REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: HÁ ALGUM RESPEITO AO PRINCÍPIO
DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA?
Karina Achutti Pedri
INTRODUÇÃO
O presente estudo objetiva a análise acerca da (in) observância do Princípio
da Dignidade da Pessoa Humana no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD).
Diversas razões motivam a escolha do tema objeto desta pesquisa,
figurando sua importância não apenas para o âmbito acadêmico, mas também para
os operadores do direito e, via de conseqüência, para a sociedade em geral.
A Lei 10.792 de dezembro de 2003, que modificou a redação da Lei n.
7.210/84 – Lei de Execução Penal –, introduziu o regime disciplinar diferenciado no
ordenamento jurídico brasileiro e provocou grande debate, na medida em que tal
instituto tem se mostrado um tanto rigoroso e cruel e, talvez, além dos limites da
pessoa humana.
Daí exsurge, para o operador do direito, a relevância da matéria tratada.
Afinal, não são também estes os responsáveis pela (im) possibilidade de
confinamento de um ser humano no regime disciplinar diferenciado?
E se é dos operadores do direito que se deve esperar (e, por que não dizer,
cobrar) análise aprofundada acerca do tema, revela-se aí sua importância para a
sociedade.
Interessa para a sociedade, como destinatária final da tutela jurisdicional do
Estado, que a matéria seja enfrentada com a seriedade e a cientificidade que
2
encerra, pena de manter-se tudo como esta e, fatalmente, tolerar-se tudo que se
tolera.
Para tanto, no primeiro capítulo desta pesquisa, abordaremos os principais
aspectos do regime disciplinar diferenciado, analisando sua origem, os seus
requisitos e cabimento, de acordo com a lei de execução penal. Neste mesmo
capítulo apontaremos, ainda, alguns casos concretos em que o RDD foi aplicado aos
presos que habitam os careceres brasileiros.
Após, realizar-se-á uma breve análise sobre o Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana passando pela gênese de seu conhecimento, pela sua posição nos
ordenamentos jurídicos internacionais e nacional até sua natureza jurídica e
relevância social.
Por fim, aprofundaremos o estudo com a análise, em conjunto, do princípio
da humanidade e do regime disciplinar diferenciado, examinando até onde a
dignidade do ser humano é observada e respeitada nos interiores dos
estabelecimentos prisionais e até que ponto a aplicação de penas deveras cruéis
ressocializa e disciplina os apenados.
É, pois, o que veremos a seguir.
1
1.1
O REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO
ORIGEM E BASE LEGAL
Imprescindível, para superar o dogmatismo rasteiro e aprofundar o estudo
sobre o Regime Disciplinar Diferenciado, ventilar algumas noções acerca da origem
e da base legal do instituto. Todavia, impõe-se estabelecer um corte histórico que
permita compreender a procedência e o início da normativização do instituto, de
forma cientificamente satisfatória, para que não nos percamos em regressões
infinitas, e, por óbvio, despiciendas. Necessário, por conseguinte, analisar as
“experiências inspiradoras” como, por exemplo, as conhecidas “solitárias”, e o
3
nascimento do Regime Disciplinar Diferenciado no contexto jurídico-normativo
brasileiro.
Tocante à fonte de inspiração para o “encarceramento diferenciado”,
inegável que tenha o instituto encontrado modelo nas chamadas “solitárias”,
consubstanciadas em celas individuais, com nenhuma acomodação, em que o
apenado ou preso provisório permanecia (ou permanece?) isolado do restante da
população carcerária, lhe sendo sonegados direitos fundamentais, tais quais a
exposição ao sol, à luz, ou o acesso a condições minimamente higiênicas de
satisfazer necessidades fisiológicas.
De se notar, e parece óbvio que, o Regime Disciplinar Diferenciado não
surgiu de inopino, tampouco é fruto da imaginação criativa do “iluminismo”
1
do
legislador pátrio, senão que sua gênese se funda indiscutivelmente nos modelos de
tortura psicológica já conhecidas e ilimitadamente adotadas em todo o mundo,
inclusive no Brasil. 2
Aliás, tocante ao reconhecimento, por parte de algumas casas prisionais
brasileiras, da adoção das medidas de aprisionamento solitário, a pesquisa
demonstrou que zero instituições
4
3
admitem a prática de tal mecanismo, utilizando
como justificativa a incontestável superlotação dos presídios, comuns à generalidade
das casas prisionais brasileiras.
Existente e amplamente adotado o modelo de encarceramento solitário no
Brasil, sua oficialização parecia um caminho inevitável, mormente considerando o
panorama contemporâneo da atividade legislativa em matéria penal, indelevelmente
1
LUISI, Luis. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. rev. e aum. Porto Alegre: Sergio Antônio
Fabris Editor, 2003.
2
Basta recordar as práticas punitivas medievais, largamente empregadas à época da Santa
Inquisição, em que as reprimendas não se restringiam ao suplício físico dos apenados, senão que a
tortura psicológica constituía valioso mecanismo de punição. Para uma abordagem extremamente
mais aprofundada acerca do tema, conferir FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 30. ed. Petrópolis:
Vozes, 2005.
3
A pesquisa de que ora tratamos deu-se por procedimento deveras singelo, consistente em contatos
telefônicos com as instituições prisionais, no período compreendido entre março e maio de 2006.
4
Os seguintes estabelecimentos prisionais foram consultados, tendo todos refutados à adoção do
encarceramento solitário: Presídio Central de Porto Alegre/RS; Penitenciária Modulada de
Charqueadas/RS; Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas/RS.
4
marcada pela legislação do pânico, embriagada no discurso de urgência e, dada a
respostas simbólicas, como bem anotou Hassemer: 5
(...) há uma tendência do legislador em termos de política criminal moderna
em utilizar uma reação simbólica, em adotar um Direito Penal simbólico.
Quero dizer com isso, que os peritos nessas questões sabem que os
instrumentos utilizados pelo Direito Penal não são aptos para lutar efetiva e
eficientemente contra a criminalidade real. Isso quer dizer que os
instrumentos utilizados pelo Direito Penal são ineptos para combater a
realidade criminal. Por exemplo: aumentar as penas, não tem nenhum
sentido empiricamente. O legislador – que sabe que a política adotada é
ineficaz – faz de conta que está inquieto, preocupado e que reage
imediatamente ao grande problema da criminalidade. É a isso que eu
chamo de ‘reação simbólica’ que, em razão de sua ineficácia, com o tempo
a população percebe que se trata de uma política desonesta, de uma
reação puramente simbólica, que acaba se refletindo no próprio Direito
Penal como meio de controle social.
De início, o Regime Disciplinar Diferenciado veio regulado em nível estadual,
disciplinado no Estado de São Paulo pela Resolução da Secretária de Administração
Penitenciária n° 26, de 04 de maio de 2001, que estipulou as medidas
administrativas a serem tomadas perante a ocorrência de rebeliões ou qualquer tipo
de manifestação violenta. A seguir, editou-se a Medida Provisória n° 28, de 04 de
fevereiro de 2002, que estabelecia, em seu art. 2°, a aplicação do Regime Disciplinar
Diferenciado exclusivamente como sanção disciplinar destinada a presos ou
condenados por crimes dolosos. Todavia, a medida provisória foi rejeitada pelo
Congresso Nacional. 6
Em dezembro de 2003, foi publicada a Lei 10.792, que veio modificar a
redação da Lei n. 7.210/84 – Lei de Execução Penal –, introduzindo (melhor seria
dizer, oficializando) o regime disciplinar diferenciado no ordenamento jurídico
brasileiro. Ocorre que a medida acabou por gerar inúmeros debates, seja
principalmente no meio acadêmico, seja no meio social, vez que se revelou um tanto
rigorosa e, talvez, além dos limites de suportabilidade da pessoa humana. 7
A edição da referida lei, ao estabelecer o regime disciplinar diferenciado,
ampliou à esfera nacional a rígida medida disciplinar que já vinha sendo adotada
5
HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre: Fundação Escola Superior do
Ministério Público, 1993, p. 86.
6
MIRABETE, Julio Fabrini. Execução Penal. 11. ed. rev. atual. São Paulo: Atlas, 2004, p. 149.
7
Sobre o tema, ver Capítulo III infra.
5
pelas Secretarias de Administração Penitenciária dos estados de Rio de Janeiro e
São Paulo.
