Lieber, RR Evidência e incerteza na saúde ambiental. (Painel) In: Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva , 7º , Abrasco, Brasília, DF, 302.08.2003. 1 EVIDÊNCIA E INCERTEZA NA SAÚDE AMBIENTAL Renato Rocha Lieber FE-Guaratinguetá, UNESP [email protected] Estudos e pesquisas na saúde ambiental buscam estabelecer relações entre as circunstâncias do ambiente e as condições de vida e saúde das pessoas que nele vivem. Sem reduzir o ambiente à mera condição física, química ou biológica, a saúde ambiental entende o ambiente como um ente dinâmico, que transforma e é transformado nas relações lá presentes, onde o homem se distingue pelas suas necessidades e potencialidades que lhe são características. Tal como em muitas outras áreas de conhecimento, os entendimentos na saúde ambiental dependem dos processos e práticas estabelecidos pela ciência moderna, subentendendo a formulação de hipóteses e a verificação empírica. Tal orientação hipotético-dedutiva capacita (embora sem suficiência) o pesquisador ao prognóstico, ao fazer uso de teorias. Ao mesmo tempo, ela condiciona a necessária contingência de todas as afirmações científicas, caracterizada como um conhecimento sempre provisório e sujeito a revisão. Tratando-se de conhecimento científico, portanto, evidência e incerteza se articulam, pois aquilo que se apresenta, se apresenta graças ao recurso científico, ele próprio contingente e, ao mesmo tempo, instrumento da constatação da contingência daquilo que havia se verificado até então. A realidade que se descortina com o uso de uma lupa dissipa-se com o uso do microscópio ótico ou ganha novos sentidos quando iluminada por comprimentos de onda que escapam à visão. Em suma, a cuidadosa apreensão pelos sentidos e o pleno consenso entre os observadores não garante o conhecimento da coisa. Este foi um dos legados de Galileu (1564-1642) à ciência moderna, graças às suas observações astronômicas decorrentes do seu invento. Todavia, mais importante que o instrumento em si, foi a forma de criá-lo. Galileu concebeu um telescópio sem jamais ter sido um polidor de lentes e o fez a partir de relações geométricas, na precisão matemática e não na tentativa e erro do ato empírico, próprio de sua época. A partir daí, o mundo pensado e o mundo vivido deixaram de ser incompatíveis, como supunha-se desde a Grécia antiga, e a realização humana ganhou uma perspectiva ilimitada de realização, porque a capacidade de imaginação é infinita. Consequentemente, o empirismo abnegado, limitado ao que é, como da alquimia, perdeu toda a pretensão de ciência. Ao mesmo tempo, a humanidade tornou-se capaz de manipular não apenas a natureza do mundo mas a sua própria, como demonstra a intervenção nos genomas. Mas qual é o significado deste paradoxo de libertar-se das possibilidades do mundo real para dominá-lo? Ou melhor dizendo, no que consiste essa incerteza decorrente deste paradoxo? Se evidência e incerteza se articulam como verso e reverso na ciência moderna, é a análise deste processo que possibilita algum entendimento. Lieber, RR Evidência e incerteza na saúde ambiental. (Painel) In: Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva , 7º , Abrasco, Brasília, DF, 302.08.2003. 2 Produção do conhecimento científico Entender o processo da produção do conhecimento científico é uma necessidade não apenas daquele que faz ciência, mas também daquele que faz uso dos seus resultados, submetendo alguém ou submetendo-se ele próprio aos seus prognósticos. Como foi ensinado por Poincaré (1854-1912)1, a convergência entre a evidência empírica, em sua circunstância particularíssima da observação controlada, e o mundo real vindouro, objeto de circunstâncias próprias daquele novo tempo, só pode se dar pela ponte da formulação teórica. Aquilo que foi obtido no laboratório tem significado restrito à própria observação, sempre sujeita ao erro. É por isso que não se admite em ciência nenhuma extrapolação pura e simples daquilo que se observa. (figura 1). No resultado empírico não há a “verdade” do fenômeno, cabendo à imaginação encontrá-la com o recurso da perfeição do cálculo matemático. A proposição teórica, portanto, é a “verdade do fato”. É verdade porque é perfeita, é perfeita porque é matemática e pertence ao fato porque o mundo empírico liga-se à ela por relações perfeitas (interpolação matemática ajustada). Além disso, ou sobretudo por isso, é verdade “porque funciona”, conforme o pragmatismo de Bacon (1561-1626), e possibilita um “mundo novo” fatual, graças à extrapolação que a função matemática permite. (a): Relações Empíricas (b): Relações Teóricas y y y = f(x) yn y3 contorno inválido y3 y2 y1 y2 y1 x1 x2 X x3 Mundo da Observação Mundo da Imaginação X x1 x2 x3 xn Mundo Inventado Figura 1: Processo de produção e uso do conhecimento científico. (a) As relações empíricas ( Xi e Yi ) correspondem ao mundo observado mas não podem ser extrapoladas, pois contém o erro da observação. (b) Quando uma relação teórica é estabelecida, a extrapolação é possível porque a relação matemática é perfeita, permitindo a invenção do não existente. Todavia, existe uma outra “verdade” contida no processo. A escolha da função matemática (ou relação teórica) não é um processo meramente decorrente das evidências fatuais. O cientista não só usa um conjunto de gêneros de funções preestabelecido, como também “ajusta” ou “concilia” sua Lieber, RR Evidência e incerteza na saúde ambiental. (Painel) In: Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva , 7º , Abrasco, Brasília, DF, 302.08.2003. 