A LIMITAÇÃO DO USO DE ALGEMAS: A (IN)APLICABILIDADE NA REALIDADE BRASILEIRA DA SÚMULA VINCULANTE N.11 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL 1 Daniele Gasparetto* RESUMO: O presente estudo tem por objetivo realizar uma análise crítica da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal que trata da limitação do uso de algemas, buscando evidenciar problemas práticos que estão surgindo após sua edição. Porém, para se chegar ao tema central, é examinada, preliminarmente, a origem, a simbologia e a evolução histórica do uso de algemas, abrangendo-se, principalmente, os princípios da dignidade da pessoa humana e da presunção da inocência. Logo após, dá-se ênfase ao instituto da Súmula Vinculante, especialmente analisando a Súmula Vinculante n.11, citando as decisões que lhe deram origem e os fatos que contribuíram para sua elaboração. Finalmente, a partir de um delineamento da criminalização e da seletividade do sistema penal adotando os referenciais teóricos da Criminologia Crítica, analisa-se como a Súmula Vinculante n.11 reforça a distribuição seletiva e desigual do status de criminoso, bem como se examina os problemas que surgiram com a sua inaplicação ao caso concreto, a partir de uma visão crítica qualitativa das entrevistas realizadas com delegados e agentes da polícia federal e da polícia civil da cidade de Porto Alegre. Palavras-chave: Algemas. Dignidade da pessoa humana. Presunção da inocência. Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal. Seletividade do sistema penal. INTRODUÇÃO O presente estudo tem por objetivo analisar criticamente a limitação do uso de algemas através da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal à luz do ordenamento jurídico-constitucional brasileiro, buscando evidenciar problemas práticos que estão surgindo após sua edição. Ademais, no que tange à aplicação da norma, abordar-se-á o papel seletivo dos operadores do sistema penal a partir dos referenciais teóricos da Criminologia Crítica. A escolha do presente tema baseia-se na importância jurídica e social que a limitação do uso de algemas representa para toda sociedade, uma vez que sua utilização envolve a colisão de interesses fundamentais estabelecidos na nossa Constituição Federal, quais sejam, de um lado, o dever do Estado de preservar a ordem pública, garantindo a segurança e a incolumidade das pessoas e de seu patrimônio e, de outro, os princípios da dignidade humana e da presunção da inocência. Nesse sentido, a atualidade do tema se justifica pela gama de posicionamentos e conclusões acerca da legitimação do uso de algemas. A problemática se instaurou a partir dos crescentes abusos relacionados 1 Monografia apresentada como requisito para a aprovação na disciplina de Trabalho de Conclusão de Curso II, Curso de Ciências Jurídicas e Sociais da Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, aprovada pela Banca Examinadora composta pela orientadora Profª. Lígia Mori Madeira, Profª. Clarice Beatriz da Costa Sohngen e Prof. Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, em 25.11.2009. * Acadêmica da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Email: [email protected]. com o emprego de algemas em desfavor de abastados, fato pouco visto anteriormente, bem como devido à ausência de regulamentação do instrumento no ordenamento brasileiro. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal acabou editando, no dia 13 de agosto de 2008, a Súmula Vinculante n.11, a qual limita o uso de algemas a casos excepcionais. Entretanto, devido à abrangência e aos critérios jurídicos subjetivos adotados pela norma, alguns problemas práticos surgiram, uma vez que o mesmo tribunal, anteriormente à edição da norma, compreendia que a utilização de algemas apenas auxiliava na segurança das partes, sem, contudo, causar um constrangimento ilegal. Ora, convém destacar que o presente trabalho não busca defender a utilização de algemas indiscriminadamente, haja vista que o uso de algemas poderá acarretar prejuízos incalculáveis à vítima, pois desrespeita diretamente a dignidade da pessoa humana e a presunção da inocência, que são princípios fundamentais de um Estado Democrático de Direito garantido a todos os cidadãos. Por outro lado, também impulsionaram este trabalho as descobertas feitas através da Criminologia Crítica, segundo a qual a criminalidade não é uma característica de determinados indivíduos, mas sim de um status atribuído a estes por meio de uma dupla seleção2 realizada pelas agências de controle social, à quais concorrem tanto o Supremo Tribunal Federal quanto os órgãos policiais. Assim, pretende-se analisar o papel seletivo do Supremo Tribunal Federal ao elaborar a Súmula Vinculante n.11, bem como dos órgãos policiais ao aplicá-la, com o fito de identificar principalmente contra quem e em favor de quem esta foi criada3. Ademais, busca-se demonstrar os problemas práticos que estão surgindo com a (in)aplicabilidade da norma na sociedade brasileira, a fim de traçar um entendimento acerca dos limites do uso de algemas. Para tanto, a presente monografia foi subdividida em três capítulos, cada qual terá uma temática diferente, mas sempre tendo em vista o uso de algemas. No primeiro capítulo são abordados o conceito, a simbologia e a evolução histórica das algemas. Logo após, procura-se demonstrar os problemas práticos da não regulamentação do uso de algemas, bem como as medidas adotadas para o seu regramento em outros países, como nos EUA e na Espanha. O segundo capítulo tece algumas considerações sobre Súmula Vinculante, sobretudo sobre a Súmula Vinculante n.11, citando as decisões que lhe deram origem, bem como os fatos que contribuíram para sua elaboração. Além disso, são expostas as diferentes posições doutrinárias sobre a limitação do uso de algemas. Por fim, no terceiro capítulo chamado “a discriminação da justiça penal brasileira”, faz-se um delineamento da criminalização e da seletividade adotando os referenciais teóricos da Criminologia Crítica, a fim de descobrir se a Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal reforçou a distribuição seletiva e desigual do status de criminoso. Posteriormente, encerra-se o trabalho, analisandose a (in)aplicação da norma no nosso sistema penal, a partir de uma visão crítica 2 3 A “dupla seleção”, segundo Alessandro Baratta, ocorre “em primeiro lugar, da seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais: em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas”. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p.161. BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro.11.ed. Rio de Janeiro:Revan, 2007,p.32. qualitativa das entrevistas realizadas com delegados e agentes da polícia federal e da polícia civil na cidade de Porto Alegre. 1 O USO DE ALGEMAS O presente capítulo visa analisar o uso de algemas na sociedade brasileira contemporânea desde sua origem até os dias atuais. Para isso, faz-se necessário um recorte histórico sobre tema a fim de esclarecer algumas considerações acerca de sua origem, do seu significado, de sua simbologia, bem como de sua evolução de uso. 1.1 ORIGEM, ETIMOLOGIA E SIMBOLOGIA A palavra “algema” é proveniente do árabe aljamaa, que significa “a pulseira”, aparecendo no sentido de aprisionar somente no século XVI4. Antigamente, no entanto, todo o instrumento capaz de prender os pulsos era chamado de “cadeias”, de “ferros” ou de “grilhões”. De acordo com Sérgio Pitombo, as algemas eram utilizadas para tolher pelos pulsos, ou dedos e polegares, e os grilhões serviam para jungir pelos tornozelos os presos5. De fato, antigamente as “algemas”, os “ferros”, as “cadeias” e os “grilhões” não eram apenas meios de submeter, fisicamente, os presos, mas também formas de castigo. Nesse sentido, Padre Antônio Vieira cita como se utilizava os “ferros” na sua época: “resgatam-nos com os seu próprios ferros, passando as algemas às suas mãos e os grilhões aos seus pés”6. Ao longo dos séculos tais palavras foram utilizadas no sentido de aprisionar, contudo, hoje em dia utilizamos apenas o termo “algema” no plural, conforme o Dicionário Etimológico Nova Fronteira: “algema é um instrumento de ferro com que se prendem os braços pelos pulsos”7. Na mesma linha, utilizamos o conceito de Sérgio Pitombo que entende por algemas “o instrumento de força, em geral metálico, empregado pela Justiça Penal, com que se prendem os braços de alguém, pelos punhos, na frente ou atrás do corpo, ao ensejo de sua prisão, custódia, condução ou em caso de simples contenção”8. É importante ressaltar, todavia, a simbologia das algemas, isto é, o que ela realmente representa para o Direito Penal. Carnelutti bem esclarece: As algemas, também as algemas são um símbolo do direito; quiça, a pensar-se, o mais autêntico de seus símbolos, ainda mais expressivo que a balança e a espada. [...] E justamente as algemas servem para descobrir o valor do homem, que é, segundo um grande filósofo italiano, a razão e a função do direito. [...] Aquilo que estava escondido, na manhã na qual vi o homem lançar-se contra o outro, sob a aparência de fera, era o homem: tão 4 5 6 7 8 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Emprego de algemas - notas em prol de sua regulamentação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 592, p. 275-292, fev. 1985, p. 275. Ibidem, p. 275. VIEIRA, Padre Antônio. Sermão de S. Pedro, Nolasco, pregado na cidade de São Luís do Maranhão, in Sermões. V.II/204. Lisboa. Miguel Deslandes. 1682. §221 - apud Sérgio Marcos de Moraes Pitombo. Emprego de algemas - notas em prol de sua regulamentação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 592, p. 275–292, fev. 1985, p. 275. CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 30. PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Emprego de algemas - notas em prol de sua regulamentação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 592, p. 275-292, fev. 1985, p. 275. logo ataram seus pulsos com a corrente, o homem reapareceu; o homem, como eu, com o seu mal e com o seu bem, com as suas sombras e com a 9 suas luzes, com a sua incomparável riqueza e a sua espantosa miséria. Ademais, o autor conclui que as jaulas ou as algemas são um símbolo do direito e por este motivo revelam a natureza e a desventura do homem, haja vista que o homem acorrentado ou enjaulado é a verdade do homem, sendo o direito apenas um modo de revelá-la10. Nesse mesmo sentido, é a opinião de Sérgio Marcos Pitombo, o qual aponta que: As algemas podem, também, servir para só insultar ou castigar - tortura psíquica, consistente na injusta vexação, e física, no aplicar da sanção prevista-, dar tratamento, enfim, degradante e desumano ao que se acha 11 sob guarda ou em custódia, violando garantia individual. Dessa forma, além do seu significado propriamente dito, devemos esclarecer o que, de fato, simboliza as algemas para o Direito. Com efeito, as algemas representam para o Direito Penal, além de um instrumento de força, uma forma de repressão e coerção do Estado, tornando-se, muitas vezes, o símbolo maior de humilhação do homem12. Portanto, o uso de algemas não pode ser analisado literalmente como um mero instrumento de trabalho do policial, tendo em vista que o seu uso indevido fere diretamente os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da presunção de inocência, da incolumidade física, dentre outros princípios garantidos pelo Estado Democrático de Direito. Assim, no presente trabalho não se busca discutir o uso de algemas quando excepcionalmente necessário, uma vez que há determinadas situações que não há outra maneira de conter o indivíduo. O que será debatido é a sua utilização indiscriminada, o que pode gerar prejuízos incalculáveis à vítima. 1.2 HISTÓRICO DO USO DE ALGEMAS Para falar sobre a limitação do uso de algemas e da Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal, faz-se necessário um estudo histórico que permita contextualizar a sua utilização até os dias atuais. O uso de algemas acompanha a história da humanidade desde os primórdios, contudo, de acordo com Sérgio Pitombo, somente 71 anos antes do famoso escrito de Beccaria13, começou-se a abolir em Portugal a aplicação indiscriminada de algemas, através do presente decreto: Por ser informado que nas cadeias do Limoeiro desta cidade se põem ferros a algumas pessoas, que a elas vão sem justa causa e as metem em 9 CARNELUTTI. Francesco. As misérias do processo penal. Trad. José Antônio Cardinalli. 6.ed. Campinas: Bookseller, 2005, p. 24. 10 Ibidem, p. 26. 11 PITOMBO, op.cit., p. 285. 12 VIEIRA, Luís Guilherme. Algemas: uso e abuso. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, n. 16, p. 11-16, out./nov. 2002, p.15. 13 A obra dos Delitos e das Penas de Cesare Beccaria foi elaborada no ano de 1764. prisões mais apertadas, do que pedem as culpas, porque foram presas; e que ainda com algumas se passa ao excesso de serem maltratadas e castigadas; hei por bem, que os escravos, que forem as cadeias por ordem de algum dos Julgadores; e por casos leves, ou só por requerimento de seus senhores, não sejam molestados com ferros, nem metidos em prisões mais apertadas, que aquelas que bastarem para segurança; porque só naqueles casos de crimes grave, que pedirem segurança pela qualidade da culpa, ou da prisão, ou em casos cometidos nas mesmas cadeias a que os ferros servem de pena, se poderá usar deles contra tais escravos; ou outras quaisquer pessoas livres; e se lhes não poderá dar outro algum castigo mais, do que aquele, que pelas Leis for permitido, por não ser justo, que esteja no arbítrio do Julgador mandar prender alguma por respeitos particulares e que na prisão seja vexada com ferros com o rigor da prisão, ou outro algum gênero de castigo. Ao Regedor da Justiça hei por muito recomendada a observância deste Decreto; e contra os carcereiros, que o contrário permitirem ou fizerem, se mandará proceder com a demonstração 14 do castigo, que for justo. Lisboa. 30.09.1693. Dessa forma, percebemos que a partir do século XVII a utilização de algemas, indiscriminadamente, passou a ser proibida e repudiada pelos doutrinadores. Entretanto, o primeiro decreto relacionado à limitação do uso de algemas no Brasil, surgiu apenas no século XIX, constituído basicamente a partir de doutrinas Europeias, sobretudo de Portugal. Assim, no ano de 1821, D. Pedro, que ainda era Príncipe Regente, instituiu o primeiro decreto relacionado ao princípio da garantia das liberdades individuais, o qual na Exposição de Motivos ordenou que: [...] em caso nenhum possa alguém ser lançado em segredo, ou masmorra, estreita, escura, ou infecta, pois que a prisão deve só servir para guardar as pessoas e nunca para as adoecer e flagelar; ficando implicitamente abolido para sempre o uso de correntes, algemas, grilhões e outros quaisquer ferros, inventados para martirizar homens, ainda não julgados a sofre qualquer pena aflitiva, por sentença final; entendendo-se, todavia, que os juízes e magistrados criminais poderão conservar por algum tempo, em casos gravíssimos, incomunicáveis os delinqüentes, contando que seja em casas arejadas e cômodas e nunca manietados, ou sofrendo qualquer 15 espécie de tormento. Tal decreto, contudo, foi substituído em 1832 pelo Código de Processo Criminal de Primeira Instância do Império do Brasil, o qual permitiu, implicitamente, o emprego de algemas no instante da prisão. Esse código dispunha em seu capítulo VI, artigo 180, que caso o réu não obedecesse e procurasse evadir-se, o executor teria direito de empregar o grau da força necessária para efetuar a prisão; se obedecesse, porém, o uso da força estaria proibido. Nessa perspectiva, a lei 26, de 03 de dezembro de 1841, reformadora do Código de Processo Penal, deixou intocado o art. 18016. De fato, a primeira reestruturação do processo penal brasileiro ocorreu apenas 30 anos depois, com a Lei 2.033, de 20 de outubro de 1871, a qual vedou o 14 Ordenações e Leis do Reino de Portugal, Confirmadas e Estabelecidas pelo Senhor Rei D. João IV. Lisboa, Mosteiro de São Vicente de Fora, 1747, Livro V, Título 95, coleção IIz, p. 282-283- apud PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Emprego de algemas - notas em prol de sua regulamentação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 592, p. 275-292, fev. 1985, p. 276. 15 BRASIL. Decreto de 23 de maio de 1821. Das providências para garantia da liberdade individual. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/Historicos/DIM/DNNI2351821.htm.