Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
DIREITO
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Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
SUMÁRIO
EVOLUÇÃO E LACUNAS LEGISLATIVAS DA UNIÃO ESTÁVEL................................ 3
O DIREITO A SER HUMANO ............................................................................................... 18
O MÍNIMO EXISTENCIAL .................................................................................................. 22
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DO SÓCIO NA EMPRESA LIMITADA............... 35
SISTEMA PENAL E EXCLUSÃO SOCIAL – QUESTÕES DE CLASSE
SOCIOECONÔMICA .............................................................................................................. 49
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EVOLUÇÃO E LACUNAS LEGISLATIVAS DA UNIÃO ESTÁVEL
Kátia Lopes Bertaglia
1 INTRODUÇÃO
Este artigo não busca um posicionamento quanto à união entre pessoas do mesmo ou de
sexos opostos, e sim procura demonstrar que a união estável existe e necessita de solução
judiciária sem repúdios e discriminações e que ela é reconhecida e positivada em lei, sob a
proteção do Estado como entidade familiar.
Em virtude de o homem necessitar de afeto e de se socializar, a família não-unida pelo
matrimônio foi introduzida em nosso ordenamento jurídico com o passar dos anos. Durante
muito tempo, o casamento era a única forma de constituição de família, pois se negavam
quaisquer direitos decorrentes do concubinato.
A união estável surgiu como uma alternativa para o casamento, onde o legislador
entendeu ser necessária uma proteção jurídica às famílias que não queriam se consubstanciar
através da aliança matrimonial e tê-las como instituição de família.
As mudanças ocorreram a partir da Constituição Federal de 1988, que reconheceu a
união estável como entidade familiar em seu artigo 266, parágrafo 3º, o que permitiu leis
especiais, tais como: a de n. 8.971/94, que definiu como “companheiros”, a relação entre o
homem e a mulher que mantenham união comprovada na qualidade de solteiros, separados
judicialmente, viúvos ou divorciados por mais de 5 (cinco) anos ou que tenham prole; e a Lei n.
9.278/96, que modificou esse conceito e omitiu os requisitos pessoais, tempo de convivência e a
existência da prole.
Finalmente, o estudo avança até o novo Código Civil brasileiro, que está em
vigor desde o início do ano de 2003, verificando a maneira como a união
estável foi abordada. Analisando os artigos 1.723 a 1.727, que disciplinam o
assunto, podemos concluir que a união estável encontra-se bem sedimentada,
com a criação de impedimentos, deveres, regime e partilha de bens entre os
conviventes. Ficou apenas uma lacuna, pois o legislador deixou de regular
efeitos da relação espúria, que passou a ser considerada legalmente como
concubinato. Tal tarefa novamente caberá à doutrina e à jurisprudência.
Entretanto o avanço do direito de família e a conseqüente mudança de conceito
que seja família é sensivelmente sentido, tendo o concubinato/união estável
contribuído significativamente para isso.1
Dispensa-se no novo Código Civil, o requisito temporal de 5 (cinco) anos, para o
reconhecimento da união estável.
Ninguém pode prever que o relacionamento se tornará uma união estável. No início, o
casal pode não ter a intenção de constituir uma família, mas com o passar do tempo, isso se torna
uma realidade.
A Constituição Federal de 1988 reza que:
Art.226 §3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável
entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento.
1
ERCOLE, Maurício José. A evolução da união estável no direito brasileiro. Revista do Instituto de Pesquisas e
Estudos: divisão jurídica. Instituição Toledo de ensino de Bauru. São Paulo, n. 1, p. 525-527, maio/ago 2005.
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A união estável, até há pouco tempo, não fazia parte do direito de família, e sim apenas
do direito civil, no entanto as questões judiciais versavam com efeitos patrimoniais.
O Código Civil de 1916 não reconhecia a união estável como entidade familiar, que
passou a considerá-la somente no novo Código Civil (Lei n. 10.406/02), mais precisamente no
Título III, do livro IV, que dispõe sobre o Direito de Família regulamentada do artigo 1.723 ao
1.727.
Percebe-se, assim, que no texto constitucional vigente, o conceito de família foi
completamente alterado. Neste sentido, a família continua a ser a base absoluta da sociedade,
contando com a especial proteção do Estado, que deve defendê-la, já que também se molda na
organização familiar.
A grande modificação foi a dissociação do casamento como única forma de constituição
de família legítima, passando-se a considerar também como entidade familiar a união estável,
que antes era vista como imoral e pecaminosa, além monoparental, formada por qualquer dos
genitores e seus descendentes.
A interpretação dominante, expressa no artigo 226 da Constituição Federal, tutela três
tipos de entidades familiares: o casamento; a união estável; e a entidade formada por um dos pais
e seus descendentes.
O avanço da questão tornou-se de suma importância para a evolução dos efeitos
advindos da união estável, afastando-se graves injustiças presentes em leis ultrapassadas. Neste
sentido, o Supremo Tribunal Federal acabou editando quatro súmulas jurisprudenciais a respeito,
trazendo justiça e conforto aos relacionamentos não-formalizados pela celebração do casamento:
Súmula 35. Em caso de acidente do trabalho ou de transporte, a concubina tem
direito a ser indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia
impedimento para o matrimônio.
Súmula 380. Comprovada a existência de sociedade de fato entre os
concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio
adquirido pelo esforço comum.
Súmula 382. A vida em comum sob o mesmo teto, ‘more uxorio’, não é
indispensável à caracterização do concubinato.
Súmula 447. É válida a disposição testamentária em favor de filho adulterino
do testador com sua concubina.
A proposta deste trabalho é a de apresentar sucintamente a visualização do evoluir da
união estável, conceito, direitos, deveres dos conviventes, lacunas e mudanças legislativas, que
se verificaram ao longo dos últimos anos, numa demonstração que não é só através do casamento
que se constitui família, mas também através da união estável.
2 CONCEITO DE UNIÃO ESTÁVEL
União estável é ausência de matrimônio, pois o próprio texto legal diz que “a lei
facilitará a sua conversão em casamento”. Pode a união estável ser prolongada, com o fim de
satisfação sexual, assistência mútua e dos próprios filhos, pois a lei não se refere quanto ao prazo
de duração para que a união seja reconhecida, note-se que, em cada caso concreto, o juiz é quem
decide se a convivência transformou-se em uma união estável ou não, portanto, é importante
reunir todo tipo de prova que se possa comprovar a união, como fotos, cartas, contas de
residência, notas fiscais, presentes, etc.
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Cercada de mistérios e dúvidas para muitos, alguns imaginam que união estável seria
um verdadeiro casamento ou um namoro. O ordenamento jurídico-pátrio determina que a
conversão da união estável em casamento seja facilitada.
A união estável inicia-se com a afeição recíproca, ao gerar assistência mútua e
conjugação de esforços para que, através da convivência, seja atingido o bem comum.
A união estável colocou o concubinato sob regime de absoluta legalidade, hoje seu
conceito como entidade familiar vem expresso no Código Civil de 2002:
Art. 1.723. E reconhecida como entidade familiar a união estável entre o
homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e
estabelecida com o objetivo de constituição de família.
Art. 1.727. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de
casar, constituem concubinato.
O termo concubinato sempre soou como algo pejorativo, por isso foi substituído por
união estável, que é a verdadeira definição da convivência heterossexual sem casamento.
Concubina era a mulher que tinha com o homem relações carnais.
Art. 1.724. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão aos deveres
de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
Na união estável, presume-se a idéia de fidelidade recíproca entre os companheiros,
residência sob o mesmo teto, continuidade das relações sexuais, inexistência de impedimentos
matrimoniais e a notoriedade da união estável.
.
Daí, numa rápida definição, poder-se caracterizar a união estável como a união
do homem e da mulher, fora do matrimônio, de caráter estável, mais ou menos
prolongada, para o fim da satisfação sexual, assistência mútua e dos filhos
comuns e que implica uma presumida fidelidade da mulher ao homem.2
Há casos em que se pode conceber união estável entre homem casado com mulher
solteira, separada de fato ou judicialmente. É certo que, o separado de fato ou judicialmente
continua casado, pois a separação é a circunstância de um novo estado civil, porém, desprovido
de compromissos conjugais como a fidelidade, é o poder viver uma união estável paralela ao
casamento, aplicando-se as regras do Direito Obrigacional, Súmula 380 do STF.
Já Sílvio de Salvo Venosa leciona que na união estável o casal vive como se casados
fossem, é um fato jurídico, que gera efeitos jurídicos.
3 EVOLUÇÃO HISTÓRICA
O Brasil nunca tipificou o concubinato como crime, mas também não o regulamentava.
Já que a família deveria ser calcada no casamento, um relacionamento extramatrimonial não
poderia ser reconhecido como família. Essa falta de regulamentação não se configura numa
repulsa ao concubinato, e sim, na defesa da família legítima formada pelo casamento, apesar de
essas relações concubinárias serem marcantes como fato social.
A união estável é um instituto com formação na França, no século XIX, tratando-se do
antigo concubinato. Na época imperial, as leis brasileiras seguiam as Ordenações de Portugal,
2
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito de família. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6, p. 287.
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que se colocavam contrárias às relações concubinárias, as quais eram igualadas à mancebia, com
fundamento nos ensinamentos da Igreja Católica.
A Igreja Católica sempre teve influência sobre a família. Para confirmar a assertiva,
estão os impedimentos matrimoniais na legislação civil, previstos pelo Direito canônico.
Mas com o passar do tempo, com as transformações sociais, a família brasileira acabou
se adaptando às novas realidades, ao contribuir para o alargamento do conceito de família, a
ponto de não mais restringi-lo ao casamento.
No tocante à esfera constitucional, o texto de 1824 nada mencionou sobre a família ou
mesmo sobre o casamento, já a Constituição Federal de 1891, apesar de não dispor um capítulo
especial à família, reconheceu os efeitos apenas do casamento civil. Por outro lado, a
Constituição de 1934 prescreveu capítulo próprio ao instituto, estabeleceu a constituição da
família brasileira pela indissolubilidade do casamento civil. No entanto, o casamento, por muito
tempo, foi a única forma de constituição de família. Esse princípio foi mantido nos textos
constitucionais de 1937, artigo 124; 1946, artigo 163; 1967, artigo 167; 1969, artigo 175.
No Código Civil de 1916, a família é aquela espelhada no Direito Napoleônico, ou seja,
hierarquizada e matrimonializada, focada na procriação, formação de mão-de-obra, obtenção e
transmissão de patrimônio e fonte de aprendizado individual.
Já o atual Código Civil demonstra a preferência pela família com valores tradicionais,
com o homem exercendo o pátrio poder.
Com o advento da Lei n. 883/49, o filho tido fora do casamento pode ser reconhecido
por qualquer dos pais. Em 1962, o Estatuto da Mulher Casada, Lei n. 4121, consolidou o início
da emancipação da mulher dentro do casamento, ao passar do status de relativamente incapaz
para absolutamente capaz dentro do matrimônio e passar a ser considerada como colaboradora
do marido na sociedade conjugal.
Em 1977, com a Lei n. 6515 (Lei do Divórcio), finalmente impuseram normas
concernentes à dissolução do casamento, quebrando os valores religiosos embutidos nesse
instituto.
Com o advento do Código Civil de 1916, a situação do concubinato não melhorou. O
legislador, mais uma vez, se omitiu sobre o assunto, entretanto, inseriu em seu texto regras
repressoras ao concubinato, numa evidência que, nessa época, a relação extraconjugal, com ou
sem impedimento matrimonial, não era bem vista, tanto pela sociedade quanto pelo ordenamento
jurídico.
No entanto, o Código Civil Brasileiro de 1916, apesar de não regulamentar o
concubinato, definiu sanções a serem aplicadas a essas relações.
A união estável, embora antiga, não era exclusiva, principalmente no intuito de procriar.
Com as relações contemporâneas estreitas e imposições religiosas, o Estado assumiu a proteção e
regulamentou a união estável. O Código Civil de 1916 não reconhecia filhos frutos de relações
incestuosas ou adúlteras, reconhecendo tão-somente os havidos na constância do casamento.
A união entre o homem e a mulher, sem casamento, foi chamada durante longo
período histórico, de concubinato. O Código Civil de 1916 continha alguns
dispositivos que faziam restrições a esse modo de convivência, proibindo, por
exemplo, doações ou benefícios testamentários do homem casado `concubina,
ou a inclusão desta como beneficiária de contrato de seguro de vida. Aos
poucos, no entanto, a começar pela legislação previdenciária, alguns direitos da
concubina foram sendo reconhecidos, tendo a jurisprudência admitido outros,
como o direito à meação dos bens adquiridos pelo esforço comum. As
restrições existentes no Código Civil passaram a ser aplicadas somente aos
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casos de concubinato adulterino, em que o homem vivia com a esposa e,
concomitantemente, mantinha concubina.3
Essas distinções acabaram com o advento da Lei do Divórcio nº 6.515/77, que concedeu
o direito a alimentos e herança ao filho ilegítimo.
A constituição de 1988, como já disse, determina que a união estável entre o
homem e a mulher está sob a proteção do Estado, colocando, assim, o
concubinato sob um regime de absoluta legalidade, tirando-o da eventual
clandestinidade, em que ele, possivelmente vivia.4
A terminologia sofreu modificações, quando a Lei n. 8.971/94 optou pelos vocábulos
companheiro e companheira.
Todavia, a fidelidade não era imposta, pois se admitia relações paralelas.
A união estável foi regulamentada primeiramente pela Lei n. 8.971/94, que invadiu
escritórios, lares, Congresso e igrejas com sua polêmica e preceituou o direito dos companheiros
a alimentos e à sucessão. Posteriormente, a Lei n. 9.278/96 inova a união estável, convertendo-a
em casamento. A Constituição Federal de 1988 introduziu novas disposições nos artigos 226,
parágrafos 3º, 5º e 6º; e 227, parágrafo 6º. O novo Código Civil trouxe vários dispositivos que
regulamentam com clareza a união estável.
Há uma distinção entre concubinato e união estável: concubinato puro é a união estável,
e o impuro é a união entre homem e mulher impedidos de se casarem.
A Lei n. 9.278/96 avançou no tocante à união estável, dispondo:
Art. 1º É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública
e contínua, de um homem e uma mulher, estabelecida com objeto de
constituição de família.
Art. 2º São direitos e deveres iguais dos conviventes:
I-respeito e consideração mútuos;
II-assistência moral e maternal recíproca;
III-guarda, sustento e educação dos filhos comuns.
Sílvio Rodrigues ressalta que:
“União Estável é o nome que o constituinte deu ao concubinato, e não
vejo diferença de conteúdo nas duas expressões.”
Quando editada a Lei 9.278/96, foi admitido o concubinato adulterino, de duração
indefinida e ao critério do juiz a decisão se caracterizava ou não, a união estável.
Com a nova Constituição Federal de 1988 e vigências das Leis de 1.994 e 1.996, seriam
uma grande falha o Código Civil de 2002 deixar de estabelecer normas alusivas à união estável.
Então, o Senado Federal promoveu emendas para incluir no código um título com artigos
destinado à união estável, que hoje consta no Livro IV da Parte Especial, em seu Título III,
disciplinando a União Estável em 5 (cinco) artigos.
O Projeto do novo Código Civil que tramitou no Congresso Nacional, originário em
parte do Anteprojeto de Código Civil de Orlando Gomes, datado em 1963, que, depois se
posicionou como Projeto n. 634-B, de 1975, foi recentemente aprovado com alterações pela casa
legislativa federal e sancionado pelo presidente da República como Lei n. 10.406/2002.
3
GONÇALVES, Carlos Roberto. Sinopses Jurídicas: direito de família. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 2, p.
155.
4
RODRIGUES, Sílvio. Direito civil: direito de família. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, v. 6, p. 286.
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Demonstra-se um salto importante para a matéria relativa ao direito de família e por
consequência à união estável, haja vista que cria um capítulo próprio para tratar do assunto. A
última redação dada ao novo Código Civil foi para atualizar o texto legal aos dizeres e princípios
basilares da Constituição Federal de 1988.
Muitas pessoas não se casam no cartório “de papel passado”, o que, durante muito
tempo, foi alvo de discriminação para as pessoas que viviam esse tipo de situação familiar, mas
como uma sociedade de fato entre os conviventes. Viviam uma sociedade de cultura machista,
patriarcal. Com a Constituição Federal de 1988, tudo mudou, não se fala mais em “concubinato”
ou “amigar”, mas em união estável.
Não se pode negar, que os julgadores souberam ser sensíveis às questões concretas,
especialmente em uma época em que o direito não conseguiu acompanhar a realidade de nossa
sociedade, entretanto, o próprio texto constitucional que reconheceu a união estável e não a
equiparou ao casamento.
Ninguém duvida que nossa legislação por numerosa que seja, não atende a
demanda de questões postas à decisão pelo Poder Judiciário. Assim é que, não
raro, acabamos por nos deparar com o que se chama de lacuna da lei, ou seja,
com seu silêncio a respeito de um assunto ou outro, colocando algum obstáculo
a respostas efetivas pela sociedade esperadas. 5
Durante décadas a união estável foi desprezada pelo legislador, que marginalizava as
famílias formadas pelo afeto, mas falta pouco para que a união estável alcance o status do
casamento.
4 CONTRATO DE UNIÃO ESTÁVEL
Importante ressaltar que o contrato de união estável, isto é, a regulamentação
patrimonial da união garante aos companheiros o direito de fixarem o destino do patrimônio em
caso de separação do casal ou a morte de algum deles, alimentos devidos entre pais e filhos. Na
ausência desse contrato, prevalecerá as regras do casamento sob o regime parcial de bens.
Assim, todos que vivem em união estável devem celebrar um contrato, regulando todos
os aspectos da união, assegurando o direito de ambos os companheiros.
O contrato tem conteúdo probatório, pois serve de prova inequívoca, em juízo ou fora
dele, para a existência da relação, para afastar a necessidade de se fazer outra prova, como
testemunhas, fotos, entre outras.
Esse contrato de união estável é prova inquestionável, deve ser escrito e feito pelos
companheiros, por meio de escritura pública em Cartório de Notas, ou instrumento particular a
ser levado a registro em cartório de Títulos e Documentos, que possibilita a conservação do
documento e a manutenção de seu conteúdo probatório.
Não é um contrato obrigatório e pode ser celebrado a qualquer tempo durante a união.
5 DIREITOS NA UNIÃO ESTÁVEL
Os direitos dos conviventes consistem em uma proteção legislativa:
- prestação devida de alimentos ao companheiro que necessitar, estendendo a qualquer
tipo de união, desde que duradoura, notória, pública, contínua e com objetivo de constituição de
família; inovação trazida pela Lei 9.278/96. Essa prestação de alimentos observará a necessidade
5
DAHER. Marlusse Pestana. Disponível em http:/www.jusnavigandi.com.br. Acesso em 21 jun. de 2008.
