procuram inscrever hábitos na vida de jovens
rapazes que nunca os tiveram.
As histórias de vida são muitas, muito dolorosas de ouvir (mas, seguramente, mais
dolorosas de viver e de dizer), facto que inscreve no rosto, nos olhos e nos gestos dos
rapazes uma marca de dor que se lê ao longe e alimenta, muitas vezes da pior forma,
no exterior da instituição, os espíritos mais fertéis em narrativas sensacionalistas, que
uma certa imprensa reproduz e de que as políticas se sabem aproveitar muito bem
para justificar a sua incapacidade ou a sua incompetência, quando a questão se
chama inclusão. Restam os rapazes, a dedicação dos técnicos que ali trabalham,
durante o dia e uma extraordinária entrega dos que lá ficam, durante a noite, porque
não se trata apenas de ser o seu trabalho, trata-se, sobretudo, de uma inesgotável
dose de amor, muitas vezes recuperada nos restos dos dias, resgatada, talvez, a uma
réstia de esperança nos olhares dos rapazes. “É preciso acreditar neles, conseguir
perceber que ali há futuro e que pode ser bom se ajudarmos.”, dizia-nos um técnico
que ficava tantas vezes durante a noite. E, ali, “a noite é longa”, como nos dizia.
Diremos nós: longa demais, pelo peso das histórias de vida e pela solidão das vidas
(apesar dos outros), tantas vezes espelhada nos dias.
Destas histórias foi construída uma rede de trabalho. Era necessário não esquecer a
lição de Paulo Freire, procurando a marca de cada sujeito na construção do seu
próprio saber e na construção (todos os dias reinventada) da intervenção junto destes
rapazes. Era necessário trabalhar a partir deles, da realidade dos seus dias, e para
eles, na mira da transformação dos seus dias. Um passo de cada vez, para inscrever
uma marca de/com futuro.
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No rasto dos dias: uma metodologia reinventada no medo do
abandono
Quando chegámos, deparámo-nos com a desconfiança dos rapazes relativamente à
nossa presença. Seríamos “mais uns que iam e depois nunca mais regressavam”,
confessou-nos um dos rapazes. Era esta uma das barreiras a transpor: por um lado, a
desconfiança inicial (o que por si só constitui já uma condicionante) e por outro, a
necessidade de provar o contrário (se nos dessem espaço para o fazer). No que
respeita aos técnicos responsáveis, registou-se uma franca abertura e alguma
esperança num trabalho que lhes parecia necessário, mas que, não esconderam,
parecia propor uma abordagem comum a outras experiências já implementadas.
Os próprios rapazes pareciam distantes quando chegámos, pois julgavam-nos iguais a
tantos outros que ali vão para “passar questionários”, para entrevistar, para “fazer
umas aulas e depois” … “nunca voltam, nunca mais voltam”, dizia um dos rapazes.
“Inclui(a)rte, Projecto de Animação para a inclusão social, através das artes, para
Jovens institucionalizados” foi um projecto marcado pelo rigor da sua construção
(seguindo todas as etapas prévias de diagnóstico, identificação de problemas,
planificação de intervenções), mas foi, sobretudo, tecido com o entusiasmo de um
jovem para outros jovens. E essa quase cumplicidade parece ter sido uma das chaves
do seu sucesso. Os princípios orientadores marcavam o cariz interventivo e artístico
do projecto e sublinhavam que «o trabalho de intervenção deve começar por
práticas que favoreçam o auto-conhecimento e, posteriormente, o reconhecimento
do outro (nas suas semelhanças e diferenças com o EU), a expressão e a
expressividade, a partilha e a leitura (a partir da apropriação e contacto) da
realidade envolvente.» (VITÓRIA, 2009: 15).