3 observações com a função pretendida. Ao se excluir o “idiossincrático”, salva-se o paradigma teórico. Além disso, a pretensa perfeição do processo de passagem do dado empírico para o teórico, decorre do pressuposto de uma lógica no erro! Em outras palavras, as evidências contém erros, mas estes erros são todos da mesma natureza, basta, por exemplo, minimizá-los (processo dos mínimos quadrados). Não surpreende, portanto, que o “mundo criado” seja catastrófico. Surpreendente é o fato do automóvel rodar como pretendido! Ou, rodar quase sempre assim! Também não surpreende que diante da impossibilidade explicativa, proponha-se a complexidade dos fenômenos sob um conceito de não sentido, como a idéia do caos, usando-se justamente um recurso de doação de sentido que são as funções de expoente fracionários para explicá-los (funções fractais) ! Condições da evidência e da proposição teórica O processo científico na produção e uso de conhecimento destaca-se ao valorar simultaneamente tanto o empírico como o imagético. Ao contrário do artesão e do sacerdote, o cientista não lida com a realidade ignorando a reciprocidade destas condições, mas força o seu confronto. Sem teoria, a ciência seria mera técnica, e sem evidência empírica, o discurso converte-se em proselitismo. Todavia, este confronto só é bem sucedido no propósito do conhecimento se houver perfeição. Mas se a matemática garante a perfeição, ela por si mesma não produz nada. É o sujeito que evidencia algo e propõe entendimento. Sendo assim, qual a garantia da veracidade? Foi graças a Descartes (1596-1650) que esta questão foi superada ao configurar claramente as condições da evidência, do pensamento e do sujeito. Embora Descartes seja conhecido pela “dúvida” (própria ao processo de produção), todas as suas proposições relativas à veracidade das evidências, bem como a validade das proposições do pensamento são constituídas a partir de uma certeza. Sem a premissa explicita da existência de um Deus supremo, veraz, infinito e onipotente não se pode garantir evidência, racionalidade ou a possibilidade do homem de se aproximar da verdade do mundo que é divina, enquanto perfeita.2 No sistema cartesiano, a evidência corresponde a verdade se ela for percebida clara e distintamente. Uma evidência particular e atual constrange o sujeito a aceitá-la como verdadeira. O que estabelece a clareza e a distinção é sempre um saber previamente estabelecido, cuja última instância é a existência de um ser perfeito e infinito criador de toda a realidade e da razão humana. Assim, no racionalismo clássico, diante do fenômeno, não cabe a pergunta se a “causa existe” . Como Deus é a razão de todas as coisas, “tudo tem uma causa”. A tradição cartesiana trouxe frutos e tragédias. No afã da busca das leis científicas, foi possível dar causa até mesmo àquilo que, por definição, não deveria ter causa, como nos acidentes. Esta impossibilidade de reconhecer a falta de causa (ou o acaso) se estende até mesmo quando se Lieber, RR Evidência e incerteza na saúde ambiental. (Painel) In: Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva , 7º , Abrasco, Brasília, DF, 302.08.2003. 3 4 pressupõe o aleatório, como nos estudos de risco . Afinal, conforme Einstein (1879-1955), “Deus não joga dados”. A necessidade de pureza da razão impôs a supressão dos afetos. Mesmo na prática médica ou nas finanças públicas, a ciência requer a ausência de compaixões ao propor intervenções “tecnicamente perfeitas”. A indicação dos instrumentos tornou-se mais valiosa que a honradez e o sofrimento, ora é irrelevante, ora converte-se em necessidade. Foi Bacon que estabeleceu um paralelo entre a prática da ciência e o interrogatório.4 A variável deve ser “torturada” e o propósito da “tortura” é evidenciar a verdade que se esconde. Isto porque, a revelação não é expontânea, mas é a essência (a causa!) subjacente nas aparências (o fenômeno), como quis a tradição platônica. Embora dominante, a concepção cartesiana não está, obviamente, livre de críticas na ciência. A fenomenologia, talvez o movimento mais importante da atualidade, destaca o valor do processo de emergência do fenômeno, porque a “produção do conhecimento ocorre como uma co-emergência do fenômeno em questão e de seu observador.”5 Tal postura alarga as perspectivas de entendimento da produção científica, submetida a fortes transformações a partir da teoria da relatividade. O físico contemporâneo, por exemplo, não pergunta porque o elétron