VI Seminário de Iniciação Científica – SóLetras - 2009 ISSN 1808-9216
A INFLUÊNCIA LOBATIANA NO DESENVOLVIMENTO DA
LITERATURA INFANTIL BRASILEIRA
Profª TIUMAN, Patrícia E. B.
(Mestranda – UEM)
Introdução
O ser humano, ao contrário dos outros animais, não possui um
padrão comportamental inato, ele o constrói através da educação. Para
desenvolver e modificar o seu comportamento o homem depende de suas
interpretações sobre as diferentes manifestações culturais das quais tem
acesso. Neste estudo trataremos da que julgamos ser a mais importante
delas, a literatura. A obra literária apresenta de forma fictícia o mundo
real, recorta-o, sintetiza-o e oferece um ponto de vista sobre o fato.
Permite ao leitor se familiarizar com a situação, fornece padrões para que
possa interpretá-la. Esses padrões podem solidificar a ideologia de
determinado grupo social ou subvertê-los. Uma mesma obra pode
apresentar pontos de vista antagônicos, mas possíveis e aceitáveis, que
instigam o leitor a se posicionar frente à obra e, também, aos
acontecimentos cotidianos.
Neste estudo, trataremos da gênese da literatura infantil, com
ênfase no seu desenvolvimento em solo brasileiro, do livro enquanto
suporte para o texto literário e de como a ideologia está presente nas
obras destinadas às crianças. Posteriormente, analisaremos a obra Dom
Quixote das crianças, tradução e adaptação de Monteiro Lobato.
Segundo Cademartori em seu texto O que é literatura infantil?
a literatura propicia à criança uma nova maneira de organizar as suas
percepções sobre o mundo, possibilitando o desenvolvimento do seu
senso crítico e de novos padrões para sua vivência. A autora afirma que:
a principal função que a literatura cumpre junto a seu leitor é
a apresentação de novas possibilidades existenciais, sociais,
políticas e educacionais. É nessa dimensão que ela se
constitui em meio emancipatório que a escola e a família,
como instituições, não podem oferecer. (1986, p. 13 – 14)
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Por meio da literatura as crianças podem ter acesso a muitos
assuntos e a pontos de vista diferentes sobre o mesmo tema. Podem
conviver com a diversidade de opiniões e viver, por meio da ficção,
inúmeras aventuras. A literatura infantil não possui um “molde” próprio.
Assim, como a criança que, ao contrário do adulto, não possui um
horizonte de expectativas já formado, mas sim em formação, estando
suscetível às mais diversas formas artísticas.
Dessa forma, como alerta Ana Maria Machado em Ideologia e
livro infantil, os livros infantis são facilmente utilizados como veículos de
transmissão de ideologias. O leitor mirim não possui, na maioria das
vezes, pré-requisitos para perceber a ideologia que perpassa o texto que
lhe é apresentado. Esses livros, desde sua origem, são considerados
produtos da cultura de massa e, antes de atender aos anseios de seu
público leitor, as crianças, precisam satisfazer os desejos educativos e
moralizantes de seu público consumidor, o adulto, sejam eles os pais ou
os professores.
O livro infantil é escrito, editado, publicado, distribuído,
indicado e comprado pelo adulto. Cabe à criança leitora o papel de
coadjuvante em todo esse processo. Como afirma Zilberman:
Se a obra literária, por um lado, pode oferecer um horizonte
de criatividade e fantasia enquanto ficção, solidarizando-se
com o mundo infantil, embora reforce a sua diferença, por
outro ela reproduz, por seu funcionamento, os confrontos
entre a criança e a realidade adulta. E pode fazê-lo de
maneira mais eficiente, porque atinge o âmago do universo
infantil, alcançando uma intimidade nem sempre obtida
pelos mais velhos; e vem a converter-se em hábito, o da
leitura, uma das metas prioritárias do ensino e da arte
literária, que precisa estimular intermitentemente seu
próprio consumo. (2003, p.54)
Somente após os anos sessenta é que se percebeu que os
livros estavam moldando inadequadamente as crianças e os jovens. Como
afirma Machado “(...)não existe objeto escrito que seja ideologicamente
inocente.”(1999, p. 37)
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Monteiro Lobato, o Dom Quixote Brasileiro
Segundo Márcia Camargos (2002), Monteiro Lobato foi um
brasileiro de personalidade forte e empreendedora. O autor escrevia em
uma linguagem objetiva, clara, direta visando o entendimento de público,
sem, contudo, deixar de ser instigante e questionador.