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do alimentado, possibilidade econômica do alimentante. Os alimentos são devidos por qualquer
um dos companheiros, já que na união estável não se discute culpa. O artigo 1.694 do Código
Civil prescreve que os parentes, cônjuges ou companheiros, podem pedir alimentos uns aos
outros, que necessitem para viver e atender as necessidades de sua subsistência e educação,
fixados na proporção das necessidades do reclamante e na possibilidade do reclamado;
- independente de abertura de inventário ou arrolamento, haverá reconhecimento como
dependentes do companheiro: deixados pela previdência social, salários, pensões, fundo de
garantia, PIS/PASEP, saldos bancários de conta corrente, poupança e outros investimentos; Lei
n. 6.858/80;
- o filho ou a mãe tem autorização para propor ação de investigação de paternidade
contra o suposto pai;
- permissão de averbação do patrimônio do companheiro à concubina, solteira, separada
judicialmente ou viúva, que viva com homem solteiro, separado judicialmente, após 5 (cinco)
anos de convivência ou que desta união estável exista prole;
- dependente de clubes recreativos;
- o convivente tem o direito de usar o nome do companheiro;
- permissão para destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família,
mediante escritura pública ou testamento. A Lei Especial n. 8.009/90 em seu artigo 1º e o artigo
1.721 do Código Civil, também prevê que o imóvel residencial próprio do casal seja
impenhorável, salvo créditos trabalhistas de trabalhadores da própria residência e as
contribuições previdenciárias; débito de pensão alimentícia; impostos que incidam sobre imóvel
familiar; débito decorrente de financiamento para construção ou aquisição do imóvel; fiança do
contrato de locação; execução de hipoteca sob imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou
entidade familiar;
- direito de exercer poder familiar sobre os filhos;
- permissão de adoção pelos conviventes, desde que um deles tenha maioridade de 18
anos, estabilidade familiar, e um deles também seja 16 anos mais velho que o adotando. Artigo
1.622 do Código Civil e artigos 41, parágrafo 1º; e 42, parágrafo 2º da Lei n. 8.069;
- vínculo de filiação entre o adotado e o cônjuge;
- permissão à companheira para exercer a tutela se for descente;
- direito de requerer separação de corpos;
- o companheiro tem direito de permanência no imóvel alugado, em caso de falecimento
do locatário, independente de comunicação do locador, artigo 11, I, Lei n. 8.245/91;
- purgação de mora, falta de pagamento de aluguel;
- receber seguro desemprego do companheiro falecido;
- sub-rogação locatícia ao companheiro que permanecer no imóvel locado, quando
houver dissolução da união estável, prevista no artigo 12 da Lei n. 8.245/91 (Lei do Inquilinato):
Art. 12. Em casos de separação de fato, separação judicial, divórcio ou
dissolução da sociedade concubinária, a locação prosseguirá automaticamente
com o cônjuge, ou companheiro que permanecer no imóvel.
Parágrafo único. Nas hipóteses previstas neste artigo, a sub-rogação será
comunicada por escrito ao locador, o qual terá o direito de exigir, no prazo de
trinta dias, a substituição do fiador ou o oferecimento de qualquer das garantias
previstas nesta lei.
Admite-se também a retomada do imóvel locado em caso de necessidade de uso pelo
companheiro que não possua um imóvel residencial próprio;
- perdão judicial, nos casos de crimes culposos, quando um dos conviventes for vítima
de acidente e o outro for réu;
- reserva de bens em processo de inventário;
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- igualdade de direitos entre os filhos havidos no concubinato e os filhos legítimos;
- medida cautelar para ação de separação de corpos e reconhecimento de filhos fora do
casamento;
- a companheira do presidiário tem direito ao produto da renda de seu trabalho na cadeia
pública. Lei Paulista n. 2.699/54, artigo 3º, parágrafo 2º;
- busca e apreensão de filho havido em relação de concubinato;
- alimentos provisionais, determinados em medidas cautelares preparatória ou
incidental, com intuito de manter a mulher e a prole durante o trâmite da ação principal e o
pagamento das despesas processuais;
- usar medida cautelar para afastar o convivente perigoso do lar;
- direitos como dependente do segurado;
- sequestro de bens, para visar futura partilha de bens entre os conviventes;
- legitimidade para ser inventariante do conviventes;
- direito de ser beneficiário quando o companheiro for advogado. Decreto-Lei 72/66;
- dependente de funcionário público da União.
- ser beneficiário de congressista falecido do mandato, cargo, função. Lei n. 7.087/72;
- meação dos bens adquiridos com esforço comum, em decorrência de uma sociedade
de fato, referente aos serviços prestados.
- ser beneficiário de seguro de vida e de seguro obrigatório, DPVAT, plano de saúde,
art.793 Código Civil;
- é conferido à companheira os mesmos direitos da esposa em caso de acidente de
trabalho;
- concorrência do sobrevivente com descendentes, ascendentes e colaterais do falecido;
- direito à pensão deixado por servidor civil, militar, se não tiver filhos capazes de
receber o benefício;
- direito de visitar o companheiro preso ou de sair da prisão para o funeral do falecido;
- a súmula 35 STF defende que:
“Em caso de acidente de trabalho ou transporte, a concubina tem direito a ser
indenizada pela morte do amásio, se entre eles não havia impedimento para o matrimônio.”
- remuneração do companheiro pelos serviços prestados, durante o tempo que viveu
com o companheiro, para evitar enriquecimento ilícito. Súmula 380 STF;
- conversão da união estável em casamento mediante pedido ao juiz do assento no
Registro Civil, art. 1.726 Código Civil. Esse pedido pode ser feito a qualquer tempo.O fato do
legislador não estabelecer regras quanto a requisitos, formalidades e efeitos desse pedido, faz
com que cada Estado haja de uma forma através de portarias e provimentos, às vezes conflitante
entre si; e
- direito de foro privilegiado da mulher na ação de dissolução da União estável. Artigo
100, I do Código de Processo Civil.
6 DEVERES NA UNIÃO ESTÁVEL
- Lealdade;
- respeito e assistência;
- guarda, sustento e educação dos filhos;
- coabitação; e
- nome.
7 DOS IMPEDIMENTOS
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O Código Civil de 2002 traz expressamente que:
Art. 1.521 Não podem se casar:
VI - as pessoas casadas.
Na ausência de qualquer requisito exigido no artigo 1.521 do Código Civil, caracteriza
impedimento matrimonial.
É válido o casamento do adúltero com seu parceiro, pois o novo Código Civil não faz
menção a esse impedimento.
O casamento monogâmico tem proibição expressa no inciso VI em relação à poligamia,
vez que é nulo o registro civil do casamento religioso precedido de casamento civil de ambos
consorciados com outra pessoa.
Já a união estável é permitida, assim que a pessoa casada estiver rompida de fato ou
judicialmente, se a convivência obstar antes da separação de fato ou judicial.
Não pode constituir união estável:
Art.1.521 I-os ascendentes com descendentes, seja parentesco natural ou civil;
II - os afins em linha reta;
III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi
do adotante;
IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau
inclusive;
V - o adotado com o filho do adotante;
VI - as pessoas casadas;
VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de
homicídio contra o seu consorte.
8 UNIÃO ESTÁVEL ENTRE HOMOSSEXUAIS
A família não mais se vincula, com exclusividade ao casamento, o texto constitucional
incluiu a união estável como forma de família, mas excluiu a união homoafetiva com o mesmo
descaso que tratou da união estável antes de 1.988.
Embora ainda haja preconceito, a união homossexual é uma realidade que o judiciário
não pode mais desconhecer, mesmo em sua atual atividade retardatária e deve buscar a aplicação
da analogia e dos princípios gerais de direito, ressaltando 2 (dois) princípios constitucionais: o da
dignidade humana e o da igualdade. Os preconceitos existentes relacionam-se muitas vezes com
a pressão que a igreja exerce sobre seus seguidores, onde a sociedade por ela influenciada,
pressiona os legisladores, que temem a perda de votos na próxima eleição, portanto, estes
acabam não aprovando projetos em relação à união homoafetiva.
É notório o preconceito que existe na igreja contra a união de pessoas do mesmo sexo, o
qual alega que os homossexuais não são puros de Deus e a sua união não tem objetivo de
procriação.
Na teoria, nosso Estado é laico, pois não tem interferência de religião, mas na prática
nossos legisladores são conservadores e influenciados pela opinião da igreja, o que provoca um
atraso no ordenamento jurídico em relação à união homoafetiva.
É inconcebível que um tribunal seja extremamente conservador e incapaz de julgar com
imparcialidade causa minoritária como a união entre pessoas do mesmo sexo, pois o Judiciário
tem de ser imparcial e atuar para dirimir os conflitos sociais e promover a justiça.
Tais decisões de uma maioria esmagadora que não reconhece essa união não devem
prosperar, pois agridem o princípio da dignidade da pessoa humana e ferem a igualdade entre as
pessoas.
11
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
Para admitir-se a união estável entre homossexuais será preciso modificar a
Constituição Federal.
A necessidade da dualidade de sexos é requisito indispensável para a caracterização da
união estável, o que impede união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Essa relação homossexual gera uma sociedade de fato para eventual partilha, em caso de
separação, dos bens obtidos pelo esforço comum, o que pode também ser feito através de um
testamento.
No direito brasileiro não é reconhecida a união estável entre homossexuais, mas desde
1995 existe um Projeto de Lei n. 1.151/95 que disciplina a união civil entre pessoas de mesmo
sexo, mudando o estado civil para “parceiro”, constituindo uma família, o companheiro tem o
direito de ser beneficiário da Previdência Social e de obter desconto no Imposto de Renda. Para a
criação dessa sociedade civil ou parceria civil registrada em cartório, basta apresentar alguns
documentos, apesar de ela estar longe de ser uma entidade familiar.
A Constituição Federal dispõe em seu artigo 5º que “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza[...]”, apesar de assegurar esse direito com o princípio da não
discriminação ao sexo, o nega aos homossexuais, que não podem se casar, nem ter um
relacionamento semelhante à união estável, nem adotar crianças.
Note-se uma análise da Teoria tridimensional do direito, que hoje a nossa
sociedade considera valor Social relevante a situação jurídica daqueles que
optam por uma preferência sexual diversa, daquela que nossa sociedade
considera certa. Consideramos que a busca da felicidade é preceito
fundamental destinada a toda humanidade.6
O Brasil é líder do ranking mundial, onde é o país que mais pratica violência contra os
homossexuais e transexuais.
A tendência é de se equiparar analogicamente a união homoafetiva à união estável,
fundamentando nos princípios da igualdade, solidariedade, isonomia e dignidade humana., pois é
uma realidade que o Estado não pode mais fechar os olhos e sustentar por muito tempo.
Para a comprovação da união estável e dependência econômica entre casais
homossexuais é preciso apresentar os seguintes documentos:
- a declaração de Imposto de Renda do segurado, constando o dependente interessado;
- as disposições testamentárias;
- escritura pública declarando dependência econômica;
- prova de igual domicílio;
- prova de encargos domésticos, mostrando em evidência a sociedade;
- procuração ou fiança outorgada;
- conta bancária conjunta;
- registro constando o interessado como dependente;
- anotação constante em ficha ou livro, demonstrando ser empregado;
- apólice de seguro, constando o segurado como instituidor do seguro e o interessado
como beneficiário;
- ficha de tratamento médico, em que conste o segurado como responsável;
- escritura de compra e venda de imóvel pelo segurado em nome do dependente
interessado; e
- quaisquer documentos que comprovem o fato.
A instrução normativa n. 25/00 do INSS, em seu artigo 3º, determina procedimentos
para a concessão de pensão por morte de companheiro homossexual.
6
CARMO, Luiz Sérgio do . Do concubinato à união estável: sob a luz do Novo Código Civil. São Paulo: EDIJUR,
2003. p. 20 .
12
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
No direito brasileiro, no plano obrigacional, nada obsta que os parceiros tenham
imóveis em condomínio e que um contemple o outro com herança ou legado.
O legislativo permitiu que se incluísse a Lei Maria da Penha para qualquer mulher,
independente de sua orientação sexual, contra a violência doméstica e também aprovação do
projeto de lei que criminaliza a homofobia, uma vez transformado lei passará a ser crime, assim
como em relação aos negros.
O fato de um casal homoafetivo não poder gerar filhos não pode ser usada para negar o
caráter de entidade familiar, pois isso também ocorre com muitos casais heterossexuais que não
podem ter filhos.
O Brasil não tem uma lei específica sobre o assunto, contudo há um projeto de lei que
tenta regulamentar essa união civil, mas ainda as pessoas que vivem nessa união homoafetiva
não têm sua cidadania plenamente reconhecida. Isso coloca o Brasil numa posição retrógrada,
que o equipara aos países mais atrasados do mundo, onde apenas a América Latina, África do
Sul e a Ásia ainda não criaram leis específicas sobre a união homoafetiva.
9 ESPÉCIES DE UNIÃO ESTÁVEL
É a união entre o homem e a mulher sem impedimentos legais para a sua conversão em
casamento.
A união estável se divide em dois conceitos:
9.1 UNIÃO ESTÁVEL PLENA
É a convivência de duas pessoas de diferentes sexos sem impedimentos matrimoniais, e
que não o concretizam por uma questão de opção.
9.2 UNIÃO ESTÁVEL CONDICIONAL
É a união entre o homem e a mulher que tem impedimentos temporários, mas
constituem uma família de fato, por ser um solteiro e o outro separado judicialmente.
10 DISSOLUÇÃO DA UNIÃO ESTÁVEL
Ocorre a dissolução da união estável:
- por morte dos conviventes;
- pelo casamento;
- pela vontade das partes; e
- pelo rompimento da convivência (por abandono ou quebra de deveres).
Essa dissolução pode ser feita a qualquer tempo.
A dissolução pode ser amigável ou litigiosa, a primeira deve ser submetida a acordo
firmado entre os companheiros à homologação. O pedido de dissolução deve ser provado para
depois ser dissolvido, essa prova poderá ser tanto por instrumento público como particular, feito
pelos companheiros.
O acordo de vontades não precisa ser por escrito, pode-se pedir homologação judicial
quando houver acordo.
No caso de não haver acordo, cabe a qualquer das partes ajuizar ação ordinária de
dissolução da união estável e competirá ao juiz da Vara da Família decidir quanto a guarda dos
filhos, alimentos, partilha de bens comuns, dentre outros aspectos, com preferência ao foro da
residência da mulher, assim expresso no Código de Processo Civil:
13
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
Art. 100. É competente o foro:
I- da residência da mulher, para a ação de separação dos cônjuges e a
conversão desta em divórcio, e para a anulação de casamento;
Pode também a dissolução ser feita em cartório, após a lei n. 11.441/07, que trouxe
mudanças significativas ao Código Civil, no qual permitiu inventários, separações e divórcios
sejam realizados perante Cartório de Tabelionato, desde que as partes estejam concordes e sejam
capazes.
11 SENTENÇA DE RECONHECIMENTO DA UNIÃO ESTÁVEL
As sentenças são classificadas em declaratórias, constitutivas, mandamentais e
condenatórias.
A sentença que reconhece a união estável é declaratória, pois ao declarar direitos,
existência ou inexistência, modo de ser, define a relação existente de união estável.
Esta sentença tem eficácia erga omnes, vale perante todos, e efeito ex tunc, a sentença
não retroage e sim o que retroage são seus efeitos, a sentença é dada conforme o que foi pedido.
Cabe ao julgador fixar um marco temporal da união e declarar a sentença.
O pedido da declaração da sentença pode ser requerido por qualquer dos conviventes.
O regime adotado é o da comunhão parcial de bens, expresso no artigo 1.725 do Código
Civil.
Esse efeito produzido pela sentença reflete exclusivamente entre os conviventes.
O motivo da separação do casal não interfere na partilha dos bens, ou seja, a existência
ou não de culpa não exclui o seu direito na parte que lhe compete no imóvel. Na falta de um
acordo, as questões patrimoniais são resolvidas através da ação declaratória de reconhecimento
da união estável e a dissolução desta, respeitando a meação ou outro dispositivo contratual.
Quanto à competência para julgamento das ações relativas à união estável, gerava-se
polêmica mesmo após a CF/88 tê-la reconhecido como entidade familiar, mas a questão foi
resolvida com o advento da Lei n. 9.278/96, que, em seu artigo 9º, dispôs que é de competência
da Vara da Família toda a matéria relativa a união estável, sobretudo assegurando o segredo de
justiça.
12 CONCLUSÃO
Em face ao trabalho exposto, o fato da convivência informal entre homem e mulher
sempre existiu, o que é um fato jurídico e social.
Verifica-se que houve evolução em nosso ordenamento jurídico, em relação à lacunas
de leis, preconceitos e comparações com o matrimônio, não condizentes com a proteção Estatal
para com a sociedade e justiça.
O principal objetivo foi demonstrar à sociedade, que a união estável não significa
menos responsabilidade entre o homem e a mulher, pois é considerada uma entidade familiar
como as demais, pois os conviventes têm direitos, deveres, que foram conquistados com a
evolução legislativa através da necessidade humana e são considerados como se casados fossem.
O instituto jurídico da união estável nem sempre é bem compreendido, muitas dúvidas e
apreensões por vezes interferem neste tipo de relacionamento. As maiores preocupações são
quanto ao futuro do casal em relação à prole e aos bens patrimoniais.
De acordo com pesquisas realizadas, o número de casais que optam pela união estável, é
grande, por diversos motivos: tem aqueles que não podem contrair novo casamento, pois já
14
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
foram casados, outros por falta de dinheiro para realizar o casamento, outros por causa do
pensamento retrógrado que pensam estar livre de determinadas obrigações, como as do
casamento.
A união estável devidamente reconhecida é uma da mais nova forma de entidade
familiar. Um importante passo foi considerar a união estável como entidade familiar, pois nela se
busca um relacionamento com o intuito de constituir família.
A Constituição de 1988 evoluiu muito no tocante à união estável, ao ampliar o conceito
de família. Amparada pelas Leis n. 8.971/94 e 9.278/96 e a inclusão da união estável no Código
Civil, adaptando-se ao novo século um conceito de família, excluiu-se o pátrio poder, dando
igualdade de condições aos progenitores, não se fala mais em distinção entre os filhos legítimos
e os ilegítimos, trazendo igualdade entre cônjuges, companheiros e filhos.
A Lei n. 8.971/94 não está totalmente revogada e, sim, parcialmente, pois o Código
Civil de 2002 ao regular a união estável, não dispôs sobre alimentos e sucessão, o que obriga a
recorrer à Lei n. 8.971/94.
A Lei n. 9.278/96 regulamenta o artigo 226, parágrafo 3º, da Constituição e prevê
direitos decorrentes da união estável. Não estabelece mais prazos para consideração da união
estável, e sim impôs o regime de comunhão parcial de bens.
Os elementos caracterizadores são: estabilidade, continuidade, diversidade de sexos,
publicidade, objetivo de constituição de família, fidelidade e coabitação.
Em relação ao reconhecimento da união estável é feito por sentença declaratória, produz
efeito ex tunc, ou seja, os efeitos são retroativos à data da constituição da união estável.
Os direitos dos companheiros são os mesmos decorrentes aos cônjuges.
No tocante à guarda dos filhos que decorre do poder familiar são deveres de ambos os
companheiros. Em relação aos direitos sucessórios, os companheiros têm direito à sucessão,
podendo ser nomeado inventariante e é garantido ao convivente o direito real de habitação pela
Lei n. 9.278/96, com o direito sucessório, previsto na Lei n. 8.971/94.
A união estável é equiparada ao casamento, pois a lei facilita sua conversão em
casamento, não tendo mais burocracia de se sujeitar a procedimento judicial e desvantagens em
relação ao cônjuge.
O reconhecimento judicial é requisito para que os conviventes tenham direitos e se
tornem uma família resultante da moral e com respeito mútuo.
Verifica-se a evolução no direito de família, pois a união estável era versada em
preconceitos, comparações incoerentes com a norma jurídica. Apesar da regulamentação da
união estável surgiram muitas lacunas e mesmo após a vigência do novo Código Civil, ainda há
muitas controvérsias legislativas.