>. Acesso em: 20 set. 2009 16 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Emprego de algemas - notas em prol de sua regulamentação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 592, p. 275-292, fev. 1985, p. 276. deslocamento do preso com ferros, algemas ou cordas, salvo em caso de extrema segurança, que deveria ser justificada pelo condutor, sob pena de multa17. Com isso, nota-se uma evolução dos direitos individuais do cidadão; parte-se de uma liberalidade total do Estado, no qual o indivíduo era considerado um simples objeto controlado pelo poder estatal, para tornar-se um indivíduo de direitos. Nesse contexto, o emprego de algemas passou a ser permitido apenas em casos extremos e justificados pelo condutor. É importante salientar que a primeira codificação penal da República (1890) e a Consolidação das Leis Penais (1932) foram omissas quanto ao emprego de algemas. O tema, todavia, só voltou a ser regulamentado, indiretamente, no Código de Processo Penal de 1941, através dos artigos 284 (“não será permitido o emprego de força, salvo a indispensável no caso de resistência ou de tentativa de fuga do preso) e do art. 292 (“ Se houver, ainda que por parte de terceiros, resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar por meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência, do que tudo se lavrará auto subscrito também por duas testemunhas”), que estão em vigor até hoje. Em 1969, durante a ditadura militar, o Código de Processo Penal Militar decretou em seu artigo 234 que o emprego de algemas deveria ser evitado, desde que não houvesse perigo de fuga ou agressão por parte do preso. Ademais, retomaram o espírito elitista das Ordenações Filipinas, proibindo a utilização da força em presos especiais. A Lei de Execução Penal, criada em 1984, previu em seu art.199 que o emprego de algemas seria disciplinado por decreto federal, contudo, passado mais de 24 anos da sua edição, nada foi regulamentado. A respeito do tema, a Organização das Nações Unidas (ONU) em seu 1º Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do Crime e Tratamento de Delinquentes, realizado em Genebra, em 1955, tratou da matéria sobre algemas nos seus artigos 33 e 34. Além disso, o Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana de Direitos Humanos), ratificado pelo Brasil em 1992, também mencionou as regras mínimas para o tratamento do prisioneiro. Observa-se que esses organismos internacionais já apontavam a necessidade de limitar os abusos decorrentes da arbitrariedade da polícia em relação ao uso de algemas. Finalmente, o último artigo que trata sobre o tema, editado somente em 2008, é o art. 474, §3°, do Código de Processo Pena l, alterado pela Lei n. 11.689/2008, que proíbe o uso de algemas no Tribunal do Júri18. Portanto, nota-se que não há no ordenamento jurídico brasileiro uma legislação federal que regulamente o uso de algemas, razão pela qual as instituições passaram a estabelecer diferentes normas em todos os Estados do Brasil a partir dos institutos em vigor, acarretando uma grande insegurança jurídica a toda população. 17 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Emprego de algemas - notas em prol de sua regulamentação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 592, p. 275-292, fev. 1985, p.277. 18 Preceitua o art. 474, §3°, do Código de Processo P enal, alterado pela Lei 11.689/08 : “Não se permitirá o uso de algemas no acusado durante o período em que permanecer no plenário do Júri, salvo se absolutamente necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à garantia da integridade física dos presentes”. BRASIL. Lei n.11.689, de 9 de junho de 2008. Altera o dispositivos do Decreto-Lei n 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos ao Tribunal do Júri, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 10 ago. 2008. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato20072010/2008/Lei/L11689.htm> Acesso em: 20 set. 2009. Nesse contexto, o Supremo Tribunal Federal, no intuito de suprir a omissão legislativa e diminuir a insegurança jurídica, editou, no dia 13 de agosto de 2008, após o julgamento do Habeas Corpus (HC) n. 91.952/SP, a Súmula Vinculante n. 11, assunto objeto do presente trabalho, nos seguintes termos: Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente e da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da 19 responsabilidade civil do Estado. Ocorre que a mencionada Súmula não resolveu os problemas relacionados ao uso de algemas, uma vez que os critérios jurídicos adotados por ela são extremamente subjetivos. Todavia, esses aspectos serão discutidos nos capítulos posteriores. 1.3 PROBLEMA DA NÃO REGULAMENTAÇÃO Resta claro que a falta de regulamentação do emprego de algemas prejudica toda sociedade, sobretudo por envolver a colisão de interesses fundamentais estabelecidos na nossa Constituição Federal, quais sejam: de um lado, o dever do Estado de preservar a ordem pública, a incolumidade das pessoas e o patrimônio através dos órgãos policiais (art. 144 da CF/88), e por outro lado, os princípios fundamentais da estrutura democrática, isto é, o da dignidade da pessoa humana e da presunção da inocência20. De fato, a falta de disciplinamento, até a edição da Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal, permitia o uso de algemas indiscriminadamente, isto é, os agentes policiais poderiam algemar qualquer pessoa sem nenhuma justificativa. Em alguns Estados, a sua utilização era regra e não a exceção. Nesse cenário, cumpre destacar o Projeto de Lei do Senado Federal n. 185/2004, de autoria do Senador Demóstenes Torres, que visa regularizar o emprego de algemas em todo território nacional21.De acordo com o site do Senado Federal, este Projeto de Lei encontra-se na Subsecção da Coordenação Legislativa do Senado desde o dia 07 de agosto de 2008, aguardando aprovação22. Observase, assim, que o presente projeto demorou mais de 20 anos para ser elaborado e, ainda, não se sabe quando será aprovado e aplicado Brasil. Diante do exposto, para solucionar os casos que envolvam o uso de algemas, utiliza-se o Código de Processo Penal de 1941, principalmente, os artigos 284 e 292, anteriormente citados, e a Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal, objeto do presente trabalho. Ocorre que essas legislações são lacunosas, haja vista que os critérios jurídicos estabelecidos são extremamente subjetivos, 19 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n. 11. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumulaVinculante&pagina=s umula_001_013>. Acesso em: 17 set. 2009. 20 CAPEZ, Fernando. A questão da legitimidade do uso de algemas. Revista Direito Militar, Florianópolis, n. 75, p. 23-26, jan./fev. 2009, p. 24. 21 BRASIL. Senado Federal: Projeto de Lei nº 185/04. Disponível em: <http://www.senado.gov.br/sf/atividade/materia/getPDF.asp?t=22402>. Acesso em: 19 set. 2009. 22 Ibidem. acarretando grande insegurança jurídica a toda sociedade. Em outros países, contudo, o problema da regulamentação encontra-se solucionado. De acordo com o Departamento de Polícia de Boston, nos Estados Unidos, as algemas devem ser utilizadas sempre que uma pessoa seja detida ou presa, independentemente da idade ou sexo, a menos que existam circunstâncias que tornem justificável para um gestor não o fazer. Nesse caso, o gestor deve estar preparado para justificar a não utilização de algemas23. Ademais, esta mesma cartilha do Departamento de Boston estabelece que sob nenhuma circunstância as algemas devem ser removidas enquanto um preso está sendo transportado, seja em sede policial ou em qualquer outro lugar, exceto para fins de coleta de impressões digitais ou para escrita e, reafirma que é necessário evitar utilizar as algemas na parte da frente do corpo, exceto nos casos em que a pessoa possuir alguma deformidade física, deficiência, ou se ela estiver grávida. Portanto, nos Estados Unidos o uso de algemas não necessita ser justificado, uma vez que, de acordo com a Corte Suprema, em situações inerentemente perigosas, as algemas minimizam o risco de danos, tanto para os agentes quanto para os ocupantes. Observa-se, assim, que para o Departamento de Boston e para a Corte Suprema, o uso de algemas é regra e não exceção. Ora, no Brasil, até a edição da Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal, esta era a orientação dada aos policiais da polícia civil e da policia federal, conforme seus regimentos internos. Por outro lado, na Espanha, a polícia no ato da prisão deve usar a força "somente quando estritamente necessário”, e mesmo assim, deve colocar as algemas sob "critérios muito restritivos”. Essas são as orientações dadas às polícias locais espanholas, no entanto, caso a autoridade deixe de cumprir tais medidas, não há uma sanção determinada. Assim, percebe-se que neste país as algemas só poderão ser utilizadas em casos excepcionais.24 Dessa forma, nota-se que cada país adota um tipo de norma em relação ao uso de algemas. No Brasil, antes da edição da Súmula n. 11 do Supremo Tribunal Federal, cada Estado estabelecia suas próprias medidas administrativas, autorizando ou restringindo o uso de algemas. Todavia, tal procedimento acarretava uma grande insegurança jurídica, razão pela qual foi elaborada Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal. De fato, a Súmula Vinculante n.11 não regulamentou corretamente o uso de algemas no ordenamento jurídico brasileiro. É necessária, urgentemente, a aprovação de uma lei federal que discipline o uso de algemas, a exemplo do ocorrido nos Estados Unidos e na Espanha. 1.4 CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO PROCESSO PENAL Antes de falar-se especificamente sobre a constitucionalização do Processo Penal é importante destacar a realidade histórica em que foi produzido o nosso Código de Processo Penal vigente e as suas linhas teóricas. 23 Boston Police Department Rules and Procedures, Rule 315, 1991. Disponível em: <www.cityofboston.gov/police/pdfs/rule315.pdf>. Acesso em: 23 set. 2009. 24 El País Edición Empresa, Cataluña. Disponível em: <http://www.elpais.com/articulo/cataluna/codigo/conducta/regulara/actuaciones/Mossos/elpepiespca t/20081105elpcat_18/Tes>. Acesso em: 05 out. 2009 Nesse diapasão, retornaremos a meados do séc. XX, basicamente em 1941, quando foi elaborado o Código de Processo Penal brasileiro. Tal legislação foi inspirada no processo penal italiano de 1930 que se encontrava em pleno regime fascista, de ideologia eminentemente inquisitiva. Destaca-se, todavia, que a partir de 1967, com a Lei n. 5349/67, bem como nos anos de 1973 e 1977, além das recentemente aprovadas Leis n.º 11.689, 11.690 e 11.718 de 2008, ocorreram grandes alterações no CPP, por meio das quais foram flexibilizadas inúmeras regras restritivas do direito à liberdade. Em contrapartida, a Constituição Federal de 1988 se afastou desta linha autoritária do Código de Processo Penal, uma vez que instituiu um sistema de amplas garantias individuais, a começar pelo fortalecimento do princípio da dignidade humana, da presunção da inocência, bem como a garantia do devido processo legal ao acusados, como a ampla defesa e o contraditório. Nesse sentido, conclui-se que o modelo adotado pela nossa Constituição de 1988 é o sistema processual acusatório25. Luigi Ferrajoli entende que o sistema processual acusatório é aquele que: [...] o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz, com base em sua livre 26 convicção. De fato, grandes modificações ocorreram no Código de Processo Penal, contudo, suas linhas teóricas continuam sendo extremamente autoritárias e abusivas, pois se baseiam em um sistema preponderantemente inquisitivo, opondose ao sistema processual acusatório instituído pela nossa Constituição Federal de 1988. Assim, após 88, verifica-se a necessidade de interpretar as normas estabelecidas no Código de Processo Penal a partir da norma constitucional, principalmente, devido à hierarquia das regras estabelecidas na nossa Constituição Federal. Nesse sentido, Zaffaroni e Pierangeli mencionam que: A relação do direito penal com o direito constitucional deve ser sempre muito estreita, pois o estatuto político da Nação – que é a Constituição Ferderal – constitui a primeira manifestação legal da política penal, dentro de cujo âmbito deve enquadra-se a legislação penal propriamente dita, em 27 face do princípio da supremacia constitucional. Aury Lopes Junior, na mesma linha, entende que: Somente a partir da consciência de que a constituição deve efetivamente constituir (logo, consciência que de que ela constitui-a-ação), é que se pode compreender que o fundamento legitimante da existência do processo penal democrático se dá através de sua instrumentalidade constitucional. Significa dizer que o processo penal contemporâneo somente se legitima à medida que se democratizar e for devidamente 25 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 8.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 10. 26 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica et. al. 2. ed. rev. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.123. 27 ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. 4.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 135. constituído a partir da Constituição. 28 De fato, o Processo Penal deve se desenvolver dentro da estrutura democrática estabelecida pela Constituição Federal, ou seja, o processo penal deve ser lido à luz da Constituição e não ao contrário29. Nesse sentido, Ada Pellegrini Grinover conclui que: [...] o importante não é apenas realçar que as garantias dos acusado – que são, repita-se, garantias do processo e da jurisdição - foram alcançados a nível constitucional, pairando sobre a lei ordinária, à qual informam. O importante é ler as normas processuais, à luz dos princípios e regras constitucionais. É verificar a adequação das leis à letra da Constituição. É verificar os textos legais à luz da ordem constitucional. É, como já se escreveu, proceder à interpretação da norma, em conformidade com a Constituição. E não só em conformidade com a sua letra, mas também com seu espírito. Pois a interpretação constitucional é capaz, por si só, de operar mudanças informais na Constituição, possibilitando que, mantida a letra, o espírito da lei fundamental seja acolhido e aplicado, de acordo com 30 o momento histórico que se vive. Nesse cenário, importa registrar que a limitação do uso de algemas será analisada através da Constituição Federal, isto é, todos os dispositivos relacionados ao presente tema deverão ser interpretados de acordo com os postulados democráticos e garantistas da nossa Carta Magna e não nos limites autoritários do Código de Processo Penal de 194131. Ora, convém destacar que não se busca defender a utilização de algemas apenas para determinados grupos sociais, ou seja, a interpretação garantista não visa atingir somente os presos “privilegiados”, como vem ocorrendo constantemente no nosso sistema penal, e sim toda a população que venha a sofrer algum tipo de constrangimento ilegal. 1.4.1 Princípio da dignidade humana e da presunção da inocência Resta claro que não poderemos mais aplicar o Direito Processual Penal Brasileiro com base no Código de Processo Penal de 1941, sobretudo, devido às mudanças trazidas pela Constituição Federal de 1988 e seus direitos fundamentais. Porquanto, partindo-se de uma visão constitucional, busca-se tutelar alguns princípios garantidores dos direitos individuais frente ao princípio da preservação da ordem pública. De fato, os princípios constitucionais são verdadeiras garantias fundamentais dos indivíduos, uma vez que estes são considerados os limitadores do poder estatal. Por esta razão, faz-se necessário um estudo dos princípios norteadores do Estado Democrático de Direito, quais sejam, o princípio da dignidade humana e da presunção da inocência. Primeiramente, precisamos esclarecer o que vem a ser um princípio e qual 28 LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 8. 29 Ibidem, p. 10. 30 GRINOVER, Ada Pellegrine. As garantias constitucionais do processo, novas tendências do direito processual. In: FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.17. 31 LOPES JUNIOR, op. cit., p. 11. o seu grau de importância para o sistema jurídico.Segundo Paulo Bonavides, os princípios são “valores fundamentais que governam a Constituição e regímen a ordem jurídica. Não são apenas lei, mas o Direito em toda sua extensão, substancialidade , plenitude e abrangência”32. Nesse quadro, Eugênio Pacelli complementa a definição: “os princípios se apresentam como normas fundamentais do sistema processual, sem os quais não se cumpriria a tarefa de proteção aos direitos humanos”33. Assim, princípios são normas abstratas e gerais constituídos de valores protegidos pela sociedade que devem ser garantidos pelo Estado. Nota-se, nesta esfera, que desrespeitar um princípio é muito mais grave que desrespeitar uma norma, uma vez que são considerados normas supremas do ordenamento jurídico, razão pela qual caso ocorra um problema concreto entre normas do sistema, aplicar-se-ão sempre os princípios; eles são a luz de todo o ordenamento. Nesse cenário, o que se pretende demonstrar é que os princípios fundamentais apresentam uma qualidade de normas embasadoras e informativas de toda a ordem constitucional, inclusive das normas definidoras de direitos e garantias fundamentais, que integram, juntamente com os princípios fundamentais, o núcleo essencial de nossa Constituição formal e material. A partir do exposto, destacamos um dos princípios fundamentais do nosso Estado Democrático de Direito, estabelecido no art.1°, inciso III, da Constituição Federal; o princípio da dignidade da pessoa humana. Inicialmente, é importante esclarecer que a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que está relacionado com a condição humana, envolvendo, principalmente, a condição do ser humano. De fato, a dignidade vem sendo considerada como qualidade intrínseca e indissociável de todo e qualquer indivíduo, razão pela qual a destruição de um implicaria a destruição do outro. Logo, o respeito e a proteção da dignidade da pessoa constituem uma meta permanente do Estado de Direito. Aliás, só poderíamos cogitar a absoluta desnecessidade de qualquer preocupação com o princípio ora defendido, caso o indivíduo pudesse rejeitar essa sua condição de ser humano.34 Nesse diapasão, importante a adoção de um conceito norteador, e, para tanto, utiliza-se a definição desenvolvida por Ingo Wolfgang Sarlet: Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e coresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão 35 com os demais seres humanos. Nesse sentido, partimos da premissa de que a dignidade, sendo qualidade inerente à essência do ser humano, deverá servir de parâmetro para 32 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. São Paulo: Malheiros Editoras LTDA, 2005, p.293. 33 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 5. 34 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2004, p. 84. 