ISSN: 1983-8379
Era ela
Maraíza Labanca1
Era saber de cor o que eu te falava, como só posso fazer com o que conheço pela
primeira vez. Perdi dois parágrafos por reiterar a espera, por argumentar com meu sono à
altura do sol nascente.
Metidos uns nos outros, os anjos, esses de gestos abafados, jeito de sono,
engendravam um lirismo úmido: a eles, contudo, não há socorro possível.
O mar à sua medida. Esta suavidade de tarde, esposa da tarde, dá vida e convoca o
alento de uma sobra de energia.
Roço a tua distância depois da mesa em que se derrama a melancolia das manhãs.
Seria fazer com que tudo fosse menos espelhado e mais indicativo do que eu já sentia há
meses, sem calcular a velocidade do que se estendia como tecido que desembrulha uma mãe.
Estendi os fios no teu colo seco e irregular. Aprendia a depurar nosso encontro como se
cortam palavras desnecessárias e faz-se retornar os não-ditos que assombram e fascinam uma
casa. Com lados torneados de novo futuro, sem medo, a redundância, meu novo futuro.
Altivo. Destemido. Em nome da Beleza que rasgue as velas mais viciadas. Eu olhava de fora,
roendo os lábios de suave ansiedade e quieta excitação. Movia-me o sim de que tanto falei. E
depurava, depurava, pra que ficássemos com o irredutível de nós, com a errância sem erro.
Desafiava o que eu sentia em alargamento de véu que dobra. De água.
Tudo me reacende.
Poderia eu embargar o amor? Duas frases por noite como troco. Restava um saber
sobre a nobreza. Essa nobreza dos velhos bons, à tarde do ócio, figurando, como pássaros,
sobre a velocidade de nossos pés. Era uma aridez gelada na noite. Uma sombra de certeza
aterrorizante, às faltas com a tinta. Coibia-me de seguir em frente, coibia-me de qualquer
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É autora do livro de poemas Refratário, 2012, Ed. Scortecci (no prelo). Doutoranda em Literatura Comparada
pela UFMG. Contato: [email protected].
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Darandina Revisteletrônica– Programa de Pós-Graduação em Letras/ UFJF – volume 5 – número 1
ISSN: 1983-8379
coisa. Tinh’ela, nesse instante, uma legião estrangeira nos olhos, destilando palavras como se
elas pronunciassem, audaciosamente, uma primeira vez, como quem diz fim.
Mas a audácia dos anjos. Dos estrangeiros. Era volta. Eu apenas inaugurava as
palavras.
- Meu nascimento.
Um sonho: Pedia ajuda a um inimigo inventado. Agora era uma legião de inimigos e
eu adormeceria ao lado deles, a contar histórias fantásticas que invadiam os pesadelos dos
anjos. Haveria algo ali que não fosse estrangeiro?, perguntava o sacerdote do sonho, aquele
mesmo que me mandava, como penitência, comer maçãs. Acordava com uma réstia de doce
nas bordas da língua, um gosto espesso de esquecimento. Certa vez havia uma legião de
sacerdotes e todos comiam maçãs.
A marcha das horas. Recebia o calor, enfim, e permaneci estática. Por anos. Se comia
maçãs, era um estrangeiro. O que foi a razão de minha fome? Eu ousaria dizer? Desconfiava
do flácido passado que deveria eu abandonar, como se abandona uma família. Agora: a
sedutora aridez da alegria que relampeja sobre a nova casa. Eu bem queria. Tinha ido e
voltado – no meu retorno inaugural, melindroso.
- Revoada.
À altura da minha alegria, era ela a minha tarde.
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