Com a adesão ao Regime Disciplinar Diferenciado, temos, nas palavras de
Luiz Flávio Gomes8 o quarto regime penitenciário do Brasil. O RDD, considerado um
regime fechadíssimo, vem com o objetivo de “tranqüilizar” a sociedade, acenando
(ou iludindo) à população brasileira com a teórica eficiência dos Poderes Legislativo
e Judiciário, elevando brados aos seus "poderes" de isolar um ser humano durante
trezentos e sessenta dias por ele representar uma "grave ameaça" à sociedade.
Como referiu Dotti:
(...) a tendência do Congresso Nacional em editar uma legislação de pânico
para enfrentar o surto da violência e a criminalidade organizada
caracterizada pelo arbitrário aumento de pena de prisão e o isolamento
diuturno de alguns condenados perigos durante dois anos – além de outras
propostas fundadas na artimética do cárcere – revela a ilusão de combater
9
a gravidade do delito com a exasperação das penas.
Todavia, para não soterrar de vez com mais um dos princípios
conformadores do direito penal democrático10, qual seja, o postulado da legalidade,
cuidou o legislador de 2003 em fixar certos limites no que diz com as hipóteses de
utilização do regime disciplinar diferenciado. É o que veremos a seguir.
1.2
CABIMENTO
Oficialmente, o Regime Disciplinar Diferenciado, ou regime integralmente
fechado plus11, foi regulado para trazer maior segurança aos estabelecimentos
penais, uma vez que se tornam sempre mais constantes as rebeliões no interior dos
8
GOMES, Luiz Flávio. Palestra proferida em 15 de julho de 2004, em Canela. Disponível em:
<http://www.tj.rs.gov.br/institu/correg/acoes/Encontro_Exec_Canela>. Acesso em: 15 mar. 2006.
9
DOTTI, René Ariel. Movimento Antiterror e a Missão da Magistratura. Curitiba: Juruá, 2005, p.
34.
10
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 8. ed. Rio de Janeiro: Revan,
2002, p. 61 e ss.
11
CARVALHO, Salo de. Tântalo no Divã (Novas Críticas às Reformas no Sistema Punitivo Brasileiro).
Revista do IBCCRIM, São Paulo, a.12, n. 50, Editora Revista dos Tribunais, p. 91-118, set./out. 2004,
p. 100.
6
presídios, bem assim as fugas, que são comandadas pelos próprios detentos que lá
habitam.
Conforme dispõe a nova norma (Lei n°. 10.792/03, que alterou a redação do
art. 52, da Lei de Execuções Penais) podem estar sujeitos ao regime disciplinar
diferenciado todos os presos provisórios ou definitivos, nacionais ou estrangeiros,
salvo os segregados em função de medida de segurança.
São três as possibilidades de aplicação do regime disciplinar diferenciado:
prática de crime doloso que resulte em subversão da ordem ou disciplinas internas;
presos que ofereçam alto risco para ordem e a segurança do estabelecimento penal
ou sociedade; ou quando recaírem, sob o preso provisório ou condenado, fundadas
suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer título, em organizações
criminosas, quadrilha ou bando. 12
De acordo com o parecer do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, dentre as três hipóteses já referidas de aplicação do RDD, a primeira
delas – que diz respeito à prática de fato previsto como crime doloso que ocasione
subversão da ordem ou disciplina internas – é a única em que se percebe uma ação,
concreta e específica, capaz de ser provada e individualizada, caracterizadora de
falta grave, de modo a permitir a inclusão do condenado em tal regime. 13
De outro lado, as outras hipóteses que refere o artigo – presos que
apresentem alto riso para a ordem e a segurança do estabelecimento penal ou da
sociedade ou sobre os quais recaiam fundadas suspeitas de envolvimento ou
participação, a qualquer título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando –
são totalmente imprecisas e abstratas, na medida em que configuram autêntica carta
branca
à
Administração
para
aplicar
sanções
ao
arrepio
das
diretrizes
principiológicas do Estado Democrático de Direito. 14
12
De acordo com a redação da Lei n°. 10.792/03, art. 52, caput e §§.
CONSELHO Nacional de Política Criminal Penitenciária (site oficial). Disponível em:
<http://www.mj.gov.br/cnpcp/>. Acesso em: 13 de mar. 2006.
14
Id.
13
7
Tocante à parte do dispositivo que alude os presos que “apresentem alto
risco para a segurança do estabelecimento ou da sociedade” há evidente retorno ao
Direito Penal do autor (ou da Periculosidade), hoje inadmissível, na medida que a
aplicação da sanção decorre, não da realização de uma conduta típica ilícita, mas da
presumível ameaça que a pessoa representa, pelo simples fato de existir. 15
Nesta linha, dissertam ZAFFARONI e PIERANGELI:
O sentimento de segurança jurídica não tolera que uma pessoa (isto é, um
ser capaz de autodeterminar-se), seja privada de bens jurídicos, com
finalidade permanente preventiva, numa medida imposta tão-somente pela
sua inclinação pessoal ao delito sem levar em conta a extensão do injusto
cometido e o grau de autodeterminação que foi necessário atuar. Isso não
significa que com a pena nada seja retribuído, mas apenas o
estabelecimento de um limite à ação preventiva especial ressocializadora
que se exerce sobre uma pessoa. De outra parte, a inclinação ao delito,
além de não ser demonstrável, possui o sério inconveniente de, muito
freqüente, ser resultado da própria ação prévia do sistema penal, com o que
se iria cair na absurda conclusão de que o efeito aberrante da
criminalização serve para agravar as próprias conseqüências, e, em razão
16
disso, para aprofundar ainda mais sua aberração.
Ademais, ainda quanto à hipótese que menciona os presos que oferecem
alto risco para a segurança do estabelecimento penal ou da sociedade, ela mostrase absolutamente vaga e que deixa margem a tudo quanto é tipo de interpretação e
de decisão. 17
Importante, também, ressaltar que, na hipótese de aplicação do RDD
quando existirem suspeitas de participação em organização criminosa, quadrilha ou
bando, ocorre a violação ao princípio penal non bis in idem, uma vez que a conduta
descrita, por si só, é crime, devendo ser ela informada à autoridade policial, em vez
de ser ao apenado imposta a sanção disciplinar.
Também, quanto a possibilidade de adequação da conduta ao tipo
supramencionado, importa destacar que se trata apenas de suspeitas. Nesta
contingência, em se tratando tão somente de juízo de probabilidade – e não de
certeza –, sejam elas “fundadas” ou não, não se pode olvidar que sobre o acusado
15
Id.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro –
parte geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997, p.117-118.
17
GOMES, op. cit.
16
8
não paira ainda condenação, e, assim sendo, impõe-se observar o princípio
constitucional da presunção de inocência18. Ninguém pode ser castigado
arbitrariamente e, para que isso não ocorra, deve-se esperar a sentença terminativa,
para, posteriormente, condenar e incluir o apenado no regime disciplinar
diferenciado. 19
Para incutir o preso no regime disciplinar diferenciado é necessária uma
decisão judicial, com direito ao contraditório entre Ministério Público e Defesa,20
mediante provocação da autoridade administrativa, mais especificamente do diretor
do estabelecimento prisional. É possível, também, a inclusão cautelar em regime
disciplinar diferenciado por dez dias, por decisão administrativa.
Importante destacar que o Conselho Nacional de Política Criminal
Penitenciário posicionou-se contra a aplicação do RDD, ainda por ocasião da
Resolução SAP 26/01, o que foi tema da Resolução n. 10, de 12 de maio de 2003,
nos seguintes termos:
Relatado o tema, a Comissão reuniu-se e entendeu, na esteira da
manifestação contida no MEMO/MJ/CNPCN/Nº 021/2003, que a instituição
do chamado Regime Disciplinar de Segurança Máxima, é desnecessário
para a garantia da segurança dos estabelecimentos penitenciários nacionais
e dos que ali trabalham, circulam e estão custodiados, a teor do que já
prevê a Lei n. 7.210/84.
Possível detectar, como se observa a partir do parecer do Conselho
Nacional de Política Criminal e Penitenciária, que até mesmo o órgão administrativo
retro mencionado, diretamente conectado com a realidade carcerária do Brasil,
recomenda a não adoção do regime carcerário diferenciado, questionando a real
eficácia da medida no que diz com os fins a que se propõem as penas, ao que tudo
indica já atento à falibilidade daquilo que René Dotti denominou “aritmética do
18
Art. 5º, LVII, Constituição Federal de 1988 dispõe que “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Alguns autores preferem utilizar a expressão
“princípio da não-culpabilidade”, dentre eles Nilo Batista (op. cit.) e Paulo Rangel in Direito
Processual Penal. 10. ed. rev. atual. ampl. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2005, p. 24-25.