35 Ibidem, p. 59. aplicação, interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais das demais normas constitucionais, mas sim de todo o ordenamento jurídico, visto que em cada direito fundamental e em toda legislação infraconstitucional se faz presente um conteúdo, ou pelo menos, alguma projeção da dignidade da pessoa humana. Por essa razão, é considerada como o princípio-valor de maior hierarquia da nossa Constituição Federal. Como bem esclarece Ingo Sarlet: Em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da pessoa humana, na condição de valor ( e princípio normativo) fundamental que “atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais”, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferimos). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são 36 inerentes, em verdade, estar-se-á negando-lhe a própria dignidade. Dessa forma, conclui-se que todas as funções, os órgãos e as atividades estatais encontram-se vinculados ao princípio da dignidade humana, devendo estes tanto respeitá-lo, protegê-lo contra agressões oriundas de terceiros, bem como e, principalmente, possuem obrigação de promover as condições que viabilizem as pessoas de viverem com dignidade. Assim, quando tal princípio não estiver assegurado aos indivíduos e ao seu pleno desenvolvimento, estaremos diante de um Estado autoritário, injusto e ineficaz.37 Diante do exposto, restou destacado que o princípio da dignidade da pessoa impõe limites à atuação estatal, razão pela qual o poder público está impedido de violar a dignidade da pessoa humana. De fato, o Estado tem o dever de respeitar tal princípio, além disso, a partir dele deverá ter como meta permanente a proteção e a realização concreta de uma vida com dignidade para todos. De acordo com a lição de Pérez Luño, “a dignidade da pessoa humana constitui não apenas a garantia negativa de que a pessoa não será objeto de ofensas ou humilhações, mas implica também, num sentido positivo, o pleno desenvolvimento da personalidade de cada indivíduo”38. Nesta linha de raciocínio, sustenta-se que o Estado realmente tem o dever de garantir uma vida digna a todos, ou seja, as condições mínimas necessárias para sobrevivência de cada indivíduo. Todavia, no presente trabalho, considerar-se-á o princípio da dignidade humana como um limitador da atividade estatal. Assim, através desse princípio, busca-se impedir os abusos das autoridades em relação ao uso de algemas. Com efeito, a principal finalidade na adoção de algemas para o Poder Público não é desrespeitar a dignidade da pessoa humana. Ocorre que, muitas vezes a polícia se utiliza da forma indevida do uso de algemas, através do excesso, da sua injusta colocação, bem como pela sua exposição desnecessária e exagerada à mídia. Assim, inegavelmente, estamos diante de uma afronta aos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito39. De fato, há muito tempo tem se percebido abusos de autoridade 36 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. 3.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2004, p. 78. 37 Ibidem, p.59. 38 LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos, estado de derecho y constitucion. 5 ed. Madrid: Tecnos, 1995, p. 318. 39 HEBERLLA, Fernanda. Algemas e a dignidade da pessoa humana: fundamentos jurídicos do uso de algemas. São Paulo: Lex Editora, 2008, p.135. cometidos na utilização vexatória de algemas, lesando diretamente à dignidade da pessoa humana. Nestes casos, apesar de ser considerado um mero instrumento de segurança, para alguns doutrinadores, o uso algemas, quando em excesso, significa o símbolo maior da humilhação do homem, uma vez que só podem ser utilizadas nas singulares e excepcionalíssimas hipóteses dos art.s 284 e 292 do Código de Processo Penal, combinado com a Súmula n. 11 do Supremo Tribunal Federal e, mesmo assim, desde que esgotados todos os outros meios para conter a pessoa que se pretende conduzir40. Ademais, cumpre salientar que a Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal estabeleceu que o uso de algemas só é permitido excepcionalmente, tendo a autoridade coatora o dever de justificar expressamente tal ato. Contudo, a Corte Suprema não se manifestou em relação aos critérios adotados pelo policial para justificar a utilização de algemas. Assim, o policial poderá adotar qualquer medida que considerar necessária. Entretanto, sendo o policial um representante do Estado, a ele compete o dever de garantir a isonomia de todos os seres humanos, os quais não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário. Nesse sentido, no desempenho do exercício policial também vigora o princípio da igualdade, e não é tolerada a discriminação por sexo, religião, raça ou classe social. Atualmente, todavia, não é isso que está ocorrendo, uma vez que determinados indivíduos estão sendo algemados pelo simples fato de pertencerem a camadas sociais mais baixas, isto é, são considerados a priori como elemento perigoso e violento, enquanto outros por serem pessoas conhecidas e com grande poder econômico estão tendo esse direito resguardado. Dessa forma, há uma afronta ao princípio da dignidade, pois em situações iguais todos deveriam ter legalmente o mesmo tratamento. Nesse sentido, Sandro Sell afirma que: Em respeito ao princípio da dignidade humana (na versão "Ferrajoli para milionários"), algemar um banqueiro é, por presunção, abusivo; enquanto que algemar um pedreiro é, salvo prova em contrário (a ser decidida com toda calma e tempo do mundo), uma medida de cautela razoável. Essa é a tradução rasteira, para efeitos práticos, da súmula do STF. Em nível de senso comum, inteligência prática etc. isso até tem sua razão de ser: é mais fácil imaginarmos um pedreiro fisicamente agressivo do que um banqueiro. Da mesma forma que as fundadas suspeitas do artigo 244 do CPP levariam "naturalmente" a dar uma "geral" no pedreiro que passeia pela avenida e uma escolta de cortesia ao banqueiro transeunte. Fundadas suspeitas ou pré-percepção de periculosidade seguem tradicionalmente a cartografia da exclusão social: todas as desconfianças concentram-se nos 41 que não concentram nada de renda. Com efeito, acredita-se que a subjetividade da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal prejudicou diretamente os grupos sociais de condições mais humildes, haja vista que o indivíduo pobre, já estigmatizado como “bandido”, continuará se sujeitando às humilhações geradas pelo Poder Estatal. Assim, não se pode aceitar que as autoridades policiais justifiquem seus atos através da presunção 40 VIEIRA, Luís Guilherme. Algemas: uso e abuso. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, n. 16, out./nov. 2002, p. 15. 41 SELL, Sandro César. O pedreiro, o banqueiro e um par de algemas. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1875, 19 ago. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11618>. Acesso em: 04 out. 2009. de periculosidade do agente, baseando-se exclusivamente em critérios discriminatórios, como a raça e a classe social. Além disso, importa registrar que o policial não poderá justificar a utilização de algemas em virtude da gravidade do delito, baseada em um simples juízo antecipado de culpabilidade do indivíduo, na medida em que tal critério atinge diretamente o princípio da presunção da inocência, ou estado ou situação jurídica de inocência42. Impende destacar que, no Brasil, a presunção da inocência é considerada um dos princípios norteadores da Constituição Federal e está consagrada, em seu artigo 5°, LVII, a qual estabelece que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, isto é, nenhum delito pode considerar-se cometido e ninguém pode ser considerado culpado até que haja uma prova contundente sobre a autoria do crime, produzida mediante um processo regular43. Ora, tal princípio é fruto de uma opção garantista a favor da tutela dos inocentes, mesmo que para isso pague-se o preço da impunidade de algum culpável. Como bem esclarece Aury Lopes Junior: “isso porque, ao corpo social, lhe basta que os culpados sejam geralmente punidos, pois o maior interesse é que todos os inocentes, sem exceção estejam protegidos”44. Nesse sentido, Beccaria já chamava atenção para o fato de que “um homem não pode ser considerado culpado antes da sentença do juiz; e a sociedade só lhe pode retirar a proteção pública depois que seja decidido ter ele violado as condições com as quais tal proteção lhe foi concedida”45. Aliás, a presunção da inocência envolve garantias essenciais ao indivíduo, como, por exemplo, a liberdade, a verdade e, principalmente, a segurança. Assim, deve-se levar em consideração as regras mínimas para o tratamento do acusado, posto que a intervenção do processo penal se dá sobre um inocente e não ao contrário46. Nesse sentido, o policial ao analisar a situação de fato, se deve ou não utilizar o uso de algemas, deverá ter em mente que aquele indivíduo é inocente, até que lhe provem o contrário. Ademais, importa registrar não há pessoas “mais presumidas” inocentes e pessoas “menos presumidas”, na verdade, como bem esclarece Aury Lopes Junior, “todos somos presumidamente inocentes, qualquer que seja o fato que nos é atribuído”47. Nesse diapasão, não há como uma autoridade policial presumir que um indivíduo da alta classe não deverá ser algemado por ser “mais inocente” que um preso pobre de baixo status social, bem como, não poderá presumir a periculosidade do agente pela gravidade do delito. Nessa linha de entendimento, utilizamos a lição de Adalto Suannes: (...) nada justifica que alguém, simplesmente pela hediondez do fato que se lhe imputa, deixe de merecer o tratamento que sua dignidade de pessoa humana exige. Nem mesmo sua condenação definitiva o excluirá do rol dos seres humanos, ainda que em termos práticos isso nem sempre se mostre assim. Qualquer distinção, portanto, que se pretenda fazer em razão da 42 OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 8. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 31. 43 LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 178. 44 Ibidem, p. 179. 45 BECCARIA. Cesare. Dos delitos e das penas. 2.ed. São Paulo: Martin Claret. 2008, p. 35. 46 LOPES JUNIOR, op. cit, p. 180. 47 Ibidem, p.181. natureza do crime imputado a alguém inocente contraria o princípio da isonomia, pois a Constituição Federal não distingue entre mais-inocentes e menos-inocentes. O que deve contar não é o interesse da sociedade, que tem na Constituição Federal, que prioriza o ser humano, o devido tratamento, mas o respeito à dignidade do ser humano, qualquer seja o 48 crime que lhe é imputado. Portanto, o princípio da presunção da inocência deve ser o princípio basilar de todas as atividades estatais, sobretudo quando tratamos diretamente com o imputado, pois quando respeitamos o citado princípio, reduzimos as chances de estigmatização prematura do sujeito, isto é, ao não utilizar o uso de algemas em determinados indivíduos, evitamos uma humilhação e uma condenação prévia baseada em uma simples desconfiança do policial em relação ao réu49. Dessa forma, concluímos que a presunção da inocência impõe um verdadeiro dever de tratamento ao desviante, visando proteger garantias constitucionais, como da imagem, da dignidade e privacidade, bem como da abusiva exploração midiática em torno do fato criminoso e do próprio processo judicial. Diante do exposto, conclui-se que o abuso do uso de algemas ofende diretamente os princípios norteadores do Estado Democrático de Direito, quais sejam, o da dignidade da pessoa humana e da presunção da inocência, uma vez que há uma estigmatização antecipada do indivíduo. Dessa forma, o presente trabalho defende uma legislação que trate do uso de algemas através de critérios objetivos, sobretudo que não permita o poder arbitrário dos policiais, buscando principalmente respeitar os princípios da dignidade humana e da presunção da inocência. Por conseguinte, acredita-se que o instituto da Súmula Vinculante não foi o ideal para regularizar o uso de algemas, uma vez que esta não procurou defender as garantias constitucionais de todos os cidadãos, mas sim de uma determinada classe social. Assim, no próximo capítulo busca-se analisar os verdadeiros motivos que levaram o Supremo Tribunal Federal a elaborar a Súmula Vinculante n.11, bem como as posições doutrinárias relacionadas à limitação do uso de algemas. 2 SÚMULA VINCULANTE Nº 11 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL O presente capítulo visa analisar o instituto da Súmula Vinculante a partir de diferentes perspectivas, sobretudo da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal, buscando citar as decisões que lhe deram origem, bem como os fatos que contribuíram para sua elaboração. Ademais, ao final, serão expostas diferentes posições doutrinárias sobre a limitação do uso de algemas. 2.1 NOÇÕES GERAIS DE SÚMULA VINCULANTE A fim de amenizar a crise do judiciário e uniformizar a interpretação jurisprudencial, foi inserido no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da Súmula Vinculante. Por essa razão, a partir da Emenda Constitucional n. 45, em dezembro de 2004, ingressou na nossa legislação a chamada Súmula Vinculante, encontrando-se a mesma prevista no art. 103-A da Constituição Federal, segundo a 48 SUANNES. Adauto Alonso Silvinho. Os fundamentos Éticos do Devido Processo Penal. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 232. 49 LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 181. qual “o Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre a matéria constitucional, aprovar súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do poder judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida em lei”, estando regulamentada na lei n.11.417/06. Ademais, reza o art. 103-A,§3° da Constituição Fede ral que do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente aplicá-la, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal e, caso seja julgada procedente, anular-se-á o ato administrativo ou será cassada a decisão judicial reclamada, determinando que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, dependendo de cada caso. Resulta evidente o efeito vinculante de tal súmula, na medida em que a autoridade que contrariá-la ou aplicá-la de forma indevida, será diretamente objeto de Reclamação no Supremo Tribunal Federal que, após analisar o caso concreto, poderá tanto anular o ato, como também determinar que a autoridade proferira outra decisão em observância aos termos da súmula. Preservando desta maneira a autoridade das decisões emitidas pela Corte Suprema. Assim, a submissão das instâncias inferiores será regulada através da Reclamação, de modo que as próprias partes poderão interpor a presente ação para impugnar o ato administrativo contrário ao entendimento do Supremo Tribunal Federal. Seu processamento está estabelecido no art. 103-A da CF/88 combinado com os arts. 156 a 162 do Regimento Interno do STF e a lei n. 11.417/06. Para melhor compreender o estudo das Súmulas Vinculantes, impende destacá-la em face da Constituição da República Brasileira sob o parâmetro de Estado Democrático de Direito, da segurança jurídica e da celeridade processual. Ora, para alguns doutrinadores, como Pollyana Silva, a Súmula Vinculante ao fixar interpretações de matérias jurídicas, restringindo o direito das partes de recorrerem aos Tribunais Superiores, fere diretamente o Estado Democrático de Direito, uma vez que inviabiliza a participação dos indivíduos da sociedade no processo jurisdicional. Nesse sentido, a autora afirma que: (...) a Súmula Vinculante, como um instituto que visa retirar matérias jurídicas do âmbito da dialética social ocorrida no judiciário, fixando-lhes interpretação unívoca e obrigatória, apresenta-se, pois maculada de inconstitucionalidade, posto que em confronto com a constituição do direito 50 a partir do discurso e, assim, do próprio Estado Democrático de Direito. Dessa forma, as Súmulas Vinculantes tem uma função de representar uma espécie de “concepção universalizante” do direito, isto é, buscam uma universalização conceitual de determinadas normas, desconsiderando a singularidade dos casos. Sendo assim, o ato de aplicação do jurista “resumir-se-á à mera subsunção do caso àquele significante, produzindo, uma “perfeita” simetria entre o dito “universal” e o fato singular a ser “subsumido””. Portanto, os magistrados seriam meramente aplicadores das normas (das súmulas) ao caso concreto, isto é, a tarefa do intérprete seria apenas adequar a questão de fato à questão de direito 50 GUIMARÃES, Pollyana Silva. Análise constitucional do instituto da súmula vinculante sob o parâmetro do Estado Democrático de Direito, da segurança jurídica e da celeridade processual. