GÊNERO DE DISCURSO E IMAGEM AUTORAL EM CARTAS
ESPIRITUAIS DE FREI ANTONIO DAS CHAGAS
Jarbas Vargas Nascimentoi
Ricardo Celestinoii
RESUMO: Já era tempo de trazer a estudo, do ponto de vista linguístico-discursivo, as Cartas
Espirituais, escritas por Chagas, no Barroco português. Frei Antonio das Chagas é o nome religioso
que tomou para si Antonio da Fonseca Soares, ao se tornar franciscano, em 1662, na cidade de
Évora. Embora tenha exercido grande fascínio no momento histórico-cultural em que viveu,
principalmente, pela maneira como dividiu sua vida entre o laicismo e a religiosidade, entre a poesia
e a prosa, sua produção epistolar ainda não alcançou grande mérito no interior das pesquisas
linguísticas. As Cartas Espirituais, num total de 366, estão distribuídas em dois volumes: um com
100 e outro com 266 cartas. Dentre elas, selecionamos para esse artigo a carta de número IV do
primeiro volume, para examinarmos nela, na perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa, a
construção do gênero carta e a forma de constituição da imagem autoral. Interessa-nos, também,
identificar as estratégias discursivas que são assumidas pelo enunciador, ao se posicionar no campo
discursivo da religiosidade, o que nos permite uma aproximação entre a Carta e suas condições de
produção. Para dar conta desses objetivos, assumiremos as contribuições de Bakhtin (1992) sobre
gênero de discurso e a categoria de imagem de autor proposta por Maingueneau (2011). Este estudo
torna-se relevante na medida em que, não somente contribui para o desenvolvimento de pesquisas
sobre o gênero de discurso, mas também, por abordar, no funcionamento discursivo, a função-autor.
PALAVRAS-CHAVE: Frei Antonio das Chagas, Cartas Espirituais, gênero de discurso, imagem
autoral.
ABSTRACT: It was time to bring the study of linguistic- discursive point of view, the Spiritual
Letters, written by Chagas in Portuguese Baroque. Frei Antonio das Chagas is the religious name
that took upon itself Antonio Soares da Fonseca, to become a Franciscan, in 1662, in the city of
Évora. Although he exercised great fascination in historical-cultural moment in which he lived
mainly by how divided his life between secularism and religion, between poetry and prose, his
epistolary production has not yet reached great merit within linguistic research. The Spiritual
Letters, totaling 366, are divided into two volumes: one with 100 and another with 266 letters.
Among them , we selected for this Article IV 's letter number of the first volume , to examine it from
the perspective of discourse analysis of the French line , the construction of gender and the form
letter on which the authorial image. Interests us also identify the discursive strategies that are
assumed by the enunciator, when positioning the discursive field of religion, allowing us a closer
relationship between the Charter and its conditions of production. To realize these goals, we will
assume the contributions of Bakhtin (1992) on gender discourse and image category proposed by the
author Maingueneau (2011). This study is relevant in that it not only contributes to the development
of research on gender discourse, but also by addressing, in discursive function, function-author.
KEY-WORDS:Frei Antoniodas Chagas, SpiritualLetters, kind of discourse, authorialimage.
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Considerações iniciais
Este artigo tem como tema o estudo do gênero do discurso carta e a construção da
imagem autoral em Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas. Obra de valor
documental, as Cartas Espirituais foram editadas postumamente em dois volumes, o
primeiro em 1684, com 100 cartas, e o segundo em 1697, com 266. A amostra
selecionada para análise consiste na carta IV do primeiro volume.