A única forma de união afetiva era o casamento, que passou a conviver com outros tipos
de uniões, como a união estável.
Já a união estável homoafetiva é tida como imoral, e é um fato ignorado pelo legislador,
que tem demonstrado cada vez mais a necessidade de amparo legal. Há possibilidade de dar a ela
o mesmo tratamento da união estável, a qual os Tribunais do país, principalmente do Sul, vêm
aplicando por analogia, pois o maior obstáculo é a diversidade de sexos, pois o amor, afeto,
independem de raça, cor, sexo ou opção sexual.
Conclui-se, assim, que a legislação brasileira visa a qualidade da relação familiar, e o
principal critério é a intenção do casal de constituir uma família.
15
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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PEREIRA, Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de direito civil. 13. ed. Rio de Janeiro:
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Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
O DIREITO A SER HUMANO
Priscilla Valéria Martins
Eloísa Elena Gonçalves Peixoto
O propósito deste artigo é analisar a historicidade dos Direitos Humanos, segundo o
pensamento de Hannah Arendt, com fundamento no livro de Celso Lafer: A Reconstrução dos
Direitos Humanos, na tentativa de entender a brutalização terrível ao homem realizada pelo
próprio homem, como aconteceu no decorrer dos tempos. Propõe-se, assim, uma reflexão ao
perguntar-se: o que fazer para evitar que situações como aquela ocorram novamente? Dessa
forma, Hannah Arendt sugere uma ruptura, com o direito positivo, encenado pelo totalitarismo,
quando expõe contradição entre o direito de propriedade em relação à defesa da vida humana. A
esta ruptura dá-se o nome de Reconstrução dos Direitos Humanos, uma vez que, neste
processo, o sujeito (homem) não sai em branco a observar o objeto, mas leva consigo todo o
conhecimento acumulado em sua vida. Como Diz Marques Neto: “O ato de conhecer é
necessariamente um ato de reconstruir, de aprimorar os conhecimentos anteriores. O
conhecimento como um processo de retificações de verdades estabelecidas, tornando menor o
erro anterior, é um dos pontos centrais da epistemologia contemporânea”. Corrente filosófica, à
qual pertence Hannah Arendt.
Para entender este processo, deve se ter em mente as rupturas dentro de um processo
histórico não somente o contemporâneo, mas desde o Direito Natural. O Direito Natural rompe
com o “passado”, quando desloca o homem para o centro do pensamento, este se descobre
detentor de um direito intrínseco a sua natureza, sendo esse direito natural o da própria condição
social, que é originário das necessidades do homem. Mais tarde, ocorre outra ruptura entre o
Direito Natural e o Direito Positivo, que só é considerado como positivo, por ter sido elaborado
pelo homem, segundo seus próprios interesses e necessidades.
Hannah Arendt critica amplamente este positivismo, ao analisar seu desenrolar na
história, uma vez que ele é fruto da estrutura econômica. De um lado, as economias capitalistas
ocidentais caracterizadas pelo compromisso com o lucro, o hiperconsumo, a mercantilização
radical da vida humana e, de outro, o bloco socialista alimentava o sonho da revolução. O que já
indicava uma crise contemporânea.
Um primeiro marco dessa estrutura é a Revolução Francesa, quando surge o conceito
“Direitos Humanos”, pois havia uma perspectiva dos segmentos sociais envolvidos à
necessidade de se criar uma ordem, onde o ser humano fosse o centro político e social; a luta de
classe e o conflito histórico resultam em Direitos, ou melhor, constroem Direitos. Portanto, falar
de “Direitos Humanos” é referir-se aos símbolos e rupturas históricos que se ocorreram através
das lutas políticas, travadas entre os homens em busca de melhores condições de vida dentro do
seu sistema comunitário.
Com a evolução do capitalismo, uma minoria gera o totalitarismo, caracterizado pela
centralização do poder em uma única pessoa e na imposição de seus desejos e ordens. O forte
anseio de poder e de controlar acentuavam as marcas do capitalismo. É nesse panorama que
transcorre a maior atrocidade que o mundo já viu até então. O impacto dos horrores da 2ª Guerra
Mundial mostrou ao mundo moderno que, apesar da existência de “Direitos Humanos”, somente
alguns eram considerados humanos de verdade, enquanto que outros não mereciam essa
designação. Quando o totalitarismo rompeu com as tradições mostrou ao mundo a existência de
um regime, onde o valor da vida humana é nulo, a ponto de ser descartável. Esta corrosão teve o
seu início no positivismo jurídico e expôs ao mundo a crise de valores que aconteceu no
capitalismo, ao deixar à mostra a redução dos homens a seres supérfluos, pois quando
imprestáveis poderiam ser trocados por outros ou até por máquinas; toda análise de Hannah
Arendt é em decorrência de sua experiência no totalitarismo.
18
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
Hannah Arendt é alemã, porém de descendência judaica, sofreu de perto todos os
horrores da perseguição nazista, viu seus familiares ser executados nos campos de concentração.
Conseguiu, entretanto, em certo momento, fugir para a América do Norte, onde se manteve até a
morte em 1975. Essa experiência sempre acompanhou seus pensamentos filosóficos, pois apesar
de origem rica, conheceu a discriminação, a humilhação, etc. Viveu num mundo, que não a
protegia, pois não pertencia a nenhum lugar. Pois os apátridas e os refugiados se viram
destituídos, com a perda da cidadania, não puderam se valer dos Direitos Humanos e não
encontraram lugar no mundo do século XX, inteiramente organizado e ocupado politicamente,
tornaram-se desnecessários, e “acabaram encontrando seu destino” nos campos de concentração.
Perder a cidadania nesse mundo significa ser expulso da humanidade. A situação angustiante dos
apátridas não resulta do fato de não serem iguais diante da lei, mas dela não existir para eles. A
privação da cidadania afeta a condição humana, diretamente em sua dignidade. Enquanto a 2ª
Guerra significou a ruptura com os Direitos Humanos, o pós-guerra permitiu a reconstrução
desses direitos.
O pós 1945 foi o marco para uma nova era, a da reconstrução dos Direitos Humanos.
Surge como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo que deixaram a
humanidade perplexa. Como resultado do impacto causado, o mundo foi obrigado a proteger-se,
pois aquilo poderia ter acontecido com qualquer nação.
Terminada a guerra e inspirada nas idéias de proteção dos Direitos Humanos, foi criada,
em 26 de junho de 1945, pela Carta de São Francisco, a Organização das Nações Unidas – ONU
-. Logo no primeiro artigo de sua Constituição, colocou dentre outros os seguintes: “Desenvolver
relações entre as nações, baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos; tomar
medidas para o fortalecimento da paz mundial; e estimular o respeito aos direitos humanos e as
liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, cor, língua ou religião”. A carta
da ONU condena o arbítrio, a tortura e, ao mesmo tempo, garante a liberdade de expressão, o
direito ao trabalho. Ela é constituída de princípios e valores universais a serem respeitados pelos
Estados. A idéia de que a proteção dos Direitos Humanos não deve ser reservada apenas ao
domínio do Estado e sim à competência internacional é fortalecida com o crescente processo de
internacionalização desses direitos. Essa Declaração foi marcada pelas características de
universalidade e indivisibilidade dos direitos, e, entre outras, deu garantias de proteção à
dignidade humana. Sendo a universalidade condição de pertencer a todos e o único requisito para
a titularidade dos direitos humanos, que ganharam forças com indivisibilidade, uma vez que os
direitos civis e políticos são conjugados aos direitos culturais e socioeconômicos.
As Convenções Internacionais sobre os Direitos Humanos, posteriores à 2ª Guerra
Mundial, buscaram criar garantias coletivas para estabelecer obrigações objetivas em matéria de
direitos humanos, que são vistas e percebidas como necessárias à preservação da ordem pública
internacional. Daí o esforço do Direito Internacional Público de tutelar os direitos dos “nãocidadãos”, no princípio de proteção internacional, que passou a considerar a nacionalidade como
um direito humano fundamental.
Ao lado do sistema normativo global da ONU, surgiram os sistemas regionais de
proteção, que procuravam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais,
particularmente na Europa, América e África. Esses sistemas são complementares para
proporcionar uma maior efetividade na tutela e promoção de direitos fundamentais.
A partir de uma revisão das lições deixadas por essas barbáries ocorridas, Hannah
Arendt faz uma retomada crítica do pensamento ocidental, com o estudo das condições políticas
e jurídicas que permitam assegurar um mundo comum, marcado pelo pluralismo e pela
diversidade, onde todo o ser humano tem direito à hospitalidade universal, ter o “direito a ter
direitos”, e para impedir, em conseqüência, o ressurgimento de um novo Estado totalitário que
pudesse acabar com o direito fundamental: o direito à vida.
No mundo contemporâneo continuam a existir situações sociais, políticas e econômicas
que, mesmo depois do término dos regimes totalitários, tornam os homens supérfluos e sem19
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
lugar no mundo comum. Entre outras tendências estão: a irrupção da violência, os surtos
terroristas, a ubiqüidade da pobreza, da miséria e a ameaça do holocausto nuclear. Os terrores
das duas grandes Guerras Mundiais foram substituídos por horrores localizados. Verdadeiras
guerras urbanas, fruto da mudança no equilíbrio de forças das relações de trabalho, provocadas
pelo processo de industrialização.
Quase todos os países do planeta incorporaram às suas Constituições o sistema global
dos Direitos Humanos, além da participação em pactos e convenções regionais. Isso poderia ser
um retrato em cores do melhor do mundo, se o direito positivo fosse uma foto fiel do mundo,
pois, basta olhar para os compêndios de doutrina que insistem em qualificar os direitos sociais
como meramente “programáticos” (não exigíveis...) e para os tribunais que quase sempre acatam
esse entendimento. O problema está na realidade que configura uma situação em que, entredispor
formalmente de instrumentos jurídicos para a proteção dos Direitos Humanos e efetivamente
levá-los à prática, existe uma distância trágica, que se nutre de visões conservadoras de mundo,
interesses de classe e de grupos e muitos outros.
Na reconstrução proposta por Hannah Arendt, o Direito à Cidadania está no centro,
visto como o direito a ter direitos, é singular entre os homens iguais, é o direito a ser tratado
como semelhante e, ao mesmo tempo, ter a intimidade (a exclusividade); relação do direito à
informação versus a intimidade, defende o direito de associação na geração do poder, utilizando
a resistência à opressão aplicada à desobediência civil. Hannan Arendt convoca a liberdade pelo
juízo reflexivo (pensamento que ela não terminou, pois morreu em 1975, mas concluída a idéia
através das análises e exposições de Celso Lafer), traz o resgate da liberdade pela capacidade
humana de julgar e refletir para instigar a transformação social.
Na concepção do professor Fábio Conder Comparato, os direitos foram se criando e se
estendendo a todos – sempre com muitas dificuldades de efetiva implementação (o que persiste
até hoje se compararmos o nazismo a uma guerra nuclear e/ou biológica, ou com grandes massas
passando fome e miséria, ou até mesmo com terrorismo).
Conforme citação de Norberto Bobbio, “Não se trata de saber quais e quantos são estes
direitos, qual é a sua natureza e seu fundamento [...], mas sim qual é o modo mais seguro para
garanti-los, para impedir que, apesar de solenes declarações, eles sejam continuamente
violados”.
Portanto, já que fomos emancipados a sujeitos de direitos aptos a exercê-los e
reivindicá-los, de conquistar o reconhecimento de novos direitos, segundo a nossa necessidade e
anseios, atualmente temos em nossa luta a necessidade de adoção concreta de medidas já
pensadas, ou seja, dos direitos já garantidos para que haja a efetivação e proteção a eles. Mas
como podemos criticar um mundo consumível, onde tudo é perecível, supérfluo e se avaliam os
homens e sua natureza, pelo seu desempenho e resultados? Realmente o que necessita de
proteção é a própria natureza de cada ser humano.
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Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Arendt. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
BOBBIO, N. A era dos direitos. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
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21
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
O MÍNIMO EXISTENCIAL
Washington Luiz Michelan Daniel
1 CONTRIBUIÇÃO DE JOHN LOCKE, JEFFERSON e ROUSSEAU
Inicialmente, devemos mencionar a contribuição dos contratualistas John Locke,
Jefferson e Rousseau na evolução dos direitos do homem e também nas Declarações
Americanas, Tratados e Constituições.
John Locke ponderava que o Estado foi organizado a partir de um contrato firmado
pelos homens a fim de preservar a harmonia, a vida, a liberdade e os bens.
Conforme nos ensina Selma Regina de Souza Aragão Conceição7 “o pensamento de
Locke parte do estado de natureza e do contrato original, que fundamentam a sociedade política
e o governo civil. Entende-se que o estado de natureza está regulado pela razão, e que os direitos
naturais subsistirão para fundar a liberdade e não constituirão objeto de renúncia pelo contrato
original. Em vez de desaparecerem, retirados pela soberania, subsistirão no estado de sociedade”.
Por outro lado, o entendimento do defensor do absolutismo Thomas Hobbes é que,
sendo o “homem o lobo do homem”, este deveria abdicar de suas liberdades individuais em
favor do Estado-Leviatã, pois a liberdade era a causa da guerra.
Nota-se que a comunidade para Locke é uma sociedade de iguais, na qual todos têm
igual direito moral e o próprio povo é o titular da soberania.
As idéias do inglês John Locke são amplamente reivindicadas por Jefferson, para quem
a essência da democracia é a liberdade.
Numa carta de Jefferson a Dupont de Nemours, citada por Selma Regina de Souza
Aragão Conceição, ele assegura:
eu acredito que moralidade, compaixão e generosidade são elementos inatos da
constituição humana, que existe um direito independente da força, que a justiça
é a lei fundamental da sociedade, que a maioria oprimindo um indivíduo, é
culpada de crime, abusa de sua força e, agindo baseada na lei do mais forte,
abala os alicerces da sociedade.8
Rousseau justificava a soberania do povo e a liberdade e igualdade inalienáveis de todos
os homens. Seria necessário o indivíduo conferir sua liberdade natural ao Estado, o qual, em
seguida, a restituiria em forma de direitos civis. Assim, o povo, obedecendo ao soberano, seria
uma norma de ser livre.
O autor do Contrato Social também contribuiu para elaborar a distinção entre soberano
e governo. Afirmava que o povo é o soberano e o governo um funcionário do povo, com função
de defender a vontade geral, nunca a sua.
Observa-se, pois, que o titular do poder político é o próprio povo e que há um acordo
entre este e o governante. Caso não se realize o acordo em função do bem comum, o governante
deve ser destituído. Ou seja, para que haja legitimidade do poder, os direitos do homem devem
ser respeitados.
2 DIREITOS FUNDAMENTAIS, DIREITOS HUMANOS e DIREITOS DO HOMEM
7
CONCEIÇÃO, Selma Regina de Souza Aragão. Direitos Humanos: do mundo antigo ao Brasil de todos. Rio de
Janeiro: Forense. 1990, p. 35.
8
CONCEIÇÃO, op. cit,. p. 34.
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Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
Alguns entendem que os direitos humanos e os fundamentais são ideias semelhantes,
confundindo-se em um único conceito. Porém, cabe demonstrar, neste momento, a linha tênue
que os diferencia.
J.J. Gomes Canotilho, citado por Ana Paula de Barcellos, ensina que:
alguns autores atribuem sentidos diversos aos dois termos. Assim, direitos
humanos seria a expressão reservada ao conjunto de direitos ideal, metafísico,
derivado da natureza do homem, ao passo que os direitos fundamentais seriam
apenas aqueles reconhecidos por uma ordem jurídica positiva.9
Ainda, Canotilho10 atesta que "as expressões direitos do homem e direitos
fundamentais são frequentemente utilizadas como sinônimas. Segundo a sua origem e
significado poderíamos distingui-las da seguinte maneira: direitos do homem são os válidos
para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jusnaturalista-universalista); direitos
fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados
espaço-temporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o
seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos
objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta".
Comparato11 leciona que a doutrina jurídica alemã contemporânea também distingue,
nitidamente, os direitos humanos dos fundamentais. “Estes últimos são os direitos que,
consagrados na Constituição, representam as básicas éticas do sistema jurídico nacional, ainda
que não possam ser reconhecidos, pela constituição jurídica universal, como exigências
indispensáveis de preservação da dignidade humana. Daí por que os direitos humanos autênticos
existem, independentemente de seu reconhecimento na ordem jurídica estatal, e mesmo contra
ela, ao passo que alguns direitos, qualificados como fundamentais na Constituição de um país,
podem não ter a vigência universal, própria dos direitos humanos”.
Em síntese, a expressão “direitos fundamentais” é utilizada para designar o momento de
recepção no ordenamento jurídico positivo dos direitos humanos.
Canotilho12, de modo brilhante, declara que os direitos fundamentais ainda se
subdividem em duas categorias. Aponta que "os direitos consagrados e reconhecidos pela
constituição designam-se, por vezes, direitos fundamentais formalmente constitucionais,
porque eles são enunciados e protegidos por normas com valor constitucional formal (normas
que têm a forma constitucional). A Constituição admite (...), porém, outros direitos fundamentais
constantes das leis e das regras aplicáveis de direito internacional. Em virtude de as normas que
os reconhecem e protegem não terem a forma constitucional, estes direitos são chamados
direitos materialmente fundamentais".
A função que os direitos fundamentais desempenham no sistema jurídico de um
Estado, esclarece Canotilho13, é de altíssima relevância, pois cumprem o que ele chama de as
“funções dos direitos fundamentais, quais sejam: função de defesa ou de liberdade, função de
prestação social, função de proteção perante terceiros e função de não discriminação”.
Os direitos fundamentais, portanto, estabelecidos em constituições, estão diretamente
ligados à edição de declarações de direitos do homem com previsão de direitos e garantias
individuais e coletivas do cidadão em relação aos demais e ao próprio Estado.
9
V. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 1997, p. 347
e seguintes.
10
V. CANOTILHO, op. cit., p. 369.
11
COMPARATO, op. cit., p. 176.
12
V. CANOTILHO, op. cit., p. 379.
13
V. CANOTILHO, op. cit., p. 383.
23
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
Em relação ao direito fundamental, vale citar Ingo Wolfgang Sarlet14, o qual sustenta:
é a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da Comunidade,
implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais
que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e
desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para
uma vida saudável, além de promover e propiciar sua participação ativa e coresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os
demais seres humanos.”15
A Constituição Federal do Brasil assegura em seu artigo 5º os direitos fundamentais,
cujo objeto imediato é a liberdade, tanto a de locomoção, reunião, associação, profissão, bem
como os direitos relativos à segurança, propriedades gerais como artística e científica.
Não podemos deixar de lembrar os princípios constitucionais fundamentais, os quais
guardam os valores basilares da ordem jurídica de um Estado, para que a Constituição não seja
apenas um conjunto de normas.
No mundo contemporâneo, a proteção aos direitos fundamentais se encontra nas
Constituições democráticas colocadas nos mais altos status das normas do direito: as normas
constitucionais.
Contudo, é de se concordar com Norberto Bobbio, que o grande desafio para solucionar
os problemas de nossos dias é o de, não apenas fundamentar os direitos, mas o de protegê-los e
efetivá-los, pois o problema é mais profundo: trata-se de um problema político.
3 GARANTIAS
O habeas corpus já existia na Inglaterra antes mesmo da Magna Carta. A sua eficácia,
porém, era muito reduzida em decorrência da inexistência de regras processuais. Diante disso,
surgiu a Lei de 1679, que veio consertar esse defeito jurídico e confirmar que são as garantias
processuais que criam os direitos e não ao contrário.
