Sem o garrote do FMI
Maria da Conceição Tavares
Entrevista a Mauricio Dias para a Carta Capital
Impulsiva, vibrante, ágil no raciocínio. Maria da Conceição Tavares fala aos jorros sem perder a
coerência, o brilho e a coragem como se verá nesta entrevista a Carta Capital, na qual ela defende as
ações de Lula com emoção, mas, também, com uma qualidade de argumentação incomum em muitos
integrantes do governo.
Um dos pontos que afirma é o de que o governo Lula não repete a política econômica de Fernando
Henrique Cardoso. Ela dá uma importância fundamental a uma diferença: o pagamento de US$ 15
bilhões ao Fundo Monetário Internacional. Isso teria livrado o país, pelos próximos dez anos, do garrote
internacional.
Ela mostra outros pontos de divergência. Lembra, por exemplo, que Lula barrou o andamento do
neoliberalismo, estancou as privatizações, reestrutura o Estado brasileiro e não vocaliza a política de
Washington. Satisfeita com muitas das ações do governo em defesa da população de baixo poder, no
entanto, reclama: “Esse não é o governo dos nossos sonhos”.
Aos 75 anos ela, não desanima e nem vacila quando pensa na eleição de 2006: “Eu espero que não
ganhe a visão dos tucanos neoliberais. Tudo, com eles, regredirá. Esse capitalismo que pregam é
violentamente regressivo tanto nas relações com o trabalho, quanto na relação do Estado com o capital e
com a cidadania. Eles só querem apagar direitos. Se possível, todos aqueles conquistados no século
XX”.
Nem a ditadura militar tentou fazer isso. Mas ela não duvida que os economistas tucanos façam, pois já
pregam as reformas de segunda geração. Por isso, ela se põe a favor da reeleição de Lula. Quer que ele
mesmo “impeça o desmonte do que já conseguiu conquistar”. Abaixo os trechos principais da
entrevista.
Carta Capital: O governo fechará o ano com a antecipação do pagamento de US$ 15 bilhões ao
FMI. Por que os brasileiros, além dos economistas, devem comemorar esse resultado?
Maria da Conceição Tavares: Ao pagarmos o Fundo Monetário chegaremos a uma relação de dívida
externa e PIB que, finalmente, apagou o que o governo do Fernando Henrique fez. Isso é espantoso: É a
melhor relação dívida externa versus Produto Interno Bruto dos últimos 40 ou 50 anos. Conseguimos
sair do atoleiro, da fragilidade da crise cambial. Ou seja, crise cambial mata. A crise fiscal, no entanto,
esfola.
CC: Quem é esfolado no momento?
MCT: No momento a crise fiscal está esfolando o povo, a classe média e os construtores.
CC: E os juros? Por que está todo mundo indignado com a taxa?
MCT: Tem muita gente ganhando com a taxa alta. As grandes empresas protegem-se com aplicações
financeiras.
CC: Então, por que a reclamação?
MCT: Porque não há investimento público. Isso quer dizer que vários dos grupos tradicionais de poder
não levam nada. A classe média não leva nada. Quem tem levado é o pessoal de baixo poder. Mesmo
em 2003, o ano de crescimento zero, tivemos um aumento do mínimo acima do PIB per capita. Em
2004, aconteceu o mesmo e esse ano também. Seguramente, em 2006 será assim. É a primeira vez que,
de uma maneira contínua, um governo sobe o salário mínimo com regras. Regras a favor do
mínimo. É a primeira vez, também, que se faz um esforço de formalização do mercado de trabalho,
depois de mais uma década de informalização, terceirização etc. Há três boas notícias trazidas pela
PNAD: a reversão do salário dos de baixo poder; a reversão do desemprego e da renda também dos de
baixo poder.
CC: À custa dos ricos, acusam...
MCT: Os ricos somos nós, a classe média. A custa da classe média que, aliás, mantinha uma frente
grande dos salários menores. Em resumo, é a distribuição melhor dos salários, que no Brasil ainda é
pérfida. Então, agora, pagou a turma de cima. E reclamam que o emprego gerado foi para os de baixo
poder e não para os filhos da classe média alta. Alguém esperava que o governo Lula fosse gerar
prioritariamente emprego para o pessoal da classe média alta dos Jardins, em São Paulo? Estão
brincando, não? Os de baixo poder nunca levaram colher de chá. Os empregos de agora foram gerados
para assalariados que ganham em torno de um salário mínimo ou que têm o salário mínimo como
referência. Isso é fundamental para melhorar a pirâmide dos salários. Isso foi prometido e feito sem
nenhum entendimento das autoridades econômicas.