A escolha de Cartas Espirituais foi impulsionada por serem passíveis de
reconhecimento como Thesaurus da língua e da cultura portuguesa pelo Ministro
Geral Franciscano da Ordem dos Frades Menores, e ainda não serem estudadas na
perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa. Em buscas bibliográficas
primeiras, obtivemos pouco sucesso em encontrar registros que legitimassem Cartas
Espirituais como obra de relevância conceptista no século XVII. Destacamos,
contudo, exames das cartas de Chagas por especialistas em estudos literários, dentre
eles Maria de Lourdes Belchior Pontes (1923-1998), professora da Faculdade de
Letras de Lisboa, em sua dissertação intitulada Frei Antonio das Chagas: um homem
e um Estilo do Século XVII, que parte da perspectiva de que Chagas representou
biograficamente o homem de sua época ao lado de Pe. Antonio Vieira.
Frei Antonio das Chagas é o nome religioso que assumiu Antonio da Fonseca
Soares, homem que viveu expressivamente a dualidade da época barroca, foi
soldado da Guerra da Restauração contra o exército espanhol e conhecido por suas
produções poéticas e seu desempenho militar como Capitão das Boninas. No
primeiro período de sua existência, são predominantes em seus poemas as
experiências amorosas e os excessos cometidos em sua vida secular, o que retrata o
tipo de produção discursiva da época.
Com 31 anos, em 1662, Soares renunciou a atividade militar e laica e professou os
votos monásticos na Ordem de São Francisco, em Évora. A partir de então, passou a
dedicar sua vida ao evangelho e ao trabalho missionário. Percorreu as terras do
Alentejo e do Algarve em andanças apostólicas, quando compôs Cartas Espirituais,
uma obra-prima, que o inclui entre os grandes cultores do Barroco português.
Com expressividade na vida religiosa, Chagas dirigiu os estudos do convento da
Província franciscana de Algarves, conhecido como Seminário de Varatojo, que
abrigava sacerdotes diocesanos e religiosos com vocação missionária, com o intuito
de eles professarem a vida franciscana.
Para fundamentar a análise da carta que selecionamos, optamos pelo referencial
teórico-metodológico da Análise do Discurso de linha francesa (doravante AD), nas
abordagens propostas por Dominique Maingueneau (1997, 2001, 2007, 2008a,
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2008b, 2010, 2011). A AD consiste em um ponto de cruzamento das ciências
humanas (MAINGUENEAU,2011)e reflete as formações discursivas e as condições
de produção de um discurso, situado em determinado lugar social.
Para que possamos examinar a Carta selecionada,tomamos a categoria de gênero de
discurso, com base em Bakhtin (1992), que parte do pressuposto de que cada esfera
da sociedade elabora tipos relativamente estáveis de enunciados, que refletem as
condições e finalidades de cada uma dessas esferas por meio de conteúdos
temáticos, estrutura composicional e estilo. Para Maingueneau (2001,2008a), a
categoria gênero de discurso pode ser tomada como uma instância reguladora do
discurso, cujos parâmetros coercivos referem-se às restrições que caracterizam a
carta. Elegemos, também, a categoria de imagem de autor, conforme Maingueneau
(2010), que nos ajuda a refletir sobre as estratégias discursivas assumidas pelo
enunciador, ao se posicionar nos campos da literatura, da religiosidade e da
espiritualidade.
1 As condições sócio-histórico-culturais de Cartas espirituais
Durante a Contra-reforma, a Igreja Católica utilizou-se das expressões da arte
Barroca como veículo de transmissão de seus princípios. A linguagem barroca era
utilizada em sermões, cartas espirituais, orientações, dentre outras produções
religiosas que atraía o crente, levando-o a acatar as diretrizes da Igreja Católica. Para
tanto, com a finalidade de compreendermos o valor documental das Cartas
Espirituais de Chagas, é indispensável refletirmos sobre as condições estéticoliterárias do Barroco português.
O Barroco português nasceu de um forte enfraquecimento político, econômico e
cultural, em virtude do grande período de dependência à Espanha e da crise dos
valores renascentistas devido às lutas religiosas e à falência do comércio com o
Oriente. O Renascimento, acompanhado pelo período das grandes navegações
portuguesas, pelas colonizações da África e da América e pelas expansões
marítimas, alimentou um absolutismo existencial no homem do século XVI.