19
GOMES, op. cit.
20
Art. 54, § 2§, Lei 10. 792/2003 dispõe que “A decisão judicial sobre inclusão de preso em regime
disciplinar será precedida de manifestação do Ministério Público e da defesa e prolatada no prazo
máximo de quinze dias".
9
cárcere”
21
, em que a implantação do RDD certamente não seria a melhor solução
para os presos provisórios ou definitivos que se inserem em alguma das hipóteses
de aplicação previstas no comando legal, uma vez que mostra-se um regime
extremamente cruel.
De qualquer sorte, não exitou o legislador brasileiro em oficializar o instituto,
implementando o regime disciplinar diferenciado no ordenamento jurídico brasileiro,
estabelecendo, por imposição principiológica, seus requisitos e procedimento.
1.3
REQUISITOS E PROCEDIMENTO
O Regime Disciplinar Diferenciado consiste no recolhimento dos presos em
cela individual, por até 360 dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta
grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada, com direito a
visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas
horas. Além disso, o preso terá direito à saída da cela por duas horas diárias para
banho de sol.
O regime disciplinar diferenciado encaixa-se, ou nos parece, a nosso sentir,
perfeitamente nas palavras de Dostoievski22, em suas Recordações da casa dos
mortos: "Suga a seiva vital do indivíduo, enfraquecendo-o a alma, amesquinha-o,
aterroriza-o,
e,
no
fim,
apresenta-no-lo
como
modelo
de
correção,
de
arrependimento, uma múmia moralmente dissecada e semilouca".
O RDD nos reporta a Foucault, quando o autor aborda a tecnologia da
punição, na qual o sentenciado ou preso provisório deve ser colocado em uma
economia política de corpo, eis que ainda que tal regime não recorra a castigos
violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos suaves de trancar ou
21
22
DOTTI, op. cit., p. 34.
DOSTOIEVKI, 2000 apud DOTTI, op. cit., p. 20.
10
corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e suas forças, da utilidade e da
docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão.23
Assim, a punição vai se tornando a parte mais velada do processo penal,
provocando várias conseqüências: deixa o campo da percepção quase diária e entra
no da consciência abstrata; sua eficácia é atribuída à sua fatalidade não à sua
intensidade visível; a certeza de ser punido é que deve desviar o homem do crime. 24
1.4
RDD NO BRASIL: CASOS CONCRETOS
Por óbvio, a implantação do Regime Disciplinar Diferenciado, deu-se em
virtude de alguns episódios ocorridos no interior das prisões brasileiras.
Acontecimentos esses que aterrorizaram e atemorizaram a população que tomava
conhecimento, seja através de jornais ou mediante a televisão, das rebeliões
ocorridas nas penitenciárias, das inúmeras mortes dentro do cárcere e, o que ainda
parecia mais grave, muitos apenados comandavam assaltos, seqüestros e até
mesmo o tráfico de drogas do interior dos presídios.
A primeira modalidade de regime disciplinar diferenciado ocorreu em virtude
de uma rebelião ocorrida no estado de São Paulo, no ano de 2001, que envolveu
vinte e cinco unidades prisionais da Secretaria da Administração Penitenciária e
quatro cadeias públicas, sob a responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública
do Estado. 25
Em dezembro de 2002, ocorreu a primeira experiência do regime disciplinar
diferenciado no Rio de Janeiro, decorrente da rebelião no presídio de Bangu I, esta
sendo comandada por Fernandinho Beira-Mar. Logo após o fim da rebelião, os
líderes do movimento foram isolados para impedir o contato com os demais
apenados, e o restante dos participantes foram colocados em regime disciplinar
especial de segurança. Já no ano seguinte – 2003 – a Secretaria da Administração
23
FOUCAULT, op. cit.
Id.
25
FREIRE, op. cit., p. 127.
24
11
Penitenciária do Rio de Janeiro reeditou o Regime Disciplinar Diferenciado Especial
de Segurança em Bangu I, e a partir daí generalizou o modelo disciplinar para outras
penitenciárias. 26
Como se viu, talvez não tenha sido a inclusão de “Fernandinho Beira-Mar”
no regime disciplinar diferenciado a solução mais eficaz, haja vista que não houve
qualquer comprovação do estancamento de suas atividades.
2
2.1
O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
BREVE REVISÃO HISTÓRICA
O segundo capítulo deste estudo pretende estabelecer algumas noções
sobre a importância que guarda o princípio da dignidade da pessoa humana em
nosso modelo social, revisitando suas origens – por óbvio evitaremos regressões
infinitas –, anotando suas regulamentações e, por fim, destacando seu papel como
postulado fundante da maioria dos ordenamentos jurídicos contemporâneos.
Uma das características mais marcantes do princípio em comento é aquela
que assegura um mínimo de respeito ao ser humano somente pelo fato de ser
homem27, de modo que todas as pessoas são dotadas por natureza de igual
dignidade. Cabe ressaltar que o respeito à pessoa humana deve estar presente
independentemente da comunidade, grupo ou classe social a que aquele faça parte.
O princípio da humanidade apresenta suas raízes no pensamento clássico e
no ideário cristão. Tanto no Antigo Testamento quando no Novo Testamento
encontramos referências no sentido de que o homem foi criado à imagem e
semelhança de Deus. Já no pensamento filosófico e político na antiguidade clássica
26
FREIRE, op. cit., p. 130.
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida privada e a imagem
versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: S. A. Fabris, 1996, p. 49.
27
12
tem-se a dignidade humana como a posição social ocupada pelo indivíduo e o seu
grau de reconhecimento pelos demais membros da comunidade. 28
Nas palavras de Karl Loewenstein, em sua Teoria de la Constitución, “os
direitos humanos, em especial as liberdades individuais (direitos civis e políticos),
formam um núcleo inviolável do sistema político da democracia constitucional,
encarnando a dignidade da pessoa humana”. 29
Seguindo este pensamento, decorre que a função do Estado de proteger a
dignidade humana indica a impossibilidade de lhe conferir hierarquia outra que não a
constitucional. 30
2.1.1 A Dignidade Pessoal no Ordenamento Jurídico Brasileiro
A Carta Magna de 1988 estabeleceu a importância da dignidade humana em
nosso Estado Democrático de Direito, vez que diversos dispositivos de nossa
Constituição cuidam de tal princípio.
O disposto no artigo 1º, inciso III, bem como o artigo 60, parágrafo 4º, inciso
III, na Constituição Federal de 1988, traz a dignidade da pessoa humana e os
direitos e garantias individuais, como fundamento no Estado Democrático de Direito.
É complicado definir o que é esta dignidade e até que ponto ela é aplicada
em nosso ordenamento jurídico. Segundo Ingo Sarlet: “(...) a dignidade é o valor de
uma tal disposição de espírito, e está infinitamente acima de todo preço. Nunca ela
poderia ser posta em cálculo ou confronto com qualquer coisa que tivesse um preço,
sem de qualquer modo ferir a sua sanidade. 31
Também em seu art. 5º, inciso XLIX, a Constituição Federal de 1988,
assegurou a dignidade pessoal. Em tal dispositivo, está elencado que “é assegurado
28
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na
Constituição Federal de 1988. 4. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 30.
29
LOEWENSTEIN, 1986 apud CONSELHO Nacional de Política Criminal Penitenciária (site oficial),
op. cit.
30
CONSELHO Nacional de Política Criminal Penitenciária (site oficial), op. cit.
31
SARLET, op. cit.
13
aos presos o respeito à integridade física e moral”. Já no inciso L, há comando no
sentido de que “às presidiárias serão asseguradas as condições para que possam
permanecer com seus filhos durante o período de amamentação”.
No entanto, tal princípio assume especial importância no inciso XLVII do
artigo. 5º, onde disciplina que não haverá penas:
a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;
b) de caráter perpétuo;
c) de trabalhos forçados;
d) de banimento;
e) cruéis.
Nota-se que o ordenamento jurídico brasileiro possui, nas palavras de Ingo
Sarlet, uma Constituição de cunho
marcadamente compromissário, que elevou a dignidade da pessoa humana
à condição de fundamento de nosso Estado democrático de Direito. Nossa
carta magna é considerada uma Constituição da pessoa humana ainda que
32
não raras vezes este dado venha a ser virtualmente desconsiderado.