CC: Como assim?
MCT: Eles atiram no que vêem e acertam o que não vêem. Porque, evidentemente, aqueles meninos do
Banco Central continuam com aquele modelito ridículo que todo mundo já criticou. Por que é que não
se perguntou, na prática, para o que é que serviu essa taxa de câmbio valorizada.
CC: HÁ quem acredite que se trata de populismo cambial.
MCT: Mentira.
CC: Qual a diferença do que foi feito no governo FHC?
MCT: Aquele era populismo cambial porque com aquele câmbio ele conseguia dar uma cesta mais
barata. Arrebentou, por isso, com a agricultura de exportação, arrebentou com a indústria. Enfim,
arrebentou com a estrutura produtiva. E nos pespegou uma dívida interna e externa numa rapidez
colossal. Estourou os endividamentos interno e externo. E tudo o que ele trazia de capital para fechar o
balanço de pagamentos era para importar bens de consumo. Foi aquele delírio de consumo. Aquilo era
populismo.
CC: Um populismo que a classe média adorava...
MCT: Exatamente. Para a classe média. Até que teve de reverter e fazer a desvalorização. E nos deixou
quebrados. Sabe qual era a relação da dívida externa e exportações? Era três vezes maior. Hoje é só 1,1
vez maior. Sabe qual era quando nós quebramos em 1999? Era de 3,97%. Isso é praticamente 4%. Com
essa relação, os países quebram. Só se tem reserva, de fato, quando se diminui o endividamento.
Reserva com endividamento crescente, como no governo FHC, não quer dizer nada.
Agora,
sim.
Olha como os governos não se parecem, ao contrário do que alguns dizem por aí. Há, hoje, reservas
internacionais líquidas de US$ 52 bilhões. Há uma queda na dívida externa, pública e privada, enorme.
CC: No capitulo de investimento público a coisa parece muito igual.
MCT: Agora também É quase nada. O arrocho fiscal de agora é mais violento do que antes. Isso ocorre
porque a taxa de juros está lá em cima... Não ao ponto que o governo FHC tinha elevado. Dever ao
Fundo, como se devia, é uma desgraça. Agora pagamos e há reservas de US$ 52 bilhões e uma dívida
externa reduzida em mais de 40%. Há uma política conseqüentemente resolvida, essa dívida de curto
prazo, a estrutura da dívida externa está perfeitamente zerada para os próximos dez anos.
CC: Por que não “batem lata” para isso? Esqueceram a dívida externa?
MCT: Porque não têm sensibilidade. Por que é que em nenhuma ata do Copom isso está relacionado?
Fala-se sempre da inflação. São uns beócios. Agora, se não baixar os juros eles serão umas toupeiras.
Aí o presidente Lula vai ter de dar uma chicotada. Eles eram dependentes do mercado e agora o
mercado sinalizou.
CC: O mote deles é a inflação...
MCT: Inflação, taxa de juros e câmbio. Não conseguem ver além disso. Mas o que aconteceu com o
endividamento externo? Eu continuo não crendo que esse modelo não vai fazer bem ao presidente
principalmente no ano da eleição. Não creio. Abriu-se agora um novo período.
CC: A partir do pagamento ao FMI?
MCT: Sim. Isso significa que a restrição externa que vem lá de trás, desde o começo dos anos 1980,
está equacionada. Agora, sim, dá para desmontar uma das patas da armadilha macroeconômica. Dá para
baixar, a sério, a taxa de juros. Agora, sim, temos condições de retomar o crescimento. Mas, um
pequeno detalhe, como o crescimento até agora era um mini ciclo de consumo e, no caso do governo
Lula, mini ciclo de consumo e de exportações no ano passado que soltaram o crédito para o povão...
CC: Mas dizem que o povão estava endividado.
MCT: O povão já estava endividado. Só que na Casas Bahia e, portanto, pagava um juro indescritível.
Hoje ele já pode comprar a televisão, a geladeira, em módicas prestações com o crédito de outra
maneira. O Mário Henrique Simonsen me contava que cansou de explicar para a mãe dele duas coisas
que ela jamais entendeu: a tal da correção monetária e a porcaria da taxa de juros. Economista não
consegue explicar certas coisas nem para a própria mãe. Para o povão, quando abaixa a prestação,
aumenta o número delas e ainda pode descontar em folha está ótimo. Nesse sentido, o governo fez
outras coisas, como a Previdência generalizada para os velhinhos. Altamente distributivo. Para valer. O
maior programa distributivo do País é a Previdência Social dos aposentados que dá uma renda enorme.