Acredita-se que, por meio da ficção, ou seja, da literatura
muitos assuntos subjetivos podem ser discutidos e apreciados em sala de
aula, visto que, eles não possuem uma verdade absoluta a ser descoberta,
mas sim, verdades relativas oriundas de posições opostas.
Analisaremos, neste artigo, a adaptação de Monteiro Lobato
do clássico universal de Miguel de Cervantes Saavedra, Dom Quixote de
La Mancha que, na versão lobatiana, foi nomeado de Dom Quixote das
Crianças. No entanto, apesar de sabermos que se trata de uma versão da
obra de Cervantes esta não será analisada. O estudo realizado neste
artigo se concentrará som na obra lobatiana, sendo que, recorreremos à
versão
traduzida
pelos
Viscondes
de
Castilho
e
Azevedo
quando
necessário, visto que, esta foi a versão utilizada por Lobato para a
elaboração da adaptação que analisaremos.
A versão original da obra Dom Quixote de La Mancha,
publicada entre 1605 e 1615, composta por cento e vinte e seis capítulos,
apresenta um fidalgo empobrecido do qual não se sabe com certeza o
nome, mas que ficou imortalizado por Quijana que, enlouquecido pela
leitura das novelas de cavalaria, decide partir pelo mundo, trajado de
cavaleiro, procurando fazer o bem a todas as pessoas e combater as
injustiças. Este fidalgo assume a identidade de Dom Quixote de La
Mancha, o cavaleiro da triste figura. Elege como a dama de seus amores a
camponesa, criadora de porcos, Aldonça cujo nome se transforma em
Dulcinéia del Toboso. Seu velho e magro cavalo assume a figura do
imponente Rocinante e o camponês Sancho se torna seu fiel escudeiro.
O herói de Cervantes viaja pelo mundo à procura de aventuras
dignas dos grandes cavaleiros. Para Dom Quixote uma estalagem é um
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palácio, moinhos de vento são gigantes, ovelhas são exércitos. A obra
possui uma linguagem clássica, destinada ao público adulto como
podemos observar no fragmento a seguir:
Indo, pois, caminhando o nosso flamante aventureiro,
conversava consigo mesmo e dizia: “Quem duvida de que lá
para o futuro, quando sair à luz a verdadeira história dos
meus famosos feitos, o sábio que os escrever há de pôr,
quando chegar a narração desta minha primeira aventura
tão de madrugada, as seguintes frases: ‘Apenas tinha
rubicundo Apolo estendido pela face da ampla e espaçosa
terra as doiradas melanias dos seus formosos cabelos, e
apenas os pequenos e pintados passarinhos, com as suas
farpadas línguas, tinham saudado, com doce e melíflua
harmonia, a vinda da rosada Aurora, que, deixando a
branda cama do zeloso marido, pela portas e varandas do
horizonte manchego aos mortais se mostrava, quando o
famoso cavaleiro Dom Quixote de La Mancha, deixando as
ociosa penas, se montou no seu famoso cavalo Rocinante e
começou a caminhar pelo antigo e conhecido campo de
Montiel?’” (SAAVEDRA, 2002, p. 35)
O trecho acima foi suprimido na versão lobatiana. Monteiro
Lobato, em sua adaptação, inicia a obra com Emília explorando a
biblioteca de Dona Benta. A boneca encontra dois volumes enormes de
Dom Quixote de La Mancha que a custo de muito trabalho e do
esmagamento de Visconde ela consegue retirar da estante. Quando Dona
Benta e as crianças chegam à casa se deparam com Emília vendo as
figuras do livro. Pedrinho
faz um suporte de madeira para Dona Benta
apoiar o livro que era muito grande e ela inicia a leitura para as crianças.
A avó seleciona os trechos mais interessantes para serem lidos e os que
ela julga inadequados pela sua ideologia como quando Sancho e sua
esposa trocam xingamentos, os poemas, as musicas ou trechos muito
descritivos como o fragmento
exposto anteriormente
ela suprime.
Percebe-se então, que Dona Benta, lê a obra de Cervantes previamente e
escolhe os trechos que ira contar.