Detentor dos conhecimentos científicos, dos domínios da arte, dos domínios da
razão, o homem desse século tudo podia frente ao mundo. Todavia, no final do
século XVI e início do século XVII, há o ressurgimento de valores abandonados
desde o período medieval, junto do que era proposto pelos renascentistas.
Esse momento de dualismo conceitual frente ao mundo é caracterizado como o
Barroco, um estilo artístico e literário pós-renascentista, que mistura em sua
essência, elementos do Renascimento, com produções influenciadas pelo paganismo
e o sensualismo. Elementos das estruturas medievais de traços arcaizantes, típicos da
Contra-reforma, emancipados pelo clero do século XVII, revelam uma forte
religiosidade, que faz lembrar o teocentrismo medieval. A estética barroca estende-
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se à literatura, à religião, à pintura, escultura, arquitetura e à música produzidas
durante todo o século XVII, assim como serve de base para a construção de outros
discursos como o filosófico, o político e o religioso.
Chagas, fruto do contexto Barroco, possuía uma sensualidade e uma imaginação
criadora, que lhe permitiu fundir imaginação e sentidos em suas Cartas Espirituais,
que se manifestam como um veículo de transmissão de valores morais e espirituais
utilizado para comunicação com religiosos de seu convento e com seus irmãos da
Província de Algarves. Nas Cartas, materializadas na língua portuguesa em uso,
podemos perceber dualidade entre o sagrado e o profano, tensão religiosa,
racionalização da fé, uso de figuras semânticas, sintáticas e fônicas, todas advindas
do estilo artístico barroco.
2 Imagem autoral e Gênero de discurso
Por muito tempo, as Ciências da Linguagem trataram a questão da autoria
exclusivamente por enfoques literários; entretanto, dada a influência da AD, que
procura entender o processo de construção de sentidos em situações reais de uso da
linguagem, passam-se a legitimar novos territórios de estudo, o que, na atualidade,
nos permite inserir a autoralidade como parte constitutiva da discursividade. Pela
AD, podemos examinar as práticas sociais e refletir sobre o gênero de discurso carta
e a categoria de imagem autoral; por isso, faz-se necessário buscar uma noção de
autoria e de imagem autoral que subsidiem a análise da Carta IV de Cartas
Espirituais de Chagas.
Em Bakhtin (1992), identificamos a reflexão acerca da autoria, observando-a em
discursos literários. Para o autor, o homem é o centro do conteúdo-forma da
organização de uma visão artística e agrega valores concernentes ao mundo em que
ele habita. Esse homem citado por Bakhtin é identificado na obra e na prática social,
e isso pressupõe a afirmação de que se trata de uma instância autoral constituída
pelo enunciador do discurso literário e por uma representação encenada pelo sujeito
produtor.
Bakhtin compreende, de um lado, que o sujeito produtor possui uma posição ativa e
participante em seu meio e lida com componentes desse acontecimento; logo, sua
produção discursiva será parte desses acontecimentos. Ser autor é, de um lado,
assumir uma função de autor, que deve ser avaliada em detrimento dos valores de
mundo em que o escritor se insere. Por outro lado, para Maingueneau (2010), a
presença/encenação do escritor não é uma atividade que fica fora do texto, mas é
constitutiva a ele. Para tanto, sistematiza a construção da instância autoral a partir de
três dimensões: o garante, o autor-ator e o auctor.
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O garante é aquele que assume a responsabilidade de um discurso na cena
enunciativa, está nas entrelinhas da enunciação, mas também pode aparecer
explicitamente no título, na epígrafe ou no prefácio, entre outros lugares textuais.
Pensa-se no entremeio de um narrador e um autor implicado. Segundo
Maingueneau (2010, p.141): (...) o garante opera na fronteira: não é o enunciador
do texto nem um indivíduo de carne e osso, mas uma instância híbrida que frustra
essa distinção.