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 15, n. 61, p.247-267, out./dez. 2007, p. 257. previamente dada pela súmula, razão pela qual o juiz perderia a sua autonomia nas decisões prolatadas51. Desse modo, estamos diante de uma afronta aos princípios constitucionais, pois a Súmula Vinculante, ao fixar interpretações unívocas de aplicação geral para todos, impede a construção da dialética da ordem jurídica, inerente a qualquer regime democrático, nos quais a criação do direito se faz pelos indivíduos mediante processos garantidores do discurso social.52 Outro argumento bastante utilizado pela doutrina é a inconstitucionalidade da Súmula Vinculante diante da ilegitimidade do Supremo Tribunal Federal para criar um direito vinculante para todos, posto que a Corte é formada por 11 magistrados escolhidos pelo Poder Público, e não pelo povo, que criam o direito de forma legítima e justa. Seguindo a mesma proposta, Luiz Flavio Gomes observa que: Esse novo ativismo judicial (do STF) está impregnado de vários riscos. O primeiro reside no enfraquecimento da Democracia. Os parlamentares são os legítimos e diretos representantes do povo. Seu produto legislativo, portanto quando compatível com a Constituição, é muito mais democrático que uma norma do judiciário. Atuando o STF como “legislador ativo”, há sempre o risco de “aristocratização do direito” (ou seja, o direito pode derivar de uma casta elitizada, não da vontade dos representantes do 53 povo). Assim, considera-se que o poder judiciário, ao editar súmulas vinculantes, desrespeita diretamente o princípio da separação dos poderes, uma vez que atua como “legislador ativo”, criando normas obrigatórias, a partir de textos constitucionais, como, por exemplo, a regulamentação do uso de algemas, o que, consequentemente, excede o seu poder de julgador. É importante enaltecer que a Súmula Vinculante foi criada com o objetivo de estabelecer segurança jurídica e celeridade processual, contudo, deve-se ter em consideração que a busca por tais princípios não pode ignorar as garantias constitucionais estabelecidas no nosso Estado Democrático de Direito. Ora, a Súmula Vinculante, ao fixar interpretações à lei, objetiva a institucionalização de um pensamento único, pré-elaborado, que cria conceitos gerais e elimina dados singulares de cada problema concreto, impedindo novas interpretações normativas54. Além disso, através do efeito vinculante, fixa-se aplicação geral e obrigatória para todos, confrontando com a autonomia das partes e do operador jurídico. Enfim, salienta-se que o instituto da Súmula Vinculante deve ser revisado, na medida em que os princípios da segurança jurídica, da celeridade processual não podem prevalecer sobre o princípio da livre manifestação de vontade das partes e 51 SARLET. Ingo Wolfgang. Súmulas Vinculantes: em busca de algumas projeções hermenêuticas. Jurisdição e Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Escola Superior da Magistratura: Livraria do Advogado Editora, v.1, p. 107- 129, 2006, p. 110. 52 GUIMARÃES, Pollyana Silva. Análise constitucional do instituto da súmula vinculante sob o parâmetro do Estado Democrático de Direito, da segurança jurídica e da celeridade processual. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 15, n. 61, p.247-267, out./dez. 2007,p. 259. 53 GOMES. Luiz Flavio. Nepotismo: O STF pode legislar? Estado de Direito. Porto Alegre, ano III, n. 16, ago./set. 2008, p. 13. 54 SARLET. Ingo Wolfgang. Súmulas vinculantes: em busca de algumas projeções hermenêuticas. Jurisdição e Direitos Fundamentais: anuário 2004/2005/ Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul- AJURIS; coord. Ingo Wolfgang Sarlet. Porto Alegre, v.1, t.1, p. 107- 129, 2006, p. 128. do jurista. Nesse sentido, afirma-se que o instituto da Súmula Vinculante não condiz com o Estado Democrático de Direito brasileiro. Diante do exposto, busca-se no próximo ponto analisar especialmente a Súmula Vinculante n.11, a qual limitou o uso de algemas. 2.2 A SÚMULA VINCULANTE N.11 DO STF: HISTÓRICO E CONTEÚDO O Supremo Tribunal Federal em sessão realizada no dia 13 de agosto de 2008 editou a Súmula Vinculante n. 11, cujo teor é o seguinte: Só é lícito o uso de algemas em caso de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da 55 responsabilidade civil do Estado. O referido dispositivo tem referência legal, em nível constitucional, nos artigos: art. 1°, III, da Constituição Federal, que versa sobre os fundamentos da República, e revela o respeito à dignidade humana; art. 5°, III, X e XLIX, da Constituição Federal que, respectivamente, proíbe o tratamento desumano e degradante do indivíduo, a violação da imagem das pessoas e que assegura o respeito à integridade física e moral do preso. Em nível infraconstitucional, baseouse nos artigos 284 e 292 do Código de Processo Penal de 1941, bem como no art. 350 do Código Penal, que cuida do crime de exercício arbitrário ou abuso de poder, por fim, na Lei 4.898/65 que trata do abuso de autoridade. Como precedentes jurisprudenciais os seguintes acórdãos: HC 56.465/SP (publicado no DJ 05/09/78), HC 71.195/SP (publicado no DJ 04.08.95), HC 89.492/RO (publicado no DJ 28/08/06), HC 89.419/RO (publicado no DJ 07/08/2006), HC 89.416/RO (publicado no DJ 15/08/2006), HC 91.952/SP (publicado no DJ 19/12/2008). Os dois primeiros precedentes negaram a ordem pleiteada, sendo que no HC 56.465/SP, o eminente Relator Min. Cordeiro Guerra alegou em sua decisão que o uso de algemas em inquirição de testemunhas só era justificado quando evitasse a fuga do preso, bem como para preservar a segurança das testemunhas. Já na apreciação do HC 71.195/SP, relatado pelo Ministro Francisco Resek, cujo acórdão foi publicado no Diário de Justiça no dia 04 de agosto de 1995, a segunda turma entendeu que o uso de algemas durante o julgamento não constituía constrangimento ilegal se essencial à ordem dos trabalhos e à segurança do preso. Eis a ementa: HABEAS CORPUS. CONCURSO MATERIAL DE CRIMES. PROTESTO POR NOVO JÚRI. PENA INFERIOR A VINTE ANOS. UTILIZAÇÃO DE ALGEMAS NO JULGAMENTO. MEDIDA JUSTIFICADA. [...] II – O uso de algemas durante o julgamento não constitui constrangimento ilegal se essencial à ordem dos trabalhos e à segurança 56 dos presentes. Habeas Corpus indeferido. 55 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula vinculante n. 11. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumulaVinculante&pagina=s umula_001_013>. Acesso em: 17 set. 2008. Dentre estes precedentes, também cabe destacar as decisões que concederam a ordem: no Habeas Corpus 89.492/RO, no qual o impetrante, um Conselheiro do Tribunal de Contas de Rondônia, buscava não ser algemado durante a sua condução da carceragem da Polícia Federal em Brasília ao Gabinete de uma Ministra do Superior Tribunal de Justiça, onde seria ouvido, e também solicitava que não fosse exposto às câmeras da imprensa, uma vez que, por ocasião da sua prisão, o paciente teria sido algemado em sua residência mediante exposição à imprensa de todo o país. A eminente Relatora Cármen Lúcia concedeu a liminar requerida, garantindo ao paciente o direito de não ser algemado durante sua oitiva no STJ, bem como durante todo o transporte que viessem ser feitos, a não ser em caso de reação violenta57. Nesse mesmo sentido, foram impetrados dois habeas corpus com fundamentos idênticos, HC 89.419/RO e HC 89.416/RO, tendo como paciente, respectivamente, um Procurador de Justiça e um Desembargador, encontrando desfecho análogo, no qual a Min. relatora Cármen Lúcia, observou que “o uso de algemas há de obedecer aos princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, sob pena de nulidade”. Por fim, merece análise o Habeas Corpus n. 91.952/SP, no qual o impetrante, um pedreiro acusado de homicídio qualificado, requereu a anulação do julgamento efetuado pelo Júri popular da cidade de Laranjal Paulista em 2005, arguindo preliminar de nulidade em virtude do fato do réu ter permanecido algemado durante todo o julgamento realizado pelo Tribunal do Júri. Ademais, ponderou que: Não foi apontado, portanto, um único dado concreto, relativo ao perfil do acusado, que estivesse a ditar, em prol da segurança, a permanência com algemas. Quanto ao fato de apenas dois policiais civis fazerem a segurança no momento, a deficiência da estrutura do Estado não autorizava o desrespeito à dignidade do envolvido. Incumbia sim, inexistente o necessário aparato de segurança, o adiamento da sessão, preservando-se o valor maior, porque inerente ao cidadão. Concedo a ordem para tornar insubsistente a decisão do Tribunal do Júri. Determino que outro julgamento seja realizado, com a manutenção do acusado sem as algemas. Pelas razões expostas, o Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do relator, deferiu a ordem de Habeas Corpus, para o fim de tornar insubsistente a decisão do Tribunal do Júri, determinando a realização de outro julgamento com a manutenção do acusado sem algemas. Contudo, salienta-se que a lei n.11.689/08, de 9 de junho de 2008, no capítulo II, do procedimento relativo aos processos do tribunal do júri, implementou nova redação ao art. 474 do Código de Processo Penal, tornando o uso de algemas excepcional durante o período em que a parte permanecer no júri. Eis o novo preceito: Art. 474 [...] §3° Não se permitirá o uso de algem as no acusado durante o período em que permanecer no plenário do júri, salvo se absolutamente 56 BRASIL. Supremo Tribunal Federal, 2ª Turma. Habeas Corpus n. 71.195/SP, Rel. Min. Francisco Rezec, publicado no DJ 04/08/95. Disponível em: <http://www.jusbrasil.com.br/filedown/dev0/files/JUS2/STF/IT/HC_71195_SP%20_25.10.1994.pdf>. Acesso em: 05 out. 2009. 57 FUDOLI, Rodrigo de Abreu. Uso de algemas: a Súmula Vinculante nº 11, do STF elaborado em 08.2008.Revista Phoenix magazine, São Paulo, ano V, n. XI, p. 38- 42, 2008, p. 38. necessário à ordem dos trabalhos, à segurança das testemunhas ou à 58 garantia da integridade física dos presentes. Nesse sentido, acredita-se que o impasse em relação ao uso de algemas diante o Tribunal do Júri está solucionado, haja vista que há uma norma regulamentando sua utilização com critérios objetivos. Assim, o motivo que o Supremo Tribunal Federal alegou como sendo a origem da Súmula Vinculante, qual seja, o julgamento de um pedreiro que foi algemado durante o tribunal do júri, com acato e respeito devido à decisão do Supremo Tribunal Federal, não merece prosperar, uma vez que quando a súmula foi editada, esta lei já havia sido aprovada. Dessa forma, deve-se buscar o verdadeiro motivo que levou o Supremo Tribunal Federal a editar a súmula vinculante n. 11. De fato, a polêmica sobre os critérios de utilização de algemas se deu a partir de operação Satiagraha, e seus eventuais abusos contra presos de classe alta, uma vez que os empresários capturados nesta operação foram expostos à mídia algemados, razão pela qual se passou a discutir a legalidade do uso de algemas59. Importa enaltecer que os abusos decorrentes do uso de algemas eram procedimentos comuns nas operações policiais, mas que atingia apenas determinada parcela da sociedade, sobretudo os indivíduos da classe baixa. Nesse sentido, o historiador Marcos Bretas afirma que “não me parece que houvesse problema com o uso de algemas enquanto eram exibidos os criminosos associados a um mundo das classes baixas. O problema surgiu quando assistimos a essas prisões de gente importante”60. Ora, vivemos diariamente diante destes abusos de autoridade, sobretudo em relação às pessoas com baixo poder aquisitivo, que não interessam à mídia local, nem aos seus espectadores. Será que foi por este motivo que demoraram 24 anos para restringir o uso de algemas? A quem interessam a Súmula Vinculante n. 11? Pretende-se responder estas perguntas no decorrer deste trabalho. Ademais, ao analisar as prisões de indivíduos de diferentes classes sob um ângulo social, o historiador Marcos Bretas observa que: [...] quando lidamos com assaltantes ou traficantes, o olhar naturaliza a situação, parece que fez-se justiça. Quando lidamos com a elite, empresários, políticos , não existe a mesma presunção de infâmia. A inculpação das elites é objeto de dúvidas, a exposição dos presos pobres é 61 tomada com a crença natural da culpa”. Desse modo, percebe-se que, para a grande maioria da sociedade, os indivíduos de baixo poder aquisitivo são considerados presumidamente culpados, 58 o BRASIL. Lei n. 11.689, de 9 de junho de 2008. Altera dispositivos do Decreto-Lei n 3.689, de 3 de outubro de 1941 – Código de Processo Penal, relativos ao Tribunal do Júri, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 jun. 2008. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11689.htm>. Acesso: 05 out. 2009. 59 SELL, Sandro César. O pedreiro, o banqueiro e um par de algemas . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1875, 19 ago. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11618>. Acesso em: 05 nov. 2009. 60 BRETAS, Marcos. Uma marca para sempre. Zero Hora, Porto Alegre, 16 ago. 2008. Caderno Cultura, p. 4 – 5. 61 BRETAS, Marcos. Uma marca para sempre. Zero Hora, Porto Alegre, 16 ago. 2008. Caderno Cultura. p. 4 – 5. como bem esclarece Sandro Sell “fundadas suspeitas ou pré-percepção de periculosidade seguem tradicionalmente a cartografia da exclusão social”62, enquanto os indivíduos de alto poder aquisitivo são considerados inocentes até que se prove ao contrário. Percebe-se, assim, que as garantias constitucionais favorecem apenas determinados grupos sociais, contudo, voltaremos a discutir este ponto no capítulo 3. Assim, somente neste ano, após o uso de algemas durante a prisão de determinados indivíduos “privilegiados” e a sua exposição pública, a sociedade passou a discutir a restrição do uso de algemas. Com efeito, analisando os precedentes da Súmula Vinculante n.11, verifica-se que além de restringir o uso de algemas a casos excepcionais e devidamente justificado, esta foi aprovada, principalmente, para evitar o sensacionalismo estipulado pelos órgãos de imprensa na cobertura de prisão de certas pessoas, não consideradas como clientes habituais do sistema penal63. Nesse sentido, o Presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes afirmou que a súmula tinha basicamente o objetivo de evitar o uso de algemas para exposição pública do preso, pois “a Corte jamais validou essa prática, que viola a presunção da inocência e o princípio da dignidade”64. Inicialmente, cabe registrar que o Supremo Tribunal Federal acertou em coibir a cobertura jornalística de pessoas algemadas, posto que esta atitude atinge diretamente a dignidade da pessoa humana e a presunção da inocência. Sendo assim, o direito de informar, não pode prevalecer sobre o direito à intimidade e à imagem do preso65. Todavia, como destaca Rodrigo Fudoli, a partir da edição da Súmula Vinculante n. 11, surgiram controvérsias quanto à sua aplicação nos casos concretos, pois o teor, sobretudo os critérios jurídicos estabelecidos, é extremamente subjetivo, na medida em que para que seja “justificada a excepcionalidade” do emprego de algemas deve-se comprovar “resistência”; ou “fundado receio de fuga”; ou “fundado receio de perigo à integridade física própria (do preso) ou alheia (de terceiro)”. Do ponto de vista da “resistência” não há maiores problemas, pois se trata de um critério objetivo. Contudo, os outros critérios são extremamente subjetivos, razão pela qual, neste trabalho, acredita-se que a súmula vinculante apenas foi editada com o intuito de favorecer uma determinada classe social, reproduzindo, assim, a seletividade penal66. Nesse cenário, busca-se analisar as decisões do Supremo Tribunal Federal, a fim de encontrar as justificativas aceitas pelo Egrégio Tribunal para o uso de algemas, uma vez que determinadas indagações, devido ao sucinto teor da súmula, permanecem sem respostas, como, por exemplo, o “fundado receio de fuga ou de perigo próprio ou alheio” será justificado a partir da natureza do crime que o 62 SELL, Sandro César. O pedreiro, o banqueiro e um par de algemas . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1875, 19 ago. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11618>. Acesso em: 05 nov. 200 63 FUDOLI, Rodrigo de Abreu. Uso de algemas: a súmula vinculante nº 11, do STF elaborado em 08.2008. Revista Phoenix magazin, São Paulo, ano V, n. XI, p. 38- 42, 2008, p. 39. 64 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Notícias STF, 13 ago. 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=94467>. Acesso em: 06 out. 2009. 65 FUDOLI, Rodrigo de Abreu. Uso de algemas: a súmula vinculante nº 11, do STF elaborado em 08.2008. Revista Phoenix magazine, São Paulo, ano V, n. XI, p. 38-42, 2008, p. 39. 66 Ibidem, p. 39. réu tenha praticado, isto é, presumir-se-á que, assaltantes, latrocidas e homicidas poderiam sempre ser algemados, ainda que não apresentassem nenhuma atitude violenta durante o processo e a prisão enquanto estelionatários não seriam algemados? Nesse sentido, como restará aplicado o princípio da presunção da inocência, já que estes indivíduos são meros suspeitos e não condenados por sentença transitada em julgado. Ademais, como será medida a periculosidade do preso? O ambiente determinará esta periculosidade? Acredita-se que para a população em geral, bem como para própria polícia, presumi-se perigoso aquela pessoa pobre, sem educação, morador de subgrupos habitacionais, enquanto as pessoas com alto poder aquisitivo são consideradas meros indivíduos desviantes e que, por isso, não serão algemados. Portanto, a Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal consolidou o entendimento da Corte Suprema no sentido de que o uso de algemas somente é lícito em casos excepcionais, devidamente justificados, sob pena de aplicação de penalidades decorrentes do constrangimento físico e moral do preso. Contudo, dificilmente esta meta será alcançada, uma vez que os critérios jurídicos estabelecidos são extremamente subjetivos, razão pela qual a maioria da população continuará sendo algemada, como ficará evidenciado no capítulo 3. 