Dessa maneira as crianças são levadas a conhecer as
peripécias do fidalgo espanhol. Desde seu enlouquecimento, passando por
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suas lutas com moinhos de vento, rebanhos de carneiros até sua derrota
pela morte.
A história é composta por vinte e nove capítulos curtos. Em
alguns momentos a narrativa é interrompida para que os personagens do
sítio opinem sobre as atitudes das personagens do livro que Dona Benta
está lendo.
__ Ai, ai! – suspirou Emília. – Quem dera ter um cavaleiro
andante que corresse mundo berrando que a mais linda de
todas as bonecas era a Senhora Emília del Rabicó...
__ Que adiantava isso, boba? – disse Narizinho.
__ Adiantava que eu ficaria bem ganjenta cá comigo. E
também poderia receber muitos presentes. Com certeza
esse biscainho, quando foi pôr-se às ordens da tal Dulcinéia,
lhe levou algum presente.
__ Levou nada gritou – Pedrinho. – De medo quando D.
Quixote os derrotava, esses patifes prometiam tudo como
aquele patrão do Andrezinho. Mas logo que o cavaleiro se
afastava, era só nomes feios que diziam contra ele e mais a
Dulcinéia. Se você fosse a Dulcinéia, Emília, tinha de andar
com a orelha em fogo o dia inteiro, (2004, p. 27 e 28)
A linguagem da obra original pode ser considerada um dos
obstáculos para a leitura do público infanto-juvenil. Quando se trata de
adaptação de obra adulta para o público infantil a linguagem é de extrema
importância. Visto que, ela se caracteriza não somente por ser um
instrumento de comunicação, mas também fonte de desentendimentos,
de ambiguidades e mal entendidos. A língua está impregnada pela história
do
“falante”
que
quando
a
utiliza
a
transmite
consciente
ou
inconscientemente e, como não poderia ser diferente o “ouvinte” a
decodifica e interpreta de acordo com sua história de vida. Portanto,
afirmar que a linguagem é única é um equívoco. Se ela não é
transparente, como podemos afirmar que a tradução de uma obra é fiel ao
conteúdo original? É uma tradução ou uma adaptação? Qual termo seria
mais específico: adaptação ou paráfrase?
Goldin em La invención del niño: digresiones en torno a la
historia de la literatura infantil y la historia de la infancia. declara: “cada
lengua estabelece um recorte singular sobre la realidad. No hay
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equivalências exactas. Toda traducción es simultáneamente traición y
recreación.” (2001, p. 3)
paráfrase
Affonso
Romano
e
afirma
Cia,
de
que
Sant’Anna,
“qualquer
em
seu
tradução
livro
já
Paródia,
seria
uma
interpretação” (p.21). Na obra analisada encontramos uma interpretação
de Lobato sobre o que as crianças brasileiras do início do século XX
deveriam conhecer a respeito da obra de Cervantes.
De posse destas definições, iniciaremos a nossa análise pela
linguagem utilizada por Monteiro Lobato na adaptação do clássico
universal Dom Quixote de la Mancha para crianças brasileiras.
Logo no início da obra lobatiana percebemos que irá ocorrer
uma adaptação da linguagem, Emília ao ler Saavedra com dois as resolve
simplificar a linguagem riscando um deles. “_ Saavedra! – Para que esses
dois aa aqui, se um só faz o mesmo efeito? – e, procurando um lápis,
riscou o segundo a.” (p.8 e 9). Dessa forma, o autor antecipa que, nesta
obra, as informações que ele julgar desnecessárias serão retiradas e que a
linguagem da obra original será reformulada de maneira que as crianças
brasileiras possam entender. Isso ocorre também no trecho em que Dona
Benta inicia a leitura da obra original e Emília rejeita novamente a
linguagem de Cervantes:
__ Ché! – exclamou Emília. __ Se o livro inteiro é nessa perfeição
de língua, até logo! Vou brincar de esconder com o Quindim.
Lança em cabido, adarga antiga, galgo corredor... Não entendo
essas viscondadas, não... (LOBATO, 2004, p. 10) (grifo do autor)
Dona Benta explica às crianças que se trata de um texto
clássico escrito “em alto estilo, rico de todas as perfeições e sutilezas de
forma”. (2004, p.10) Dessa maneira, o autor realça a importância da obra
espanhola, sem menosprezar o intelecto das crianças do sítio, a obra
passa a ser narrada por Dona Benta. Ocorre, a partir deste momento,
uma aproximação entre a linguagem da obra universal e a obra que Dona
Benta recria ao contá-la às crianças do sítio.