O autor-ator reflete em um autor consolidado pelo estatuto social, aquele que
organiza uma trajetória de produção enunciativa, aceito por terceiros e estereotipado
historicamente e, segundo Maingueneau, pautado apenas na instância de produção
textual, em proximidade com uma carreira. Essa instância se constitui como a
manutenção do estatuto social de ser autor de determinado gênero e está restrito à
representatividade do autor frente às instâncias sociais, que o influencia e condiciona
às coerções interdiscursivas no discurso produzido.
O auctor é o responsável por um grupo de textos identificáveis, que caracterizam
uma linearidade estilística e autoral do autor. Deve ser reconhecido e autorizado por
terceiros e é comumente consolidado, quando o autor ganha notoriedade social. Não
só o autor precisa garantir uma imagem compatível e perceptível entre um discurso e
outro, como deve ser validado por terceiros, para que uma obra se consolide. Tal
instância está relacionada à percepção do outro frente ao autor. Segundo
Maingueneau (2010, p.142): (...) para que um indivíduo seja plenamente ``auctor``,
é necessário que terceiros o instituam como tal, mediante a produção de enunciados
sobre ele e sobre sua obra, em suma, conferindo-lhe uma imagem de autor.
Na confluência das três instâncias acima referidas é que se consolida a Imagem
autoral. O autor constrói uma apresentação e uma imagem de si dentro do processo
enunciativo e, como ministro de uma determinada instituição, consolidará a base de
valores contextuais de seu discurso.
O autor, nessa perspectiva, deve ter participação autorizada no processo enunciativo,
e essa autoridade deverá soar, em uníssono, com o que ele representa nas instâncias
sociais, estabelecendo os domínios, que um dado escritor possui na sociedade e o
posicionamento que ele adquire diante dela. Segundo Maingueneau (2010, p.28):
Uma produção verbal, parece, não ser ´autorizável´, isto é, atribuível a um
autor, a não ser que ela seja objeto de uma representação que permita
enclausurá-la, apreendê-la do exterior, como um todo, de maneira a atribuíla a uma entidade escolhida entre um conjunto de candidatos possíveis,
colocada como seu responsável.
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Assim, por se tratar a função-autor de um imbricamento entre sua participação no
processo enunciativo e nas instâncias sociais o qual faz parte, compreendemos que
para examinar a construção da imagem autoral em uma das cartas de Chagas,
necessitamos refletir sobre a construção do gênero do discurso carta espiritual.
Para Bakhtin (1992, p.279), os gêneros do discurso são tipos relativamente estáveis
de enunciados, e isso nos leva a propor um estudo discursivo de Cartas Espirituais,
considerando a categoria de gênero, bem como sua relação com o linguístico e o
social. Assim, os gêneros do discurso possuem três dimensões que se fundem
indissoluvelmente no todo do enunciado: o tema, a estrutura composicional e o
estilo.
O tema é o assunto do qual o enunciado irá tratar. A estrutura composicional referese aos elementos textuais, discursivos e semióticos, que podem compor um
enunciado e engloba, ainda, os efeitos de sentido que o enunciado promove
socialmente. O estilo marca a coletividade do enunciado produzido, a partir de um
campo discursivo e de um instante sócio-histórico em que o discurso se insere.
Para Maingueneau (1997), os gêneros do discurso são dispositivos sociais de
enunciação do discurso, é uma realidade empírica resultante da articulação entre a
organização textual e o fenômeno social.
3 Análise
Selecionamos, como material linguístico para a prática analítica da constituição da
imagem autoral no gênero do discurso carta espiritual, a Carta IV, retirada do
volume I de Cartas Espirituais de Frei Antonio das Chagas. Propomos identificar
como se constitui o gênero de discurso carta, dada a interação entre enunciador e coenunciador na prática social religiosa do século XVII. Identificamos que o gênero
assume uma instância reguladora desse discurso, assim como a imagem autoral, que
emerge da enunciação e é legitimada na confluência das ações sociais, no processo
enunciativo.