Todavia,
um
importante
exemplo
onde
a
Constituição
Federal
é
desconsiderada é com relação aos apenados. Sabemos da precariedade das
instituições penitenciárias e das condições nas quais os presos vivem.
Os cárceres brasileiros são verdadeiros depósitos humanos, onde homens e
mulheres são "jogados", sem o mínimo de dignidade como seres humanos que são.
E, além de viverem deste modo extremamente precário, muitas vezes, ainda têm
que suportarem situações desumanas que podem ser comparadas a verdadeiras
penas cruéis.
No Brasil, um exemplo de pena cruel é o polêmico regime disciplinar
diferenciado, introduzido, em dezembro de 2003, pela Lei 10.792, que veio modificar
a redação da Lei n. 7.210/84 – Lei de Execução Penal. Tal regime, mais conhecido
como RDD, submete o preso a condições atrozes e desumanas, ferindo
absolutamente o princípio da dignidade humana.
32
SARLET, Ingo Wolgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição
Federal de 1988. 4. ed. Rev.ampl. Porto Alegre: Livr. Do Advogado, 2006, p...
14
No entanto, não podemos esquecer que no momento em que o apenado é
apresentado ao sistema prisional, necessário se faz um acompanhamento para que
sejam respeitados os direitos inerentes ao ser humano.
2.1.2 Ordenamento Jurídico Internacional
A dignidade da pessoa humana passou a ser reconhecida expressamente
nas Constituições somente após a Segunda Guerra Mundial, depois de ter sido
consagrada pela Declaração Universal da ONU em 1948. 33
Dentre os países da União Européia que reconhecem a dignidade da pessoa
humana, tem-se a Constituição da Alemanha (artigo 1º, inciso I), a Constituição da
Espanha (preâmbulo e artigo. 10.1), a da Grécia (artigo 2º, I), a da Irlanda
(preâmbulo), a de Portugal (artigo 1º), bem como a Constituição da Itália (artigo 3º).
Por outro lado, no Mercosul, somente as Constituições do Brasil (artigo 1º,
inciso III) e a do Paraguai (preâmbulo) igualaram o valor da dignidade ao status de
norma fundamental. Tocante aos demais Estados Americanos, deve-se referir a
Constituição de Cuba (artigo 8º) e a Constituição da Venezuela (preâmbulo). Na
Carta Magna Peruana, também encontramos referência à dignidade da pessoa
humana, onde são reconhecidos demais direitos, que derivem da dignidade da
pessoa humana, da soberania popular, do Estado social e democrático de Direito e
da forma republicana de governo.
Desta forma, ainda que expressamente alguns ordenamentos jurídicos
resistam em reconhecer a dignidade da pessoa humana como postulado
fundamental dos regimes democráticos, outro caminho não há, se a pretensão é de
seguir com o modelo de Estado democrático de direito.
2.2
33
NATUREZA JURÍDICA E RELEVÂNCIA JURÍDICO-SOCIAL
Id., p. 62.
15
O legislador Constituinte originário mostrou de modo preciso e absoluto sua
intenção de outorgar aos princípios fundamentais a qualidade de normas
embasadoras e informativas de toda ordem constitucional, inclusive das normas
definidoras de direitos e garantias fundamentais34, que igualmente integram – com
os princípios fundamentais – aquilo que se pode denominar de núcleo essencial da
Constituição Brasileira formal e material. 35
O legislador de 1988, inspirando-se no constitucionalismo lusitano e
hispânico, optou por não incluir a dignidade da pessoa humana na lista dos direitos e
garantias fundamentais, guindando-a ao posto de princípio (e valor) fundamental –
artigo 1º, inciso III, CF/1988. 36
Sendo o princípio universal e absoluto, a dignidade da pessoa humana, deve
ser viabilizada para se tornar realidade, tanto do ponto de vista jurídico, quando do
social. 37
O enquadramento da dignidade da pessoa humana como princípio
fundamental, traz a certeza de que o artigo 1, inciso III, da Constituição Federal de
1988 não possui somente uma declaração de conteúdo ético-moral, mas constitui,
sim, uma norma jurídico-positiva dotada de status constitucional formal e material e,
como tal, inequivocamente, carregada de eficácia, alcançando, assim, a condição de
valor jurídico fundamental da sociedade. 38
Como anotou Ingo Sarlet: “(...) a dignidade da pessoa humana possui um
caráter jurídico normativo e, desse modo, deve ser reconhecida sua plena eficácia
em nossa ordem constitucional, onde foi guindada à posição de princípio – logo,
sempre terá valor – fundamental de nosso Estado Democrático de Direito”. 39
34
A distinção entre direitos e garantias fundamentais, no direito brasileiro, remonta a Rui Barbosa, ao
separar as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos
direitos reconhecido, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos,
limitam o poder. Aquelas instituem os direitos; estas, as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na
mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia com a declaração do direito.
MORAES, op. cit., p. 61.
35
SARLET, op. cit., p. 67.
36
SARLET, op. cit., p. 67.
37
COSTA PIRES, op. cit., p. 15.
38
SARLET, op. cit., p. 70.
39
Id., p. 71.
16
O ser humano precisa de convívio social e os valores internos vêm
geralmente, de fatores externos que são encontrados na vida social. Dignidade
humana é o direito da pessoa conviver no ambiente social de acordo com sua
própria natureza.40
É preciso ter consciência que através da pena a sociedade responde às
agressões que sofre com a perpetração de um delito. Por conseguinte, o princípio da
dignidade da pessoa humana não deve obscurecer a natureza aflitiva da sanção
penal. 41
Seguindo esta linha é importante lição de H.H. Jescheck:
O direito penal não pode se identificar com o direito relativo a assistência
social. Serve em primeiro lugar a Justiça distributiva, e deve por em relevo a
responsabilidade do delinqüente por haver violentado o direito, fazendo com
que receba a resposta merecida da Comunidade. E isso não pode ser
atingido sem dano e sem dor principalmente nas penas privativas de
liberdade, a não ser que se pretenda subverter a hierarquia dos valores
morais, e fazer do crime uma ocasião de prêmio, o que nos conduziria ao
reino da utopia. Dentro destas fronteiras, impostas pela natureza de sua
missão, todas as relações humanas disciplinadas pelo direito penal devem
42
estar presididas pelo princípio da humanidade.
Assim, fatalmente haverá um conflito entre a pena – aqui entendida como
reprimenda pela violação de uma norma penal – e a necessária garantia à dignidade
da pessoa humana, na medida em que a aflição da pena, ainda que eventualmente
necessária, não deve ser ilimitada, porquanto ilimitada não é a suportabilidade
humana, tampouco desprovido da tutela estatal está o apenado. Por este quadro,
mesmo que apenado, o sujeito não deixa de ser humano, daí a importância de
trabalhar o princípio da dignidade da pessoa humana como (de)limitador do poderio
punitivo do Estado.
40
Id.
LUISI, op. cit., p. 50.
42
JESCHEK apud LUISI, op. cit., p. 51
41
3
REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: HÁ ALGUM
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA?
RESPEITO
AO
Buscou-se, no primeiro capítulo da presente pesquisa, analisar o polêmico
regime disciplinar diferenciado, ocasião em que explicitamos sua origem, seu
cabimento, seus requisitos e procedimentos e, por fim, os casos em que o “regime
fechado plus”
43
, foi aplicado aos apenados brasileiros. Já no segundo capítulo,
apresentamos o princípio da dignidade da pessoa humana, desde sua origem até
sua aplicação nos ordenamentos jurídicos internacionais e nacional, destacando-se
a importância de tal postulado, tanto na esfera jurídica quanto na social.
Pretende-se, assim, neste último capítulo, destacar a conexão – e,
paradoxalmente, o hiato – que invariavelmente se coloca entre o princípio da
dignidade da pessoa humana e o simbólico44 regime disciplinar diferenciado,
demonstrando, sem a pretensão de inovar ou desvelar algo ignorado, que vez mais,
na contramão da história, mas embalado pelo discurso do pânico, o legislador
brasileiro utiliza o mecanismo mais gravoso de intervenção estatal para solapar
garantias individuais conquistadas ao longo de tanto tempo e, às custas de muito
sofrimento: tudo para nada resolver.
3.1
A DIGNIDADE HUMANA INTRAMUROS
Como já referimos, com o discurso repressivo da necessidade de criarem-se
soluções legais de contenção do aumento da violência em nosso país, do
sentimento de insegurança – ou, como denominou Eduardo Cavalcanti
45
, da
“sensibilidade do risco” – e da criminalidade organizada intramuros e extramuros
46
,
motivado principalmente por episódios de extrema violência ocorridos nos Estados
43
CARVALHO, op. cit., p. 100.