A tradição do direito inglês, na concepção de Comparato16, “não concebe a existência
de direitos sem uma ação judicial própria para sua defesa. É da criação dessa ação em juízo que
nascem os direitos subjetivos e não ao contrário”. Portanto, desde há muito os ingleses
consideravam que o progresso na proteção dos direitos humanos fundamentais se materializava
por intermédio das garantias judiciais e não apenas em declarações de direitos.
Por outro lado, os franceses diziam em sentido contrário, que uma declaração de
direitos, por si só, seria capaz de afirmar os direitos fundamentais em virtude de sua grande força
político-pedagógica.
Manoel Gonçalves Ferreira Filho17 leciona que, pelos ensinamentos de Rui Barbosa,
“pode-se dizer que, num sentido amplíssimo, garantias constitucionais são as providências que,
na Constituição, se destinam a manter os poderes no jogo harmônico das suas funções, no
exercício contrabalançado das suas prerrogativas. Dizemos então garantias constitucionais no
mesmo sentido em que os ingleses falam nos freios e contrapesos da Constituição”.
14
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988.
2.ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p.62.
15
SARLET, op. cit., p. 62.
16
COMPARATO, op. cit., p. 85.
17
FERREIRA FILHO, op. cit., p. 32.
24
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
São os sistemas de proteção organizados para a defesa dos direitos fundamentais
especiais do indivíduo. Podem ser chamados de garantias sistemas, pois derivam de um sistema
constitucional.
Para Canotilho18 “as clássicas garantias são também direitos, embora muitas vezes se
salientasse nelas o caráter instrumental de proteção dos direitos. As garantias traduziam-se quer
no direito dos cidadãos a exigir dos poderes públicos a proteção dos seus direitos, quer no
reconhecimento de meios processuais adequados a essa finalidade (ex.: direito de acesso aos
tribunais para defesa dos direitos, princípios do nullum crimen sine lege e nulla poena sine
crimen, direito de habeas corpus, princípio non bis in idem)”.
Jorge Miranda19 possui a mesma linha de raciocínio. Assegura que “os direitos
representam por si só certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a fruição de seus bens, os
direitos são os principais, as garantias acessórias e, muitas delas, adjetivas (ainda que possam ser
objeto de um regime constitucional substantivo); os direitos permitem a realização das pessoas e
inserem-se direta e imediatamente, por isso, as respectivas esferas jurídicas, as garantias só nelas
se projetam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção jusracionalista inicial, os direitos
declaram-se, as garantias estabelecem-se”.
Há autores, como Manoel Gonçalves Ferreira Filho (1998), que aprofundam essa
análise e verificam que são três as espécies de garantias: as limites, as institucionais e as
instrumentais.
As garantias limites seriam as defesas postas a direitos especiais que visam prevenir a
violação do direito, por exemplo, proibição da censura para proteger a liberdade de expressão e
do pensamento, proibições de prisões, salvo nos casos de flagrante delito ou por ordem de
autoridade. Assim, objetivam limitar o poder.
As garantias institucionais recebem esse nome por considerar que essas proteções
derivam de instituições. São os sistemas de proteção organizados para a defesa desses direitos.
No Brasil, o Judiciário; na França, o contencioso administrativo; nos países escandinavos, o
ombudsman.
As garantias instrumentais constituem um liame entre as garantias limites e as
institucionais, pois têm como finalidade a defesa de direitos específicos e, ao mesmo tempo,
provocam a atuação das instituições. Aqui são compreendidos os remédios constitucionais
previstos para fazer valer os direitos fundamentais. São os casos do habeas corpus e do mandado
de segurança.
4 PRINCÍPIOS E REGRAS
Entre nós, aduz Barcellos (2002:46) que muitos critérios são apresentados para
distinguir princípios e regras, alguns mais consistentes que outros, mas “todos contribuem para
formar um quadro mental mais preciso, menos intuitivo, acerca da distinção”. Aqui estão sete
deles entre os mais comumente propostos pela doutrina brasileira e estrangeira:
(a) O conteúdo. Os princípios estão mais próximos da idéia de valor e de
direito. Eles formam uma exigência da justiça, da eqüidade ou da moralidade,
ao passo que as regras têm um conteúdo diversificado e não necessariamente
moral. Ainda no que diz respeito ao conteúdo, Rodolfo L. Vigo chega a
identificar determinados princípios, que denomina de “fortes”, como os direitos
humanos.
18
19
V. CANOTILHO, op. cit., p. 520.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 4ª ed. Coimbra: Coimbra Editora, p. 88.
25
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
(b) Origem e validade. A validade dos princípios decorre de seu próprio
conteúdo, ao passo que as regras derivam de outras regras ou dos princípios.
Assim, é possível identificar o momento e a forma como determinada regra
tornou-se norma jurídica, perquirição essa que será inútil no que diz respeito
aos princípios.
(c) Compromisso histórico. Os princípios são para muitos (ainda que não
todos), em maior ou menor medida, universais, absolutos, objetivos e
permanentes, ao passo que as regras se caracterizam de forma bastante evidente
pela contingência e relatividade de seus conteúdos, dependendo do tempo e
lugar.
(d) Função no ordenamento. Os princípios têm uma função explicadora e
justificadora em relação às regras. Ao modo dos axiomas e leis científicas, os
princípios sintetizam uma grande quantidade de informação de um setor ou de
todo ordenamento jurídico, conferindo-lhe unidade e ordenação.
(e) Estrutura lingüística. Os princípios são mais abstratos que as regras, em
geral não descrevem as condições necessárias para sua aplicação e, por isso
mesmo, aplicam-se a um número indeterminado de situações. Em relação às
regras, diferentemente, é possível identificar, com maior ou menor trabalho,
suas hipóteses de aplicação.
(f) Esforço interpretativo exigido. Os princípios exigem uma atividade
argumentativa muito mais intensa, não apenas para precisar seu sentido, como
também para inferir a solução que ele propõe para o caso, ao passo que as
regras demandam apenas uma aplicabilidade, na expressão de Josef Esser,
“burocrática e técnica”.
(g) Aplicação. As regras têm estrutura biunívoca, aplicando-se de acordo
com o modelo do “tudo ou nada”, popularizado por Ronald Dworkin. Isto é,
dado seu substrato fático típico, as regras só admitem duas espécies de
situação: ou são válidas e se aplicam ou não se aplicam por inválidas. Uma
regra vale ou não vale juridicamente. Não são admitidas graduações. Como
registra Alexy, ao contrário das regras, os princípios determinam que algo seja
realizado na maior medida possível, admitindo uma aplicação mais ou menos
ampla de acordo com as possibilidades físicas e jurídicas existentes. Estes
limites jurídicos, que podem restringir a otimização de algum princípio, são (I)
regras que o excepcionam em algum ponto e (II) outros princípios opostos que
procuram igualmente maximizar-se, daí a necessidade eventual de ponderá-los.
Desenvolvendo esse critério de distinção, Alexy denomina as regras de
comandos de definição e os princípios de comandos de otimização.
Ainda, Marino Pazzaglini Filho20 ressalta que:
os princípios consubstanciam a essência e a própria identidade da Constituição
e, como normas jurídicas primárias e nucleares, predefinem, orientam e
vinculam a formação, a aplicação e a interpretação de todas as demais normas
componentes da ordem jurídica. Em passado recente, os princípios
constitucionais eram tidos como meras normas programáticas, destituídas de
imperatividade e aplicabilidade. Contudo, atualmente, os princípios
20
PAZZAGLINI FILHO, Marino. Princípios constitucionais reguladores da administração pública. 2. Ed. São
Paulo: Atlas, 2003. p. 10.
26
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
constitucionais ostentam denso e superior valor jurídico, ou melhor, são
normas jurídicas hegemônicas em relação às demais regras do sistema jurídico,
de eficácia imediata e plena, imperativas, vinculantes e coercitivas para os
Poderes Públicos.
Assim, os princípios constitucionais direcionam a aplicação, o alcance, a interpretação e
o conteúdo das normas jurídicas, inclusive as constitucionais. Os princípios devem ser aplicados
de modo fiel, harmônico e coerente com todas as outras regras jurídicas do ordenamento, pois do
contrário, tais regras careceriam de legitimidade, para tornar-se incompatível com os princípios.
E mais, principalmente no direito positivo é uma ferramenta muito importante para a
interpretação, integração e aplicação de suas regras.
Com efeito, destaca Ruy Samuel Espíndola21:
Hoje, no pensamento jurídico contemporâneo, existe unanimidade em se
reconhecer aos princípios jurídicos o status conceitual e positivo de norma de
direito, de norma jurídica. Para esse núcleo de pensamento, os princípios têm
positividade, vinculatividade, são normas, obrigam, têm eficácia positiva e
negativa sobre comportamentos públicos ou privados bem como sobre a
interpretação e a aplicação de outras normas, como as regras e outros
princípios derivados de princípios de generalizações mais abstratas.
Os princípios, portanto, além de servirem para solução de vários problemas jurídicos,
ainda funcionam como critérios interpretativos para solução de outros casos que não solicitam
aplicação direta da norma jurídica. Como observamos, a correta e atual compreensão do direito
exige não o abandono das regras jurídicas, mas que sejam aplicadas e interpretadas em
consonância com os princípios estabelecidos na ordem jurídica.
5 PRINCÍPIO NORMATIVO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
A elaboração teórica do conceito de pessoa humana como um ser dotado de direitos
universais, anteriores e superiores a todo ordenamento jurídico estatal, adveio com a filosofia
kantiana.
Immanuel Kant asseverava que só o ser racional possui a faculdade de agir de acordo
com a representação de leis ou princípios, pois, somente ele tem vontade, que é uma espécie de
razão, denominada razão prática.
Na mesma linha de raciocínio, Comparato22 aponta com base em Kant que:
o princípio primeiro de toda ética é o de que o ser humano e, de modo geral, todo ser
racional, existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio do qual esta
ou aquela vontade possa servir-se a seu talante. Os entes, cujo ser na verdade não
depende de nossa vontade, mas da natureza, quando irracionais, têm unicamente um
valor relativo, como meios, e chamam-se por isso coisas; os entes racionais, ao
contrário, denominam-se pessoas, pois são marcados pela própria natureza como fim
em si mesmos; ou seja, como algo que não pode servir simplesmente de meio, o que
limita, em conseqüência, nosso livre arbítrio.
Como assinalou o filósofo, todo homem tem dignidade e não um preço, como as coisas.
Essa afirmação da proclamação da pessoa humana atribui maior relevância aos direitos
21
ESPÍNDOLA, Ruy S. Conceito de princípios constitucionais: elementos teóricos para uma formulação dogmática
constitucionalmente adequada. 2.ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 60.
22
COMPARATO, op. cit., p. 21.
27
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
específicos de cada homem, o qual não se confunde com a vida do Estado, além de provocar um
“deslocamento do Direito do plano do Estado para o plano do indivíduo, em busca do necessário
equilíbrio entre a liberdade e autoridade”. 23
O homem é um ser dotado de valor absoluto e não pode ser usado como instrumento
para algo. Exatamente por ser pessoa dotada de dignidade.
Entretanto, não foi o observado antes, durante e depois do século XX com as máquinas
nazistas de despersonalização de seres humanos, com a transformação das pessoas em coisas de
maneira menos trágica com o desenvolvimento do sistema capitalista e com a propaganda em
massa transformando o eleitor e o consumidor em mero objeto.
Por isso mesmo, “Kant já afirmava que o princípio do tratamento da pessoa como fim
em si mesma implica não só no dever negativo de não prejudicar ninguém, mas também no dever
positivo de favorecer a felicidade alheia, seja pelo reconhecimento dos direitos e liberdades
individuais, bem como através da realização de políticas públicas de conteúdo econômico e
social.”
A dignidade da pessoa humana realmente é difícil de ser conceituada em vista de sua
amplitude.
Ingo Wofgang Sarlet24 propõe um conceito jurídico que inclui elementos de diversas
concepções doutrinárias, segundo o qual ela seria:
a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo
respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste
sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto
contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e
promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e
da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Já, na opinião de Luís Roberto Barroso25, a dignidade humana representa superar a
intolerância, a discriminação, a exclusão social, a violência, a incapacidade de aceitar o
diferente. Tem relação com a liberdade e valores do espírito e com as condições materiais de
subsistência da pessoa.
A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Estado brasileiro, conforme se
observa no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988. Por essa razão disso,
“consubstancia, por inteiro, a ordem axiológica do regime e das instituições; é o valor supremo
onde jaz o espírito da Constituição”, ensina Sarlet26. Trata-se de princípio essencial à
democracia, que impõe a visualização do ser humano como fundamento e fim da sociedade e do
Estado.
Portanto, a dignidade da pessoa humana estabelece o núcleo essencial e intangível dos
direitos fundamentais. Ao fazer-se um paralelo com o mencionado, podemos facilmente concluir
que é o Estado que existe em função da pessoa humana e nunca ao contrário, já que o ser
humano constitui a finalidade principal da atividade estatal.
Ana Paula de Barcellos assegura que “a consagração constitucional da dignidade, e da
mesma forma das condições materiais que compõem o seu conteúdo, teve e tem, sobretudo, o
23
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988.
2.ed. rev. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 157.
25
BARROSO, Luís Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito Constitucional Brasileiro (Pósmodernidade, teoria crítica e pós-positivismo). In: Barroso, Luís Roberto (org.). A Nova Interpretação
Constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 38.
26
SARLET, op. cit., p.47 e 55.
24
28
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
propósito de formular um limite à atuação, ou à omissão dos poderes constituídos, em garantia
das minorias e de todo e qualquer indivíduo”.27
Impende ressaltar que o Estado deve dirigir suas atividades a fim de garantir a todo ser
humano um mínimo de direitos para que possa existir com dignidade, a qual é princípio
positivado na Constituição. O Estado, portanto, é o instrumento que os homens se valem para
assegurar o núcleo essencial da pessoa humana. E o mais importante é que, sem o mínimo
existencial, não há dignidade. Em suma, a dignidade da pessoa humana, valor supremo da
democracia, constitui o núcleo do mínimo existencial.
6 MÍNIMO EXISTENCIAL
Por ora, falamos a respeito das lutas históricas travadas pelos seres humanos contra o
poder absoluto dos monarcas no decorrer dos séculos a fim de fazerem valer seus direitos
fundamentais, bem como sobre o aparecimento das Constituições que finalmente limitariam o
poder do Estado. Também discorremos sobre a influência do jusnaturalismo difundido nas idéias
dos pensadores contratualistas, os quais afirmavam a superioridade do indivíduo, as lutas contra
o absolutismo e a concentração do poder, bem como o aparecimento do iluminismo com a
elevada crença na razão e a consequente exigência da racionalização do poder.
Posteriormente, surge a política de intensificação dos direitos fundamentais ou
humanos. Teve como fator decisivo o nazismo, os campos de concentração, técnicas de
extermínio em massa por meio das câmaras de gás e fornos crematórios, trabalhos forçados e
experiências cruéis com seres humanos.
Em consequência desses horrores ocorridos, os direitos fundamentais ou humanos
adquiriram muita importância após o fim da Segunda Guerra Mundial e a criação da ONU em
1945, quando ganharam relevância no âmbito internacional, principalmente com a aprovação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, que foi considerada o marco divisor do
processo de internacionalização dos direitos humanos.
Assim, superados os períodos de limitação do poder do Estado, de positivação e
declaração dos direitos dentro do ordenamento jurídico, passamos à fase importantíssima na
efetivação desses direitos: a das prestações.
Ana Paula de Barcellos28 ministra que “a mera positivação desses direitos ainda não foi
capaz de dar solução real e final ao problema. A idéia do mínimo existencial surge exatamente
como uma tentativa de apresentar soluções para tais questões, na medida em que procura
representar um subconjunto dentro dos direitos sociais, econômicos e culturais menor –
minimizando o problema dos custos – e mais preciso – procurando superar a imprecisão dos
princípios. E, mais importante, que seja exigível do Estado.”
O autor Ingo Wolfgang Sarlet29 leciona que Otto Bachof foi o primeiro autor publicista
a sustentar a possibilidade de reconhecimento de um direito subjetivo à garantia positiva dos
recursos mínimos para uma existência digna. Já no início da década de 1950, ele sustentou que o
princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso I, da Lei Fundamental da Alemanha)
não reclama apenas a garantia da liberdade, mas também um mínimo de segurança social, já que,
sem os recursos materiais para uma existência digna, a própria dignidade da pessoa humana
ficaria sacrificada.
27
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da
pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.192.
28
BARCELLOS, Ana Paula. Legitimação dos Direitos Humanos: O mínimo existencial e algumas
fundamentações: John Rawls, Michael Walzer e Robert Alexy. Pág. 23, Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
29
SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, mínimo existencial e direito privado. In: Revista de
Direito do Consumidor, 2007, num: 61.
29
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
Consta, ainda, que um ano depois da formulação feita por Otto Bachof, o Tribunal
Administrativo da Alemanha reconheceu um direito subjetivo do indivíduo carente a auxílio
material por parte do Estado alegando, com base na dignidade da pessoa humana, direito geral de
liberdade e direito à vida, pois o indivíduo na qualidade de pessoa autônoma e responsável deve
ser reconhecido como titular de direitos e obrigações, o que implica na manutenção de sua
existência.
O mínimo existencial, portanto, apresenta uma vertente garantista e uma vertente
prestacional na medida em que o Estado deve proporcionar meios que satisfaçam as condições
mínimas de vida da pessoa e da família. Conforme observamos, o particular está totalmente
vinculado ao Estado, pois a função prestacional deste tem caráter de direito social e exigível.
Após essas primeiras observações, podemos definir o mínimo existencial no conceito
dado por Ricardo Lobo Torres como “um direito às condições mínimas de existência humana
digna que não pode ser objeto de intervenção do Estado e que ainda exige prestações estatais
positivas” 30.
Ingo Wolfgang Sarlet (2007:105) aduz que “a garantia (e direito fundamental) do
mínimo existencial independe de expressa previsão constitucional para poder ser reconhecida,
visto que decorrente já da proteção da vida e dignidade da pessoa humana”.
Um exemplo desse fato é a obrigação de prestar alimentos materializada pelo legislador
infraconstitucional, sobretudo pelo fato de estarem em jogo a vida e a dignidade da pessoa
humana que por si só não tem condições de se manter.
Ainda, na mesma linha de raciocínio de Sarlet, o autor Robert Alexy31 declara que o
mínimo existencial “constitui uma regra constitucional, resultado da ponderação dos princípios
da dignidade da pessoa humana e da igualdade real”. Nesse sentido, para o citado autor, a idéia
do mínimo existencial deve ser extraída do princípio fundamental da dignidade da pessoa
humana. Assim, qualquer medida referente ao mínimo existencial se tornaria obrigatório e
sindicável pelo Poder Judiciário.
Em síntese, sobre o pensamento de Alexy, temos de que o mínimo existencial tem por
núcleo a dignidade da pessoa humana, por intermédio da qual garante um conjunto mínimo de
circunstâncias materiais que todo homem tem direito.