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Em vários momentos o narrador avisa que o texto não está
sendo narrado na íntegra, que alguns episódios foram suprimidos e outros
resumidos. Dessa forma, o leitor mirim é instigado a ler o original assim
que se julgar capaz.
O autor retira no decorrer do texto muitos elementos que são
desnecessários para o entendimento do enredo pelo leitor mirim. Realiza,
assim, um enxugamento da narrativa. A linguagem é a mais próxima
possível da criança brasileira. Os períodos são curtos e não há excessos de
descrições o que torna a narrativa mais rápida e envolvente para o leitor
em formação. Como podemos observar no trecho a seguir, observe como
Dulcinéia é descrita nas duas obras:
...havia certa moça lavradora de muito bom parecer, de
quem ele em tempos andara enamorado, ainda que,
segundo se entende, ela nunca o soube, nem de tal
desconfiou. Chamava-se Aldonça Lourenço; a esta é que a
ele pareceu bem dar o título de senhora dos seus
pensamentos; e, buscando-lhe nome que não desdissesse
muito do que ela tinha, e ao mesmo tempo desse seus ares
de princesa e grã-senhora, veio chama-la “Dulcinéia del
Toboso”, por ser El Toboso a aldeia de sua naturalidade;
nome este, em seu entender, musical, peregrino, e
significativo, como todos os mais que a si e às suas coisa já
havia posto.” (2002, p.34)
D. Quixote pensou. Por fim lembrou-se de uma camponesa
das vizinhanças a quem andou arrastando a asa quando
mais moço, chamada Aldonça. Mas Aldonça, nome muito
vulgar naquele tempo, não ficava bem à grande dama do
cavaleiro andante, e ele batizou-a de Dulcinéia del Toboso.
Toboso era a aldeia onde morava Aldonça. (2004, p. 12)
Lobato ao adaptar a obra promoveu, também, algumas
mudanças na forma. Com o intuito de tornar a narrativa mais ágil e mais
próxima do leitor infante ele optou por capítulos curtos. O autor,
brilhantemente utilizou o artifício de iniciar cada capítulo com um título
que o resume, instigando, dessa forma, o leitor a continuar a leitura que
flui com leveza e rapidez. Como no capítulo XI que recebe o seguinte
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título: “Grande combate com arrieiros. Pancadaria em D. Quixote e
Sancho” (2004, p. 33)
Com relação às ilustrações, elas antecipam o desenrolar da
história e foram utilizadas por ser a primeira forma de leitura que a
criança realiza, promovendo, assim, uma maior integração entre a obra e
o leitor infante. Monteiro Lobato sempre se preocupou com a qualidade
estética das obras publicadas em sua editora. Ele cuidava pessoalmente
da qualidade tipográfica tanto das letras quanto das ilustrações.
O narrador nesta obra, e a narradora Dona Benta, conseguem
manter a atenção da criança leitora por evitar descrições longas e por
utilizar mecanismos de suspense. Lobato utiliza não só um narrador, mas
sim vários. O modelo utilizado por Lobato é o de uma narrativa aberta, na
qual pontos de vista diferentes coexistem. Existe o narrador em terceira
pessoa que narra os acontecimentos do sítio. Dona Benta narra a história
do herói da Mancha e, por vezes apresenta sua opinião sobre os fatos, as
crianças interferem na narração e enfocam as situações sob diferentes
pontos de vista. Ocorrem, também, muitos diálogos que anulam a
presença do narrador. O leitor dessa obra se depara com diversas
perspectivas que são, em alguns momentos, antagônicas como quando
Emília e Dona Benta discordam sobre a loucura ou quando a boneca não
aceita a morte do fidalgo.
Por várias vezes Narizinho tentou contar a Emília a morte
do cavaleiro da Mancha. Emilia tapava os ouvidos.
__ Morreu, nada! – dizia ela. – Como morreu, se D. Quixote
é imortal?