se apresenta ora como partícula ora com uma onda (a causa), mas apenas como se manifestam estas propriedades. Na perspectiva fenomenológica a evidência não é uma simples e cuidadosa captação dos sentidos, mas é o resultado de um processo sobretudo mental. Desde o renascimento, ficou claro que o ato de ver não cabe apenas ao olho e a teoria da gestalt do anos 20 vai valorizar a forma, demostrando que enxerga-se a partir de um processo, combinando familiaridades, estranhamentos e destaques, por exemplo. Em outras palavras, o ato de apreender o mundo real decorre de uma construção onde a cultura tem papel preponderante. Além disso, a metapsicanálise estruturada por Lacan (1901-1981) estabelece uma tripartição entre o real, o simbólico e o imaginário, onde o real se apresenta enquanto aparência da coisa.6 Em outras palavras, a evidência (ou o fato) é uma reconstrução da realidade, realizada por imagens conscientes e inconscientes, conduzidas em parte por conceitos, teorias e recalques. Uma evidência científica como uma imagem radiológica, de tomografia ou de ressonância magnética só tem significado ou sentido graças à combinação disto tudo, capacitando o cientista à esperança ou à aflição. A teoria, por sua vez, não é resultado de um exercício acético, objetivo, mas sim fruto de uma concepção estética que busca reconhecer, destacar ou mesmo estabelecer no mundo uma relação de harmonia coerente com os valores de uma época para adequação dos dados. Como tudo se dá no mundo das representações, não é sem razão o encantamento da ciência pela simplicidade dos paralelismos e das simetrias, como o “cristal da vida” de Schrödinger (1887-1961) ou a dupla hélice Lieber, RR Evidência e incerteza na saúde ambiental. (Painel) In: Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva , 7º , Abrasco, Brasília, DF, 302.08.2003. 5 Watson & Crick (1953). Na saúde ambiental não é diferente e os pesquisadores vão destacar “sistemas” e medir “equilíbrios”, tratando o mundo como mimese da harmonia e da perfeição.7 Significados da incerteza Ainda que se possa assumir a exclusão total da incerteza sob a certeza absoluta (o fundamento metafísico de Descartes), a extrapolação ainda é intrinsecamente débil. Este aspecto tem sido estudado mais detidamente nas últimas décadas, estabelecendo-se classes específicas de incerteza (dimensional, estrutural, temporal e traslação).8 Em outras palavras, o mundo é por demais “complexo” para as condições do passado estabelecerem o acontecimento futuro, como pretendem alguns analistas de risco. Todavia, conceber a incerteza não é tão fácil. Todo cientista, enquanto um ente social, está sujeito às mesmas angústias e necessidades de razão e sentido para a sua condição de ser. A relação metafísica é e será sempre bem mais acolhedora do que a concepção trágica de um “ser para a morte”, submetido aos acasos e vicissitudes da existência. Por outro lado, em nome das certezas e das boas intenções o mundo tem conhecido muitas tragédias, em particular graças às panacéias recorrentes. Em prol da solução definitiva e simultânea da fome, da doença e da energia, já houve apologias à síntese química, à energia nuclear e agora, à manipulação genética. Os resultados da “revolução verde”, do DDT e de Chernobyl são bem conhecidos. Dos transgênicos “ainda” não se sabe. Mesmo assim, prevalecem “certezas” e, com isso, grassa a opressão. Pois é no contexto da incerteza que viceja a esperança, o juízo e a valoração da subjetividade, capaz de concretizar o inusitado.9 Na ação livre não há certezas. A refutação do determinismo e da onipotência das leis, é o alicerce da construção de um mundo de possibilidades. Só na atitude tolerante e acolhedora das idéias e desejos é que o impasse entre o desenvolvimento, a preservação e a proteção poderá ser ultrapassado respeitando a condição humana. Notas e referências 1. Poincaré, H. (1902) A ciência e a hipótese. 2ed, Brasília, ed. UnB, 1988. 2. Landim Filho, R. Evidência e verdade no sistema cartesiano. São Paulo, ed. Loyola, 1992. 3. Lieber RR & Romano-Lieber NS O conceito de risco: Janus reinventado. In: Minayo MCS & Miranda AC Saúde e ambiente sustentável: estreitando os nós. Rio de Janeiro, Ed. Fiocruz/Abrasco, 2002. p.69-111. 4. Oliveira, BJ Francis Bacon e a fundamentação da ciência como tecnologia. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002. 5. Manifesto assinado por vários pesquisadores reunidos na Universidade de Stanford para discutir a interdisciplinaridade. Ciência nova. Folha de São Paulo (Mais!), 24.nov.2002. 6. Safatle, W.(org) Um limite tenso. São Paulo, Ed. Unesp. 2003. 7. Lieber RR & Romano-Lieber NS Causalidade e fatores de risco: Transcendência e imanência na educação ambiental. Educação: Teoria e prática (IBC-Unesp-RC), 9(16):79, 2001. (cd-Rom). 8. Rowe, WD. Understanding uncertainty. Risk analysis. 14(5):743-50, 1994. 9. Lieber, RR. & Romano-Lieber NS. Risco, incerteza e as possibilidades de ação na saúde ambiental. Rev. Bras. Epidemiol., 6(2):121-34, 2003.