Estava prevista uma abordagem
através da arte, por se acreditar numa abrangência emocional e afectiva que a arte
permite e que este contexto de intervenção reclamava. A crença ficava espelhada nas
palavras do mentor do projecto:
«Partimos das artes e em especial do teatro como base, pois este é, no nosso
crer, um dos caminhos a seguir para a Inclusão plena (…). Acreditamos na
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experimentação, pois só através do processo de experiência verdadeiramente
empírica é que ficam gravadas memórias, imagens e mensagens que irão
prevalecer uma vida inteira, tentando, errando e tentando novamente, até
derrubar a muralha que se ergue perante nós e só depois criar, criar
orientados, criar com um propósito, criar motivados, criar pensando, só assim
se cria e muitas vezes só se cria verdadeiramente.» (VITÓRIA, 2009: 16).
Tomando a arte (teatro e percursão) como um caminho e a Animação Sociocultural
como outro caminho que concorre para o mesmo fim (a inclusão, a reinvenção do
sujeito e da sua relação com o mundo), o projecto apontava «a ASC como
metodologia capaz de fomentar a participação e a reflexividade» (VITÓRIA, 2009:
21) e propunha uma abordagem que não instrumentalizava os dois territórios
distintos (Animação e Arte). Assim, o olhar do teatro e da percursão e o olhar da
animação eram mutuamente subsidiários. Em inúmeros momentos, procurámos as
tangentes dos diversos territórios e quase sempre reflectíamos sobre isso, procurando
preservar a especificidade de cada área, na tentativa de esboçar um perfil, demasiado
confundido na literatura já produzida, tentando devolver alguma justiça e clareza a
estes conceitos. Mas acreditávamos no frente a frente das intervenções, no confronto
e no espaço entre elas, como um espaço de construção de verdades. Recuperávamos
as considerações de Pierre Bourdieu em A Miséria do Mundo, ao concluir que era no
confronto dos territórios e dos olhares que se encontrava o essencial, o humus, o
espaço para procurar entender. Recordávamos, também, Artaud que apontava a
ferida como uma fenda, como o espaço por onde a doença se instala, precisamente aí
onde se deve intervir. E se uma das feridas era o medo do abandono, era urgente
permanecer, não tanto no frente a frente, mas no estar com os jovens. E, seguindo
Artaud e Bourdieu, também nos confrontámos e colocámos, frente a frente, as áreas
distintas das nossas formações (Animação Sociocultural e Teatro), os nossos olhares e
acções sobre este território diabolizado pela sociedade e que, afinal se tornava, dia a
dia, num espaço de afectos (re)construidos diariamente, (re)inventados a cada
avanço e recuo. Tantas vezes bastava ganhar algum tempo a olhar os rapazes
enquanto esperávamos que entrassem no espaço onde trabalhávamos. A demora era
arrastada, marcada pelas entradas e saídas, pelas declarações repentinas de um deles,
“Hoje não vou!”, ditas muito alto para serem ouvidas por outros rapazes.
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Acreditávamos que eram apenas apelos, tentativas para que os outros, que ficavam do
lado de fora, os apoiassem ou com o objectivo de provocar uma resposta nossa,
chamadas de atenção. Entrávamos e deixávamos a porta aberta. Os rapazes
sucediam-se curiosos. Alguns ficavam.
Interessava recuperar olhares, confrontá-los e perceber pontos de vista. Ouvíamos
todas as pessoas e registávamos as palavras de todos. Os jovens denunciavam algum
sentido de agradecimento e revolta relativamente aos adultos, num desafio à
autoridade, mas, frequentemente, iniciavam manifestações expontâneas de afecto
com os técnicos mais próximos de si: “ Muitas vezes, ele pede que o aconchegue
quando se deita.” O jovem, de 14 anos, de quem se falava ria e escondia o rosto nos
braços do técnico. Muitas eram as longas conversas entre alguns dos técnicos e os
rapazes, sempre que algum comportamento exigia uma repreensão. Procurava-se o
diálogo e a manutenção de um sentido de justiça que, nestes contextos de
institucionalização, pode fazer toda a diferença entre presença e indiferença e,
consequentemente, entre apoio e solidão, bem estar e sofrimento. E fazia. Todos
escutavam e respeitavam os tempos de intervenção de cada um. Todos tinham a
possibilidade de fazer ouvir a sua voz. Um dos rapazes dizia-nos, apesar de
incomodado com as repreensões: “Eles dizem-nos que aqui somos como as peças de
um relógio de corda. Se uma se avariar o relógio pára. E nós somos as peças.”