Sobre Direito Penal simbólico e suas respostas ineficazes, cf. HASSEMER, op. cit., p. 86.
45
CAVALCANTI, Eduardo Medeiros. Crime e Sociedade Complexa. Campinas: LZN, 2004, p. 151.
46
BARBOZA, Leandro de Oliveira. Da inconstitucionalidade do regime disciplinar diferenciado
por ofensa aos direitos fundamentais: breve histórico legislativo. Disponível em:
<http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 07 jul. 2006.
44
18
do Rio de Janeiro e de São Paulo, entendeu o legislador brasileiro por criar o regime
disciplinar diferenciado.
No
entanto,
o
legislador,
ao
“criar”
(ou
“oficializar”,
ou,
ainda,
“institucionalizar”) tal regime, mais conhecido como RDD, acabou por assumir, de
forma perniciosa, posição diametralmente oposta aos direitos e garantias
fundamentais, subvertendo e contrastando os princípios humanizadores de política
penal e penitenciária, consagrados em nossa Carta Magna e nos Tratados
Internacionais, os quais o Brasil ratificou. 47
Dentre os direitos fundamentais que o legislador atropelou ao instituir o
regime disciplinar diferenciado, inequivocamente o mais importante deles – porque o
mais fundamental – é o princípio da dignidade da pessoa humana, o pilar de toda
civilização.
Entretanto, o regime disciplinar diferenciado, ao impor o isolamento do
apenado em cela individual pelo período de trezentos e sessenta dias, afronta
completamente o princípio em comento, uma vez que inflige ao punido uma pena
não somente física, mas inegavelmente psicológica, de modo que aniquila por
completo a sua personalidade, o seu caráter e sua vida. 48
Por conseguinte, esse isolamento intramuros estabelecido de forma mais
severa do que a já existente, pelo RDD, produzirá nos presos, sejam eles
condenados ou provisórios, efeitos de grandes dimensões psíquicas que, em sua
grande maioria, serão irreversíveis.
Veja-se que as condições às quais o preso submete-se quando inserido no
regime disciplinar diferenciado, sem dúvida, o levam a beirar a loucura, uma vez que
permanece um ano em cela individual, sem contato com os demais detentos, sem
acesso às informações do cotidiano e, ainda, sendo permitido contato com a luz do
dia pelo período de somente duas horas diárias.
47
48
BARBOZA, op. cit.
BARBOZA, op. cit.
19
Esse isolamento celular diuturno de longa duração é um dos mecanismos de
tortura do corpo e da alma do condenado e manifestamente antagônico ao princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana. 49
Logo, a punição vai se tornando, então, a parte mais importante do sistema
penal, provocando, assim, diversos malefícios no corpo e na alma do apenado,
quando, como assevera Nilo Batista, a pena, no mundo contemporâneo, deve ser
regida pelo princípio da humanidade. 50
A justificação do uso de violência, da imposição de sanções pelo poder
público, é um dos questionamentos mais clássicos da filosofia e da teoria do direito
penal, definindo os princípios reitores dos sistemas jurídicos penais e processuais. 51
Como vaticinou Ferrajoli:
o problema da legitimidade política e moral do direito penal como técnica
de controle social mediante contrições da liberdade dos cidadãos é, em
boa parte, o próprio problema da legitimidade do Estado como monopólio
52
organizado pela força.
O desrespeito pela dignidade da pessoa humana já se encontra na própria
estrutura prisional, uma vez que mantém encarcerados indivíduos que cometeram
delitos graves juntamente com sujeitos que perpetraram infrações de menor
potencial ofensivo53, bem assim mantém reincidentes com delinqüentes primários,
presos cautelares com condenados, o que faz nossas prisões serem conhecidas
como “universo do crime”. 54
49
DOTTI, op. cit., p. 22.
BATISTA, op. cit., p. 98-101.
51
Id.
52
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002, p. 234.
53
A expressão “infrações de menor potencial ofensivo” não é aqui utilizada com o significado
atribuído àqueles delitos de competência dos Juizados Especiais Criminais, mas com sentido lato,
mais amplo.
54
MORETTO, Rodrigo. Crítica Interdisciplinar da Pena de Prisão: controle do espaço na sociedade
do tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 120.
50
20
Não é a toa que criminosos inexperientes e primários, depois de uma
temporada em presídios brasileiros, saem de lá experts no mundo do crime, prontos
para começarem a delinqüir novamente, só que agora com mais experiência, mais
aptos a praticar delitos de maior potencial ofensivo, afinal tiveram “bons professores”
no cárcere.
Possível dizer que, talvez, o maior problema em relação ao regime
disciplinar diferenciado é que sua implantação no Brasil não foi precedida de
estudos sérios sobre os efeitos que o isolamento por períodos prolongados pode
exercer no ser humano. 55
Um exemplo disso é a declaração do Ministro da Justiça, Márcio Tomaz
Bastos, ao comentar as reclamações do traficante mais conhecido do Brasil,
Fernandinho Beira-Mar, quando este reclamou do confinamento solitário a que os
presos submetem-se quando inseridos do RDD. Eis a declaração do Ministro: "se ele
se recuperar, ótimo. Se ele nunca se recuperar, pelo menos durante o tempo em
que ele estiver preso não terá condições de se conectar, de dar ordens, de
comandar suas atividades criminosas". 56
Diante de tal declaração, observa um total despreparo que atinge tanto
nossos juristas como nossos legisladores – por óbvio sem generalizações –, uma
vez que os mesmos não têm (ou, talvez propositadamente, aparentam não ter)
ciência das dramáticas conseqüências psíquicas que o preso inserido no RDD irá
suportar posteriormente. Ao contrário do que pensam os arautos da repressão e do
discurso do pânico, a recuperação do apenado não pode, em qualquer hipótese, ser
alcançada através dessa modalidade de pena extremamente cruel e desumana.
Diante disso, o legislador poderia ter adotado meio diverso que não o regime
disciplinar diferenciado, para a contenção da criminalidade intramuros, uma
alternativa que não institucionalizasse a desgraça, a desesperança, o terror
55
PAIXÃO, Ana Clara Victor da. Longe dos olhos, fora do tempo: o confinamento solitário como
regime especial de cumprimento de pena. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 10
jul. 2006.
56
BASTOS apud GOMES, Luiz Flavio et al. O Regime Disciplinar Diferenciado é Constitucional?
Disponível em: <http://www.bu.ufsc.br/constitregimedisciplinardifer.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2006.
21
individual, uma solução que não afrontasse os princípios de nossa Constituição
Federal57, e, em especial, o princípio da dignidade da pessoa humana, porquanto é
inegável: sem dignidade o ser humano se transmuda de homem a animal, e passa a
comportar-se como este.
3.1.1 Regime Disciplinar Diferenciado: Avaliação do Recluso
O sistema criminal, quando chamado a atuar sobre um sujeito desviante,
com a intenção de retirar sua liberdade, joga-o para dentro de um mundo à parte,
um universo com um tempo e uma história própria, em que tanto futuro quanto
presente – se é que se pode compreendê-los no cárcere – estão ligados a um
passado 58, o qual o próprio sistema criminal não permite ser esquecido.
Esse passado, para os apenados inseridos no regime disciplinar
diferenciado, se faz presente em um grau de maior intensidade do que para aqueles
que estão nas galerias dos presídios em celas apertadas, com muitos detentos
dividindo o mesmo espaço e o mesmo ar.
Por conseguinte, temos, no cárcere, uma improdução cuja função é
implementar a passividade, transformando-se em um elemento de insegurança do
presente e uma incerteza quanto ao futuro, levando o apenado à autodestruição, a
um processo de “coisificação”. Ao contrário das pessoas que vivem em sociedade,
na qual o tempo disposto oferece para o indivíduo uma base para que busque, por
meio de sua iniciativa individual, o imprevisto, ou seja, o incontrolável. No cárcere, a
rigidez do previsto gera uma situação de imprevisibilidade do próprio hoje. 59
Quanto aos efeitos biopsíquicos, podemos perceber que a grande massa
dos encarcerados – após penas de longa duração – desenvolvem doenças mentais
irreversíveis, eis que são obrigados a viver sob regras que se mostram incompatíveis
com a dinâmica social, muitas vezes obrigados a agir perante os demais detentos de
57
BARBOZA, op. cit.