Como todas as produções de Chagas, a Carta IV é um veículo de comunicação que
propicia a transmissão de valores espirituais, linguísticos e literários, pois
observamos nela a interação entre o homem e o mundo, por meio da língua em uso,
no século XVII. A Carta de Chagas materializa os paradigmas de orientação
espiritual seiscentista, tendo o sujeito enunciador espaço privilegiado de
comunicação, dada as condições sociais de cada envolvido na enunciação: de um
lado, aquele que orienta é um frei, de outro, o orientado religioso professo ou um
aspirante ao hábito conventual.
No funcionamento e na organização de nosso objeto de análise, observamos as
relações entre o material linguístico-enunciativo e as condições sócio-históricas de
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produção como lugar das restrições discursivas e das configurações textuais. Cartas
Espirituais são produções particulares para cada co-enunciador, o que nos permite
compreender que, as escolhas enunciativas que o enunciador faz para conseguir a
adesão do co-enunciador, possuem referência direta ao indivíduo social e suas
práticas diárias. Observamos, também, algumas condições decorrentes desse
primeiro tópico de nossa pesquisa, que compreendem as condições sociais da Igreja
Católica e a influência da Arte Barroca nos diapositivos estéticos de discursos
religiosos seiscentistas, principalmente no que diz respeito à legitimidade do ponto
de vista do enunciador, quando quer garantir a adesão de seu co-enunciador.
A carta que selecionamos se constitui pela/na interdiscursividade marcada pelos
campos da teologia medieval, da religião e da literatura, o que nos permite entender
o cotidiano do século XVII português.
O discurso que analisamos a seguir apresenta em sua organização uma epígrafe,
saudação inicial, orientações e reflexões, saudação final, data e despedida. Com
marcas de pessoalidade e influências do lugar o qual enuncia, percebemos, no
interior da enunciação, que tanto o enunciador quanto o co-enunciador caracterizamse como instâncias, que legitimam papeis provenientes da prática social.
Vamos diretamente ao discurso de Chagas:
Carta IV
A huma de suas irmaãs, antes de ser Freira.
O amor de Deos more, e arda em vosso coraçaõ.
Minha irmaã, e Senhora. Vós sois hum pouco de pó, e cinza, huma pouca de terra estéril, e cheya de
espinhos, e hum sacco de podridão, hoje que pareceis melhor. E daqui a pouco, esterco, e mantimento
de bichos. E nada tendes de vosso, mais que peccar, e não saber agradecer a Deos os favores, que vos
faz. Tudo que em vós sentis do amor de Deos, são obras de seu amor. E Deos o que está fazendo em
vós, póde fazer em qualquer creatura, que melhor lho agradecerá por seus altíssimos juízos mostra
que vos quer bem, e que vos ama a vós, ao mesmo tempo que na redondeza do mundo deixou outros
muito melhores que vós, e de melhores inclinações. E neste conhecimento haveis de ir sempre, para
que não percais humildade, que He o alicerse de todas as virtudes. E quanto mais esta se mette por
baixo da terra, conhecendo a sua vileza, e a sua ingratidão, tanto mais sabe crescer, e entra pelo Ceo o
amor de Deos, que mora nos humildes de coração, mais que em todos e para saber isto como He,
tende sentido bem no que vos digo.