Pareciam bem claras as funções e os territórios. Se, por um lado, o jovem entendia a
sua função, por outro lado, parecia reconhecer os lugares de onde se falava. No
entanto, eram todos peças do mesmo relógio, “nós” e os “outros”.
Um dia estava presente, numa destas reuniões, o director da instituição. Observava.
Após a conversa, observou o jovem mentor deste projecto de intervenção e confessou
estar convicto de que os rapazes iriam gostar de trabalhar com ele. Tinha chegado
muito recentemente à direcção e trazia uma grande esperança em construir alguma
coisa e estava determinado a trabalhar no sentido de valorizar o nome da Oficina de
S. José. Declarou-nos o gosto que fazia na intervenção e a esperança que tinha na
mudança. As palavras constituiram incentivo para avançar. Esperavam de nós o que
nós também queríamos dar. Criou-se um sentido. Estava muito presente a imagem
negativa criada, pela imprensa, após um incidente que ocupou as páginas dos
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noticiários nacionais. Todos (jovens, técnicos e direcção) a sentiam e era unânime a
vontade de recomeçar, pois todos sabiam o quanto isso prejudicou o quotidiano na
instituição.
E deste modo, a acreditar no que fazemos e a acreditar na utilidade dos nossos gestos
nas vidas dos sujeitos, entrámos na Oficina de S. José decididos a construir. E
ficámos. Permanecemos, sabendo que entrar significava ficar. Era esse o maior receio
dos jovens, pois viver a solidão é qualquer coisa de doloroso, mas reviver os
abandonos é uma espécie de fantasma.
“Mãe, eu sinto que tenho alguma coisa para dar a estes jovens! Os dias que tenho
passado ali permitem-me dizer que eles precisam disto que lhes vou dar, que lhes
vamos dar!”
Eram assim as conversas entre nós, enquanto seguíamos viagem, aos Sábados e
Domingos, até
à Oficina de S. José. No regresso, as dúvidas assaltavam-nos.
Reflectíamos em conjunto, muito além dos laços de sangue que nos uniam,
procurávamos outras abordagens, mas acreditávamos no lugar da arte neste projecto
de intervenção. A juventude de um que teimava em rasgar o impossível e a
maturidade do outro que sublinhava a crença num caminho a fazer, pareciam
sustentar cada dia na instituição. Porém, honra seja feita à juventude que permanecia
junto dos jovens com mais frequência, que nunca se ausentava, que acreditava com
eles, neles e para além deles. Cremos ter sido esse fio o mais forte de toda a trama
urdida com arte e com vida, mas sobretudo, com uma dose de amor. É preciso saber
amar os jovens, mesmo que eles nunca permitam que entremos no seu mundo,
mesmo que (sabemos hoje, aparentemente) nos façam sentir a mais no seu território.
Do lugar da arte nas intervenções sociais muito se tem escrito. Das intervenções
realizadas junto de grupos socialmente desfavorecidos, outra tanta literatura se tem
produzido, vários projectos, ou tentativas de intervenção cultural. Repetir tudo isto,
neste in loco e in tempus, seria permanecer num “estado da arte” profícuo em repetir
outros contextos. Porém, interessa reclamar algum lugar vazio deixado pelas diversas
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produções e investigações e precisar alguma oscilação entre os territórios da
Animação Sociocultural e do Teatro, no presente projecto.
Importa avançar e propor um outro modo de ver. Um ver de fazer, diríamos. E nesta
dialéctica, atravessámos os dias junto daqueles jovens, quase sempre os mesmos.