MORETTO, op. cit., p. 97.
59
MORETTO, op. cit., p. 106.
58
22
forma inversa com que agem com a administração da casa prisional, produzindo, por
conseqüência, choque entre os encarcerados. 60
Do isolamento do indivíduo decorre, invariavelmente, a concentração do
mesmo, porquanto impõe-se-lhe as aflições de sua própria companhia, vedando-lhe
a comunicação inerente ao desenvolvimento do próprio ser humano, fulminando a
essência do seu “sobre-viver”, na medida em que o homem necessita, por natureza,
não apenas existir, mas fundamentalmente co-existir. 61
Ademais, a concentração impõe ao segregado a lembrança reiterada e
insistente do próprio delito, do próprio “erro”, de forma a impossibilitar o
esquecimento das circunstâncias que o levaram ao isolamento, como se a ele fosse
dado viver solitário, sem qualquer conexão com o mundo exterior ou com os seus
iguais. E, o pior de tudo: busca-se, com isto, “ressocializá-lo”.
3.2
REGIME DISCIPLINAR?
O regime disciplinar diferenciado foi implantado no Brasil com o objetivo de
controlar a violência extrema que acomete nosso país e impedir a ação do crime
organizado, cujos líderes, embora estivessem presos, continuavam a comandar
seus exércitos e discípulos dos interiores das prisões.
No entanto, a implantação do regime disciplinar diferenciado tem causado
grandes problemas. Isto porque a população carcerária está totalmente revoltada e
inconformada, vendo seus maiores líderes, como Fernandinho Beira-Mar e Marcos
Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder do Primeiro Comando da Capital (PCC)
62
, enjaulados em tal regime.
60
MORETTO, op. cit., p. 123.
O Primeiro Comando da Capital (PCC) é uma organização de criminosos, criada para
supostamente defender os direitos de cidadãos encarcerados no Brasil. Surgiu no início da década de
1990 no Centro de Reabilitação Penitenciária de Taubaté, local que acolhia prisioneiros transferidos
por serem considerados de alta periculosidade pelas autoridades. A organização também é
conhecida por 15.3.3; a letra "P" é a 15ª letra do alfabeto português e a letra "C" é a terceira. Hoje a
organização é comandada por Marcos Willians Herbas Camacho, vulgo Marcola, e também por um
62
23
Diante do isolamento dos líderes, mais uma onda de ataques começou a ser
executada, principalmente no Estado de São Paulo, para protestar contra a
implantação do regime disciplinar diferenciado. A onda de violência teve início em 12
(doze) de maio de 2006, em São Paulo, começando uma série de ataques contra
bases comunitárias, delegacias, agentes penitenciários, policiais e oficiais da
Guarda Civil Metropolitana, ataques contra ônibus e agências bancárias. Desse
ataque, resultaram dezenas de mortos e feridos.
A generalização das rebeliões dos presídios, que cada vez torna-se mais
constante, serve como demonstrativo da fragilidade dos dispositivos de controle
disciplinar. Como bem expõe Christiane Russomano
a omissão do poder público, aliada à conivência e aos deficits relativos à
administração penitenciária e seus agentes, não só não tem conseguido
conter o avanço do crime organizado, a hegemonia das facções criminosas
63
e a corrupção, como colaboram para a disseminação destas práticas.
Nesta contingência, possível questionar-se até que ponto é válido e oportuno
a implantação do regime disciplinar diferenciado nas penitenciárias brasileiras.
Ora, será que realmente inserir o apenado no RDD é a melhor solução?
Será que o preso que se submete a tal regime quando sair dessa tortura vai pensar
diferente? Vai se arrepender dos crimes que cometeu anteriormente? Será difícil
uma pessoa que durante 360 dias permaneceu nas condições que o RDD oferece
se arrepender do cometimento de um crime, mas sim deverá gerar mais revolta no
apenado que, provavelmente voltará a cometer outros delitos quando sair do
cárcere.
A implementação do regime disciplinar diferenciado nos presídios brasileiros
representa muito mais do que um rígido controle disciplinar no interior das prisões.
Segundo Salo de Carvalho,
outro indivíduo que atende pelo apelido de "Cabeção". O PCC conta com vários integrantes que
financiam
ações
ilegais
no
estado
de
São
Paulo.
Disponível
em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Primeiro_Comando_da_Capital#Hist.C3.B3ria#Hist.C3.B3ria>.
Acesso
em: 27 ago. 2006.
63
FREIRE, op. cit., p. 147.
24
...a Lei 10.792/03, ao incorporar o RDD na (des)ordem jurídica nacional e
alterar a LEP, vinculando o ingresso do preso no regime disciplinar
diferenciado quando apresentar alto risco a ordem e a segurança do
estabelecimento penal ou da sociedade (art. 52, §1° da LEP) ou quando
recaim fundadas suspeitas de envolvimento ou participação, a qualquer
título, em organizações criminosas, quadrilha ou bando (art. 52, §2° LEP),
manifesta o sentimento dos Poderes Públicos com práticas arbitrárias,
64
regularmente toleradas nas penitenciárias nacionais.
Os cárceres, ao invés de serem lugares de ressocialização do homem,
tornam-se fábricas de criminosos perigosos, de revoltados, de desiludidos, de
desesperados; de outro lado, quando voltam para a sociedade, ao conseguirem sua
liberdade, ao invés de solução, enfrentam mais uma “via crucius”, pois são homens
fisicamente libertos, no entanto, de uma tal forma estigmatizados, que acabam se
tornando reféns do seu próprio passado.65
Cabe citar Raúl Cervini, para quem aquele que entra no sistema prisional
sofre uma “fratura chave” em sua vida que jamais o trará de volta, pois o sistema de
estigmatização e desadaptação é aplicado em grau máximo, fazendo o indivíduo,
quando posto em liberdade, procurar um grupo em circunstâncias semelhantes às
suas novas para se introduzir, isto é, que já esteja adaptado às novas regras que lhe
foram impostas.66
Todo o discurso "re", segundo Zaffaroni está em crise. Isto porque, a pena
de prisão não ressocializa, não reeduca, tampouco reinsere. Pelo contrário, do
discurso "re",somente se efetivam a reincidência e a rejeição social. Tal discurso é,
ao mesmo tempo, real e falso. “É falso o conteúdo, mas o discurso é real, ele existe
e produz efeitos (legitimantes do poder de punir)”. 67
Certamente, como muito da produção legiferante em nosso País, o RDD
também foi sancionado no afã de satisfazer a (sanha da) opinião pública (ou
64
CARVALHO, Salo de. Tântalo no Divã (Novas Críticas às Reformas no Sistema Punitivo Brasileiro).
Revista do IBCCRIM, São Paulo, a.12, n. 50, Editora Revista dos Tribunais, p. 91-118, set./out. 2004,
p. 102.
65
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Esse monstro chamado RDD. Disponível em:
<http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 12 jul. 2006.
66
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002, p. 43.
67
ZAFFARONI apud LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (fundamentos da
Instrumentalidade garantista) 3.ed. rev. Atul. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 16.
25
publicada?, como já se perguntou) e como uma resposta à violência urbana. Mais
uma vez utiliza-se de uma solução absolutamente ineficaz para combater a
criminalidade, cujas raízes, todos temos conhecimento, está na desigualdade social
que ainda marca o Brasil. 68
A pena de prisão deveria servir como uma forma de intimidação à prática de
delitos, vislumbrando uma sanção exemplar àqueles que cometem crimes, mas,
acima de tudo, pretendia-se que ela reintegrasse o apenado à sociedade, até porque
em nosso Estado Democrático de Direito, felizmente, não admite a prisão perpétua
tampouco a pena de morte. 69
É preciso – e aqui não temos a pretensão de inovar na apresentação de
soluções –, primeiramente, abandonar a ilusão de que a penalidade é uma maneira
de reprimir os crimes e que nesse papel, de acordo com as formas sociais, os
sistemas políticos ou as crenças, ela pode ser severa ou indulgente, voltar-se para a
expiação ou procurar obter uma reparação.