2.3 DIFERENTES POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS SOBRE A LIMITAÇÃO DO USO DE ALGEMAS ATRAVÉS DA SÚMULA VINCULANTE N.11 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Para desenvolver o presente ponto, busca-se reunir posicionamentos de alguns autores que tratam sobre a legitimação do uso de algemas. Contudo, faz-se mister ressaltar que ainda não há obras específicas versando exclusivamente sobre o assunto e, além disso, há poucos doutrinadores que se pronunciaram sobre o tema, haja vista que a súmula foi editada apenas em 2008. Inicialmente, importa salientar que a Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal restringiu a casos excepcionais o uso de algemas em operações policias e julgamentos, pois considerou que a utilização indiscriminada do uso de algemas viola os princípios dignidade da pessoa humana e da presunção da inocência, dentre outras garantias constitucionais do indivíduo. Assim, pela decisão do STF, a polícia só poderá utilizar as algemas quando houver um risco real de fuga ou ameaça de violência por parte do preso, desde que justificada a excepcionalidade da utilização do instrumento. Dessa forma, o policial terá que prever se o preso pretende ou não fugir ou se este poderá cometer algum ato contra si ou contra outrem. Ocorre que, estes critérios jurídicos estabelecidos pela Súmula Vinculante n.11 causaram grandes discussões na sociedade, de tal modo que a doutrina praticamente se dividiu. Neste primeiro momento, apontaremos os argumentos doutrinários que defendem o uso irrestrito da algemas e que, consequentemente, são contra a Súmula Vinculante n. 11 do STF, como, por exemplo, Fernanda Heberlla, José Almir Pereira da Silva, Luiz Fernando Corrêa, Paulo Fernando Silveira. De fato, os doutrinadores contrários à Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal salientam que o uso de algemas quando devido, legítimo e necessário não avilta a dignidade da pessoa humana, uma vez que são considerados apenas instrumentos postos à disposição dos profissionais da área de segurança pública, para preservar a integridade física dos detidos, do corpo policial e de terceiros67. Nesse sentido, Rodrigo Carneiro Gomes destaca que: As algemas não servem apenas para garantia de segurança da equipe policial ou para assegurar a integridade física do preso em flagrante delito ou por ordem judicial, no caso específico de atos de polícia judiciária. Há uma terceira razão: inibir a ação evasiva do preso e atos irracionais num momento de desespero. Nesse ponto, pouco importa a periculosidade do 68 agente, sua estrutura corpórea, idade ou status político e social. Assim, a utilização de algemas é tão somente um ato natural, inerente à atividade policial, que visa ao atendimento de regras de segurança, bem como a inibição de ações evasivas do preso em um momento de desespero. Ressalta-se, ainda, que os valores constitucionais suscitados pelo Supremo Tribunal Federal ao elaborar a Súmula Vinculante n. 11 limitando o uso de algemas, não merece prosperar, pois, de acordo com José Almir Pereira da Silva, há valores muito mais relevantes que os mencionados, como, por exemplo, o direito à vida, à segurança e a proteção à integridade física do agente e de terceiro. Vê-se, pois, que o emprego de algemas visa, fundamentalmente, preservar esses valores. Nesse sentido, o autor supracitado afirma que: É cediço que estamos diante de um Estado Democrático de Direito que tutela os direitos e garantias individuais, notadamente a dignidade da pessoa humana, mas não podemos olvidar que o Estado muitas vezes limita temporariamente e moderadamente direitos individuais com escopo de preservar a vida e a integridade da pessoa, sendo que esta limitação temporária de direito individual também visa o direito da coletividade e jamais pode ser considerada como afronta à dignidade da pessoa humana. Ademais, sopesando os direitos tutelados não resta dúvida que a preservação da vida, da integridade física e do bem comum se sobrepõe a 69 todos os outros direitos individuais mencionados alhures. Paulo Fernando Silveira segue na mesma linha, salientando que uso adequado da algemas não viola os princípios da dignidade da pessoa humana e da presunção da inocência, pois, não é a sua utilização que atenta contra tais princípios, mas sim o próprio ato de prisão. Sendo assim, se a prisão for legal, autorizada pelo poder judiciário ou em fragrante delito, o uso de algemas será constitucionalmente permitido, uma vez que além de se tratar de uso moderado de força contra o preso, causa menos constrangimento que a própria prisão70. E conclui que: Há de se reconhecer que, inerente ao ato de prisão, encontra-se a autorização legal do emprego de força coercitiva necessária à sua 67 HEBERLLA, Fernanda. Algemas e a dignidade da pessoa humana: fundamentos jurídicos do uso de algemas. São Paulo: Lex Editora, 2008, p. 92. 68 GOMES, Rodrigo Carneiro. A problemática da exposição midiática e a regulamentação do uso de algemas: segurança da equipe em operações policiais. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Disponível em: <www.ibccrim.org.br>. Acesso em: 10 out. 2009. 69 SILVA, José Almir Pereira da. O uso de algema: Estado Democrático de Direito ou Estado de politicagem. Academia de Direito Militar. Disponível em: <http://www.academiadedireitomilitar.com/index.php?option=com_content&view=article&id=98&cati d=35>. Acesso em: 10 out. 2009 70 SILVEIRA, Paulo Fernando. Algemas - seu uso e súmula vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal: Regra ou exceção? Revista Jurídica UNIJUS. Uberaba-MG, V.12, n. 16, p. 13-21, maio, 2009. p. 17. realização. [...] Logo, o ato de algemar se insere, naturalmente, como meio moderado e imprescindível à implementação da medida, para que ela ocorra, eficazmente, sem risco de vida ou de ferimentos para o policial, 71 para terceiros e para o próprio preso. Importa enaltecer, contudo, que o uso de algemas apesar de estar inserido no ato da prisão, será considerado abusivo quando o profissional do Estado desobedecer às regras técnicas, pois quando a autoridade utilizar as algemas de forma violenta e injusta estará violando diretamente os princípios constitucionais garantidos pelo Estado Democrático de Direito.72 Por conseguinte, outro argumento bastante utilizado pela doutrina, referese à subjetividade dos critérios jurídicos adotados pela própria Súmula Vinculante n.11, quais sejam, o “fundado receio de fuga” e “fundado receio de perigo à integridade física própria ou alheia”, que deverão ser previstas pelo policial. José Almir Pereira da Silva aponta que é impossível saber a priori a reação do indivíduo que está sendo algemado, e assim esclarece: [...] não somos capazes de mensurar a possibilidade de reação daquele que se encontra em situação de aprisionamento, pois aquele que se sente acuado, prestes a ser conduzidos à prisão pode abruptamente oferecer resistência, por mais pacífico que seja ou se encontrem visto que a reação humana é imprevisível. [...] Sabemos que não existe mais possibilidade de mensurar o que é “bom ou mau”, “pacífico ou agressor”, o dito “normal e o psicopata”. A aparência física, o poder econômico e a crença religiosa não mais podem ser utilizadas como limitadores de ação ou reação, todos são passíveis de esboçar uma inopinada reação diante de uma prisão legal ou 73 não. Esse também é o entendimento de Luiz Fernando Corrêa, Diretor Geral da Polícia Federal, que afirma ser praticamente impossível o policial fazer essa análise com segurança no momento da prisão, pois considera o comportamento humano imprevisível. Ademais, sustenta que não há histórico de vítimas ou danos causados por presos c,orretamente algemados e conduzidos de forma adequada, em contrapartida garante que a excepcionalidade do uso de algemas poderá acarretar atos de violência, como suicídios, homicídios, bem como tentativa de fuga74. Portanto, para estes doutrinadores, o uso de algemas não deve ser excepcionado, pois além de não trazer sequelas ao preso, quando devidamente utilizadas, garantem a segurança das partes envolvidas na hora da prisão, evitam a fuga do preso e a destruição de provas, bem como resguardam a incolumidade de terceiros. Ademais, afirmam que os critérios jurídicos adotados pela Súmula Vinculante n. 11, isto é, “o fundado receio de fuga” e “fundado receio de perigo à integridade física própria ou alheia” - que deverão ser previstos pelo policial causarão grande insegurança jurídica, pois é impossível prever o comportamento do 71 SILVEIRA, Paulo Fernando. Algemas - seu uso e súmula vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal: Regra ou exceção? Revista Jurídica UNIJUS. Uberaba-MG, V.12, n. 16, p. 13-21, maio, 2009, p. 17. 72 FUDOLI, Rodrigo de Abreu. Uso de algemas: a súmula vinculante nº 11, do STF elaborado em 08.2008. Revista Phoenix magazine, São Paulo, ano V, n. XI, p. 38- 42, 2008, p.39. 73 SILVA, José Almir Pereira da. O uso de algema: Estado Democrático de Direito ou Estado de politicagem. Academia de Direito Militar. Disponível em: <http://www.academiadedireitomilitar.com/index.php?option=com_content&view=article&id=98&cati d=35>. Acesso em: 10 out. 2009 74 CORRÊA, Luiz Fernando. Zero Hora, Porto Alegre, 19 ago. 2008. Caderno Geral, p. 39. indivíduo no momento da prisão, independentemente da camada social e da personalidade. Nesse sentido, citam os inúmeros incidentes que estão ocorrendo devido à falta do uso de algemas75, colocando em iminente risco a integridade física daqueles que tratam diretamente com a criminalidade e daquelas pessoas presas. Pelas razões expostas, conclui-se que para esta parte da doutrina a utilização de algemas, longe de ser uma exceção, deve ser uma regra, pois somente dessa forma se garante a segurança de toda a sociedade76. Cumpre anotar que quando o uso de algemas é utilizado como forma de constrangimento ou execração pública, degradando a imagem do preso, há um consenso entre os doutrinadores de que este ato fere diretamente a dignidade da pessoa humana, sendo cabível a responsabilização dos agentes públicos, no âmbito civil, criminal e administrativo, pois consideram inadmissível a exposição da figura do preso, custodiado pelo Estado77. Em que pesem os argumentos contrários, a adoção da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal foi bem recebida, sob todos os aspectos, por parte da doutrina como Nelson Missias de Morais, Ricardo Breier, Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, entre outros, uma vez que proibiu o uso desordenado, abusivo e espetaculoso das algemas. Inicialmente, cabe registrar os doutrinadores que se posicionaram contra o uso de algemas, anteriormente à edição da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal, uma vez que estas serviram de base para parte da doutrina que defende a limitação do uso de algemas. A respeito do uso de algemas, Aury Lopes Junior adverte que a sua utilização não deve ser um espetáculo, pois considera a própria prisão: (...) uma cerimônia degradante, entendemos que o dispositivo constitucional exige que esse ato seja realizado da forma menos degradante e prejudicial possível. Nesse sentido, determina a primeira parte do art. 520 da LECrim espanhola – sem dúvida um exemplo a ser seguido – que a detenção e a prisão provisória deverão ser praticadas da forma que menos prejudique a pessoa do detido ou preso, sua reputação e patrimônio. Parece-nos que a intenção do legislador constituinte foi exatamente essa, a de evitar que o já violento ato da prisão seja transformado num grotesco e deprimente 78 espetáculo. 75 De acordo com a Federação Nacional dos Policiais Federais, um agente penitenciário foi baleado na cabeça pelo preso que ele escoltava sem algemas durante audiência no Fórum Desembargador Félix Generoso, na cidade de Sete Lagoas, em Minas Gerais. Segundo a Polícia Militar do município, o detento que estava sem algemas, conseguiu pegar a arma do agente e o acertou na nuca. FENAPEF. Federação Nacional dos Policiais Federais. Disponível em: <http://www.fenapef.org.br/fenapef/noticia/index/24004> Acesso em: 10 out. 2009. Ademais, conforme Jorge Mesquita Júnior, somente no mês de julho, no Rio de Janeiro, ocorreram quatro tentativas de agressão a magistrados e seguranças durante os julgamentos realizados com os réus sem algemas, em obediência à súmula do Supremo Tribunal Federal. MESQUITA JÚNIOR, Jorge. É preciso repreender a vedação do uso de algemas. Consultor jurídico. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2009-set-16/preciso-repreender-vedacao-indiscriminada-utilizacaoalgemas>.Acesso em: 10 out. 2009. 76 SILVEIRA, Paulo Fernando. Algemas - seu uso e súmula vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal: Regra ou exceção? Revista Jurídica UNIJUS. Uberaba-MG, v.12, n. 16, p. 13-21, maio 2009, p. 17. 77 HEBERLLA, Fernanda. Algemas e a dignidade da pessoa humana: fundamentos jurídicos do uso de algemas. São Paulo: Lex Editora, 2008, p. 134. 78 LOPES JUNIOR, Aury Celso Lima. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 299 Seguindo a mesma proposta, Luís Guilherme Vieira ressalta que após a Constituição Federal de 1988, o modelo adotado pelo ordenamento brasileiro deixou de ser inquisitorial para tornar-se acusatório, isto é, o Estado Democrático de Direito brasileiro passou a ser orientado pelo princípio da presunção de inocência, segundo o qual a atividade processual deveria objetivar a verificação da existência dos fatos atribuídos ao réu e este, antes da constatação da culpabilidade, não poderia sofrer qualquer diminuição social, física ou moral desnecessária. Portanto, os policiais ao realizarem a condução de um indivíduo, devem levar em consideração que o indivíduo até ser condenado em sentença definitiva, dever ser considerado inocente79. Assim, o autor conclui que: A Constituição Federal ordena o respeito à integridade física e moral dos presos, proibindo, a todos, submeter alguém a tratamento desumano e degradante, devendo ser respeitadas a dignidade da pessoa humana e a presunção da inocência, o constrangedor e aviltante uso de algemas só pode se dar nas singulares e excepcionalíssimas hipóteses retromencionadas (art. 284 c/c art. 292 do CPP) e, mesmo assim, desde que esgotados todos os demais meios para conter a pessoa que se pretende prender ou conduzir. Ou seja, quando houver inquestionável imprescindibilidade do uso de algemas, deve esta ser demonstrada e justificada caso a caso pela autoridade ou seu agente, não podendo a necessidade ser deduzida da gravidade dos crimes nem da presunção de 80 periculosidade do detento, porque ilegal. Ora, a Súmula Vinculante n.11 possui teor semelhante à afirmação citada, contudo, esta deixou de mencionar as justificativas admissíveis para a utilização de algemas, razão pela qual há uma verdadeira inaplicabilidade da norma, o que restará especificado no capítulo 3 do presente trabalho. Sérgio Pitombo, em seu artigo publicado em 1985, já trazia importante reflexão sobre o assunto: A condução de pessoa presa, condenada ou custodiada à presença de alguma autoridade, bem assim seu transporte para outro estabelecimento penal ou lugar, necessita realizar-se com segurança e diminuindo o perigo de fuga. Cumpre, ainda e sempre, acatar-lhe a garantia constitucional de respeito à integridade física e moral. O emprego de algemas, portanto, não pode surgir habitual, costumeiro, nem ficar ao alvedrio de eventuais chefias 81 e comandos de policiais incumbidos da diligência de escolta ou captura. Assim, nessa mesma linha, surgiram os autores adeptos à Súmula Vinculante n.11 que excepciona o uso de algemas. Para esses operadores do direito, como Valmir Bigal, a utilização de algemas de forma indiscriminada fere diretamente o art. 5°, incisos III, parte final, X, e XLIX, da Constituição Federal, bem como tratados internacionais assinados pelo Brasil, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas e o Pacto de São José da Costa Rica, que proíbem o tratamento indigno do preso, seu constrangimento ou a própria antecipação de pena82. 79 VIEIRA, Luís Guilherme. Algemas: uso e abuso. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, São Paulo, n. 16, p. 11-16, out./nov. 2002,p. 15. 80 Ibidem, p.16. 81 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Emprego de algemas - notas em prol de sua regulamentação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 592, p. 275 - 292, fev. 1985, p.285. 82 BIGAL, Valmir. O uso de algema. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1071, 7 jun. 2006 Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8480>. Acesso em: 10 out. 2009. Com efeito, segundo Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, os agentes policiais devem assegurar aos cidadãos o exercício dos seus direitos e garantias assegurados pela Constituição Federal, contudo, isso não impede o uso da força, desde que se afaste do campo da arbitrariedade e do abuso. Dessa forma, respeitando o cidadão e sua dignidade, a força só deve ser utilizada pelo Estado quando necessária, sem que isso signifique o desrespeito à lei ou a prática do abuso do poder83. Seguindo a mesma proposta, Nelson Missias de Moraes observa que a Súmula Vinculante n.11 não visa desestabilizar o trabalho dos policiais, pois estes podem continuar utilizando as algemas, desde que devidamente justificada. Além disso, afirma que os princípios Norteadores do Estado de Direito devem se sobrepor ao Estado Policialesco84. Diante do exposto, conclui-se que para a doutrina contrária ao uso de algemas, o Supremo Tribunal Federal acertou em coibir os abusos decorrentes do mau uso do instrumento, pois ampliou a extensão do dever das autoridades de respeitar o princípio da dignidade da pessoa humana e da presunção da inocência. Dessa forma, os policiais devem evitar tanto a humilhação dos presos, quanto a exposição pública dos suspeitos detidos, haja vista que as algemas quando utilizada desnecessariamente e indevidamente, submete o indivíduo a uma humilhação e a um constrangimento abusivo. Nota-se que esta orientação visa exclusivamente a defesa do indivíduo. Portanto, a partir da citação de Sérgio Pitombo escrita em 1985, resumese o entendimento dos doutrinadores favoráveis à Súmula Vinculante n. 11, segundo a qual o uso de algemas deve ser a exceção e não a regra. Eis o entendimento do autor: Para que algemar punhos inábeis a resistir? Para que coartar mentes que da fuga são distantes? A liberdade bem pode conviver com a segurança. (...) A ninguém se permite maltratar, insultar, ou fazer qualquer violência a preso ou custodiado. Só nos casos de resistência, desobediência, fuga, ou tentativa de evasão surge lícito o uso da força ou dos meios necessários e suficientes para vencer a reação, efetuar ou manter a prisão, bem como a 85 custódia. A partir das diferentes análises sobre a Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal, impende destacar uma terceira posição doutrinária relacionada ao presente tema, na qual se insere o presente trabalho. Trata-se de autores favoráveis a restrição do uso de algemas, contudo, contra a edição da Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal. Em primeiro lugar, é necessário enaltecer que há muito anos tem ocorrido um desvirtuamento do emprego de algemas, sobretudo quanto à exibição indevida do preso, razão pela qual os direitos à dignidade humana, bem como a presunção da inocência estão sendo diretamente violados, como bem expostos pelos autores citados anteriormente. 