Mantinham-se no projecto. Melhor ainda (e esta seria a boa notícia, ao fim de
algumas semanas), esperavam-nos. Acreditamos num diálogo feito de palavras que
não são ditas, num diálogo feito pela presença e pela persistência do acreditar nestes
jovens. O que importava ali era deslocar o lugar de onde se olha. Deste modo,
passámos de coordenadores a fazedores. Mudámos o nosso lugar e conquistámos o
estar por dentro e uma aproximação gradual, o que nos valeu a presença nos
aniversários, por vontade do aniversariante. Uma batalha estava ganha, se a metáfora
pode precisar o alcance da conquista. Mas faltava ganhar a guerra e isso, sabíamos,
implicava tempo e talvez nunca fosse possível, mesmo nunca desistindo.
“Lix(A)rte”, do real ao ficcional: entre a cena e a vida
A vida destes jovens estava preenchida por memórias (algumas que se pretendem
esquecidas, outras que regressam como âncoras), por invenções de vidas que nunca
viveram, mas que sentem como suas, por instantes de aparente concentração e por
momentos de explosão descontrolada. Habituaram-se às rotinas que lhes são
estranhas e aos insucessos, colaram-se ao curso dos dias como se fossem
espectadores de si, mas repetem, em silêncios, os sonhos de “ser alguém”, com todo o
infinito de referências que a expressão possa trazer.
Interpelámos criticamente o real destes jovens e a partir de pedaços dos seus dias (já
descritos numa etapa inicial da investigação realizada) nascia um espectáculo que se
chamou “Lix(A)rte”: os conceitos subjacentes ao nome tinham sido discutidos,
amplamente, no grupo de trabalho. Os jovens identificavam-se porque sentiam como
seu e como um retrato seu. O título que davam ao seu espectáculo recuperava do
conceito “lixo” o quanto os rapazes se sentiam no panorama social exterior à
instituição. Um deles dizia: “Aqui dentro está tudo o que é lixo, os restos.” Muitos dos
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rapazes sentem o peso da exclusão pela própria condição de estarem ali, nas escolas,
nos locais que os recebem e sabem de onde vêm. “Nós somos sempre lixo, somos
sempre nós que roubamos, somos sempre nós os responsáveis se alguma coisa se
partiu” afirmava um dos jovens mais velhos, “toda a gente olha de lado para nós, do
tipo, aquele ali é marginal e tal”, acrescentava com uma agressividade na voz. Mas
continuava: “E às vezes apetece-me chegar à escola e mostar que até sei. Mas
começam logo … ah e tal ele é da Oficina de S. José. E pronto, um gajo já nem
consegue mais nada. Há dias em que me apetece partir tudo e dar cabo de tudo.” Era
um pedaço do real vivido que a amargura das palavras transportava para a cena.
O desafio era galvanizar os rapazes e fazê-los acreditar que seriam capazes de
construir arte e de a mostrar. Sem nenhum recurso material, o que parecia impossível
foi sendo construido: os rapazes pegavam em pedaços de lixo (material informático
obsoleto - teclados incompletos, caixas de computadores, ecrans -, uma porta de um
carro velho, paus de vassouras, e algumas latas de tinta vazias) e procuravam,
isoladamente e em grupo, sons possíveis. Inicialmente, cada um mergulhava na sua
procura sem escutar os outros. Uns exploravam os sons com uma violência terrível,
outros gritavam enquanto exercitavam alguns movimentos nos objectos, outros
desistiam por insegurança. A oportunidade para explicar algumas técnicas
relativamente à colocação da voz e expressividade surgia nestes momentos. Os
rapazes ouviam. Porém, não se mantinham atentos. Por vezes pareciam não acreditar
em si próprios. O tempo de concentração era, ainda, bastante reduzido e muitas vezes
os rapazes tendiam a desisitir. Pareciam querer tudo muito mais depressa. Um dia,
disse ao jovem mentor do projecto: “Vasco, isto só lá vai com poesia!”, ao que me
respondeu: “Com poesia, mãe?”. Com poesia e com muita determinação, mostrando
aos jovens o quanto acreditávamos neles e como estavam a trabalhar com coisas
sérias, tal como outros jovens, noutros lugares. E sem se dar por isso, introduzimos
um texto poético que foi lido, interpretado e apresentado. Tratava-se do poema de
António Gedeão, “Impressão Digital”. As palavras referem-se à diferença de olhares e
à necessidade de aceitarmos o que cada um vê. O poema foi dito acentuando os
ritmos, uma espécie de música que continha e que propositadamente aproximámos
do “rap”. Batíamos com os pés no chão para marcar tempos e, em simultâneo para
inscrever uma certa recusa: dizíamos para baterem com muita força com os pés,
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como se pretendessem marcar a recusa. E todos batiam com força, enquanto
descobriam que a força dos próprios pés podia dar significado às palavras. E
dançavam. Os rapazes da Oficina de S. José dançavam e diziam poesia!