Dona Benta ouvia aquilo e ficava pensativa...” (2004, p.91)
Dona Benta pode ser nomeada de narradora leitora. Pela
maneira como ela narra a história percebemos que há uma leitura prévia
que organiza os trechos que serão contados, quais serão omitidos e qual a
melhor forma de dizê-los carinhosamente, de maneira clara e envolvente.
A opção por uma avó narradora imprime um caráter afetivo ao texto.
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Durante a narrativa os personagens fazem questionamentos
sobre algumas palavras ou comportamentos que não compreendem. É
nesse momento que o autor, por meio de suas personagens, que
representam as crianças brasileiras, deixa transparecer a sua ideologia,
como no trecho a seguir:
D. Quixote não é somente o tipo de maníaco, do louco. É o
tipo do sonhador, do homem que vê as coisas erradas, ou
que não existem. É também o tipo do homem generoso, leal
honesto, que quer o bem da humanidade, que vinga os
fracos e inocentes – e acaba sempre levando na cabeça,
porque a humanidade, que é ruim inteirada, não
compreende certas generosidades. (2004, p.11) (grifo
nosso)
Por meio desse comentário percebemos a desilusão de Lobato
com o mundo adulto e sua concepção desiludida da humanidade.
Compreendemos
que
as
crianças
do
sítio
representam
a
infância
brasileira. Lobato investe na formação de cidadãos críticos como as
crianças do sítio que dialogam e, por vezes, discordam do narrador do
livro.
No decorrer da história a narrativa é interrompida várias
vezes. Nestes momentos as personagens questionam Dona Benta sobre
palavras que não entendem e, principalmente, opinam sobre o que está
sendo contado. As crianças, nessa obra, não são meros espectadores, elas
se tornam cúmplices dos personagens de Cervantes, os defendem e
chegam até a “encarná-los” como a Emilia:
Emília anda lá fora fazendo as maiores loucuras. Virou
cavaleira andante e obrigou Rabicó a virar Rocinante.
Arranjou escudo lança, espadinha e até armadura. E quer
atacar tia Nastácia dizendo que não é tia Nastácia
nenhuma, e sim a giganta Frestona. O pobre Visconde
segue atrás como escudeiro, vestido de uma roupa larga,
que Emilia encheu de macela para que ficasse gordo e
barrigudinho como Sancho. Só vendo, vovó! Está doida,
doida... (2004, p.72)
Para as crianças não importa o quão louca é a mente de D. Quixote, ele
tem um ideal e luta por ele. Assim como elas que se identificam com um
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personagem e tentam protegê-lo. Emilia, como já foi exposto, incorporou
D. Quixote, mas também, quis ter alguém que a amasse tanto quanto o
herói amava Dulcinéia, Narizinho se compadeceu de Sancho e Pedrinho
queria ser tão valente quanto D. Quixote.
Considerações finais:
Ressaltamos que este estudo analisou alguns elementos de
uma das adaptações lobatianas. No entanto, outras obras da literatura
universal também foram adaptadas ou parafraseadas tendo como público
alvo não somente as crianças, mas também os adultos.
Verificamos com este estudo como Monteiro Lobato conseguiu,
por meio da adaptação, aproximar o clássico Dom Quixote das crianças
brasileiras tanto do início do século XX quanto as da atualidade.
A criança, enquanto leitor em formação, pode e deve ter
contato com os clássicos universais por meio da leitura de adaptações de
qualidade. A obra adaptada pode se configurar como uma ponte entre o
leitor principiante e o clássico. Contudo, o leitor deve ser desafiado a ler
as obras em sua originalidade.
A pesquisadora Nelly Novaes Coelho afirma que “é pelo
imaginário que o eu pode conquistar o verdadeiro conhecimento de si
mesmo e do mundo que lhe cumpre viver. Apenas a razão, a lógica já não
são suficientes.” (2000, p. 131) A escola deveria utilizar a literatura como
forma de suprir a lacuna deixada pelos outros textos cuja função é
estritamente didática e, não didatizar os textos literários como costuma
acontecer. Os temas transversais, por exemplo, poderiam ser introduzidos
no ambiente escolar por meio dos textos literários que podem apresentar
pontos de vista divergentes e ao mesmo tempo pertinentes sobre o
mesmo tema. Dessa forma, a instituição escolar estaria formando
cidadãos conscientes das possibilidades de leitura de outros livros e da
própria vida.
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