83 ROSA, Paulo Tadeu Rodrigues. Forças policiais e ordem pública. Revista síntese de direito penal e processual penal, Porto Alegre, n. 24, p. 156-159, fev./mar. 2004. p. 157-159. 84 MORAIS, Nelson Missias de. Do uso e do abuso das algemas à luz do Estado de Direito. Associação Paulista de Magistrados. Disponível em: <http://www.apamagis.com.br/noticia.php?noticia=26091>. Acesso em: 10 out. 2009. 85 PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Emprego de Algemas - notas em prol de sua regulamentação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 592, p. 275 - 292, fev. 1985, p.289. Inicialmente, faz-se mister destacar a iniciativa da Suprema Corte de limitar o uso de algemas, resguardando os direitos mínimos dos presos. Todavia, não se pode olvidar das circunstâncias em que esta foi elaborada, bem como da abrangência dada pelo teor da súmula. Nesse sentido, Sandro César Seel afirma que: [...] a polêmica sobre os critérios de sua utilização se deu, de fato, a partir de Operação Satiagraha, e seus eventuais abusos contra presos de classe alta, mas a decisão do STF pretende ser lida como realizada a partir de sua origem de direito, a ação de um pedreiro de Laranjal Paulista, que 86 permanecera algemado durante seu julgamento. Com efeito, a Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal foi elaborada para amenizar a insegurança jurídica envolvendo o tema do emprego de algemas. Contudo, devido à abrangência e aos critérios jurídicos adotados por esta, bem como as circunstâncias em que se deu sua edição, alguns problemas práticos poderão surgir. Nesse diapasão, Rodrigo de Abreu Fudoli ressalta que: [...] os critérios jurídicos estabelecidos na Súmula para que seja considerada "justificada a excepcionalidade" do emprego de algemas são subjetivos ao extremo, sendo eles: a) resistência; ou fundando receio de fuga; ou fundado receio de perigo à integridade física própria (do preso) ou alheia (de pessoa não presa e que esteja ao seu alcance), perigo este proporcionado pelo preso ou por terceiros (seus comparsas, por exemplo, que possam lhe dar fuga ou tentar resgate), o “fundado” receio de fuga ou de perigo à integridade física de qualquer pessoa é aspecto nebuloso e de 87 apreciação subjetiva. Assim, para esses doutrinadores desfavoráveis a edição da Súmula Vinculante n.11, a norma acarretará problemas práticos na sua aplicação, bem como uma grande insegurança jurídica dos envolvidos nas execuções de prisões, pois os critérios jurídicos adotados são extremamente subjetivos. Ademais, acredita-se que ocorrerá uma reprodução da seletividade penal, uma vez que “o receio de fuga” e o “receio de perigo” incidirão sobre os indivíduos de baixa classe social, consideradas a priori como elemento perigoso. Por essa razão, acredita-se que a Súmula Vinculante n.11 agravará a exclusão social, haja vista que os critérios jurídicos adotados, como a periculosidade do indivíduo, atingirão diretamente a população de baixa condição social, consideradas a priori como perigosas. Ademais, nota-se que os Ministros do Supremo Tribunal Federal ao editar a Súmula Vinculante, não se preocuparam com a realidade social da população brasileira, com o cidadão comum que está diante da brutalidade policial, pois estes há muito tempo estavam tendo seus direitos violados e nada havia sido feito, porquanto, bastou alguns indivíduos da alta classe social serem algemados e expostos à mídia, para a Suprema Corte se pronunciar. Portanto, os indivíduos que continuarão sendo algemados, humilhados e desrespeitados, serão os representantes dos grupos de baixa condição social, ou 86 SELL, Sandro César. O pedreiro, o banqueiro e um par de algemas . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1875, 19 ago. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11618>. Acesso em: 04 out. 2009. 87 FUDOLI, Rodrigo de Abreu. Uso de algemas: a súmula vinculante nº 11, do STF. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11625>. Acesso em: 23 out. 2009. seja, cerca da totalidade da população carcerária do Brasil. Nessa mesma linha, Alexandre Wunderlich adverte que: Leis e súmulas não transformam a realidade social. É verdade. A função destes textos, pactos e declarações, mais de vezes, quando o sistema é injusto e incoerente, torna-se meramente simbólica. O certo é que não teremos uma polícia cidadã e comunitária, que obedeça aos princípios 88 constitucionais, apenas com políticas legislativas. Diante do exposto, conclui-se que para essa terceira posição doutrinária, na qual se insere o presente trabalho, o ordenamento brasileiro além de necessitar de uma regulamentação do uso de algemas através de decreto federal, que contenha critérios objetivos para ser aplicado a todos os indivíduos, precisa de uma política criminal que envolva principalmente os agentes policiais que tratam diretamente com a criminalidade, bem como meios necessários para garantir a sua segurança, a de terceiros e do próprio detido, sem violar a dignidade da pessoa humana e a presunção da inocência dos indivíduos presos. A partir da última análise exposta, segundo a qual a Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal favorecerá apenas determinado grupo social, tornando-se inaplicável para grande parcela da sociedade, buscar-se-á analisar no próximo capítulo, a teoria da seletividade, bem como a aplicação da norma ao caso concreto. 3 DISCRIMINAÇÃO DA JUSTIÇA PENAL É impossível referir-se à isonomia da justiça penal em uma realidade social complexa e desigual, como é a sociedade brasileira. Primeiramente, porque a ordem jurídica não protege indistintamente os interesses de todos os cidadãos, haja vista que quem dita as leis é a classe que dispõe do poder com o propósito de assegurar a conservação do seu status sócio-econômico. Nesse sentido, busca-se, no presente capítulo, a partir da adoção dos referenciais teóricos da Criminologia Crítica, analisar o histórico da criminalização e da seletividade, bem como demonstrar de que forma a Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal reproduzirá a seletividade penal. Além disso, verificar-se-á a aplicabilidade da norma ao caso concreto. 3.1 HISTÓRICO DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA. Para compreender a criminalização e a seletividade, faz-se necessário uma resumida explanação sobre o histórico da Criminologia Crítica surgida na década de 60 do século XX, a partir do enfoque do paradigma da reação social. Inicialmente, cabe ressaltar que, no final do século XIX, surgiu a Criminologia Positivista, primeira criminologia considerada como ciência. Tal escola se opôs a Escola Liberal Clássica de Cesare Beccaria e Francesco Carrera, pois esta defendia que a análise do direito penal deveria recair sobre o fato delituoso, e não sobre o autor do delito, enquanto aquela sustentava a necessidade de identificar as causas e os fatores da criminalidade a partir de um estudo do delinquente e de sua personalidade perigosa, a fim de possibilitar uma luta contra a criminalidade, em 88 WUNDERLICH, Alexandre. Algemas no motorista. Zero Hora. Porto Alegre, 5 set. 2009. Editoriais, p.14. defesa da sociedade89. Dessa forma, a Criminologia Positivista consolidou-se como ciência causal-explicativa da criminalidade, tendo por objeto a tarefa de explicar as causas do crime, através do estudo do “criminoso”, bem como as soluções para combatê-lo, tendo em vista a defesa da sociedade. Logo, a partir da Escola Positivista, a Criminologia passou a ter um caráter auxiliar à Dogmática Penal, pois enquanto esta estudava a prevenção e a repressão do delito, aquela investigava as causas do crime90. Nesse contexto, a partir da década de 60 do século XX, impulsionado pela negação de tais princípios norteadores da ideologia da defesa social, inicia-se um processo de desconstrução e deslegitimação teórica do sistema penal, que culminou no novo paradigma criminológico da reação social, base da Criminologia Crítica91. As teorias criminológicas da reação social, de acordo com Alessandro Baratta, “deslocaram o foco de análise do fenômeno criminal, do sujeito criminalizado para o sistema penal e os processos de criminalização que dele fazem parte e, mais em geral, para todo o sistema da reação social ao desvio”92. Em tempo, diga-se que tais teorias contribuíram para mostrar que o sistema penal corresponde a um sistema de valores e normas sociais que o legislador encontra já devidamente constituído, e que são aceitos pela maioria da sociedade. Além disso, comprovaram que o sistema penal varia em conformidade ao sistema de valores e de regras sociais de um determinado grupo social. A partir dos enfoques da reação social das teorias liberais citadas anteriormente, surgiu, no âmbito da sociologia criminal contemporânea, a Criminologia Crítica. Conforme Alessandro Baratta, “a criminologia crítica refere-se à construção de uma teoria materialista, econômico-político, do desvio, dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização”93. O autor, além disso, adverte que: Na perspectiva da criminologia crítica a criminalidade não é mais uma qualidade ontológica de determinados comportamentos e de determinados indivíduos, mas se revela, principalmente, como um status atribuído a determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: em primeiro lugar, a seleção dos bens protegidos penalmente, e dos comportamentos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais: em segundo lugar, a seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infrações a normas penalmente sancionadas. A criminalidade é um “bem negativo”, distribuído desigualmente conforme a hierarquia dos interesses fixada no sistema sócio-econômico e conforme a desigualdade social entre os 94 indivíduos. 89 GROSNER, Marina Quezado. A seletividade do sistema penal na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça: o trancamento da criminalização secundária por decisões em habeas corpus. 1. ed. São Paulo: IBCCRIM, 2008, p.28-29. 90 ANDRADE, op. cit., p. 277. 91 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2003, p. 182. 92 BARATTA, op. cit., p. 49. 93 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal; tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p.159. 94 Ibidem, p.161. Seguindo a mesma proposta, Vera Regina Pereira de Andrade afirma que a Criminologia Crítica recuperou a análise das condições objetivas, estruturais e funcionais que originaram os fenômenos de desvio na sociedade capitalista, interpretando-os separadamente, conforme se tratem de condutas das classes subalternas ou condutas das classes dominantes95. Logo, a partir do paradigma da reação social ou do controle social, descobriu-se que o sistema penal não se reduz a um sistema complexo e estático de normas penais, e sim de um processo articulado e dinâmico de criminalização ao qual concorrem todas as agências de controle social96. Pelas razões expostas, conclui-se que a Criminologia Crítica superou o paradigma etiológico e a ideologia da defesa social da Criminologia Positivista, para investigar os mecanismos de construção do sistema penal, sobretudo seu funcionamento, e as condições da criminalização. Assim, diante desse breve histórico da Criminologia Crítica, a qual se baseia este trabalho, serão explicadas as fases da criminalização e o fenômeno da seletividade que envolve todo o processo de controle social. 3.2 A CRIMINALIZAÇÃO E A SELETIVIDADE Esse processo de criminalização, de acordo com Eugênio Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar, desenvolve-se de duas formas, denominada primária e secundária. Inicialmente, define-se a criminalização primária como “o ato e o efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas ”97. Assim, a primeira forma de criminalização trata do processo de elaboração de leis penais, através da definição dos bens protegidos penalmente, bem como da escolha das condutas que devem ser criminalizadas, que são realizadas pelas agências políticas, principalmente, através do parlamento98. Seguindo a mesma proposta, o autor Nilo Batista afirma que “o direito penal vem ao mundo (ou seja, é legislado) para cumprir funções concretas dentro de e para uma sociedade que concretamente se organizou de determinada maneira” 99. Dessa forma, este processo representa a primeira fase da distribuição seletiva e desigual do status de criminoso, uma vez que só será considerado “criminoso” na medida em que é definido como tal pela legislação. Importa enaltecer que quem aplica tais programas, são as agências de criminalização secundária, por meio do das agências policiais, do Ministério Público e do Poder Judiciário. Por derradeiro, a segunda forma de criminalização, trata-se da criminalização secundária que, conforme Eugênio Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar é : [...] a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que acontece quando as agências policiais detectam uma pessoa que supõe-se tenha 95 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2003,p. 217. 96 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.14, 276-287, abr./jun., 1996, p. 277. 97 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume - Teoria Geral do Direito Penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003,p. 43 98 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal; tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.161. 99 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p.19. praticado certo ato criminalizado primariamente, a investigam, em alguns casos privam-na de sua liberdade de ir e vir, submetem-na à agência judiciária, que legitima tais iniciativas e admite um processo. [...] No processo, discute-se publicamente se esse acusado praticou aquela ação e, em caso afirmativo, autoriza-se a imposição de uma pena de certa magnitude que, no caso privação de liberdade de ir e vir da pessoa, será 100 executada por uma agência penitenciária (prisonização). De fato, a seletividade ocorre, concretamente, na criminalização secundária, uma vez que são as agências policiais que se responsabilizam pela decisão de selecionar determinadas pessoas para serem criminalizadas e, outras, protegidas. Alessando Barrata, assim esclarece: [...] o status social de delinqüente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da deliqüencia, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade 101 como “delinqüente”. Dessa forma, apenas determinados indivíduos são selecionados para poderem ser criminalizados, essa seleção, segundo Zaffaroni, Batista, Alagia e Sokar, ocorre conforme ao esteriótipo do indivíduo, assim: [...] a regra geral da criminalização secundária se traduz na seleção: a) por fatos burdos ou grosseiros (a obra tosca da criminalidade, cuja detectação é mais fácil); b) de pessoas que causem menos problemas (por sua incapacidade de acesso positivo ao poder político e econômico ou à 102 comunicação massiva). Desse modo, o esteriótipo do delinqüente acaba sendo o principal critério seletivo da criminalização secundária, condicionando todo o funcionamento das agências do sistema penal. Nesse sentido, Vera Regina Pereira de Andrade destaca que “a clientela do sistema penal é constituída de pobres não porque tenham uma maior tendência para delinqüir, mas precisamente porque tem maiores chances de serem criminalizados e etiquetados como criminosos”103. Ademais, Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar ressaltam que a seleção pode ocorrer de outras formas, como, por exemplo, através do tipo de comportamento, isto é, quando atuam com brutalidade (autores de homicídios, intrafamiliares, de roubos neuróticos etc.), ou pela falta de cobertura, que ocorre quando alguém se encontrava em uma posição que o tornara praticamente invulnerável, mas que perdeu uma luta de poder hegemônico e sofreu, por tal razão, uma ruptura na 100 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume - Teoria Geral do Direito Penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003,p.43. 101 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.86. 102 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR Alejandro, op.cit., p. 46. 