Ou tenha sido pela estratégia utilizada, ou pelas palavras familiares, a poesia tornouse presença nos dias destes rapazes. “Como foi possível eles dizerem poesia!”,
exclamava um técnico da instituição, ou “Quem diria que eu ia dizer poemas!” dizia
um rapaz. Respondeu-lhe outro: “A poesia não é coisa de miudas!”, ou ainda, “Isto
que temos aqui (e apontava o monte de “lixo”) não é lixo, são bocados de uma peça de
arte!”
Posteriormente, surgiu um outro conceito, com o qual também os jovens se
identificaram: o conceito de construção. Recuperámos a metáfora do funcionamento
de um relógio de corda e entenderam o que pedíamos de todos eles. Todo o léxico a
recuperar culminava neste novo campo de sentido e, assim, nascia também a imagem
de apresentação em palco: obras, fitas de sinalização, capacetes, luvas e os objectos
reutilizados.
Era necessário cumprir com pequenas metas e em cada sessão, o jovem Vasco,
mentor do projecto, repetia com eles um “somos capazes” que inscrevia a pertença ao
grupo e anulava, na linguagem e consequentemente no gesto, os lugares e as
distâncias dos sujeitos. Falavam a mesma língua. E foi aqui que o nosso percurso de
intervenção se dividiu e que este escrito regista na mudança da pessoa verbal (o “nós”
anterior não era a formalidade da academia, era um dizer em conjunto): o Vasco
permanecia num trabalho de repetição e de criação de um objecto performativo, eu
passava a integrar o grupo menos vezes, alternando as funções de consultora artística
e de observadora de campo, o que me valeu um lugar privilegiado do olhar.
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Comprometimento presente: a ética da responsabilidade na
presença e na permanência
Um dia o espectáculo ficou pronto. Os jovens encheram-se de orgulho face aos
restantes que não quiseram integrar este grupo de trabalho. Porém, tudo o que se
queria dizer era: “Afinal fomos capazes”. E foram. Subiram ao palco, distante da
instituição, em território desconhecido, num evento organizado pela PASEC
(Plataforma de Animadores Socioeducativos e Culturais) e tomaram para si a
responsabilidade de um nome e de uma equipa: “estávamos em representação da
Oficina de S. José”, repetia um dos rapazes aos restantes e era preciso “mostrar a
força de uma equipa e mostrar que tinham sido capazes”, repetia-lhes o jovem Vasco.
“Nós somos capazes”, dizia um dos rapazes e outro acrescentava “Eu nem sabia que
sabia fazer isto” e outro ainda, que mal falava “Olha para mim, vê lá se eu faço bem” e
repetia vezes sem conta o que tinha aprendido. Sabiam poemas de cor. Gritavam-nos
de tão confiantes que estavam. Em palco, nem pareciam os mesmos rapazes que
tinham gritado, partido algum material de tanta violência nos gestos durante os
ensaios. “Eles portaram-se muito bem. Que orgulho!”, explicava um dos técnicos que
os acompanhou. E, diante de todos eles, disse-lhes o que sentia. Esse fim de dia ficou
inscrito nas vidas de todos nós.