Principalmente no Nordeste...
CC: No Nordeste?
MCT: Seguramente. Onde é que deram renda maior nesses programas sociais todos? No Nordeste.
Onde a Bolsa Família é mais importante? No Nordeste. Onde é que Lula está pensando em retomar os
projetos estruturantes? Na região mais atrasada. No Nordeste. É o caso da ferrovia e da interligação
das bacias que o pessoal fica dizendo que é a transposição do São Francisco? Não é transposição, é
ligação das bacias para que não haja sobra de água de um lado e seca do outro. Enfim, o de sempre.
Espero que ninguém interrompa esses projetos. Não se podem interromper os projetos estruturantes e,
também, os projetos sul-americanos de integração que Lula fez graças às boas relações que ele tem
tanto com o Kirchner quanto com o venezuelano (Chávez).
CC: A senhora também cobrava, antes, a retomada do crescimento.
MCT: Cobrava antes porque era mini ciclo. Era pé de galinha. Eu sempre disse que com aquela política
era pé de galinha. Neste último ano, como sobrou liquidez no mundo e nós reestruturamos a dívida
externa, a coisa mudou. Mas não se esqueça que eu estou em silêncio há muito. Só falei uma coisinha
aqui e outra ali.
CC: A hora de retomar o crescimento chega no ano eleitoral. Coincidência?
MCT: Não. Azar. Ninguém vai perceber porque isso não é eleitoral. Esse é o problema. Isto é uma
política de reestruturação. Está se reestruturando o setor público. Pararam as privatizações. Está se
tentando reestruturar o setor elétrico. Tudo isso, com exceção dos programas diretamente populares. É
invisível. Você acha que o povão dá conta do que eu estou falando?
CC: Qual a importância que a senhora vê no fato de, após tantos anos, a moeda brasileira, o real,
estar cotada na Bloomberg? Por que isso?
MCT: Havia alguma cotação no tempo do “real forte” no do governo FHC? Não. Porque não era forte
coisa nenhuma. Tudo o que eu disse sobre aquele plano que, aliás, me custou bastante pancada dentro
do partido... Eu e o Mercadante levamos muita pancada porque, depois, deu certo... deu certo a curto
prazo. A questão é avaliar a herança pesada que deixou. Estamos metidos numa herança. Essa é a
verdadeira “herança maldita”. Por isso, vem um e diz que está continuando a política do Fernando
Henrique. Há até ministros nossos, de direita, na área econômica, que não entendem nada do que estão
falando, assumiram esse papo. Continuamos nada.
CC: Explique melhor, por favor.
MCT: As razões, pelas quais foi necessária essa valorização foram para comprar reservas baratas, pagar
a dívida externa privada, reestruturar a dívida pública e contratá-la em melhor situação. Em 2004
crescemos, exportamos como gigantes. O salário cresce, o emprego cresce e não batia nada com o
diagnóstico. Evidente que o PIB caiu por ser um mini ciclo.
CC: Mas o PIB caiu. Pode crescer mais em 2006?
MCT: O PIB caiu por ser um mini ciclo. Não sei o quanto o PIB pode crescer. Vamos ver. Pode chegar
a 4%. Não é o que a gente quer, mas é que ainda não estão postas as condições internas de retomada do
crescimento. Que é, basicamente, o investimento público. Para isso é preciso baixar os juros para que
eles não comam o investimento. Não há mais argumento para manter o câmbio tão valorizado.
Diminuímos a dívida interna, dolarizada, radicalmente. E para manter estável a relação da dívida interna
com o PIB tivemos de mandar o pau no superávit. Foi preciso. Mas tanto eles não entendem que
propuseram aquela estupidez do superávit crescente para 5% nos próximos dez anos.
CC: Isso aconteceu, então, apesar deles.
MCT: Não é apesar de... HÁ muitos operadores ainda bons que são do ramo. Apesar dos ministros, das
declarações que dão, dos “Delfins Nettos”. Fico pasma. Por que se está emitindo títulos em real? Será
porque todo mundo supõe que não vai desvalorizar. Ou vai ser desvalorizado de forma insignificante.