Diferentemente do exposto, nos seus complexos estudos sobre John Rawls e Walzer,
Ana Paula de Barcellos32 ensina que:
Para Rawls, sem o mínimo social (situação eqüitativa de oportunidades), não há a
fruição efetiva dos direitos da liberdade, bem como se inviabiliza ab initio qualquer
justiça distributiva. O mínimo existencial ou social, portanto, constitui uma verdadeira
condição da liberdade. Para Walzer, diferentemente, a garantia do mínimo existencial,
além de um valor das sociedades liberais ocidentais, é também imposição da
moralidade mínima, vale dizer: da própria natureza humana, aspecto universal do
indivíduo, funcionando como pressuposto básico de sua participação em qualquer
comunidade.
A autora mostra finalmente que Rawls fala sobre um mínimo social composto por um
subconjunto dentro dos direitos socioeconômicos e culturais. Por outro lado, Walzer tenta
descrever um modelo geral para alcançar uma sociedade justa, onde haja equidade entre
comunidade e povo. Em síntese, a preocupação de Walzer é de descrever uma fórmula de justiça
distributiva no âmbito das democracias liberais ocidentais. O mínimo existencial, portanto, seria
30
TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de Direito Constitucional Financeiro e Tributário. Volume III – Os Direitos
humanos e a Tributação – Imunidades e Isonomia. Rio de Janeiro. Editora Renovar. 1999.
31
ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1997.
32
BARCELLOS, Ana Paula. (Coord.). Legitimação dos direitos humanos.Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 46.
30
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
composto, em sua visão, de conjuntos de direitos mínimos inerentes ao homem que decorrem de
sua própria humanidade.
Graças ao grande desenvolvimento populacional, ao aumento das desigualdades sociais,
à pobreza, lucros dos grandes empresários, o acúmulo concentrado de capital pela burguesia, o
Estado deixa de ser o único opressor. Agora o ponto crucial da questão não é mais o de
estabelecer limites ao poder do Estado, mas sim o de efetivar os direitos já consagrados
demandando uma prestação estatal.
7 MÍNIMO EXISTENCIAL,
POSITIVOS E NEGATIVOS
PRESTAÇÕES
E
DIREITOS
FUNDAMENTAIS
O artigo 227 da Constituição Federal estabelece que é dever do Estado, em parceria com
a família e a sociedade, assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade, o direito à
vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão.
Ademais, o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, eleva a dignidade da
pessoa humana como um dos fundamentos da República.
Observamos que a Constituição Federal enumera vários direitos fundamentais. Mais
especificamente, o que importa no presente tópico, é o direito determinado, conhecido como
direito subjetivo.
Já a expressão direito fundamental positivo utilizada neste tópico não se refere ao
momento de recepção no ordenamento positivo de um Estado.
A nomenclatura referente aos direitos fundamentais positivos e negativos é explicada
pelo ilustre Pontes de Miranda33, o qual mostra que “direitos fundamentais positivos e direitos
fundamentais negativos não se alude ao conteúdo dos direitos subjetivos fundamentais, e sim à
pretensão do Estado. É classificação que só atende a isso. (...) Quando se distinguem direitos
fundamentais positivos e negativos apenas se alude ao papel do Estado na prestação”.
Flávio Galdino (2003:154) 34, em comentário relativo ao conceito dado por Pontes de
Miranda, destaca que, a partir dessa classificação, se pode concluir que existem direitos
subjetivos cuja efetivação independe da atuação positiva por parte do Estado, ou seja, independe
de qualquer prestação pública e, exatamente, por esse motivo, é que são chamados de direitos
negativos.
Ainda, Flávio Galdino35 assevera que “positivo e negativo aqui são expressões
empregadas para qualificar a obrigação (ou o dever) correlata ao direito em questão, sobre saber
se se trata de uma prestação facere ou non facere, in casu, a cargo do Estado, que via de regra
ocupa um pólo passivo da relação jurídica que tem como objeto um direito fundamental”.
Significa que a classificação mencionada ajuda a discernir entre os direitos
fundamentais que são de pronto exigíveis do Estado, o qual ocupa o polo passivo dessa relação
jurídica.
Entende-se, assim, que são direitos positivos, por exemplo, o direito à educação e à
saúde, os quais não podem ser autonomamente exercidos pelos indivíduos, pois surge a
necessidade da atuação estatal a fim de prestá-los. Entretanto, conclui ao argumentar que todos
os direitos públicos subjetivos são positivos, pois os direitos fundamentais tutelados pelo Estado
independem de qualquer ação positiva e, portanto, de qualquer custo.
33
MIRANDA, Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. Rio de Janeiro: Borsoi, 1960, p. 277.
BARCELLOS, Legitimação dos Direitos Humanos. [et al.]; org.: Ricardo Lobo Torres. – Rio de Janeiro:
Renovar, 2002, p. 154.
35
BARCELLOS, op. cit., p. 154.
34
31
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
Manoel Gonçalves Ferreira Filho36 aponta que “o Estado deve, por um lado, abster-se
de perturbar o exercício desses direitos e, por outro lado, tem a tarefa de, preventivamente, evitar
que sejam eles desrespeitados e, também, a de, repressivamente, restaurá-los se violados,
inclusive punindo os responsáveis por esta violação”.
Por essa razão, o Estado destina-se a agir de maneira comissiva objetivando diminuir as
distorções econômicas ocorridas na sociedade assegurando os direitos e garantias como o
trabalho, salário digno, à educação, participação nos lucros das empresas.
Forma-se, por conseguinte, o direito subjetivo. Conforme assinala Luís Roberto
Barroso37, “a norma jurídica de conduta caracteriza-se por sua bilateralidade, dirigindo-se a duas
partes e atribuindo a uma delas a faculdade de exigir da outra determinado comportamento. (...)
uma relação jurídica que estabelece um elo entre dois componentes: de um lado, o direito
subjetivo, a possibilidade de exigir; de outro, o dever jurídico, a obrigação de cumprir.”
O esquema elaborado pelo autor revela-se da seguinte forma: dever jurídico,
violabilidade e pretensão. Dessas, resultam, portanto, para os titulares dos direitos, situações
jurídicas imediatamente desfrutáveis, a serem materializadas em prestações positivas por parte
do Estado.
Elaborando-se um resumo de toda a idéia exposta, concluímos que o Estado, como
nação politicamente organizada, tem por objetivo supremo a realização do bem comum. Ele
efetivamente constitui um meio para que os indivíduos possam atingir o bem-estar e o progresso
da vida social. Para tanto, o Estado dispõe do mínimo existencial juridicamente exigível por
parte dos cidadãos em decorrência do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, a
qual é uma norma jurídica constitucional dotada de imperatividade e exigibilidade. O Estado,
destarte, ocupa o pólo passivo da relação jurídica e tem como função principal prestar os direitos
fundamentais. Cabe, portanto, ao administrador público garantir as condições mínimas para que
sejam efetivados os direitos fundamentais consagrados constitucionalmente. Se houver
ausência de prestações quando caracterizada a necessidade, estaremos diante do Estado
inconstitucional, não dotado de legitimidade e, como diria Rousseau, passível de ser destituído.
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34
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DO SÓCIO NA EMPRESA LTDA.
Luiz Antonio Ramalho Zanoti*
André Luiz Depes Zanoti**
Sumário: Introdução; 1. Sistema Tributário Nacional; 1.1 Impostos; 1.2 Taxas; 1.3 Contribuição de
Melhoria; 1.4 Empréstimos compulsórios; 1.5 Contribuições sociais; 2. Responsabilidade Tributária; 2.1
Responsabilidade Tributária por sucessão; 2.2 Responsabilidade Tributária subsidiária; 2.3
Responsabilidade tributária por substituição; Conclusão; Referências.
Resumo: o Estado tem a prerrogativa de efetuar o lançamento de tributos, como forma de viabilizar as
obras e os serviços públicos de que necessita a população. A responsabilidade pelo recolhimento desses
tributos pode atingir pessoas estranhas à relação tributária direta, tais como sócios, administradores,
gerentes e sucessores.
Palavras-chave: tributo, responsabilidade tributária, sócio, empresa.
Abstract: the State has the prerogative to effect the launching of tributes, as form to make possible the
public workmanships and services that the population needs. The responsibility for the collect of these
tributes can reach strange people to the relation direct tax, such as partners, administrators, controlling
and successors.
Word-key: tribute, tax liability, partner, company.
INTRODUÇÃO
Incumbe ao Estado o direito-dever de efetuar a arrecadação de tributos, dentre as várias
opções previstas na Constituição Federal.
Esta iniciativa se faz necessária para que o Estado possa suportar os gastos resultantes
do custeio da máquina pública, bem como aqueles originários dos serviços e dos investimentos a
serem realizados em benefício da população, alguns deles até mesmo impostos pela Carta
Magna.
A rigor, a responsabilidade pelo pagamento desses tributos é dos sujeitos passivos da
relação tributária, indicados na Lei Maior, de conformidade com cada espécie de exação.
A discussão surge, contudo, quando o agente tributário ou o Poder Judiciário impõe essa
responsabilização para pessoas que apenas indiretamente participaram do nascimento de um
determinado tributo. É o caso, por exemplo, de se responsabilizar, pessoal e ilimitadamente, os
sócios, os administradores, os gerentes e os sucessores, por débito tributário não-adimplido.
*
Mestre em Direito pela Universidade de Marília – UNIMAR, área de concentração em Empreendimentos
Econômicos e Mudança Social. Advogado, Administrador, Contador e Economista. Professor da FEMA – Fundação
Educacional do Município de Assis, das disciplinas Sistemática do Comércio Exterior e de Técnicas e Práticas
Cambiais e Direito do Trabalho. Pós-graduado em Didática Geral. Pós-graduando em Direito Civil e Direito do
Processo Civil Contemporâneo. E. mail: [email protected]
**
Mestrando em Teoria do Direito e do Estado, da Fundação de Ensino Eurípedes, de Marília. Pós-graduado em
Direitos Especiais e em Política e Estratégica. Professor de Direito Constitucional, Direito Internacional, Sociologia
e Teoria Geral do Estado nas Faculdades Integradas de Ourinhos – FIO. E-mail: andré[email protected]
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Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
Amplia-se essa discussão diante da crescente iniciativa do Poder Judiciário de
reconhecer a despersonalização da pessoa jurídica, sempre que a empresa se revelar impotente
para saldar os seus débitos tributários, ignorando, por completo, as exigências jurídicas
imprescindíveis para se impor medida traumática desse jaez.
A presente discussão atinge o seu clímax diante do fato de que alguns tribunais insistem
em condenar os sócios-gerentes ou administradores por crime de apropriação indébita, na
hipótese de não-recolhimento, aos cofres da Previdência Social, de valores descontados nas
folhas de pagamentos dos trabalhadores.
São estes tópicos que pretendemos discutir nesse breve trabalho científico, com o
objetivo de se interpretar o ordenamento jurídico pátrio de forma sistêmica, sob uma óptica
menos fazendária, menos burocrática, menos simplista e menos preconceituosa, porém, mais
realista, mais responsável e mais social, em cujo cerne desponte a valorização da dignidade da
pessoa humana, o mais expressivo dentre todos os princípios constitucionais.
1 SISTEMA TRIBUTÁRIO NACIONAL
O Sistema Tributário Nacional está contido num espectro mais amplo, denominado de
Sistema Constitucional. Esta expressão, adotada pela Constituição Federal (Título VI, Capítulo I,
artigos 145 a 162), não parece ser a mais adequada, vez que o princípio (também constitucional)
da autonomia dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, assegura a não-ingerência da
Federação em seara destes38. Por outro lado, a expressão em foco dá claramente a entender que a
Federação tem o condão de se sobrepor à autonomia dos entes menores, fato este que colide
frontalmente com o princípio federativo39, uma vez que Estados, Distrito Federal e Municípios
desfrutam de autonomia constitucional para elaborar seus respectivos sistemas.
O núcleo desse sistema é o tributo, que o artigo 3º, do Código Tributário Nacional,
define como toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa
exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade
administrativa.
Portanto, na concepção de tributo está contida a obrigação de se oferecer ao Estado,
compulsoriamente, prestação em dinheiro ou não, de conformidade com lei anterior que o criou,
incidente sobre ato lícito ou não, desde que não esteja fundamentada em sanção de ato ilícito.
Destaca-se, pois, o princípio40 da legalidade tributária, instituído no artigo 150, I, da
38
Não é por outras razões que, na análise de qualquer problema jurídico – por mais trivial que seja (ou
que pareça ser) --, o cultor do Direito deve, antes de mais nada, alçar-se ao altiplano dos princípios
constitucionais, a fim de verificar em que sentido eles apontam. Nenhuma interpretação poderá ser havida por boa
(e, portanto, por jurídica) se, direta ou indiretamente, vier a afrontar um princípio jurídico-constitucional.
(CARRAZZA, 2000, p. 33)
39
Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma qualquer. A desatenção ao princípio implica
ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave
forma de ilegalidade ou de inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio atingido, porque representa
insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu
arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. Isto porque, ofendê-lo, abatem-se as vigas que o sustêm e
alui-se toda a estrutura nelas esforçada. (BANDEIRA DE MELLO, 1996, p. 546)
40
Introduzida, na Filosofia, por Anaximandro, a palavra foi utilizada por Platão, no sentido de fundamento do
raciocínio (Teeteto, 155d), e por Aristóteles, como a premissa maior de uma demonstração (Metafísica, V. 1, 1.012 b
32 – 1.013 a 19). Nesta mesma linha, Kant deixou consignado que “princípio é toda proposição geral que pode
servir como premissa maior num silogismo” (Crítica à Razão Pura, Dialética, II. A). (CARRAZZA, 2000, p. 30).
36
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
Constituição Federal: É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios
exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Vale mencionar que essa condição se
constitui numa das cláusulas pétreas da Carta Magna, eis que a teor do artigo 60, parágrafo 4º,
inciso IV, não pode ser alvo de emendas supressivas.
Por tradição, as arcadas sempre ensinaram a divisão clássica dos tributos, nas seguintes
espécies: impostos, taxas e contribuições de melhoria. Todavia, a atual Constituição Federal
ampliou esse universo de opções, incluindo, dentre aquelas espécies, os empréstimos
compulsórios e as contribuições sociais41.
1.1 IMPOSTOS
É um dos mecanismos de que se vale o Estado para realizar o seu direito-dever de
exação, necessário para fomentar o custeio da administração pública, financiamento de obras,
bem como amortização ou liquidação de empréstimos contraídos por esta, e os seus respectivos
serviços.
Com efeito, o pagamento do imposto se constitui numa das alternativas de se promover
um maior equilíbrio na distribuição de rendas de um país, pois é uma oportunidade de tratar os
desiguais, economicamente, com desigualdade, na medida de suas desigualdades. Isto é, com
estrita observância do princípio da capacidade contributiva de cada cidadão, cada um destes
contribui com uma parcela de suas potencialidades econômicas, se enquadrados nas espécies
positivadas, e transfere ao Estado, para que este atinja o seu desiderato.
Essa transferência pode ser materializada por meio do próprio contribuinte atingido pela
incidência tributária, ou, indiretamente, pelo consumidor final, a quem foi repassado tal ônus no
momento em que adquiriu determinado produto ou serviço.
Para a mensuração do valor do imposto poderão ser utilizadas três estratégias: quantias
fixas, que independem dos valores dos produtos, serviços e de avaliação dos bens sobre os quais
ele incidiu; pode ser, também, proporcional, ou seja, fixa-se uma alíquota que incidirá sobre as
bases de cálculos, independentemente das dimensões destas; há, finalmente, a possibilidade de se
estabelecer alíquotas variadas, que evoluem, cada uma delas, à medida que a base de cálculo do
imposto se eleve em níveis pré-concebidos em lei.
Mister se faz frisar que o lançamento do imposto não exige uma automática e específica
contrapartida do Estado. É nesse ponto que reside a principal diferença entre imposto e taxa.
1.2 TAXAS
O Estado tem o poder de efetuar o lançamento de taxas, como forma de ser reembolsado
pelo fato de ter tornado disponíveis serviços públicos aos contribuintes. Há de se notar, com
efeito, que, ao contrário do que ocorre com o imposto, o lançamento da taxa impõe a prestação
de serviço específico que beneficia o cidadão.
41
Contidas nos art. 149 e 195, da Constituição Federal.
37
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
A taxa emerge, obrigatoriamente, a uma atuação do Estado, mediante a contraprestação
do exercício do seu poder de polícia ou a prestação de serviço público específico e indivisível
(artigo 145, II, da Constituição Federal). No momento em que o serviço público é colocado à
disposição do contribuinte, nasce a obrigação tributária, independentemente da utilização ou não
por parte daquele.
A base de cálculo da taxa difere daquela que se leva em consideração para delimitação
do imposto (artigo 145, parágrafo 2º, da Constituição Federal). Com efeito, é inconstitucional a
base de cálculo das taxas, de limpeza pública e de conservação de vias e logradouros públicos,
que se leve em consideração a área de imóvel e a extensão deste no seu limite com o logradouro
público42. E isso se deve ao fato de que tais elementos se constituem em parâmetros para o
cálculo do IPTU.
O STF vem entendendo que é constitucional a cobrança de taxa de coleta de
lixo domiciliar, desde que não vinculada à prestação de outros serviços de
caráter universal e indivisível, como a limpeza de logradouros públicos,
varrição de vias públicas, limpeza de bueiros, de bocas-de-lobo e de galerias de
águas pluviais, capina periódica e outros43. (HARADA, 2006, p. 330)
Para a definição do valor da taxa há de se considerar a relação custo/benefício para o
contribuinte, muito embora a Constituição Federal e o Código Tributário Nacional não exijam
perfeito equilíbrio desse binômio.
Desta forma, são inconstitucionais as leis promulgadas pelos Estados-membros, que
instituem as taxas judiciárias, eis que estas incidem sobre o valor atribuído à causa, sem guardar
qualquer tipo de relação com o custo do serviço público específico e divisível prestado pelo
Estado ao contribuinte. Isso é facilmente perceptível porque o custo que o Estado tem para
gerenciar um processo judicial, em todas as suas fases, não é maior e nem menor em função do
valor atribuído à causa.
Desta forma, a via tributária para se fixar exações maiores para as causas de maior valor
econômico – como acontece hodiernamente – é o imposto, e não a taxa. Assim, é possível
afirmar que as taxas judiciais, da forma que são repetidamente cobradas em diversas fases do
processo, podem ferir o princípio da capacidade contributiva, além de se constituírem numa
barreira que dificulta o acesso à justiça, o que contraria os dispostos no parágrafo 1º do artigo
145 e no inciso XXXV do artigo 5º, da Constituição Federal44.
1.3 CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA
É um mecanismo de exação de que se utiliza o Estado, incidente sobre a valorização de
imóvel do contribuinte, em decorrência de obra realizada pelo próprio Estado. Está prevista no
artigo 145, inciso III, da Constituição Federal e disposição pormenorizada representada pelos
artigos 81 e 82, do Código Tributário Nacional.
A sua geração leva em conta o princípio da eqüidade, vez que toda a comunidade
contribui, com o recolhimento de seus tributos, para com o financiamento da obra em questão,
com benefício direto para poucos. Vale dizer que não mais se exige que o montante a ser
arrecadado, sob esta rubrica, seja idêntico ao do valor total da obra pública em foco.
O inconveniente, para o lançamento da contribuição de melhoria, é circunscrever quais
42
Cf. RE n. 204.827/SP.
Cf. RE n. 245.539-RJ e 361.437-MG .
44
Cf. Súmula 667, do STF.
43
38
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
foram os bens que efetivamente sofreram valorização imobiliária por conta da obra pública
realizada pelo Estado, fato este que inibe, muitas vezes, a iniciativa das prefeituras municipais de
recorrer a este tipo de exação.
