•O Auto da Barca do Inferno: é uma complexa
alegoria
dramática
de
Gil
Vicente,
representada pela primeira vez em 1517. É a
primeira parte da chamada trilogia das
Barcas (sendo que a segunda e a terceira
são respectivamente o Auto da Barca do
Purgatório e o Auto da Barca da Glória).
• Os especialistas classificam-na como
moralidade, mesmo que muitas vezes
se aproxime da farsa. Ela proporciona
uma amostra do que era a sociedade
lisboeta das décadas iniciais do
século XVI, embora alguns dos
assuntos
que
cobre
sejam
pertinentes na atualidade.
• Diz-se "Barca do Inferno", porque quase
todos os candidatos às duas barcas em
cena – a do Inferno, com o seu Diabo, e
a da Glória, com o Anjo – seguem na
primeira. De facto, contudo, ela é muito
mais o auto do julgamento das almas.
• O Auto tem uma estrutura definida, não estando dividido em
atos ou cenas, por isso para facilitar a sua leitura divide-se o
auto em cenas à maneira clássica, de cada vez que entra uma
nova personagem. A estrutura é vista pelo percurso cénico de
cada personagem, que demonstra as suas ações enquanto
"julgado".
• Embora o Auto da Barca do Inferno não integre todos
os componentes do processo dramático, Gil Vicente
consegue tornar o Auto numa peça teatral, dar
unidade de acção através de um único espaço e de
duas personagens fixas " diabo e anjo".
A peça inicia-se em um lugar imaginário, onde se
encontram as duas barcas, a Barca do Inferno, e a
Barca da Glória. Onde esperam em uma proa.
• Um Fidalgo, D. Anrique;
• Um Onzeneiro (homem que vivia de emprestar dinheiro a juros
muito elevados naquela época, um agiota);
• Um Sapateiro de nome Joanantão, que parece ser abastado,
talvez dono de oficina;
• Joane, um Parvo, tolo, vivia simples e inconscientemente;
• Um Frade cortesão, Frei Babriel, com a sua "dama" Florença;
• Brísida Vaz, uma alcoviteira;
• Um Judeu usurário chamado Semifará;
• Um Corregedor e um Procurador, altos funcionários da Justiça;
• Um Enforcado;
• quatro Cavaleiros que morreram a combater pela fé.
• Cada personagem discute com o Diabo e com o Anjo para qual
das barcas entrará. No final, só os Quatro Cavaleiros e o Parvo
entram na Barca da Glória (embora este último permaneça toda
a ação no cais, numa espécie de Purgatório), todos os outros
rumam ao Inferno. O Parvo fica no cais, o que nos transmite a
ideia de que era uma pessoa bastante simples e humilde, mas
que havia pecado. O principal objetivo pelo qual fica no cais é
para animar a cena e ajudar o Anjo a julgar as restantes
personagens, é como que uma 2ª voz de Gil Vicente.
A presença ou ausência do Parvo no Purgatório aquando do fim
da peça acaba por ser pouco explícita, uma vez que esta acaba
com a entrada dos Cavaleiros na barca do Anjo sem que
existissem quaisquer outros comentários do Anjo ou do Parvo
sobre o seu destino final.
Sátira social:
Esta obra tem dado margem a leituras muito redutoras, que
grosseiramente só nela vêem uma farsa. Mas se Gil Vicente fez
a impiedosa das moléstias que corroíam a sociedade em que
viveu, não foi para se ficar aí, como nas farsas, mas para
propor um caminho decidido de transformação em relação ao
presente.
Normalmente classificada como uma moralidade, muitas vezes ela
aproxima-se da farsa; o que indubitavelmente fornece ao leitor
é uma visão, ainda que parcelar, do que era a sociedade
portuguesa do século XVI. Apesar de se intitular Auto da Barca
do Inferno, ela é mais o auto do julgamento das almas.
• Surgem ao longo do auto três tipos de cómico: o de carácter, o
de situação e o de linguagem. O cômico de carácter é aquele
que é demonstrado pela personalidade da personagem, de que
é exemplo o Parvo, que devido à sua pobreza de espírito não
mede as suas palavras, não podendo ser responsabilizado
pelos seus erros. O cómico de situação é o criado à volta de
certa situação, de que é bom exemplo a cena do Fidalgo, em
que este é gozado pelo Diabo, e o seu orgulho é pisado. Por
fim, o cómico de linguagem é aquele que é proferido por certa
personagem, de que são bons exemplos as falas do Diabo.
Fidalgo sente-se acomodado em qualquer lugar, na Terra ou no
Inferno, para ele, ambas partes são totalmente sem sabor, sem
graça.
• Como Michelangelo viria a fazer cerca de 20 anos mais tarde no
Juízo Final da Capela Sistina (ao fundo do fresco a barca de
Caronte), também Gil Vicente construiu a sua alegoria com
vários elementos vindos da mitologia, mais em concreto, dos
Diálogos dos Mortos, de Luciano de Samósata.
A intertextualidade entre esta obra e a moralidade de Gil Vicente é
clara, de modo particular se considerarmos o Diálogo X. Vejase como Hermes, sempre satírico como o Diabo vicentino, se
dirige ao Filósofo:
Põe de parte a postura, em primeiro lugar, e depois tudo o mais!
(…)
Deita fora também a mentira, a presunção e o acreditar que és
melhor que os outros, porque se embarcares com tudo isso,
qual o navio de cinquenta remadores, capaz de te receber?
• A recusa de tudo o que podia significar distinção social na vida
terrena aparece também no auto, quando lá se fala das
(cárregas) inúteis para garantir êxito no julgamento.
A afastar as duas obras, está tudo o que depende da teologia
cristã, a começar pela presença do Anjo, com a possibilidade
de dois destinos, o da condenação e o da glória, o final
esperançoso (claramente visível quando se tem em conta o
modo como o autor aproveita a maré ao longo da obra - que
está vasa no final, impedindo a ida para o Inferno), e ainda o
novo contexto histórico.
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a.b.inferno Leandro Pereira nº18 cef oi