103 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.14, 276-287, abr./jun., 1996, p. 283. vulnerabilidade104. Assim, para esses doutrinadores, a seletividade existe como uma forma de controle social. Ressalta-se, ainda, um terceiro nível de criminalização, trata-se da “criminalização terciária” causada pela reação das instâncias oficiais de controle social, na qual os indivíduos selecionados modificam sua identidade social, sendolhes introduzido um verdadeiro status de delinquente, o que chamamos estigmatização social. Assim, segundo Pedro Torres Lobo, esse estigma social se origina desse controle exercido pelos órgãos oficiais que condiciona o indivíduo, sob o jugo da reação social, a permanecer naquele papel de delinquente em que foi introduzido, ficando estigmatizado e rotulado para sempre como um criminoso.105 Portanto, para a criminologia crítica a qualidade do desviante não é uma característica inerente àquele comportamento, mas sim uma atribuição que lhe foi conferida pelas instâncias de controle social. Ademais, faz-se mister enaltecer que os doutrinadores da Criminologia Crítica negam radicalmente os princípios defendidos pela ideologia da defesa social, principalmente, o mito da igualdade do direito penal, pois consideram que o direito penal não defende todos os bens essenciais à população, razão pela qual afirmam que a lei penal não é igual para todos, sendo o status de criminoso distribuído de modo desigual, independentemente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à lei106. Nesse sentido, eis o posicionamento do autor Nilo Batista: [...] o sistema penal é apresentado como igualitário, atingindo igualmente as pessoas em função de suas condutas, quando na verdade o seu funcionamento é seletivo, atingindo determinadas pessoas, integrantes de determinados grupos sociais, a pretexto de suas condutas. [...] O sistema penal é também apresentado como justo, na medida em que buscaria prevenir o delito, restringindo sua intervenção aos limites da necessidade, quando de fato seu desempenho é repressivo, seja pela frustração de suas linhas preventivas, seja pela incapacidade de regular a intensidade das respostas penais, legais ou ilegais. Por fim, o sistema penal se apresenta comprometido com a dignidade da pessoa humana, quando na verdade é estigmatizante, promovendo uma degradação na figura social de sua 107 clientela. Portanto, o sistema penal brasileiro, de acordo com as teorias críticas do direito penal, caracteriza-se pela seletividade, repressividade e estigmatização. Diante exposto, importa registrar que o presente trabalho, baseando-se na Criminologia Crítica, busca abordar o processo de criminalização primária a partir da análise da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal e de pesquisas empíricas, investigando principalmente contra quem e em favor de quem esta foi criada, haja vista que os critérios jurídicos adotados, como “o receio de fuga” e o “receio de perigo” são extremamente subjetivos, o que acarretará uma distribuição seletiva e desigual do status de criminoso. Além disso, objetiva estudar o processo de criminalização secundária, a partir do papel seletivo dos agentes policiais, agindo 104 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume - Teoria Geral do Direito Penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003,p.49. 105 LOBO, Pedro Torres. Estigmatização: Delinqüencia secundária e construção da carreira criminosa. Revista Jurídica. Campinas, v.23, n.2, p.95-100, jan. 2007, p.96. 106 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal; tradução Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Editora Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002. p.162. 107 BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 26. enquanto instância formal de controle penal. Nesse sentido, o próximo ponto visa analisar a criminalização secundária e os mecanismos de seleção 3.3 CRIMINALIZAÇÃO SECUNDÁRIA E MECANISMOS DE SELEÇÃO. O presente ponto visa abordar os mecanismos de seleção da criminalização secundária, a fim de possibilitar a compreensão do papel seletivo dos agentes policiais, enquanto instância formal do controle penal, na utilização de algemas. Inicialmente, cabe ressaltar que a seleção, de fato, ocorrerá somente na criminalização secundária, uma vez que as agências políticas que elaboram as normas não sabem o que acontecerá no caso concreto. Assim, são os mecanismos da criminalização secundária que acentuam ainda mais o caráter seletivo do direito penal108. Ora, antes de falarmos da seletividade do sistema, faz-se necessário destacar a “cifra negra” da criminalidade, isto é, a defasagem que medeia a criminalidade real (condutas efetivamente praticadas) e a criminalidade estatística, a oficialmente registrada, uma vez que, como bem explica Vera Regina Pereira de Andrade: [...]nem todo delito cometido é perseguido; nem todo delito perseguido é registrado; nem todo delito registrado é averiguado pela polícia; nem todo delito averiguado é denunciado; nem toda denúncia é recebida; nem todo recebimento termina em condenação. [...] Visível se torna como a criminalidade estatística não é, em absoluto, um retrato da criminalidade real, mas o resultado de um complexo processo de refração existindo entre ambas um profundo defasamento não apenas quantitativo, mas também qualitativo. Pois o “efeito-de-funil” ou a “mortalidade de casos criminais” operada ao longo do corredor da delinqüência, isto é, no interior do sistema penal, resulta da ampla margem de discricionariedade seletiva dos agentes 109 do controle. Desse modo, o valor das estatísticas criminais, baseada sobre a criminalidade identificada e perseguida, formou um quadro falso da distribuição da criminalidade dos grupos sociais, derivando uma definição corrente de que a criminalidade é um fenômeno concentrado, principalmente, nos estratos inferiores, e pouco representado nas classes superiores e, portanto, ligada a fatores pessoais e sociais relacionados à pobreza110. Assim, a partir deste quadro falso de criminalidade construído pela ideologia prevalente, formou-se o estereótipo do criminoso, que Augusto Thompson descreveu como: O primeiro traço básico da imagem do criminoso que representa para si mesma a ideologia dominante, diz respeito a seu baixo status social. Pedindo a uma pessoa que descreva a figura de um delinqüente típico, teremos, em função da resposta, o retrato preciso de um representante da 108 ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2003, p. 264. 109 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume - Teoria Geral do Direito Penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.103. 110 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.102. classe social inferior, de tal sorte se tende a estabelecer o intercâmbio entre pobreza e crime. Ao afirmar que o criminoso é, caracteristicamente, pobre, abre-se facilmente a possibilidade de inverter os termos da equação, para dizer: o pobre é, caracteristicamente, criminoso. 111 Em tempo, diga-se que os estereótipos da criminalidade influenciam e orientam a ação dos órgãos oficiais, tornando-a socialmente seletiva, uma vez que as pesquisas sobre a cifra negra da criminalidade também levaram a uma correção do conceito corrente de criminalidade, qual seja, a criminalidade não é um comportamento restrito da minoria, mas, ao contrário, é comportamento da maioria dos membros de nossa sociedade112. Portanto, cabe aos operadores do processo de criminalização secundária a escolha desigual dos etiquetados, isto é, selecionar os indivíduos considerados mais perigosos. De fato, quem inicia o processo de criminalização secundária são os policiais, pois estes selecionam quem deve ou não ser investigado. Sendo assim, de acordo com Augusto Thompsom: [...] os policiais selecionarão de acordo com a idéia que possuem a respeito de quem é criminoso. A maior fiscalização sobre dados grupos do que relativamente a outros vai determinar uma taxa diversa entre eles quanto à quantidade de infratores que ficarão escondidos na cifra negra. A estatísticas oficiais, em decorrência, ostentarão um número elevado de criminosos oriundos das classes baixas, enquanto o relativo ao situados nas camadas superiores se mostra ínfimo.Tal indicador é tomado como prova a respeito da correta orientação que presice o trabalho da polícia, a qual se sentirá acoroaçada em manter o mesmo critério de seleção 113 tradicionalmente empregado. Nesse sentido, a seleção dos indivíduos ocorre a partir da sua correspondência um estereótipo criminal, segundo Zaffaroni, Batista, Alagia e Slokar este é composto de: [...] caracteres que correspondem a pessoas em posição social desvantajosa e, por conseguinte, com educação primitiva, cujos eventuais delitos, em geral, apenas podem ser obras toscas, o que só faz reforçar ainda mais os preconceitos racistas e de classe, à medida que a comunicação oculta o resto dos ilícitos cometidos por outras pessoas de uma maneira menos grosseira e mostra as obras toscas como os únicos delitos. Isto leva à conclusão pública de que a delinqüência se restringe aos segmentos subalternos da sociedade, e este conceito acaba sendo assumido por equivocados pensamentos humanistas que afirmam serem a pobreza, a educação deficiente, as causas do delito, quando, na realidade, são estas, junto ao próprio sistema penal, fatores condicionantes dos ilícitos desses segmentos sociais, mas, sobretudo, de sua criminalização, ao lado do qual se espalha, impune, todo o imenso oceano de ilícitos dos outros segmentos, que os cometem com menor rudeza ou mesmo com 114 refinamento. 111 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? O crime e o criminoso: entes políticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p.64. 112 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p.103. 113 THOMPSON, op.cit., p.65. 114 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR Alejandro. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume - Teoria Geral do Direito Penal. 2.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p.48. Seguindo a mesma proposta, Thompson afirma que esteriótipo do delinquente é composto, primeiramente, pela sua classe social, o que é apurável de acordo com o local em que mora (normalmente em favelas) e o seu baixo status social; em segundo lugar, pela sua imagem, isto é, a sua cor (preto ou mulato), o seu aspecto físico (falhas de dentes, mãos e pés grandes, feições abrutalhadas), a sua baixa escolaridade (linguagem pobre, pejada de gírias), se está ou não empregado e, por fim, se possui ou não registros policiais115. Assim, esses são os critérios seletivos que se baseiam os policiais para etiquetar determinados indivíduos como delinquente. Dessa forma, refuta-se a ideia de caráter fortuito da seletividade, uma vez que ela é operada a partir de estereótipos criminais, formados através de um quadro falso de criminalidade, que influenciam na seletividade decisória dos agentes policiais. Diante do exposto, percebe-se que as estatíscas criminais servem de parâmetro para toda a atividade policial. Assim, a partir dessas pesquisas são escolhidos os indivíduos que devem ou não ser criminalizados conforme se enquadram nos estereótipos criminais. Nesse mesmo sentido, importa registrar que a utilização de algemas, objeto do presente trabalho, em determinados indivíduos segue a mesma orientação, qual seja, os indivíduos considerados perigosos de acordo com a cartografia da exclusão social, devem ser sempre algemado, enquanto as pessoas que não são clientes habituais do sistema penal, aquelas que normalmente cometem crimes econômicos e dificilmente entram nessas estatísticas, devem ter seu direito resguardado e a sua imagem preservada. Nesse contexto, faz-se necessário delimitar o objeto do presente trabalho para o estudo do papel seletivo dos agentes policiais na aplicação da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal, a qual limita o uso de algemas, uma vez que a norma restará inaplicada à maioria da população carcerária, devido aos critérios jurídicos adotados que tratam da periculosidade do indivíduo, bem como do receio de fuga. Portanto, na prática, a maioria dos agentes policiais continuará agindo da mesma forma, isto é, as algemas seguirão sendo utilizadas indiscriminadamente nos membros dos estratos inferiores, pois estes são considerados a priori perigosos, devido às falsas estatísticas criminais. Assim, o próximo ponto do trabalho visa demonstrar a interferência seletiva das agências policiais, enquanto instância formal de controle penal, bem como a inaplicabilidade da norma ao caso concreto para maioria da população carcerária. 3.4 A (IN)APLICABILIDADE NO SISTEMA PENAL BRASILEIRO DA SÚMULA VINCULANTE N.11 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Faz-se necessário analisar os problemas práticos que estão surgindo com a aplicação, ou melhor, com a inaplicabilidade da Súmula Vinculante n.11 ao caso concreto, pois a limitação do uso de algemas não está sendo garantida a todos os indivíduos da sociedade, uma vez que aqueles que se assemelhem ao estereótipo criminal, bem como aqueles que já foram estigmatizados pela sociedade como “criminosos”, continuam sendo algemados, pelo simples fato de serem considerados perigosos a priori. 115 THOMPSON, Augusto. Quem são os criminosos? O crime e o criminoso: entes políticos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1998, p.68. 3.4.1 A Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal na visão dos operadores do direito A Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal trata de um assunto de grande relevância social, uma vez que ao limitar o uso de algemas a casos excepcionais e devidamente justificados, produz efeitos concretos na vida de diversas pessoas. Por esta razão, cumpre demonstrar a Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal na visão qualitativa dos operadores do direito, a partir de entrevistas realizadas com delegados e agentes da polícia federal e da polícia civil na cidade de Porto Alegre. Inicialmente, far-se-á uma análise qualitativa dos discursos dos delegados e, logo após, dos agentes. Cabe ressaltar que as entrevistas foram gravadas, contudo, apenas os trechos mais importantes foram inseridos no trabalho, sendo estas colocadas em itálico. Para melhor compreender as entrevistas, faz-se mister ressaltar que a polícia civil enfrenta crimes comuns, tratando diretamente com a clientela habitual do sistema penal, as quais representam grande parte das estatísticas criminais, enquanto, a polícia federal além de lidar com crimes comuns, trata de crimes econômicos, nos quais os indivíduos investigados não se assemelham aos estereótipos criminais. No que tange à elaboração da Súmula Vinculante n.11, os relatos dos delegados são semelhantes, uma vez que ambos consideram que a norma é tecnicamente inadequada. Assim, para o delegado federal a súmula é imprópria “porque o uso de algemas é um recurso utilizado de forma preventiva para evitar maiores danos não só a pessoa que está sendo conduzida como também ao policias e, principalmente, à sociedade”. Ademais, complementa que “esta súmula foi editada sem ter sido feito um estudo especialmente técnico a respeito do assunto para verificar se efetivamente é desnecessário o uso de algemas em todos os casos e se restringe só a quando houver resistência ou fundado receio de fuga”. Já o delegado civil afirma que é contra súmula por “ela ser genérica e tornar um pouco mais burocrático” o seu trabalho, pois qualquer prisão “tem que ficar justificando por escrito, o que é uma coisa complexa”, além disso, observa que as algemas servem “para preservar a própria pessoa, os policiais e terceiros”. Com relação aos critérios jurídicos adotados pela súmula, como o “receio de fuga” e o “receio de perigo”, as partes argumentam de forma diferente, o delegado federal alega que “não se tem como antecipar este tipo de situação, não se tem como prever, então não existe como se prever um fundado receio de fuga ou um fundado perigo a integridade física de alguém, porque geralmente essas pessoas que tomam essa atitude num arroubo de loucura, num surto realmente de tentar se desvencilhar daquela situação”. E observa que a instrução dada aos agentes policiais é para que na hora da prisão “se use o bom senso”, contudo, adverte que “nenhum policial é formado ou tem capacidade de antever este tipo de reação”, o que torna muito difícil a aplicação da norma no caso concreto, uma vez que os “critérios da súmula são subjetivos”. Enfim, conclui que “existe uma série de componentes subjetivos que depende de cada pessoa”, considera que não tem como avaliar este tipo de questão e, por isso, “reputa inadequada esse tipo de determinação”. Por sua vez, o delegado civil aponta que a periculosidade do indivíduo é identificada durante as investigações, como este trabalha na delegacia de homicídios, afirma que sempre “sabe com quem ta lidando”, assim, “pela própria natureza do crime, já considera a pessoa perigosa”, por esta razão, sempre algema. Ademais, aponta que quando o crime não esta sob sua investigação, mas deverá cumprir um mandado judicial de prisão, primeiramente, analisa os antecedentes da pessoa, por exemplo, se a pessoa “tem condenação por roubo, então é uma pessoa perigosa”, logo, terá que algemá-la. E conclui que em “praticamente todas as operações” que realizou, antes e depois da súmula, sempre procurou algemar o indivíduo, assim, para ele, “algemar seria a regra, como sempre foi a regra”, pois “prefere responder por abuso de autoridade” do que colocar sua vida em risco. A partir deste último discurso percebe-se a inaplicabilidade da norma aos casos concretos que tratam dos crimes comuns, nos quais a clientela habitual do sistema penal está inserida. E ademais, nota-se o papel seletivo dos agentes policiais, uma vez que estes, baseados na natureza do crime que nem sequer foi comprovada (violando diretamente a presunção da inocência), bem como aos antecedentes dos indivíduos, selecionam determinados indivíduos para não aplicar a Súmula Vinculante n.11. Demonstra-se, assim, que a partir do momento em que os indivíduos sofrem uma reação das instâncias oficiais de controle social, isto é, a partir da prisão ou até mesmo a partir da “algemação”, muitas vezes ilegal e abusiva, passam a ser estigmatizados por toda sociedade, sendo-lhes introduzido um verdadeiro status de criminoso, que o segue por toda a vida e o exclui do meio social, levando-o a reiterar práticas delituosas. Quanto à orientação dada aos agentes que realizam a prisão, o delegado federal aponta que o indicado é “utilizar o bom senso, porque não tem como aplicar a súmula com base em critérios objetivos”, assim, “o chefe da equipe tem a liberalidade de avaliar a situação e adotar a conduta que ele julgar mais adequada e conveniente, se algemar tem que justificar, ele fica com a responsabilidade”. Todavia, adverte que tal decisão é polêmica, pois considera que não está sendo dado “um tratamento isonômico a todas as pessoas que estão presas”, pois pode ocorrer um possível questionamento daquelas pessoas que foram presas e algemadas no sentido de “por que eu fui presa e algemada e o fulano ali do lado não foi?”, assim, considera o mais adequado “que todos fossem algemados”. Já o delegado civil afirma