Já no século XVIII, Beccaria, em sua clássica obra Dos Delitos e das Penas,
dizia que: “entre as penalidades e no modo de aplicá-las proporcionalmente aos
crimes, é necessário escolher os meios mais eficientes e mais perdurável e,
igualmente, menos cruel no organismo do culpado”. 70
Por conseguinte, de nada adianta querer extrair a solução para às
atrocidades vistas atualmente, em nosso Estado Democrático de Direito, por meio
do Direito Penal. Isto porque não seria plausível e nem coerente anunciar normas
penais mais rigorosas, como, por exemplo, aumento das penas para homicídios
contra agentes do Estado, aumento das penas em crimes de quadrilha voltadas a
atos de terrorismo ou, também, a indeterminação do período de isolamento dos
apenados em regime disciplinar diferenciado. 71
68
MOREIRA, op. cit.
NUNES, Adeildo. A falência da pena de prisão. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br>.
Acesso em: 24 mar. 2006.
70
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Hermus, 1983, p. 03.
71
NOGUEIRA, Fernando Célio de Brito. Depois do 13 de Maio. Disponível em:
<http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 30 ago. 2006.
69
26
Basta perguntar-se se com a lei dos crimes hediondos – norma esta um
tanto rigorosa – houve a diminuição dos crimes nela elencados (latrocínio, extorsão
mediante seqüestro, homicídio, estupro, tráfico de entorpecentes, entre outros)?
Indaga-se também: a política de aumentar penas e endurecer o regime de
cumprimento diminui os números da criminalidade? Certamente não. 72
Segundo Aury Lopes Jr.,
a função de prevenção geral desempenhada pela norma penal é mínima ou
inexistente. Tanto é assim, que a casa dia ocorrem mais delitos de
latrocínio, extorsão mediante seqüestro (agora na sua versão relâmpago) e
o tráfico de entorpecentes cresce de forma alarmante, apenas para dar
73
alguns poucos exemplos... .
Certo é que, nas palavras de René Ariel Dotti,
Não é possível fugir de uma equação simples e deplorável: o crime
organizado se alimenta da desorganização do Estado. A audácia e o triunfo
daquele é conseqüência lógica da indiferença e da corrupção deste. Há
vasos comunicantes entre esses dois mundos, tão fortes e permanentes
que no Rio de Janeiro e São Paulo, de tempos em tempos, a comunidade
de delinqüentes, com seus vários departamentos, compõe um estado
paralelo ao interditar ruas, estabelecimentos comerciais, escolas e impor
regras de conduta à pessoas de bem. Não foi assim, por exemplo, com a
ECO 92, quando um acordo entre o Estado e os chefes de comandos
criminosos “permitiu” a paz na cidade maravilhosa e a segurança de ilustres
74
convidados estrangeiros?.
Na atual realidade que estamos vivenciando, um Direito Penal mais rigoroso,
certamente, não resolveria todos os conflitos e tragédias que a população brasileira
está atravessando. Isto porque não seria possível disciplinar um indivíduo através do
isolamento ou com a aplicação de penas cruéis, sejam elas físicas ou psíquicas, se
enquanto o mesmo convivia em sociedade e, portanto, possuía condições “normais”
de se adaptar ao sistema civilizado, “se entregou” ao negócio do crime e desviou-se
do pacto social. Se, antes, com as condições de convivência e co-existência normal,
o indivíduo quedou-se ante a criminalidade, não será, provavelmente, possível
discipliná-lo apenas maltratando-o, jogando-o entre quatro paredes e mantendo-o
isolado.
72
LOPES JR., op. cit., p. 15.
Id.
74
DOTTI, René Ariel. Terrorismo interno - A trágica colheita dos frutos da omissão (I). Disponível
em: <http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 06 jun. 2006.
73
27
Além disso, mister ressaltar que a criminalidade, nas palavras de Aury Lopes
Jr., "é fenômeno complexo, que decorre de um feixe de elementos (fatores
biopsicossociais), onde o sistema penal desempenha um papel bastante secundário
na sua prevenção". 75
Por este motivo, uma legislação do pânico, prometida pela mídia em função
das barbáries vistas nos dias atuais, não irá recuperar a omissão dos governantes
que, segundo Dotti, “fazem do discurso político a máscara para esconder a
prevaricação, a corrupção e outros males que pervertem a autoridade, esvaziam as
leis e atormentam os cidadãos”. 76
De acordo com Zaffaroni,
o aumento das penas abstratas oferecidas pela hipocrisia dos políticos, que
não sabem o que propor, não tem espaço para propor, não sabem ou não
querem modificar a realidade. Como não tem espaço para modificar a
realidade, fazem o que é mais barato: leis penais!
Mostra-se cada vez mais notório que o Estado está ineficiente para impedir
ou reduzir a multiplicação dos delitos (violentos ou não), uma vez que falta em
demasia segurança para a população brasileira. Por conseguinte, a lei está
perdendo o poder da confiança, de modo que, enquanto há um aumento
considerável dos crimes, há um pequeno volume de meios e métodos estatais para
enfrentá-los. 77
O objetivo da pena é de recuperar o infrator e não torná-lo pior, uma vez que
a pena privativa de liberdade é uma evolução em comparação ao antigo sistema de
execução penal, que punia o criminoso com a mutilação e, por vezes, até com a
própria morte.
Se isso não acontecer, o futuro certamente será pior, uma vez que os
meninos e meninas de rua brasileiros, sem qualquer base familiar e educacional,
75
LOPES JR., op. cit., p. 16.
DOTTI, René Ariel. Terrorismo interno - A trágica colheita dos frutos da omissão (I). Disponível
em: <http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 18 ago. 2006.
77
Id.
76
28
estão ingressando, em número casa vez mais expressivo, nas escolas do crime, ou
seja, as conhecidas instituições para menores. A pós-graduação, segundo Aury
Lopes Jr., "é quase automática, basta completar 18 anos e escolher algum dos
superlotados presídios brasileiros, verdadeiros mestrados profissionalizantes do
crime". 78
O sistema penitenciário brasileiro não está falido, como muitos dizem. O que
está falida é a pena de prisão, que há muito tempo não vem cumprindo sua real
finalidade. É justamente por isso que a pena privativa de liberdade deve ser aplicada
somente para aqueles criminosos considerados de alta periculosidade, que não
possam viver em sociedade. A pena alternativa carrega um papel preponderante
para a diminuição da aplicação da pena de prisão, uma vez que, na grande maioria
dos casos, previne, reprime e recuperada o condenado. 79
Por fim, os episódios dramáticos que estamos vivenciando atualmente
devem servir para uma reflexão de que temos que investir em um sistema
penitenciário mais digno e avançado e, sobretudo, apostar no homem, destinatário
da atividade política e preocupação essencial de um Estado Democrático de Direito,
"aquele em que governantes e governados se submetem ao império da Lei e que
tem num de seus pilares o princípio da dignidade da pessoa humana, garantia
universal contra as injustiças.” 80
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ante todo o exposto, cumpre, neste momento, tecer algumas considerações
finais sobre a matéria apresentada.
Procurou-se, nesta pesquisa, expor os novos rumos que a execução penal
está tomando em nosso País. Com o advento da Lei 10.792/03, e a conseqüente
implantação do regime disciplinar diferenciado em alguns estabelecimentos
78
LOPES JR., op. cit., p. 17.
NUNES, op. cit.
80
NOGUEIRA, op. cit.
79
29
prisionais, começou a ser observada, tanto pelos juristas quanto pelos acadêmicos,
a inconstitucionalidade de tal regime.
Oficialmente, o regime disciplinar diferenciado foi regulado para trazer maior
segurança aos estabelecimentos prisionais, uma vez que se tornam cada vez mais
constantes as rebeliões no interior dos presídios. No entanto, como visto alhures, a
implantação do RDD não afronta somente o princípio da dignidade da pessoa
humana, mas também tantos outros princípios consagrados em nossa Carta Magna.
O regime disciplinar diferenciado é, atualmente, encarado pela maior
parcela da população brasileira como uma punição de magnífica importância para a
segurança da sociedade. Tem-se a ilusão de que o apenado inserido neste regime
estancará, por completo, suas atividades criminosas ou, pelo menos, enquanto
estiver isolado e enjaulado, não representará uma ameaça, o que, na realidade, é
uma utopia, eis que, como já explanado na presente pesquisa, não há notícias que o
megatraficante Fernandinho Beira-Mar tenha estancado suas atividades somente
pelo fato de estar cumprindo pena no RDD. Certamente, um dos criminosos mais
visados no País tem pessoas de extrema confiança que “gerenciam seus negócios”,
ante sua impossibilidade temporária.
No entanto, há questões deveras mais importantes a serem analisadas do
que, simplesmente, cogitar se o regime disciplinar diferenciado é realmente eficiente
ou não para conter a “indisciplina” dos apenados perigosos que patrocinam rebeliões
do interior dos estabelecimentos prisionais.
