Asfaltaram os rios
São Paulo fica bem na cabeceira da bacia do Tietê. Cabeceira é a beirada da bacia,
onde a chuva cai e escorre para dentro. A parede externa da bacia é a Serra do Mar,
que bloqueia as nuvens úmidas vindas do Atlântico, e por isso é um dos pontos
mais úmidos do Brasil. O lugar onde está São Paulo é onde essas nuvens
descarregam toda a água tirada do mar. Por causa disso, a região era cortada por
centenas de rios, riachos, córregos, que apanhavam essa aguaceira e a
empurravam para o interior, rumo ao rio Paraná. Se você mora em São Paulo, não
importa qual bairro, é certeza que um riacho corria pertinho da sua casa. Mas
provavelmente não corre mais. Os riachos de São Paulo hoje estão quase todos
dentro de canos, debaixo do asfalto.
A cidade começou sua história longe da água, na colina entre o rio Tamanduateí e o
Anhangabaú – ninguém queria ficar perto d’água, dos mosquitos e dos atoleiros.
Quando começou a crescer, a cidade foi pelos altos dos morros, longe dos rios.
Avançou morro acima até onde hoje é a Avenida Paulista e se espalhou pela crista
da montanha, onde hoje ficam a Avenida Doutor Arnaldo, a Heitor Penteado, a Rua
Vergueiro.
Dê uma olhada no mapa - http://issonaoenormal.com.br/img/mapa_antigo_sp.jpg.
Ele é de 1924, quando a cidade não tinha nem 1 milhão de habitantes (quatro anos
antes, o censo de 1920 registrou 579.033 paulistanos). Note como a cidade é toda
cortada por uma infinidade de linhas azuis. Eram 1.500 quilômetros de cursos
d’água. Note também como as ruas da cidade geralmente não atravessavam os
riachos. Corriam ao lado deles, mais para o alto dos morros, no seco. Se você mora
em São Paulo, é quase certo que um rio já correu perto da sua casa – encontre o
seu.
Mas isso foi bem no começo do crescimento explosivo da população, um dos
maiores da história da humanidade. A população paulistana quase dobrava a cada
década. Com isso, os rios foram sendo cobertos de asfalto. Por lei, já era proibido
construir a menos de 10 metros de um riacho, mas essa lei nunca foi respeitada.
Prova disso é que até Câmara Municipal da cidade fica bem em cima de um rio, o
Bexiga. Esse processo se acelerou durante a ditadura militar, que radicalizou a
opção pelo automóvel e construiu avenidas em quase todos os fundos de vale. Nas
áreas de várzeas, os rios antes curvos ficaram retos e o asfalto chegou até a
beirada deles. Carros precisam fluir rápido – por isso o melhor é ter asfalto bem
lisinho. Já a água é melhor que corra devagar – o asfalto liso é um convite às
enchentes (o ideal seria adotar superfícies rugosas).
Quando chove forte – mais de 100 mm num dia – água desce velozmente as
regiões íngremes das cabeceiras, que geralmente são bairros pobres da periferia.
No caminho vai arrastando casas, esmagando gente nos escombros. Quando chega
nas regiões mais baixas, as antigas várzeas, levam um monte de terra, que vai
assoreando tudo. É nesses lugares que a água se acumula, causando enchentes.
A rigor, portanto, não há enchentes em São Paulo – nós é que construímos a cidade
em cima dos rios. E a situação vai piorar. Com as mudanças climáticas, a tendência
é que chuvas fortes fiquem cada vez mais comuns – em São Paulo espera-se
invernos mais secos (e poluídos) e verões mais molhados (e cheios de enchentes).
São Paulo vai ter que descobrir maneiras de absorver essa água. Até hoje, apostou
em construir “piscinões”, que são imensas catedrais subterrâneas para acumular
água (e lixo, e ratos).
Atualmente, há uma tendência de tentar buscar soluções mais “naturais” para
escoar água. A prefeitura de São Paulo tem apostado em construir “parques
lineares” – que são áreas verdes preservadas ao redor do rio. Além da vantagem
óbvia – novas áreas de lazer – a terra das margens absorve parte da água e o rio
aberto diminui a velocidade da enxurrada. Isso também diminui a temperatura do
ar logo acima, reduzindo as chamadas “ilhas de calor”, que são bolhas de ar
aquecido pelo asfalto, que se chocam com o ar frio e úmido vindo do oceano e
provocam grandes tempestades. “Estamos focando primeiro em fazer parques
lineares nas cabeceiras urbanas – Aricanduva, Cantareira –, que é de onde toda a
água vem”, diz a arquiteta Alejandra Maria Devecchi, diretora de Planejamento
Ambiental da Prefeitura. “E queremos garantir que os rios que restaram, em outras
áreas da cidade, não sejam cobertos”.
Há quem proponha que a solução da “renaturalização” seja adotada na cidade
inteira. O engenheiro Sadalla Domingo, pesquisador da USP e funcionário da
agência reguladora de saneamento e esgotos do Estado, tem um projeto para
renaturalizar o rio Anhangabaú, em vez de construir um novo piscinão lá. “É muito
mais barato e mais eficaz, além de poupar a cidade de ter que gastar para sempre
limpando o piscinão”.
Sadalla acredita que a cidade está cheia de oportunidades desse tipo. Ele nos levou
para passear pelo bairro da Pompéia e mostrou vários pontos onde pracinhas
podem virar laguinhos e becos abandonados podem se tornar riachos margeados
por ciclovias. “Acho que todos os riachos da cidade podem ser pelo menos
parcialmente abertos”, diz. Não vai ser de uma hora para a outra. “Não é fácil
concretizar esses projetos”, diz Alejandra, da prefeitura. “A Secretaria de Obras nos
diz ‘não sabemos fazer assim’. É um jeito novo de pensar”.
Mas é o futuro.
*Publicado originalmente no !sso Não é Normal - http://issonaoenormal.com.br,
onde é possível conferir infográficos com “antes” e “depois” do Viaduto Jacareí e
também navegar pelo mapa da cidade de São Paulo da década de 20.
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