1.4 EMPRÉSTIMOS COMPULSÓRIOS
A União – e somente ela – pode instituir o empréstimo compulsório, mediante lei
complementar, como forma de otimização de suas receitas, somente na hipótese de o ente estatal
tiver que suportar despesas extraordinárias advindas de calamidade pública, guerra externa ou
sua iminência, ou na hipótese de investimento público de caráter urgente e de relevante interesse
nacional (artigo 148, incisos I e II, da Constituição Federal).
Os valores obtidos a título de empréstimo compulsório deverão ser total e
obrigatoriamente canalizados para as rubricas orçamentárias que o originou, constituindo-se,
pois, uma receita vinculada.
1.5 CONTRIBUIÇÕES SOCIAIS
A natureza jurídica das contribuições sociais é cercada de polêmica, pois para alguns
doutrinadores elas são rotuladas de impostos; para outros, de taxas; outros, ainda, não
identificam natureza tributária alguma.
O Supremo Tribunal Federal – STF – já decidiu que as contribuições sociais constituem
uma espécie própria de tributo ao lado dos impostos e das taxas, na linha, aliás, da lição de
Rubens Gomes de Souza (‘Natureza tributária da contribuição do FGTS’), RDA 112/27, RDP
17/305). Quer dizer, as contribuições não são somente as de melhoria. Essas são uma espécie do
gênero contribuição; ou uma subespécie da espécie contribuição45.
No mesmo diapasão, o Supremo Tribunal Federal – STF – decidiu que sendo, pois, a
contribuição instituída pela Lei 7.689/88 verdadeiramente contribuição social destinada ao
financiamento da seguridade social, com base no inciso I, do artigo 195, da Carta Magna [...]
No tocante às contribuições sociais [...] não só as referidas no Art. 149 [...] têm natureza
tributária, [...] mas também as relativas à seguridade social previstas no Art. 195 [...]46.
Entendemos que a contribuição social é espécie tributária vinculada à atuação indireta
do Estado. Tem como fato gerador uma atuação indireta do Poder Público mediatamente
referida ao sujeito passivo da obrigação tributária. (HARADA, 2006, p. 333)
Elas têm a sua origem no fato de o Estado ter de suportar despesas de amplo espectro
social, as quais vão de encontro às necessidades de uma grande maioria de contribuintes
considerados hipossuficientes, economicamente falando. Elas estão previstas nos artigos 149 e
195, da Constituição Federal.
Também os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir contribuição,
cobrada de seus servidores, para o custeio, em benefício destes, de sistemas de previdência e
assistência social, conforme dispõe o artigo 149, parágrafo 1º.
Por outro lado, compete exclusivamente à União instituir contribuições sociais de
intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, de
conformidade com o que dispõe o artigo 149, da Constituição Federal.
45
46
Cf. RE n. 138.284-8-CE.
Cf. RE n. 146.733-9-SP.
39
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
2 RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
Os artigos 128 e seguintes, do Código Tributário Nacional, estendem a responsabilidade
tributária mesmo para as pessoas que não participam diretamente das circunstâncias positivadas
na regra matriz da incidência tributária. É o caso, portanto, de incidência tributária indireta, que
pode ser dos tipos por transferência ou por substituição.
Ocorre a responsabilidade tributária indireta por transferência somente depois de
configurado o fato gerador da incidência tributária, em caso de sucessão que evidencie a
solidariedade entre os responsáveis diretos anterior (sujeito passivo natural) e o atual, como
disciplina o artigo 134, do Código Tributário Nacional. Impende ressaltar que essa atribuição de
responsabilidade tributária para terceiro deve ser efetuada em consonância com o que determina
o artigo 121, inciso II, do Código Tributário Nacional, para que não se constitua em medida
arbitrária.
Por sua vez, a responsabilidade tributária indireta por substituição surge antes do
nascimento do fato gerador.
Estamos, portanto, diante de um quadro no qual o fisco atribui responsabilidade
tributária a quem originalmente não a teria. Isso, contudo, é possível, se presentes todas as
seguintes condições: previsão legal; que o terceiro tenha vinculação com o fato gerador da
obrigação tributária; que essa responsabilidade se limite tão-somente à obrigação principal
(artigo 121, do Código Tributário Nacional).
A sucessão empresarial dar-se-á por atos inter vivos ou causa mortis. É sucessor quem,
numa dessas duas circunstâncias, assume o patrimônio do devedor natural, deste próprio ou de
seus herdeiros ou legatários, com o ônus de solver débitos tributários inadimplidos, conforme
preceituam os artigos 129 a 133, do Código Tributário Nacional.
É importante destacar, porém, que essa responsabilidade se estende até o limite do
quinhão, do legado ou da meação (artigo 130, inciso II, do Código Tributário Nacional). Iniciase depois da abertura da sucessão, pois antes desta cabe ao espólio a responsabilidade pela
sucessão tributária (artigo 131, inciso III, do Código Tributário Nacional).
Na hipótese de fusão, transformação ou incorporação de empresas, a corporação
emergente responde pelos tributos vencidos e não-adimplidos até a data daquelas operações
(artigo 132, do Código Tributário Nacional).
Com efeito, a responsabilidade tributária do sucessor alcança os créditos tributários já
constituídos, aqueles que estão em fase de constituição e os constituídos posteriormente, desde
que o fato gerador da incidência tributária tenha ocorrido antes da sucessão.
Qualquer avença entre as partes, verbal ou expressa, que limite a responsabilidade
tributária do sucessor, não prevalece contra os créditos de que é titular a Fazenda Pública, por
força do artigo 132, do Código Tributário Nacional.
2.1 RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA POR SUCESSÃO
40
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
Os adquirentes ou remitentes47 de imóveis respondem também pela sucessão tributária,
no que concerne aos impostos que tenham como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a
posse de bens imóveis. Respondem, inclusive, pela taxas de serviço e pela contribuição de
melhoria lançadas sobre o imóvel transmitido, tudo como determina o artigo 130, do Código
Tributário Nacional.
Em caso de aquisição de fundo ou de estabelecimento empresarial, a pessoa física ou
jurídica adquirente responde por todas as dívidas fiscais da empresa adquirida, conhecidas ou
não, ainda que a nova empresa atue sob outra razão social (artigo 133, do Código Tributário
Nacional). Essa responsabilidade é total se o alienante interromper a exploração empresarial
daquele estabelecimento (inciso I). Se, contudo, a atividade do alienante não sofrer solução de
continuidade – ou ainda que sofra, se restaurada num prazo inferior a seis meses, naquele mesmo
ou em outra empresa – essa responsabilidade passa a ser subsidiária com o alienante insolvente
(inciso II).
Ainda nessa área, festeja-se o teor da Lei n. 11.101/2005 – Lei de Falência e de
Recuperação de Empresas –, que, combinada com a Lei Complementar n. 118/2005, exclui a
responsabilidade pela sucessão tributária na hipótese de alienação judicial de empresa que seja
alvo de processo de falência, bem como de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de
recuperação judicial (artigo 133, incisos I e II, do Código Tributário Nacional).
Esse benefício não alcança o sócio da empresa falida ou em recuperação judicial, ou
sociedade controlada pelo devedor falido ou em recuperação judicial (inciso I), nem parentes, em
linha reta ou colateral até o 4º grau, consangüíneo ou afim, do devedor falido ou em recuperação
judicial ou de qualquer de seus sócios (inciso II). Estão, também, excluídos desse benefício os
agentes do falido ou do devedor em recuperação judicial, se constatada a iniciativa de se fraudar
a sucessão tributária (inciso III).
Vale dizer que o produto da alienação de empresas que enfrentam processo de falência
ou de recuperação judicial deverá ser colocado à disposição dos respectivos juízos, o qual será
utilizado para liquidar ou amortizar créditos extraconcursais e as demais categorias hierárquicas
de créditos (parágrafo 3º, do artigo 133, do Código Tributário Nacional).
Há de se ressaltar que essa ausência de responsabilidade pela sucessão tributária se deve
ao cumprimento de diretriz maior contida na Lei de Falência e de Recuperação de Empresas, que
privilegia a função social das organizações produtivas, as quais se constituem em bens sociais,
haja vista a sua imensa importância no contexto da sociedade. Ao agir desta forma, o legislador
deu uma significativa cota de contribuição, da parte do Estado, para que ocorra a restauração da
saúde econômica e financeira de empresas alquebradas por débitos sociais inadministráveis.
Com essa redação, o artigo 133, do Código Tributário Nacional, passou a constituir-se
num importante incentivo para que pessoas ou grupos adquiram e revitalizem empresas
insolventes, para que estas recuperem a sua capacidade dever de cumprir sua função social, com
a geração de empregos, respeito para com os consumidores, meio ambiente, comunidade,
acionistas/cotistas e o próprio Estado48.
2.2 RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA SUBSIDIÁRIA
Terceiros também poderão ser responsabilizados por obrigação tributária principal, se
for impossível cobrá-la do contribuinte, desde que esta seja resultante de ação ou omissão na
qual aqueles tenham intervindo (artigo 134, do Código Tributário Nacional).
Dentre esses terceiros responsáveis pela sucessão tributária estão elencados os pais,
pelos tributos devidos pelos filhos menores (inciso I); os tutores e curadores, pelos tributos
47
48
Do latim redimere, ou seja, aquele que resgata o bem-onerado.
São os chamados stakeholders.
41
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
devidos por seus tutelados ou curatelados (inciso II); os administradores de bens de terceiros,
pelos tributos devidos por estes (inciso III); o inventariante, pelos tributos devidos pelo espólio
(inciso IV); o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela massa falida ou pela empresa
em recuperação (inciso V); os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício, pelos tributos
devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício (inciso VI); e
os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas (inciso VII).
Embora o artigo 134, do Código Tributário Nacional, imponha que essa
responsabilidade seja solidária, na verdade o próprio dispositivo legal se contradiz. Não há
dúvida de que se trata de responsabilidade subsidiária, eis que ela somente passa a ser exigida
nos casos de impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação tributária principal
pelo contribuinte. Portanto, não há dúvida alguma que o terceiro somente poderá ser acionado na
hipótese de o contribuinte não adimplir o débito tributário.
A responsabilidade tributária atinge as pessoas indicadas nos incisos I a VII, bem como
os mandatários, prepostos, empregados, diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas
de direito privado, se tais créditos forem resultantes de atos praticados com excesso de poderes
ou infração de lei, contrato social ou estatutos (artigo 135, incisos I a III)49. Portanto, não se trata
de todo e qualquer sócio, mas daqueles que detinham poder decisório no âmbito da empresa. Ou
seja, é em citado dispositivo que reside a grande invocação fazendária para as execuções
fiscais, inicialmente promovidas em relação à pessoa jurídica privada. (SILVA NETO, 2006, p.
331)
2.3 RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA POR SUBSTITUIÇÃO
A dedução lógica que sobressai é que os créditos tributários regularmente constituídos
não se enquadram na hipótese prevista no artigo 135, III, do Código Tributário Nacional, eis que
não são resultantes de excesso de poder, ou de infração legal, contratual ou estatutária, que
refogem a regular gestão da sociedade. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Justiça – STJ –
já decidiu que o simples atraso no pagamento de tributo não se constitui na infração prevista no
artigo em comento50.
Trata-se, pois, de responsabilidade por substituição, que abrange inclusive as obrigações
acessórias, que parte do princípio de quem tem poderes, tem, também, responsabilidade, na
mesma proporção.
É importante salientar que o excesso de poder se configura quando pelo menos um dos
seguintes requisitos se fizer presente, como indica o artigo 1.015, parágrafo único, do Código
Civil51: que a limitação de poderes esteja inscrita ou averbada no registro próprio da sociedade;
que fique provado que era conhecida de terceiros; que se trate de operação evidentemente
estranha aos negócios da sociedade. A responsabilidade do sócio-gerente deflui não só da
impossibilidade de a sociedade pagar o credor, mas da ilegalidade ou fraude que o sócio
praticar na gerência. Essa é a doutrina dominante. (REQUIÃO, 2006, p. 527)
Digno de nota, também, é o fato de que os tribunais têm entendido, de forma pacífica,
que os atos praticados com excesso de poderes, pelos sócios das empresas, vinculam as
49
Cf. AC 0103623700 – (8175) – 4ª. CCív. – Rel. Juiz Ruy Cunha Sobrinho – DJPR 16.05.1997.
Para MARTINS, não há Direito Penal Tributário e nem Direito Tributário Penal, mas tão somente Direito
Tributário. (MARTINS, Ives Gandra da Silva Martins. Cadernos de Pesquisas Tributárias. v. 4, São Paulo: Resenha
Tributária, 1979, p. 261-283.
50
Ag. 59.361-SP, Rel. Min. Bilac Pinto, Resenha Tributária. p. 497, seção 1.2, 1975. No mesmo sentido, REsp.
174.532/PR e AgRg no REsp 500.007-MG, DJU de 15/09/2003.
51
Os sócios-gerentes devem agir, no desempenho de suas funções, com o zelo que todo homem ativo e probo
costuma empregar na administração de seu próprio negócio. (Art. 153, da Lei n. 6.404/76 – Lei das Sociedades por
Ações, e Art. 1.011, do Código Civil).
42
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
sociedades aos efeitos dessas condutas, dada à celeridade e intensidade com que hodiernamente
se processam as operações mercantis, o que tornariam impossível a prévia detecção de tais
irregularidades por terceiros de boa-fé52. Essa interpretação foi consolidada em homenagem à
‘teoria da aparência’, que conduz ao seio social a solução de impasses dessa natureza.
(GONÇALVES NETO, 2002, p. 207)
Contudo, o ponto nevrálgico de qualquer discussão em torno da responsabilidade do
sócio da empresa está em estabelecer se ele [sócio] também responde, com o seu patrimônio
pessoal, de forma solidária e ilimitada, em caso de insolvência de débitos tributários.
Não vemos motivo para essa celeuma, pois por tratar-se de empresa de responsabilidade
limitada, a responsabilidade de cada um dos sócios está adstrita à plena integração do capital
social. Ou seja, cada um dos sócios é responsável pela integralização de 100% do capital social.
A conclusão natural a que se chega é que, integralizado totalmente o capital social, nem uma
responsabilidade pessoal sequer atingirá os sócios, na hipótese destes terem desempenhado as
suas funções com boa-fé. Logo, inadimplente a empresa, eles não poderão ser atingidos por
débitos sociais de qualquer espécie, inclusive os de natureza tributária, mesmo que
subsidiariamente.
Com efeito, o simples inadimplemento tributário não caracteriza infração legal, a ponto
de se impor a responsabilização do sócio ou do administrador, por substituição, pelos créditos
decorrentes de obrigações tributárias. É possível fazer tal afirmação porque não seria crível
imaginar que a administração de uma sociedade, diante de ausência de liquidez a curto prazo,
preferisse recolher os tributos devidos, a efetuar o pagamento regular dos salários de seus
empregados. Da mesma forma não seria acreditável que, em idênticas condições financeiras, os
administradores optassem por recolher, pontualmente, os tributos devidos, em vez de pagar os
seus credores pelo fornecimento de produtos e/ou serviços indispensáveis ao funcionamento
normal da empresa.
Nas sociedades por ações, a condição do acionista é ainda mais confortável, pois este
responde, pessoalmente, apenas e tão-somente pela integralização das ações que subscreveu.
O mesmo não se pode dizer das sociedades não-personificadas (ou sociedades em
comum) e daquelas constituídas sob a égide das em nome coletivo, ou dos sócios comanditados
nas comanditas simples e por ações, os quais respondem, subsidiária e ilimitadamente, pela
totalidade dos débitos sociais não-adimplidos. (NEGRÃO, 2005, p. 283)
Novo conflito interpretativo surge quando se aborda a responsabilidade do sócio pelo
não-recolhimento de contribuições previdenciárias descontadas dos empregados. É verdade que
os tribunais têm, vez ou outra, entendido que o sócio, nessas condições, é pessoal e
ilimitadamente responsável por esse tipo de inadimplência, com base no entendimento de que
teria ocorrido a apropriação indébita de valores que deveriam ter sido carreados, em tempo hábil,
para a Previdência Social53.
A Lei n. 8.620, de 5/1/93 estabelece, no artigo 13, que são responsáveis solidários pelo
cumprimento da obrigação previdenciária principal, o titular de firma individual e os sócios das
empresas por cotas de responsabilidade limitada, com a firma individual e a sociedade,
respectivamente. Desta forma, os acionistas controladores, os administradores, os gerentes e os
diretores respondem solidária e subsidiariamente, com os seus bens pessoais, quanto ao
inadimplemento das obrigações para com a Previdência Social, por dolo ou culpa.
Requião chega até mesmo a afirmar que a sociedade tinha meios de pagar, pois
descontou dos salários dos empregados as contribuições previdenciárias destes. Todavia, [...]
por fraude ou desídia, não importa, descumpriu a lei. E, complementa: A sociedade, nesse meio
52
Cf. RT-707/175.
Se a irregularidade era conhecida de terceiros, não se aplica a responsabilidade social (Art. 1.015, III, do Código
Civil).
53
Cf. Rec. Extr. N. 76.289-SP, in DJU em 02/01/74 e Anuário de Jurisprudência Íncola, 1974, p. 196.
43
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
de tempo, tornou-se insolvável [...] (REQUIÃO, 2006, p. 528).
Ousamos discordar desse entendimento, eis que ele se reveste do excessivo e cômodo
apego ao formalismo, privilegiando a interpretação insólita, própria de quem nunca administrou
uma quitanda sequer.
É pueril imaginar que a empresa que desconta contribuições sociais dos salários dos
seus empregados tenha, naturalmente, condição financeira de, logo a seguir, em data estipulada
em lei, capacidade financeira para promover o devido recolhimento aos cofres públicos, do
respectivo montante. Está aí havendo uma inexplicável confusão entre descontar do trabalhador
e, por outro lado, capacidade para o recolhimento. Em primeiro lugar, a empresa não efetua
desconto, mas, na verdade, deixa de pagar ao empregado a importância que deve ser canalizada à
Previdência Social. Para quem tem uma visão puramente formalista, isso não passa de um
simples jogo de palavras, que tenta encobrir um ato desidioso do sócio (ou é da empresa?).
Contudo, quem se envolve, no dia-a-dia, no centro nevrálgico da administração de uma empresa,
sabe, perfeitamente, que é impossível fazer a devida e automática destinação de determinadas
somas de dinheiro (mesmo porque “dinheiro não tem cor”), especialmente nas empresas que
enfrentam dificuldades para solver os seus compromissos financeiros de curto prazo.
Poder-se-ia, então, indagar: um sócio (ou mesmo aqueles que defendem a
responsabilização do sócio nessas circunstâncias), tendo em mãos recursos financeiros, na época
oportuna, apenas para promover o seu recolhimento à Previdência Social e não possuindo
dinheiro em caixa para efetuar o pagamento simultâneo de faturas de energia elétrica (apenas
para citar um único exemplo), faria opção pela liquidação de qual das duas responsabilidades?
Se, com fundamento num raciocínio meramente burocrata, optasse pela satisfação do débito
tributário, sua empresa ficaria sem energia elétrica, o que inviabilizaria os negócios sociais,
trazendo transtornos para os empregados, para o exercício da salutar concorrência. Poderia, se
for o caso, culminar com a inibição das exportações do País, bem como redução das atividades
econômicas da cidade ou da região. Estar-se-ia adimplente perante o Estado, porém, como
conseqüência, instalar-se-ia um caos social e econômico. Com efeito, se, nessas exatas
circunstâncias, o sócio-gerente preterir os débitos tributários, é de se indagar, então: onde está
alojada a desídia, a fraude, a imprudência, a violação ao contrato/estatuto social ou às leis?