Dado, no entanto, que emitimos a juros de 12,5% em dólar. Isso significa que a taxa não deverá ficar
muito abaixo de 14%. Esse é o problema. Mas ela está em 18%. Portanto, há folga. E essa folga para as
contas públicas é essencial. Veja a contradição: como é que se critica a política monetária e o juro e,
depois, se propõe os 5% permanentes do PIB? Ora, isso é o que empurra a taxa de juros para o patamar
que está. Essa armadilha tem de ser discutida com toda a seriedade. Incluindo, agora, essa liberdade
adquirida quanto à restrição externa e o que Lula fez para melhorar a situação dos mais pobres e dos
assalariados em torno do mínimo. É o grosso da população.
CC: A classe média alta está pagando a conta.
MCT: Eles pagaram o pato agora. Achatou-se os de cima e puxou-se os de baixo. Foi achatado o leque
de salários que, no caso brasileiro, é um escândalo.
CC: Por que chegou a esse ponto?
MCT: Porque deixaram o salário mínimo cair a níveis inacreditáveis. O doutor Getúlio deve estar se
removendo na tumba.
CC: Agora, no entanto, ele deve estar um pouco mais feliz.
MCT: Pelo menos isto. É a primeira vez que os sindicatos dos trabalhadores conseguem negociações
coletivas acima da inflação. Há anos que isso não acontecia. Estão melhorando as condições do
trabalho. Isso é inegável. Agora vem a ameaça dos homens das Casas das Garças com as reformas de
segunda geração. Que é o Banco Central independente, flexibilização da legislação trabalhista, a última
flexibilização possível para comércio e movimento de capitais. E, finalmente, retomar as privatizações.
CC: Qual o alvo nas privatizações?
MCT: No primeiro acordo com o Fundo que o Fernando Henrique fez, eu estava na Câmara, eles
queriam privatizar o Banco do Brasil, o BNDES e a Caixa Econômica. Acha que eles deixaram de
querer? Coisa nenhuma. Eles consideram que esses bancos públicos competem com eles. Quando, na
verdade, os bancos públicos são os que permitem alavancar recursos para financiar o crescimento. O
primeiro requerimento do crescimento sustentável que era afastar a restrição externa.
CC: Será possível, de fato, retomar o crescimento?
MCT: Agora, sim. Essa era a primeira barreira. Mas o governo tem, também, de continuar puxando a
renda dos de baixo poder porque, como ainda está, não diminuiremos a heterogeneidade social. Nosso
quadro exige primeiro emprego e renda para os de baixo poder. Evidentemente, enquanto isso se faz
políticas sociais compensatórias. A terceira barreira é a falta de investimento público. Isso só se supera
baixando os juros e livrando os bancos públicos das restrições impostas pelo Banco Central.
CC: A senhora é contra a exposição da divergência entre os ministros?
MCT: Mas como não haver divergência pública se alguns estão se metendo onde não são chamados? E
todos eles vêm argumentar a favor dessa interferência, todos eles, começando pelos economistas da
PUC que se reúnem na Casa das Garças. Esse Pérsio Arida, essa gente toda, que no Cruzado tinham
boas intenções, depois que viraram banqueiro estão, claro, com péssimas intenções.
CC: A senhora já pos as mãos no fogo por alguns deles na época do Cruzado.
MCT: E queimei. Não ponho mais as mãos no fogo por ninguém, como pus para esses meninos. O
Pérsio Arida, o André Lara Resende e o Mendonça de Barros. No caso do Malan (Pedro) eu queimei as
mãos e o coração. Eu gostava muito dele. Todos viraram banqueiros. Isso faz, evidentemente, que eles
digam o contrário da gente. Estarão defendendo os interesses deles ao contrário da gente, é óbvio.
CC: Mudando de assunto. As exportações vão continuar subindo?
MCT: Vamos continuar subindo, mas, como disse o próprio ministro Rodrigues, muito mais devagar.
Crescemos mais que a economia mundial. Outra coisa que ninguém se dá conta é a idiotice do primeiro
quadriênio do Fernando Henrique. Ele abriu a economia do ponto de vista micro, estourou as empresas,
e do ponto de vista macro fechou. Não exportávamos nada por causa da taxa de câmbio populista. Em
resumo: o que fizemos nos últimos dois anos foi recuperar o país da situação que aqueles infelizes
montaram de 1994 em diante. Pelo menos do ponto de vista do comércio exterior, inserção internacional
e dívida externa nós nos recuperamos da monstruosa trapalhada que foi feita.
Maria da Conceição Tavares, economista, é professora emérita da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ), professora associada da Universidade de Campinas (Unicamp) e ex-deputada federal
(PT-RJ). Esta entrevista foi publicada na revista Carta Capital, edição de 25 de dezembro de 2005.
Download

Sem o garrote do FMI - Instituto de Economia da UFRJ