O regresso ficou marcado por uma alegria que se julgava perdida. Ficaram
prometidas saídas, acampamentos, outras actividades. Todas foram cumpridas. O
regresso ao trabalho criativo ficou marcado pelas palavras sensatas de um dos jovens:
“Eu acho que isto ainda está muito verde, agora é preciso amadurecer isto que
fizémos, é preciso alongar, mas é preciso melhorar!”
Vieram as férias de Verão e uma paragem mais longa do que o habitual. Quando o
Vasco regressou à instituição trouxe, pelo menos, as palavras que me disse. “Mãe, eu
não posso abandonar aqueles jovens!” Faziam todo o sentido as palavras finais
inscritas na fase de avaliação deste projecto. A marca de juventude do seu autor
mantinha-se, mas alguma liberdade formal não subvertia a seriedade e, sobretudo, a
autenticidade exigida: «Não por falta de paciência,/ mas por, de facto, sentirmos
tudo que temos vindo a afirmar,// Recusamo-nos,/ a tentar equacionar realidades/
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que iminentemente/ assentam nos sentimentos,/ com palavras vãs/ que têm vindo a
toldar e enformar/ toda uma sociedade cega por excelência.// Recusamo-nos,/ a ser
desumanos/ ao tentar colar todo um conjunto de fórmulas,/ por natureza
mirambulásticas e sem nexo algum,/ para tentar quantificar/ aquilo que nos torna
humanos.//Recusamo-nos,/ a desistir,/ perante a insensibilidade e hipocrisía/ que
parecem prevalecer nesta sociedade de hoje em dia.// Recusamo-nos,/ a
desmobilizar,/ pois, se mais ninguém se levanta,/ lá estaremos nós para agarrar o
que mais ninguém quer.// Recusamo-nos,/ a tornar o possível em impossível,/ pois,
por mais adversas que sejam as tempestades,/ unidos seremos capazes,/ pois, o que
nos move, será sempre o último a morrer:/ o sonho.// Recusamo-nos,/ a
desnascer,/ pois todos vivemos plenamente na nossa realidade/ e vemos ser nosso
dever/ levar a cabo e erguer bem alto o nosso estandarte,/ o estandarte no
humanismo.// Recusamo-nos,/ a não fazer,/ pois se ninguem fizer nada/
permaneceremos imóveis e inertes/ na nossa própria existência.» (VITÓRIA, 2009:
43-44).
É precisamente neste lugar que a Arte (teatro e percursão) e a Animação
Sociocultural se encontram e se fundem: na necessidade da presença, da persistência
e do (muito) tempo continuado. Diremos, também, estes dois caminhos de
intervenção unem-se na incapacidade em aceitar o (dis)curso conformista dos dias. A
vida também reclama estes princípios. E estes jovens institucionalizados são bem o
exemplo desta necessidade. Por eles e para eles, a melhor lição de vida que qualquer
adulto poderia ter vivido: acreditar no que se faz e na utilidade do nosso gesto nos
dias dos outros sujeitos. A dose de amor já referida. A urgência de amar e de
permanecer, como escreveu Eugénio de Andrade: «(…) Cai o silêncio nos ombros e a
luz/impura, até doer./É urgente o amor, é urgente/permanecer.»
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Referências bibliográficas:
ARTAUD, Antonin (1996). O Teatro e o seu duplo. Lisboa: Fenda Edições, Lda.
BOURDIEU, Pierre (2003). A Miséria do Mundo. Petrópolis: Editora Vozes.
FREIRE, Paulo (2007). Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra.
FREIRE, Paulo (1987). Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra.
HABERMAS, Jurgen (2003). Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro.
VITÓRIA, Vasco (2009). Inclui(a)rte – Projecto de Animação para a inclusão social, através das
artes, para Jovens institucionalizados. Escola Profissional do Perpétuo Socorro, Porto.
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