Mais do que isso: dificuldades socioeconômicas, tão comuns na vida das empresas,
inclusive dentre as gigantes multinacionais54, ainda que geradas por imprecisões administrativas,
não tornam ilimitada, por si só, a responsabilidade pessoal do sócio que, originalmente, tem
responsabilidade limitada.
Como se isso não bastasse, o Supremo Tribunal Federal – STF – já decidiu que
sociedades, cujos sócios têm responsabilidade limitada, os bens particulares destes não podem
ser penhorados, em caso de dívida fiscal contraída pela empresa dissolvida55.
Apenas para argumentar, no caso da hipótese de aplicação da teoria da desconsideração
da personalidade jurídica da empresa, esta iniciativa extravagante deve ser precedida de estudo
de alta indagação, de cuidadosa e aprofundada pesquisa de fatos concretos, respeitando o devido
processo legal, para ficar cabalmente comprovado que ocorreu desvio malicioso da finalidade
social da pessoa jurídica, com proveito ilícito dos sócios. Assim, por ser uma medida
excepcional, não pode se basear em meros indícios ou presunções, exigindo-se, pois, provas
incontestes. Desta forma, a invasão dos limites do artigo 20, do Código Civil, não é meta que se
viabiliza mediante um singelo e superficial despacho judicial, sob pena de se aplicar duros tratos
à hermenêutica, com a conseqüente destruição dos princípios seculares que nortearam a
constituição do instituto da pessoa jurídica56.
54
Vejam-se os casos recentes de todas as montadoras de automóveis do ocidente.
Cf. Rec. Extr. n. 36.488, 2. Turma, em 21/08/1968, in RTJ 48/87.
56
Cf. RT-657/120 e RT-673/160 (Tribunal de Justiça de São Paulo); RT-736/315 (Tribunal de Justiça da Bahia);
RT-690/103 e RT-708/116 (1º. Tribunal de Alçada Cível de São Paulo); RT-659/154 (Tribunal de Justiça de Minas
Gerais); RT-792/318 (2º. Tribunal de Alçada Cível de São Paulo).
55
44
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
Com efeito, há de se localizar o autor da ilegalidade, comprovar a sua responsabilidade
e trazê-lo à tela da lide. Atitudes generalistas de operadores de direito, de quem pede decisões
traumáticas desse jaez e de quem as concede, sem as devidas cautelas de estilo – vício que tem
permeado decisões em nossos tribunais –, constituem-se numa afronta aos princípios jurídicos
mais elementares, dentre os quais se destacam o respeito à dignidade da pessoa humana.
Em seara trabalhista, por exemplo, é muito comum o advogado do reclamante pedir, e o
juiz conceder, a desconsideração da pessoa jurídica, com a conseqüente penhora ou arresto de
bens dos sócios da reclamada – mesmo daqueles minoritários e dos que jamais exerceram
qualquer papel administrativo –, a partir do momento em que se comprove que esta [empresa]
não reúna plena condição para solver o crédito pretendido. Não se cuida das necessárias cautelas
para se comprovar que realmente se trata de caso que tenha perfeito enquadramento no direito
positivado (abuso de poder, ofensa à lei ou ao contrato ou dissolução irregular da sociedade). É a
completa banalização de um instituto que fora criado apenas e tão-somente para impedir o
acobertamento de práticas ilegais dos sócios, sob o manto protetor da pessoa jurídica, mas que na
verdade tem sido utilizado como forma de alavancar o recebimento de créditos. Há de se
perquirir se essas atitudes insensatas são frutos da ignorância jurídica ou da má-fé dos
operadores de direito, pois a hermenêutica filosófica não dá liberdade para o intérprete se afastar
da norma interpretada.
Não temos a menor pretensão de fazer apologia à consumação da inadimplência
tributária. Trata-se, exclusivamente, de buscar uma opção menos traumática, para a empresa e
para a sociedade como um todo, diante da crise econômica e financeira daquela.
Vê-se, pois, que o sócio não agiu com desídia, ao preterir o recolhimento das
contribuições previdenciárias já descontadas dos empregados, em benefício da quitação de
outros débitos. Assim, a tese esposada por Requião e por alguns tribunais somente teria racional
aplicabilidade em caso de empresa que goza de plena saúde financeira, que prefere distribuir
dividendos ou aplicar recursos financeiros no mercado de capitais ou, ainda, realizar
investimentos perfeitamente postergáveis, a adimplir seus débitos tributários.
Além do mais, é imprescindível acrescentar que o teor do artigo 20, do Código Civil, o
sócio e a empresa da qual ele participa são pessoas distintas, o que nos conduz ao raciocínio
natural de que um não responde pelas obrigações assumidas pelo outro.
Deflui-se, pois, que nenhuma responsabilidade poderá recair sobre a pessoa do sócio de
empresa de responsabilidade limitada, se a sua atuação administrativa estiver de conformidade
com a lei, com o contrato ou estatuto57 e na busca do interesse social, e se a sua organização tiver
o capital social plenamente integralizado. E, frise-se, se o capital social da empresa não estiver
totalmente integralizado, aos sócios compete, única e solidariamente, a responsabilização para
fazê-la. Nada mais do que isso58.
Esses argumentos que trazemos a lume são resultados de interpretação sistêmica do
ordenamento jurídico. Nesse sentido, o parágrafo 5º, do artigo 1.072, do Código Civil, dispõe
que as deliberações dos sócios, tomadas de conformidade com a lei e o contrato, vinculam todos
os sócios, ainda que ausentes ou dissidentes, desde que não infrinjam os termos do artigo 1.080;
ou seja, desde que não violem contrato ou a lei. Somente nesta última circunstância (violação ao
contrato ou lei) é que resulta na responsabilização ilimitada dos sócios que a aprovaram.
Exceder-se a esses limites e praticar atos abusivos, ferindo normas de interpretação fundamentais
da Constituição Federal do Direito Tributário, o que proporciona insegurança jurídica59.
É com base nesses argumentos que o Superior Tribunal de Justiça – STJ – tem
sistematicamente decidido que a circunstância de a sociedade estar em débito com obrigações
57
Cf. Art. 16, do Decreto n. 3.708, de 1919.
Cf. Ag. No Resp. 433.227/DF, DJU de 16/06/2003. No mesmo sentido REsp. 496.306/RS, DJU de 22/03/2004;
REsp 474.105/SP, DJU de 19/12/2003 e REsp. 117.359/ES, DJU de 11/09/2000.
59
E não são poucos os órgãos judiciais que têm interpretação eminentemente fazendária, ao arrepio do ordenamento
jurídico pátrio.
58
45
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
fiscais não autoriza o Estado a recusar certidão negativa aos sócios da pessoa jurídica, justamente
pelo absoluto grau de independência que há entre as duas personalidades60.
CONCLUSÃO
Não resta a menor dúvida que ímpeto estatal arrecadatório de tributos, neste País, atinge
a níveis estratosféricos, a ponto de consumir de 38 a 40% do Produto Interno Bruto – PIB –
Embora não seja este o foco da presente pesquisa, é imprescindível fixar este marco fático, pois
ele revela com que entusiasmo o Estado cumpre o seu dever-poder de arrecadar tributos, como
forma de satisfazer as necessidades de custeio da máquina pública, de geração de serviços e de
investimentos que satisfaçam as necessidades da população.
E, essa carga tributária se mostra em constante evolução, em níveis de países
escandinavos, enquanto que os serviços prestados e os investimentos realizados estão quase que
no patamar de países africanos. Esta é uma prova inequívoca de que estamos diante de um
Estado insaciável em sua fúria arrecadatória, e insensível diante do fato de que os tributos
arrecadados não têm, há muito, cumprido a sua função social, pois contabilizamos uma das
piores distribuições de renda do mundo.
A história tem revelado que, diante de um Estado insensato – que é habilidoso e criativo
quando exerce o seu poder arrecadatório, mas que não se compadece diante do sofrimento de
aproximadamente sessenta milhões de pessoas que sobrevivem abaixo da linha da pobreza –, os
mecanismos de que muitas vezes se vale ferem princípios constitucionais consagrados, inclusive
aqueles rotulados de cláusulas pétreas. É o caso, por exemplo, do respeito à dignidade da pessoa
humana.
Para conseguir os seus intentos perversos, o Estado conta, em algumas oportunidades,
com o apoio ostensivo do Poder Judiciário, que lhe dá amplo respaldo quando ele pretende
responsabilizar terceiros por obrigações tributárias, chamadas de indiretas. Até mesmo
consagrados doutrinadores, mas que não têm nenhuma experiência administrativa na frente de
uma empresa, não conseguem perceber a oceânica diferença entre descontar do trabalhador um
determinado valor para ser recolhido à Previdência Social e, por outro lado, capacidade para o
recolhimento daquela importância.
Na verdade, a empresa não efetua desconto, mas, unicamente, deixa de pagar ao
empregado a importância que deverá ser canalizada à Previdência Social. Pode parecer a mesma
coisa, mas não é. Melhor explicando, se uma empresa desfruta de excelente condição
socioeconômica, nada mais simples do que, na data fixada em lei, recolher os seus tributos
devidos, bem como aqueles que reteve de seus empregados. Há de se reconhecer que, nessas
condições, a eventual inadimplência pode ser creditada à conduta desidiosa.
Contudo, o pomo da discussão não reside aí [na empresa saudável], mas naquela que
tem um montante de receitas muito inferior ao das despesas, não obstante todos os esforços
empreendidos pelos seus administradores para buscar ao menos um equilíbrio entre essas duas
fontes.
Logo, diante de uma incontornável crise de liquidez de curto prazo, o sócio-gerente ou o
administrador se vê obrigado a hierarquizar os seus pagamentos, preferindo manter pontuais os
de natureza trabalhista, bem como aqueles decorrentes do fornecimento de energia elétrica, de
matérias-primas e produtos essenciais a sua atividade produtiva, a adimplir os tributos pelos
quais a sua empresa é responsável.
60
Cf. Agr. Instr. n. 152.191-SC (97/0045461-4), Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU em 12/11/1997.
46
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Portanto, nessa autêntica ginástica financeira não se vislumbra má-fé ou desídia, mesmo
porque grande parte das causas que originaram as dificuldades socioeconômicas foi gerada,
ainda que indiretamente, pelo próprio Estado, pela fixação de juros em termos astronômicos,
pela escolha de uma política cambial desastrosa, pelo controle da inflação mediante a aplicação
de medidas recessivas, pelo modesto crescimento da economia, pela imensa carga tributária,
dentre outras.
Da mesma forma são inaceitáveis as decisões do Poder Judiciário que decretam a
desconsideração da personalidade jurídica, como se fosse um ato de somenos importância,
expondo o patrimônio pessoal dos sócios à penhora ou o arresto. Essas medidas são ainda mais
traumáticas quando atingem pessoas que, comprovadamente, nunca participaram da gestão da
empresa.
São iniciativas que têm por escopo alavancar o recebimento de créditos tributários, sem
atentar para os rigores da lei, que exige, por ser extravagante, farta e prévia comprovação de que
os dirigentes teriam promovido o desvio malicioso da finalidade social da pessoa jurídica, com
proveito para si ou para grupos.
Destarte, conclui-se, pois, que o Estado-exator e o Poder Judiciário não podem violentar
o ordenamento jurídico pátrio, impondo responsabilização tributária para sócios que, sob a óptica
legal, não se enquadram nas condições impostas pelo direito positivado.
O sócio de uma empresa de responsabilidade limitada tem o compromisso de
integralizar a totalidade do capital social, de atuar com observância às regras contidas no
contrato que a constituiu, e de promover o regular encerramento da sociedade, quando este for o
caso. Qualquer outra responsabilidade que for acrescentada fere o ordenamento jurídico, gera
insegurança jurídica, congestiona ainda mais os tribunais com medidas que buscam a tutela
jurisdicional para se proteger dessas ilicitudes e, o que é pior, afronta o princípio constitucional
da dignidade da pessoa humana.
A violação de um princípio, especialmente o mais importante dentre todos, constitui-se
na mais grave forma de inconstitucionalidade, vez que representa uma agressão a todo o sistema,
pois despreza a hierarquia dos mandamentos jurídicos, com a conseqüente subversão dos valores
fundamentais.
É de alçada do Estado, por intermédio do Poder Judiciário, prestar a tutela jurisdicional
necessária e eficaz, para socorrer aqueles que se sentem lesados por não ter a sua dignidade
pessoal valorizada, ainda que o agente agressor seja o próprio Estado.
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48
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
SISTEMA PENAL E EXCLUSÃO SOCIAL – QUESTÕES DE CLASSE
SOCIOECONÔMICA
Aimbere Francisco Torres¹1
RESUMO: este estudo procura chamar a atenção para o fato de o Poder Judiciário encontrar-se a serviço
de um Poder Legislativo subjugado por uma elite capitalista, cujo interesse primordial é manter-se no
poder à custa da segregação das minorias étnicas, utilizando-se da dogmática penal como instrumento de
práticas de manipulação e conservação do poder.
Palavras chaves: sociedade; Estado; Direito; democracia; justiça social.
ABSTRACT: this study is about facts that show our Congress working under a Lawmaking system
focused on a capitalist class that maintains its power by the segregation of the ethnical minorities, making
use of the penal dogma as an instrument to manipulate and keeps the leadership of the social rules.
Keywords: democracy; human rights; social justice; law; society; State.
1 INTRODUÇÃO
A crise que envolve a Dogmática Jurídica estatal do positivismo, tomada no contexto
de um Poder Judiciário inoperante, desacreditado e ultrapassado, nos leva forçosamente a
reconhecer sua falência como instrumento efetivo de solução de conflitos interesses.
Fato este, experimentado quase sempre pela população menos favorecida deste país,
logo se torna imperioso repensar o papel do Poder Judiciário diante das novas necessidades
sociais ocasionadas pelas transformações ocorridas nos últimos tempos.
Assim, numa análise ainda que superficial do tema depreende-se a imprescindível
necessidade de se romper com esta Estrutura Estatal vigente, que de há muito não acompanha
nem satisfaz as necessidades sociais, políticas e econômicas advindas da modernidade para a
modernidade recente.
Necessidades estas impostas por um capitalismo central dominante que reduz a América
Latina, em especial o Brasil, numa região subdesenvolvida e dependente, onde seus cidadãos
menos favorecidos são relegados à mercê da própria sorte, colocados à margem de um Estado
adjetivado como Democrático de Direito.
Ressalte-se, contudo, que estas mudanças, embora imprescindíveis, devem vir
acompanhadas de profundas alterações na base do Poder Judiciário, principalmente no que tange
a sua estrutura burocrática, fonte geradora da ineficácia da tutela jurisdicional, quase sempre
atribuída à insuficiência de meios materiais e humanos.
De outro lado, imperiosa e necessária é a aceitação por parte do aplicador da lei de uma
nova concepção do Direito, essa releitura do que seja Direito é a pedra angular na superação
1
AIMBERE FRANCISCO TORRES, Advogado em Bauru, Especialista em Direito Privado, pela Instituição Toledo
de Ensino (ITE) - Bauru/SP, Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Paraná – UNESPAR Campus de Jacarezinho/PR, Professor da Faculdade de Direito de Bauru - Instituição Toledo de Ensino (ITE) –
Bauru/SP, Professor da Faculdade de Direito de Ourinhos – FIO – Ourinhos/SP, Professor do Curso de
Especialização da Faculdade Arthur Thomas - Londrina/PR, Professor da Escola Superior da Magistratura do
Paraná – Núcleo Jacarezinho/PR.
49
Revista “Ponto de Encontro” vol. 1
desta crise. Infelizmente nas entranhas das maiorias das togas, calorosamente reverenciadas e
afagadas por seus detentores, se faz presente o pensamento de Hans Kelsen, reproduzido por
Nélson Hungria em seu comentário ao Código Penal de 1.940, não há outro Direito senão o que
se encerra na lei do Estado. A fórmula de Kelsen é incontestável: ‘o Estado é o Direito’.
(HUNGRIA, 1980, p. 34-37).
Revela notar, que a identificação entre Direito e Poder derivada da positivação sofreu
no Brasil grande influência de uma cultura jurídica importada da Europa, mais precisamente de
Portugal e, por sua vez, totalmente divorciada de nossa realidade.
Neste sentido, a lição de Antônio Carlos Wolkmer: Esta estrutura jurídica formal
fundada nas Ordenações portuguesas visava unicamente, ‘garantir que os impostos e os direitos
aduaneiros fossem pagos, e na formação de um cruel (...) código penal para se prevenir de
ameaças diretas ao poder do Estado. (...) A maior parte da população não tinha voz no governo
nem direitos pessoais. Eram escravos, objetos de comércio’ (WOLKMER, 1997, p. 76).
Além do que inegável o fato de que o positivismo jurídico no Brasil, essencialmente
monista, estatal e dogmático, desde os tempos de colônia, sempre esteve vinculado aos interesses
de uma elite individualista, segregadora, adepta de um individualismo liberal e conservador,
originando, por conseguinte, um Estado completamente distante e alheio das necessidades de sua
população periférica e excluída.
De outro lado, não menos verdadeiro, é o fato de que a corrupção sempre esteve
presente na sociedade brasileira, desde os tempos do império, conforme demonstra Wilcken:
(...) sempre fora uma característica da vida ao redor do império, mas assumiu
uma forma concentrada no Rio. O afluxo repentino de milhares de burocratas
exilados criou terreno fértil para os abusos, de modo que foram devidamente
construídas fortunas misteriosas pelos freqüentadores dos círculos íntimos da
corte. Enquanto a vida era uma luta para muitos dos cortesãos mais periféricos,
os ministros do governo logo passaram a ter um padrão de vida muito acima
dos recursos que podiam ter ganho legitimamente. (...) Por trás das bengalas,
mantos e perucas, e por trás das cerimônias formais e dos éditos proferidos em
linguagem refinada, o roubo em nome da Coroa disseminou-se à larga.
(WILCKEN, 2005, p. 121).
2 O PERFIL SEGREGADOR E VIOLENTO DA ELITE BRASILEIRA
A elite colonial brasileira, representada hegemonicamente pelas oligarquias
agroexportadoras, grandes latifundiários e senhores de escravos, jamais se descurou de seu papel
opressor para com suas minorias.
Afirma Wilcken que um morador da classe alta (...) escreveu a um amigo, horrorizado,
dizendo que ‘os cabras, mulatos e crioulos andavam tão atrevidos que diziam que éramos todos
iguais (...)’. (ob. cit. p. 216).
O único meio conhecido pela classe dominante no sentido de coibir a busca por
igualdade de classes e assegurar sua permanência no poder e efetivando cada vez mais seu
distanciamento da classe periférica, era a violência.
Sobre este fato, assevera Wilcken:
O mercado de escravos do Valongo tornou-se apenas mais uma atração como o
Pão de Açúcar ou o parque da Tijuca – uma parada macabra (...). Os visitantes
caminhavam por entre as fileiras do armazém com grades de ferro, onde os que
aguardavam o martelo do leiloeiro ficavam mergulhados na depressão. ‘O
cheiro e o calor do aposento eram muito opressivos e ofensivos’, escreveu um
viajante. (...) Os turistas observavam os escravos recém-chegados que eram
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submetidos à humilhação de serem vendidos como gado, com os vendedores a
desfilar suas mercadorias nuas, enquanto compradores potenciais lhes
inspecionavam os dentes e genitália, faziam-nos correr e mandavam que os
açoitassem para testar sua reação. (ob. cit. p 206).