Como vimos ao longo do trabalho, o RDD afronta absolutamente o princípio
da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição
Federal de 1988. Isto porque essa modalidade de cumprimento de pena submete o
ser humano a tratamento indigno e deveras cruel, uma vez que além de atingir as
condições físicas do preso, também incide sobre o aspecto psíquico, diante do
isolamento prolongado, o fazendo beirar a loucura. O regime disciplinar diferenciado
agride o corpo e a alma do apenado, o trata como animal dentro de uma cela, não
tendo o menor respeito com a dignidade pessoal.
30
O presente trabalho foi proposto no sentido de impulsionar um pensamento
crítico a respeito da observância do princípio da dignidade humana no regime
disciplinar diferenciado e, além disso, perquirir até que ponto essa modalidade
carcerária disciplina o preso.
Questionamos qual foi a real intenção do legislador ao “criar” o RDD, se foi
apenas para satisfazer a opinião publica ou, na hipótese mais remota, para não dizer
inexistente, para discipliná-lo e, conseqüentemente, compeli-lo a não praticar mais
delitos quando sair do cárcere. Concluímos que o RDD não disciplina, pelo contrário,
gera mais revolta entre aqueles que estão inseridos nesse regime.
Esperamos que as linhas aqui traçadas possam transmitir as divergências
existentes entre aqueles que ainda defendem que esta modalidade de pena deve
continuar a ser aplicada e, de outro lado, aqueles que não se restringem a posição
de meros espectadores com o que está acontecendo no interior dos cárceres e
lutam para que ocorra alguma mudança.
O Estado deve preocupar-se mais em investir naqueles que estão cumprindo
pena em nossos estabelecimentos prisionais, eis que, mais cedo ou mais tarde, eles
sairão da prisão e, certamente, com o tratamento que lhes foi disponibilizado, podem
voltar à prática delitiva. Primeiro porque saem de lá revoltados e amargos com sua
atual situação e, ao atravessarem o portão que os separa do “mundo real”, irão
deparar-se com uma realidade dura, que não fornece oportunidades para aqueles
que possuíram antecedentes criminais. Segundo porque, na falta de oportunidades,
poderão voltar a delinqüir para poder suprir as necessidades básicas que o Estado
deveria fornecer. Já quando forem detidos, não será um problema tão grande, eis
que os criminosos não têm mais medo da prisão e, justamente por essa razão, na
falta de uma vida digna, voltam a delinqüir deliberadamente, demonstrando um
comportamento de não se importar com qualquer conseqüência prisional.
Não podemos esquecer que o Direito anda lado a lado com a justiça e com a
realidade social. As leis carecem de constantes aperfeiçoamentos e modificações e,
se algumas atitudes não forem refletidas e repensadas, corremos o risco que o
31
Direito se desvirtue de seu objetivo maior, qual seja, fomentar uma caminhada
destinada à justiça.
REFERÊNCIAS
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1985.
BARBOZA, Leandro de Oliveira. Da inconstitucionalidade do regime disciplinar
diferenciado por ofensa aos direitos fundamentais: breve histórico legislativo.
Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 07. jul. 2006.
BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. 8. ed. Rio de
Janeiro: Revan, 2002.
BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. São Paulo: Hermus, 1983.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão: causas e
alternativas. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
BRASIL, Lei n. ° 10.792, de 1° de dezembro de 2003. Altera a Lei n. ° 7.210, de 11
de junho de 1984 - Lei de Execução Penal e o Decreto-Lei n. ° 3.689.
<http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 03 mar. 2006.
______. Constituição da República Federativa do Brasil. Constituição (1988).
Brasília: Senado Federal, 1988.
CARAVALHO, Salo de. Tântalo no Divã (Novas Críticas às Reformas no Sistema
Punitivo Brasileiro). Revista do IBCCRIM, São Paulo, a.12, n.50, Editora Revista
dos Tribunais, p. 97, set./out. 2004.
______. Pena e Garantias: a crise do direito e do processo penal, o garantismo
jurídico, as teorias da pena, os sistemas de execução, a lei de execução penal, os
conflitos carcerários, os direitos (de resistência) dos presos. 2.ed.rev.atual. Rio de
Janeiro : Lumen Juris, 2003.
32
CERVINI, Raúl. Os processos de descriminalização. 2.ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2002.
CONSELHO Nacional de Política Criminal Penitenciária (site oficial). Disponível em:
<http://www.mj.gov.br/cnpcp/>. Acesso em: 13 mar. 2006.
COSTA PIRES, Tailson. A Dignidade da Pessoa Humana diante da sanção
penal. [s. l.]: Editora Fiúza, 2004.
DOTTI, René Ariel. Movimento Antiterror e a Missão da Magistratura. Curitiba:
Juruá, 2005.
______. Terrorismo interno - A trágica colheita dos frutos da omissão (I).
Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 06 jun. 2006.
FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de direitos: a honra, a intimidade, a vida
privada e a imagem versus a liberdade de expressão e informação. Porto Alegre: S.
A. Fabris, 1996.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2002.
FLEINIER, Thomas. O que são Direitos Humanos? São Paulo: Max Limonad,
2003.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2005.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal: parte geral. 16. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2003.
FREIRE, Christiane Russomano. A violência do sistema penitenciário brasileiro
contemporâneo: o
caso
RDD
(regime
disciplinar
diferenciado). São
Paulo: IBCCrim, 2005.
GOMES, Luiz Flávio. Palestra proferida em 15 de julho de 2004, em Canela, cuja
transcrição
está
disponível
em:
<http://www.tj.rs.gov.br/institu/correg/acoes/Encontro_Exec_Canela>. Acesso em: 15
mar. 2006.
______. et al. O Regime Disciplinar Diferenciado é Constitucional? Disponível
em: <http://www.bu.ufsc.br/constitregimedisciplinardifer.pdf>. Acesso em: 05 jul.
2006.
33
HASSEMER, Winfried. Três temas de direito penal. Porto Alegre: Fundação Escola
Superior do Ministério Público, 1993.
JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Direitos humanos do preso. Disponível em:
<http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 10 abr. 2006.
LOPES JR., Aury. Introdução Crítica ao Processo Penal (fundamentos da
Instrumentalidade garantista) 3. ed. rev. aAtul. e ampl. Rio de Janeiro: Lumen Juris,
2005.
LUISI, Luis. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed. rev. e aum. Porto Alegre:
Sergio Antônio, 2003.
MIRABETE, Julio Fabrini. Execução Penal. 11. ed. rev. atual. São Paulo: Atlas,
2004.
MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 13.ed. São Paulo: Atlas, 2003.
MOREIRA, Rômulo de Andrade. Esse monstro chamado RDD. Disponível em:
<http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 12 jul. 2006.
MORETTO, Rodrigo. Crítica Interdisciplinar da Pena de Prisão: controle do
espaço na sociedade do tempo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
MUNDO. Folha de São Paulo, São Paulo, p. A10, 8 maio 2004. Mundo.
NOGUEIRA, Fernando Célio de Brito. Depois do 13 de Maio. Disponível em:
<http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 05 set. 2006.
NUNES, Adeildo. O regime disciplinar na prisão. Disponível em:
<http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 17 jul. 2006.
______. A falência da pena de prisão. Disponível em: <http://www.ibccrim.org.br>.
Acesso em: 24 jun. 2006.
PAIXÃO, Ana Clara Victor da. Longe dos olhos, fora do tempo: o confinamento
solitário como regime especial de cumprimento de pena. Disponível em:
<http://www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 10 jul. 2006.
34
REVISTA do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – jan./jul. 2005.
RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça. Disponível em: <http://www.tj.rs.gov.br>.
Acesso em: 10 maio 2006.
RIZZATO NUNES, Luiz Antonio. O Princípio Constitucional da Dignidade da
Pessoa Humana: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2002.
SALLA, Fernando. Rebeliões nas Prisões Brasileiras. Revista Quadrimestral de
Serviço Social, São Paulo, n.67, a. XXII, Cortez Editora, set. 2001.
SARLET, Ingo Wolgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais
na Constituição Federal de 1988. 4. ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria Do
Advogado, 2006.
ZAFFARONI, Eugênio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal
brasileiro – parte geral. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1997.
______. Manual de Derecho Penal. 3. ed. Buenos Aires: EDIAR, 1982.
Download

REGIME DISCIPLINAR DIFERENCIADO: HÁ ALGUM