que na prática, a orientação não mudou, pois a súmula não lhe trouxe preocupação nenhuma, uma vez que alega que tem “vários argumentos” para justificar o uso de algemas. Diante desses dois relatos, percebe-se a discriminação que há em relação aos indivíduos que cometem determinados crimes, na medida em que há uma preocupação da Polícia Federal com as justificativas dadas em relação ao uso de algemas, uma vez que os crimes que investigam envolvem pessoas de alto poder aquisitivo que não compõem as estatíscas criminais. Todavia, a Polícia Civil acostumada com a clientela habitual do sistema penal não se preocupa com os motivos que determinarão o uso de algemas, haja vista que sabem que a sua clientela corresponde ao estereótipo de criminoso, perseguida pelas instâncias oficiais de controle social. Assim, possuem “vários argumentos” para sempre justificar a utilização do instrumento. Para os entrevistados, o que deve ser limitado é a exposição do indivíduo algemado, haja vista que é esta a atitude que constrange a parte e viola a sua dignidade humana. Nesse sentido, o delegado federal aponta que “o remédio mais adequado era impedir que as pessoas algemadas fossem expostas à mídia, e ai sim responsabilizar policiais ou servidores que eventualmente expusessem”. O delegado civil segue o mesmo entendimento. Dessa forma, nota-se que a exposição dos indivíduos algemados é refutada por todos os operadores do direito. Diante do exposto, nota-se a diferença dos discursos relacionados à limitação do uso de algemas, uma vez que o delegado federal aponta que a súmula trouxe problemas práticos para a aplicação ao caso concreto, enquanto o delegado civil, acostumado em prender indivíduos que correspondem às estatísticas criminais, avalia que o único problema prático que irá surgir será a “burocratização” do seu trabalho, isto é, o que mudou foi apenas a justificativa que deverá ser dada, contudo, aponta que há “vários argumentos” para fundamentar, pergunta-se quais seriam estes argumentos? A natureza do crime, a antecedência criminal, a escolaridade, a idade? Critérios estes seletivos utilizados pela grande maioria dos agentes policiais. Partindo-se dessa premissa, busca-se analisar os critérios adotados pelos agentes federais e civis na hora da prisão. Primeiramente, cabe ressaltar que são os agentes que realizam as prisões, são estes que iniciam a criminalização secundária, decidindo quem será algemado ou não. Sendo assim, é nesse instante que inicia o processo de filtragem do sistema penal, isto é, a seleção de determinados indivíduos de acordo com estereótipos e preconceitos, formados a partir das estatísticas criminais. Nesse contexto, importa destacar os relatos dos agentes. A primeira diferença notada entre os discursos se refere aos critérios adotados para definir quando se deve usar ou não as algemas. O policial federal aponta que quando há uma investigação anterior, há uma “análise do perfil dessa pessoa”, quando não se tem este conhecimento há “uma análise subjetiva do policial que esta ali presente”. De acordo com o agente federal, vários fatores podem determinar o uso de algemas, como, por exemplo, o local onde se realiza a prisão, pois afirma ele que “numa favela” eles sabem com quem estão tratando, o tipo de crime “que está cometendo ou que ele cometeu”, o animus daquela pessoa. Ademais, adverte que é feito todo um estudo anterior para ver qual é o risco da operação, assim, “num crime financeiro, a pessoa geralmente tem mais tranquilidade, vai contratar advogado, não tem porque fugir, vai responder aquele crime”, ainda argumenta que para essas pessoas a situação é mais tranquila e, por isso, não tem motivo para reagir, enquanto, “aquele que está sendo procurado por homicídio ou por tráfico de drogas, lida com a violência, então,como ele está acostumado com essa violência, ele pode tentar contra a polícia para que não realize sua prisão ou tentar qualquer outro ato violento”. Ademais, inclui nos fatores, a idade, pois observa que “em via de regra” uma pessoa de 60 anos “oferece menos risco do que um jovem deliquente”, também a escolaridade, uma vez que nos presídios “os crimes violentos, a grande maioria, a grande parcela desses presos, desses criminosos, tem uma escolaridade baixa” e conclui que “a experiência policial ajuda” a determinar o uso ou não de algemas no caso concreto. Nota-se nesse relato que os policias federais, a partir dos critérios jurídicos subjetivos adotados pela Súmula Vinculante, segundo os quais deixa ao arbítrio do policial a decisão de algemar ou não, estão tendo um papel seletivo de controle social, uma vez que as justificativas estão sendo dadas a partir de critérios seletivos, como a natureza do crime, o ambiente, a escolaridade, a idade, status do criminoso. Por sua vez, o policial civil aponta que as algemas sempre são utilizadas, mesmo depois da edição da súmula, pois considera que todo o preso é perigoso, ademais, garante que se fosse o indivíduo tentaria fugir e por isso sempre utiliza as algemas. De acordo com o relato, a única coisa que mudou foi que agora eles prendem e tem que “colocar no papel”. Conforme a Súmula Vinculante n.11, o uso de algemas deve ser sempre justificada, assim, o policial civil adverte que no momento do registro da ocorrência deve ser apontado os motivos que levaram a utilizar o instrumento, contudo, afirma que a justificativa é sempre a mesma, qual seja, a periculosidade, pois considera que “preso é preso, e sempre é periculoso”, então sempre se justifica. Ademais, alega que sempre utiliza as algemas, mesmo após a edição da súmula, uma vez que considera que todo o indivíduo que está no crime deve ser algemado, para sua segurança, pois, assim, ele não vai “pensar bobagem, vai se sentir amarrado, solto, pensa um milhão de coisas”. Por fim, conclui que após a edição da súmula “a única coisa que mudou é que antes não colocava nada no papel, não justificava”, agora se utiliza as algemas e justifica, sendo que o motivo é sempre o mesmo “preso é preso”. A partir do relato deste policial civil, nota-se que na polícia civil o uso de algemas continua sendo utilizado de maneira indiscriminada, isto é, utiliza-se em todas as prisões. A única coisa que mudou foi a exigência de uma justificativa após a prisão, o que não inibiu as operações policiais, pois até a data de hoje, nem uma explicação foi discutida e nem um policial foi punido pelo abuso de autoridade. A partir destes relatos, observa-se a grande diferença entre os argumentos dos policiais federais e dos policiais civis. Primeiramente, porque a elaboração da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal ocorreu após exposição de pessoas de grande poder aquisitivo que foram conduzidas algemadas pela polícia federal, antes desses eventos, poucos questionamento haviam sidos feitos sobre a legitimação do uso de algemas. Assim, após a edição da norma, a polícia federal teve que se adaptar, ocasionando problemas práticos, como vistos anteriormente. Portanto, acredita-se que a aplicação da súmula pela polícia federal reproduz a seletividade do sistema penal, haja vista que os critérios adotados, quais sejam, a escolaridade, o status social, o ambiente, o estereótipo do indivíduo influenciam na aplicação da norma, pois os indivíduos de baixa condição social continuarão tendo seus direitos desrespeitados, enquanto os indivíduos de alto poder aquisitivo, que não se enquadram no estereótipo de criminoso, terão seus direitos resguardados. Por outro lado, nota-se que para a polícia civil nada mudou, as algemas continuam sendo utilizadas indiscriminadamente, pois a norma não foi elaborada pensando na clientela habitual do sistema penal, estes podem continuar tendo seus direitos violados, pois são considerados, como bem esclarece Zaffaroni, “inimigos do direito penal”, isto é, estes indivíduos são considerados “entes perigosos ou daninhos”, devendo ter tratamento diferenciado, segregado ou eliminado, pois o direito lhe nega sua condição de pessoa”116. Por tais motivos, afirma-se que a Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal, a partir dos critérios jurídicos adotados, será inaplicável para grande parte da população carcerária, como está ocorrendo com a polícia civil, pois todos os indivíduos são considerados a priori perigosos. Todavia, quando aplicada, beneficiará apenas determinado grupo social de grande poder aquisitivo, como está acontecendo na polícia federal, uma vez que na situação concreta tal interpretação decorrerá a partir das estatísticas criminais equivocadas sobre a criminalidade, as quais consideram perigosos aqueles indivíduos que correspondem ao estereótipo de delinquente. Assim, note-se que neste último caso, quando aplicada, reproduz a seletividade do sistema penal. 116 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo do direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 2.ed.Rio Janeiro: Revan, 2007, p.18. Portanto, a partir das análises elaboradas no decorrer do presente trabalho, conclui-se que o Supremo Tribunal Federal não elaborou a Súmula Vinculante n.11 para todos os indivíduos, uma vez que antes da sua edição não foi feito um estudo especialmente técnico sobre o assunto, buscando critérios objetivos que pudessem ser aplicados a todos os cidadão, e sim para uma pequeno grupo social não acostumado com o controle social punitivo. De fato, procurou-se utilizar critérios subjetivos que pudessem beneficiar apenas determinado grupo social, pois, como bem observa Sandro Sell: [...] algemar um banqueiro é, por presunção, abusivo; enquanto que algemar um pedreiro é, salvo prova em contrário (a ser decidida com toda calma e tempo do mundo), uma medida de cautela razoável. [...] é mais fácil imaginarmos um pedreiro fisicamente agressivo do que um 117 banqueiro. Assim, o presente trabalho defende o cancelamento da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal, pois considera que a norma apenas reforça a distribuição desigual do status de criminoso, uma vez que os critérios jurídicos adotados beneficiam apenas determinados indivíduos das classes abastadas. Portanto, conclui-se que mesmo após a edição da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal os presos que correspondem ao estereótipo criminoso continuam sendo algemados, humilhados e desrespeitados. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tratar o tema da limitação do uso de algemas através da Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal é, sem dúvida, trazer à tona intensas discussões no âmbito jurídico e social, sobretudo porque envolve a colisão de interesses fundamentais estabelecidos na nossa Constituição Federal, quais sejam, de um lado, o dever do Estado de preservar a ordem pública, garantindo a segurança e a incolumidade das pessoas e de seu patrimônio e, de outro, os princípios da dignidade humana e da presunção da inocência. Na elaboração do presente estudo, procurou-se analisar a problemática da limitação do uso de algemas com base nos referenciais teóricos da Criminologia Crítica, partindo-se das considerações de que a criminalidade não é uma característica de determinados indivíduos, e sim de um status atribuído a estes por meio de processos de criminalização realizadas pelas agências de controle social, às quais concorrem tanto o Supremo Tribunal Federal quanto os órgãos policiais. Nesse cenário, foi visto que, até hoje, não há no ordenamento jurídico brasileiro uma norma federal disciplinando o uso de algemas, razão pela qual as instituições passaram a estabelecer diferentes regulamentações em todos os Estados do Brasil, motivando uma grande insegurança jurídica. Com efeito, conforme se demonstrou ao longo do estudo, percebeu-se que os abusos de autoridades decorrentes da utilização vexatória das algemas eram procedimentos comuns adotados nas operações policias. Contudo, a discussão acerca da legalidade do uso de algemas surgiu apenas a partir de recentes prisões 117 SELL, Sandro César. O pedreiro, o banqueiro e um par de algemas . Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1875, 19 ago. 2008. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11618>. Acesso em: 04 out. 2009. de políticos e de cidadãos pertencentes às camadas sociais privilegiadas. Assim, por esta razão e devido à omissão legislativa federal relacionada ao uso de algemas, o Supremo Tribunal Federal no dia 13 de agosto de 2008 elaborou a Súmula Vinculante n.11, com o seguinte teor: “Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado”118. Inicialmente, faz-se mister destacar a iniciativa da Suprema Corte de limitar o uso de algemas, resguardando os direitos mínimos dos presos. No entanto, não se pode olvidar das circunstâncias em que esta foi elaborada, bem como da abrangência dada pelo teor da Súmula, pois os critérios jurídicos adotados, como o “receio de fuga” e o “receio de perigo”, são extremamente subjetivos, razão pela qual os policiais poderão justificar a utilização de algemas através de critérios seletivos, como evidenciados nas entrevistas. Como se examinou no decorrer do trabalho, alguns problemas práticos surgiram na aplicação da Súmula Vinculante n.11 ao caso concreto, pois apenas os indivíduos que correspondem aos estereótipos criminais, formados a partir de falsas estatíscas formais, e que pertencem as camadas sociais mais baixas continuam sendo algemados, enquanto outros por serem pessoas conhecidas e com grande poder econômico estão tendo esse direito resguardado. Assim, a subjetividade da Súmula Vinculante n. 11 reforçou o papel seletivo do sistema penal, pois, conforme a análise qualitativa das entrevistas realizadas com delegados e agentes da polícia federal e da polícia civil de Porto Alegre, concluiu-se que os critérios jurídicos por ela estipulados ou são ineficazes ou reproduzem a seletividade. Dessa forma, para os agentes da polícia civil que tratam dos clientes habituais do sistema penal, a norma está sendo inaplicada, pois as algemas continuam sendo utilizada de maneira indiscriminada. A única mudança notada foi a exigência de uma justificativa, o que não inibiu as operações policiais, pois até hoje nem uma explicação foi discutida e nem um policial foi punido por eventual abuso de autoridade. Por sua vez, nota-se que a polícia federal teve que se adaptar à norma, pois esta investiga crimes envolvendo pessoas de alto poder aquisitivo que não compõem as estatísticas criminais, razão pela qual restou claro que a aplicação ao caso concreto da Súmula Vinculante n. 11 do Supremo Tribunal Federal reproduzirá a seletividade penal, uma vez que os policiais estão justificando o uso de algemas por meio de critérios seletivos, como a escolaridade, o status social, o ambiente, e o estereótipo do indivíduo. Em suma, a presente monografia buscou demonstrar que a Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal será inaplicável para a grande parte da população carcerária brasileira devido aos critérios jurídicos subjetivos adotados, haja vista que estes indivíduos são considerados a priori perigosos. Todavia, quando aplicada, beneficiará apenas indivíduos das classes abastadas, pois somente estes são considerados presumidamente inocentes. Por tal razão, verificou-se que o Supremo Tribunal Federal, ao editar a 118 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula Vinculante n. 11. Disponível em: <http://www.stf.gov.br/portal/cms/verTexto.asp?servico=jurisprudenciaSumulaVinculante&pagina=s umula_001_013>. Acesso em: 17 set. de 2008. presente súmula, reforçou a distribuição desigual do status criminoso, reproduzindo a seletividade, pois favoreceu apenas determinados indivíduos não inseridos nas estatísticas criminais. Ora, o presente trabalho não defende o uso indiscriminado das algemas, pois há casos que o instrumento é utilizado sem qualquer justificativa objetiva, podendo acarretar prejuízos incalculáveis à vítima por meio de uma exposição pública indevida ou, até mesmo, reforçando o rótulo de criminoso de determinados indivíduos. Assim, tais atos são refutados por esta monografia, haja vista que há uma direta violação aos princípios da dignidade humana e da presunção da inocência. Por este motivo, o ordenamento jurídico brasileiro além de carecer de uma legislação federal que disponha sobre o correto uso das algemas por meio de critérios objetivos, nos quais os postulados democráticos sejam garantidos a todos os indivíduos, também necessita de uma política criminal que envolva todas as agências policiais que tratam diretamente com a criminalidade, bem como de outras providências que garantam a segurança das partes, como, por exemplo, escolta reforçada e carros apropriados, uma vez que somente leis não transformam a realidade social. Assim, é preciso criar normas com as devidas providências acautelatórias, pois leis e súmulas não transformam a realidade social. Nesse sentido, o presente trabalho não defende uma norma de cunho político e de efeitos simbólicos, mas sim mecanismos concretos que protejam e garantam a todos os indivíduos os mesmos direitos. Por fim, diante de todo o exposto, sustenta-se o cancelamento da Súmula Vinculante n.11, uma vez que além de estar sendo inaplicada para a grande maioria da população carcerária, está reproduzindo a seletividade do sistema penal. Com efeito, as considerações feitas não esgotam o vasto tema da limitação do uso de algemas, entretanto, procurou-se elaborar um estudo capaz de analisar criticamente as causas que deram origem a Súmula Vinculante n.11 do Supremo Tribunal Federal, buscando ressaltar a (in)aplicabilidade da norma ao caso concreto e o seu papel seletivo na distribuição desigual do status de criminoso. REFERÊNCIAS ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. 2. ed. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2003. ______. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. 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