O totalitarismo da classe dominante do império, estigmatizado pela violência utilizada
na opressão de movimentos reivindicadores de interesses das classes excluídas, teve reflexo
direto na positivada legislação privada que sempre lhes resguardavam e beneficiavam seu Direito
de propriedade.
Relegados ao segundo plano estavam as funções sociais da posse, a resolução dos
conflitos sociais de massa, merecendo total atenção das elites tão-somente a legislação penal e
processual penal, que efetivaram suas conclusões nessa época, espelhando em larga medida a
história da dominação racial brasileira.
Neste aspecto, Hédio Silva Júnior esclarece:
(...) para os efeitos civis – contratos, herança, etc. o escravo não era
considerado pessoa, sujeitos de direitos. No entanto, para o direito penal,
melhor dizendo, para efeito de persecução penal, o escravo era considerado
responsável, humano, isto caso figurasse como réu; já se tivesse uma parte de
seu corpo mutilada, a lesão era qualificada juridicamente como mero dano –
algo atinente ao direito de propriedade e não ao direito penal. Ou, ainda, caso
fosse um escravo arrebatado por alguém, configurado estaria o crime de roubo.
Numa palavra: sendo réu era pessoa, sendo vitima, coisa. (SILVA JÚNIOR, p.
328).
Linhas adiante, narra-nos Silva Júnior. em seu artigo “Direito Penal em Preto e Branco”,
depoimento sobre um fato ocorrido em 1913:
(...) cuja técnica redacional configura prática absolutamente usual em nossos
dias – o emprego insistente, sistemático, calculado da referência à cor, quando
se trata de realçar a condição racial de acusado negro, conformando recurso
discurso indisfarçavelmente destinado a brandir a cor como indício de
culpabilidade: ‘Um conhecido da depoente, que se encontrava no bar disse que
o pretinho podia levar a motocicleta para lá; que o dito pretinho aceitou a
oferta...; que a depoente não desconfiou de coisa alguma, pois o pretinho falava
com naturalidade; que dias depois soube que a tal motocicleta o pretinho tinha
roubado...; que a depoente conhecia de vista esse pretinho, sabendo só agora
que ele praticava furto. (Op. cit., p.333).
O mesmo autor revela outro dado interessante, agora no que concerne ao Tribunal do
Júri do Rio de Janeiro, no inicio do século passado:
(...) a cor preta do acusado aumenta mais do que qualquer outra característica, a
probabilidade de condenação no Tribunal do Júri. Há uma enorme diferença
entre as probabilidades de condenação dos acusados pretos e dos pardos em
relação aos acusados brancos. O acusado preto tem 31,2 pontos percentuais a
mais de probabilidade ou chances de ser condenado do a que o acusado branco,
e o acusado pardo têm 15,8 pontos percentuais a mais de chances de
condenação do que o acusado branco. (Op. cit., p.333).
3 A IDENTIFICAÇÃO DO PODER COM O DIREITO POSITIVO
De outro, uma análise da população carcerária do Estado de São Paulo, realizada por
Brant em 1986, reproduzida na obra Cidade de Muros – Crime, segregação e cidadania em São
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Paulo, por Teresa Pires do Rio Cadeira (2003), demonstra de forma clara a inalterabilidade dos
fatos:
(...) as pessoas classificadas como branca correspondiam a 75% da população
do estado de São Paulo em 1980 (Censo), a população branca nas prisões era
de apenas 47,6%. Para a população negra e mulata as porcentagens eram de
22,5% da população e 52 % nas prisões. Como argumenta Brant, isso não
significa necessariamente que os negros estão mais envolvidos com o crime,
mas sim que eles são mais frequentemente tidos como criminosos. Como
disseram alguns dos policiais entrevistados por Brant ‘um negro correndo é um
suspeito. (CALDERA, 2003, p.108).
Destarte, a estrutura social e jurídica, criada como modelo por nossa classe dominante,
embora inconcebível, não foi corroída pelo processo histórico – colônia, império, república – ao
revés, transladou-se para os dias atuais, perpetuando-se em nossa sociedade pós-moderna,
ampliando, porém, seu processo de vitimação.
Portanto, já não mais atende aos interesses e conveniências dessa elite, segregar e
excluir tão-somente o negro escravo, mas também o negro livre, pobre, os sem-teto, os
homossexuais, os descamisados, as crianças pobres, os anciãos, enfim, toda minoria étnica e
social.
Os quais são classificados por essa sociedade dominante, como seres humanos
supérfluos e descartáveis, que, no pensamento de Celso Lafer, representa uma contestação
frontal à idéia do valor da pessoa humana enquanto ‘valor fonte’ de todos os valores políticos,
sociais e econômicos e, destarte, o fundamento único da legitimidade da ordem jurídica (...)
(LAFER, 1999, p.19).
Com efeito, a característica social do positivismo jurídico que se procurou exteriorizar
com o advento da Constituição de 1.988 e, posteriormente, com o Código Civil de 2.002,
alardeada aos quatro cantos deste país, em momento algum contribuiu para extirpar as profundas
desigualdades entre a elite e a imensa maioria da população pobre deste país, que continuam
mesmo com a vigência dos regramentos acima mencionados, excluída da participação política e
desprovida de direitos básicos.
A professora catarinense, Vera Andrade (1994), retrata de maneira muito clara o destino
que nosso Poder Judiciário subserviente e comprometido com os interesses da elite dominante
deste país vem dando às normas de interesse social e coletivo.
Em seu artigo, A Construção Social dos Conflitos Agrários como Criminalidade,
evidencia a autora a forte tendência do Estado em submeter à questão dos conflitos agrários ao
controle das normas do Direito Penal, inserindo no pólo da vitimação os proprietários de terras.
Sobre a questão em tela, alerta Vera Andrade: (...) embora, pois, seja o mecanismo
menos adequado, verifica-se, de fato, a colonização do problema agrário pelo controle penal,
que aparece com absoluta centralidade e hegemonia sobre outros mecanismos interpretativos e
resolutórios, o que só se explica mediante uma justificativa reguladora e conservadora do status
quo. (ANDRADE, 1994, p.328).
As conseqüências mais significativas desta manifestação de poder estatal, segundo a
autora são:
“(...) em primeiro lugar, a descontextualização e despolitização destes conflitos
com o conseqüente esvaziamento de sua historicidade e imunização da
violência estrutural e institucional pela sua existência. De outra parte, ao
encerrar a complexidade destes conflitos (que estavam em estágio de latência
controlada) no código crime-pena e ir construindo, seletivamente, uma
criminalidade patrimonial rural (analogamente à construção história seletiva da
criminalidade patrimonial urbana) este processo provoca, a um só tempo, a
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duplicação da violência contra os ‘invasores criminalizados’ e a duplicação da
imunidade dos ‘proprietários vitimados’ revelando a profunda conexão
funcional entre controle penal e a estrutura social (Ob. cit., p.328).
4 A SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL
No entendimento de Alessandro Baratta, é inegável a existência de uma dolorosa
analogia entre os processos de exclusão na rua e no campo; entre os sem-teto e os sem-terra e,
sem dúvida, a hegemonia do controle penal representa um forte obstáculo democrático à
construção da cidadania dos excluídos do campo (Ob. cit., p.328).
Dúvida não resta que o Direito Penal está sendo instrumentalizado como fim único de
efetividade à repressão de necessidades reais, compreendida pelo autor como as potencialidades
de existência e qualidade de vida das pessoas, dos grupos e dos povos que correspondem a um
determinado grau de desenvolvimento da capacidade de produção material e
cultural...”(BARATTA, 1993, p. 46).
Essa eficácia instrumental invertida do Direito Penal, imposta pelas elites que sempre
contaram com o beneplácito do judiciário, no sentido de ignorar a tutela de bens-jurídicos
universais gerando insegurança jurídica e política no convívio em sociedade, acaba por
reproduzir as desigualdades sociais.
Exteriorizando com isso, o paradoxo entre o sistema penal e a Constituição Federal, que
estabelece como princípio a dignidade da pessoa humana, atribui à propriedade função social,
assegura a toda pessoa a existência digna, deixando expresso como um dos objetivos
fundamentais do Estado a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Destarte, perfeitamente admissível, questionar-se a legitimidade desse positivismo
jurídico, instrumentalizado no sentido de regulamentar o comportamento da sociedade brasileira,
visto conflitar com o valor “pessoa humana”, valor fonte de todos os demais, por várias vezes
exteriorizada no pensamento de Hannah Arendt e adotado como princípio em nossa
Constituição.
Consignando-se ainda o fato, de que nossa sociedade carrega consigo o estigma da
desigualdade na distribuição da propriedade, tanto no aspecto rural como urbano fruto do poder
das elites, natural que a classe dominante procure deslegitimar não apenas como ilegal, mas
principalmente tornar típica penalmente toda e qualquer conduta reivindicatória da sociedade,
aqui textualizada pelo Movimento dos Sem-Terra – MST -.
Vê-se, pois, que essa convivência harmoniosa, porém, imoral, entre o Direito e o Poder,
leva-nos ao entendimento de que o Direito reduz-se, na feliz expressão de Celso Lafer, a um
instrumento de gestão governamental, criado ou reconhecido por uma vontade estatal soberana
e não pela razão dos indivíduos ou pela prática da sociedade. (LAFER, 1999, p. 39).
Nesta senda, conclui-se, uma vez mais, a falta de legitimidade do Estado no sentido de
efetivar seu poder de punir, ou quiçá pretender questionar eventual subsunção de conduta a
norma penal incriminadora, por uma questão bastante simples; primeiramente, de acordo com
Varella:
(...) o alvo do Movimento Sem Terra não é a propriedade que estão ocupando,
mas a União, que deve agilizar o processo de Reforma Agrária, concedendo
mais terras aos que querem produzir, desapropriando as grandes fazendas
improdutivas deste país. O dolo não é se apropriar daquela terra, ato ilícito,
mas sim fazer com que o Governo Federal exerça seu poder de soberania,
desapropriando fazenda ocupada e outras para a realização de reforma agrária,
não havendo, portanto, usurpação. (VARELLA, 1998, p.349)
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Num segundo plano, a Constituição de 1.988 edificou-se alicerçada, sob a égide do
princípio da pessoa humana, ao mesmo tempo em que atribuiu à propriedade finalidade social.
Logo, enquanto o Estado não cumprir sua parte, ou seja, atribuindo à propriedade este escopo,
permitir-se-á aos excluídos – legitimados como cidadãos pelo próprio Estado – a efetivarem os
direitos daí decorrentes ainda que não-positivados.
Assim sendo, há um evidente fenômeno de contradição estrutural entre o sistema penal
e os Direitos Humanos, experimentado no Brasil. Neste sentido, a lição de Zaffaroni: (...)
enquanto os direitos humanos assinalam um programa realizador de igualdade de direitos de
longo alcance, os sistemas penais são instrumentos de consagração ou cristalização da
desigualdade de direitos em todas as sociedades. (ZAFFARONI, 1991, p. 149).
Ao promover uma seleção desigual entre as pessoas, em que a condição de classe
dominante de um lado é o fator preponderante para gerar a impunidade e, de outro, para tornar
típica, embora de forma extralegal, as condutas daqueles que não possuem um lugar neste país,
os descartáveis, os excluídos, aqui representados pelos sem-terra.
A asserção que se apóia no argumento de que o Direito Penal se constitui em
instrumento de garantia de práticas democráticas de convívio social no Brasil, não passa de um
sonho de uma tarde chuvosa de verão, em virtude de se encontrar a serviço de uma classe
dominante.
Tal afirmativa é demonstrada de forma clara por Karan, ao afirmar que escolhe para
receber toda a carga de estigma, de injustiça, diretamente provocada pelo sistema penal,
preferencial e necessariamente os membros das classes subalternas, fato facilmente constatável,
no Brasil, bastando olhar para quem está preso ou para quem é vitima dos grupos de
extermínio. (KARAN, 1993, p. 206, 207).
No caso em tela, sem sombras de dúvidas, estamos diante de um caso sui generis na
história das lutas pela efetivação do princípio da igualdade.
5 A INEFICÁCIA DAS NORMAS SOCIAIS
A convivência harmônica entre o Poder Legislativo, acaudilhado por uma elite
individualista e um Poder Judiciário, co-réu desses interesses, é assaz perigoso por ignorar a
relação de causalidade do Direito Penal para além dos movimentos sociais pela terra.
O processo de vitimização objetiva proposto pela classe dominante brasileira encontra
no cidadão negro e pobre, no homossexual, nas crianças e em todos aqueles que vivem à margem
do Estado sua matéria-prima.
Diante disso, o jornalista Cacco Barcellos observa que: (...) o componente racista, que
já havíamos observado na ação dos principais matadores, se confirma no balanço final do
Banco de Dados. Do total de 4.179 vitimas identificadas, obtivemos informações sobre a cor da
pele de 3.994; 1.932 eram brancas e 2.012 negras e pardas. A maioria de 51% por si só, já
demonstra o preconceito contra a raça negra e parda. (BARCELLOS, 1992, p. 259).
Como se já não bastasse, editorial do Boletim do IBCCrim constatou que:
... a Policia Militar do Estado de São Paulo, no primeiro dia de sua ‘Operação
Tolerância Zero’, retirou 40 homens da rua. Todos mendigos, vadios ou
suspeitos, portanto com a cara de delinqüentes. Trinta e seis deles eram negros;
quatro brancos (segundo o IBGE 57% da população paulista é de brancos, para
43% de negros). Só dois deles tinham passagem pela policia. Passados os
constrangimentos naturais do passeio de camburão, revistas pessoais, perdas de
tempo, invasão de privacidade etc., essas pessoas são devolvidas para as ruas
sem qualquer política pública ou social que tenha o objetivo de devolver-lhes a
dignidade. (IBCCrim, 1997, n.53).
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Sobre este aspecto, esclarece Pinheiro:
No início deste mês de outubro a consciência civilizada brasileira vinha abaixo,
horrorizada, com a fotografia de sete cidadãos negros amarrados pelo pescoço
por um PM depois de uma blitz no Rio contra uma favela. Um mês depois, um
sigiloso IPM concluiu que essa violência estúpida e racista é crime militar e
será julgado pela Justiça Militar (...) Além do mais era negro, detalhe que
sempre confirma qualquer suspeição de delito nesta terra de apartheid
dissimulado que é o nosso querido Brasil (...) No mesmo sentido vai à
aterrorização das populações pobres menores e negras que se consagrou como
política policial durante os governos biônicos nesses vinte anos. (PINHEIRO,
1984, p. 56, 79, 82)
Como se vê, este totalitarismo conferido por nossas elites ao Estado é uma ameaça à
liberdade e aos direitos humanos, para tanto confira-se a lição de Celso Laffer: (...) no momento
em que o Estado começa a decidir soberanamente quem é e quem não é cidadão, excluindo de
uma comunidade política não atores políticos individualizados, mas centenas de milhares de
pessoas, verifica-se, numa perspectiva ex parte populi dos direitos humanos, quais foram às
conseqüências da soberania absoluta ao gerar os párias políticos legais (...), (LAFER, 1999, p.
295)
Desta forma, a arbitrariedade adquire em nosso sistema jurídico elitista um colorido
todo especial que o faz passar por direito. Sem o dispêndio de qualquer esforço mental concluise que a codificação do direito nos moldes como ocorre em nosso país atende às expectativas da
classe dominante.
Primeiro, por tratar-se de um procedimento de simplificação e racionalização formal;
segundo, por fornecer um instrumento eficaz de intervenção na sociedade para a exclusão
daqueles que, de alguma forma, contrariem seus interesses em acumular riquezas e poder.
Razão assiste a Lafer quando, apoiado em Jeremy Bentham, critica o sistema da
common law, propondo uma reforma da legislação e da codificação, conjugando o principio de
utilidade com a segurança na elaboração de sua teoria da legislação e da lei positiva. (LAFER,
1999, p.42).
Diante disso, conclui Lafer:
(...) razoável, no clima espiritual da modernidade, preocupar-se com o alcance
e os limites epistemológicos dos procedimentos intelectuais que caracterizam a
prática do Direito. É igualmente razoável procurar definir o Direito pela sua
forma quando o processo de contínua mudança do Direito Positivo, por obra
das necessidades de gestão da sociedade moderna, tornou impraticável definir
o jurídico pelo seu conteúdo. É também razoável lidar com o descompasso
entre a norma formal e a realidade social quando este descompasso se
generaliza. Finalmente, é razoável discutir criticamente os valores de justiça
contidos no Direito Positivo diante da crise generalizada do poder que legitima
a legalidade. (LAFER, 1999, p.19).
Efetivamente, o Estado, embora intitulado democrático, afastou-se da sua condição de
imparcialidade ao tornar-se parte interessada na solução das lides. Notadamente, quando os
interesses em conflito são os pertencentes à grande parcela da população – estigmatizada pela
elite como descartável – embora continue a monopolizar a função de mediador.
O comportamento perverso do Estado para com a população descartável faz com que a
democratização do Direito e da Justiça Penal torne descabida qualquer proposta de organização
da sociedade, tornando, com isso, distante atingir um nível razoável de justiça.
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6 A PESSOA HUMANA COMO VALOR FONTE DO ORDENAMENTO JURÍDICO
As reformas propostas pela elite para a legislação penal e processual penal, como por
exemplo, a redução da maioridade penal ou a supressão de recursos previstos na legislação
processual penal, a fim de se reduzir a impunidade e a criminalidade. Trata-se, na verdade, de
um estratagema que terá como resultado a condenação do negro pobre, do sem-terra, do semteto, de homossexuais, enfim dos seres humanos excluídos sob à égide do devido processo legal.
Data maxima venia, a constante submissão do Poder Judiciário ao Poder Legislativo
tem como conseqüência a perda de sua identidade como poder, relegando-o à condição de órgão
meramente operacional, além de transformar em letra morta, dentre outros, os princípios da
dignidade da pessoa humana e da igualdade.
A propósito, convém mencionar os princípios constitucionais, segundo Rocha,
(...) são os conteúdos intelectivos dos valores superiores adotados em dada sociedade
política, materializados e formalizados juridicamente para produzir uma regulação
política no Estado. Aqueles valores superiores encarnam-se nos princípios que formam
a própria essência do sistema constitucional, dotando-o, assim, para o cumprimento de
suas funções, de normatividade jurídica. A sua opção ético-social antecede a sua
caracterização normativo-jurídica. Quanto mais coerência guardar a principiologia
constitucional com aquela opção, mais legitimo será o sistema jurídico e melhores
condições de ter efetividade jurídica e social. (ROCHA, 1994, p. 23)
CONCLUSÕES
Torna-se imprescindível para que o Brasil adquira efetiva condição de um Estado
Democrático de Direito, romper-se com esse plano jurídico e concepção de justiça hodierna.
Para tanto, mister se faz, num primeiro momento, o restabelecimento de princípios
éticos no processo legislativo; em segundo, que o Judiciário, como seu aplicador, tenha como
meta, quando da elaboração de suas decisões, a singela tarefa de observar os princípios da
dignidade da pessoa humana e da igualdade.
Ao estabelecer como premissa na solução de conflitos de interesses o valor da pessoa
humana como o maior da ordem jurídica, estará o Poder Judiciário, ao mesmo tempo, afastandose dos interesses das elites, resgatando sua condição de Poder dentro do Estado e,
principalmente, alcançando o tão almejado nível razoável de justiça.
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