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A Graça de Deos, e o Amor de Deos, He a natureza, e o ser de Deos, que todo He Amor, assim como
nós somos Corpo, e Alma. E daqui vem, que quem vive em graça, e em amor, vive em Deos, e Deos
vive nelle, e Deos He o que obra nelle. E porque como então a creatura participa da Divina Natureza,
assim como a vide, que vive unida á cepa, della recebe o succo, e o humor, de que vive, e de que dá
fructo: assim a creatura unida com seu Creador, vive, e respira os alentos da Graça Divina, que com
Ella cresce cada vez mais, e dá fructo de boas obras. E como a Graça, e Amor de Deos, He infinito;
logo que o creatura tem alguma cousa della, ferve, e deseja ardentemente sahir de si toda, e chegar-se
aquelle infinito senhor, como a panella, que tem grande fogo, este sobre em cachões fora da panella, e
se deseja ir, e sahe. Porque aquelle calor de fogo, que entrou na agoa, deseja unir-se com o fogo, que
está fora, que He o seu centro; e deseja também deitar fora toda a agoa, que lho impede que isto He a
nossa vida, e a panella nosso corpo, e a quentura o Amor de Deos, de que as fervuras nascem. He
necessário saber isto, para que quando huma Alma se sente cheya de amor, que He o melhor que pode
ter neste mundo, saiba que aquelle amor, ou aquella fervura, não nasceo da agoa, que bem fria He por
natureza, nem do barro do nosso corpo, que bem grosseiro He também; mas que so nasceo do amor
de Deos, que em nos se ferve de fazer maravilhas para sua gloria; e para que nos favores espirituaes
perca esta carne mortal as suas friezas, e se purgue das immundicias, que tem antes de cozer-se, e
depois se tempre com as virtudes. E ultimamente quando parece que arrefece, se componha com a
vontade de Deos, que já quer gostar della. Desorte, que o nosso ponto até aqui não He mais que
conhecermos bem, e verdadeiramente que Deos He o que obra, quando obramos bem, e não nós: e
que não cuidemos que He humildade dizer, que Deos obra em nós, senão conhecimento certo, que
então He só certo, quando nos conhecemos. E conhecer isto, não He humildade, senão verdade certa,
e conhecimento verdadeiro de nossa vileza.
Segue-se agora tratarmos de como huma pessoa, que pela Graça de Deos se sente já fora do Mundo,
sentindo-se sem outros desejos que os desejos do Amor de Deos, como se alongará mais do Mundo.
Porque muitos deixao o Mundo. E para isto, basta fugir de suas vaidades. Mas não se alongao muito,
porque não chegao a solidão: isto He, solidão de espírito. E solidão de espírito nenhuma outra cousa
He mais, que viver so com Deos. Porque assim como a solidão He huma cousa tão só, que nella não
vive ninguém: assim a solidão do espírito He tão solitária, e so, que não acha nella mais que Deos, e
fica a Alma feita hum deserto, os sentidos hum hermo, onde Deos, como acha sozinha a sua creatura,
vem logo fallar-lhe ao coração, e em ardentes suspiros, e abrasados desejos de se unir com Deos, que
He o seu principio, donde sahio, a fonte donde nasceo, a origem donde manou, e o centro, onde
finalmente aquieta, quando nele se recolhe, e se mette e se entra de todo, para, depois de estar mettida
nelle, se estender pela immensidade daquelle ser infinito, para se alargar naquelle pego de amor, para
arder naquelle mar de luz, para se darramar, e transformar de todo naquele summo bem, sobre
infinito, sobre admirável, e sobre eterno. Para isto He necessário que vivamos sem creaturas na
Memoria, sem discursos no Entendimento, sem outro amor na Verdade, mais que o Amor de Deos: e
que juntamente andem sempre os sentidos como pasmados nas maravilhas de Deos, em tudo o que se
puzer diante do sentido em oração continua. Na oração particular He necessário que agora entremos.
De dous modos vemos a Deos, e de dous modos He a visão de Deos: huma He visão clara, e esta só a
tem os Bem-aventurados no Ceo: outra se chama visão obscura, e esta a tem os que no Mundo chegaõ
a fazer actos de Fé. Este acto de Fé não He mais que dizer huma creatura com todo seu coração: Meu
Deos, eu creyo de todo meu coração, que vós estais aqui dentro de mim, fora de mim, sobre mim, e
ao redor de mim. E logo crer isto sem duvida nenhuma, e não por a cuidar como elle alli esta: que isto
então He meditação, senão crer, e crer, que quanto menos isto se cuida, e menos se considera, então
se crê melhor. Porque em vós crendo que Deos está em vós, e comvosco, sem saber como, e que vos
está como espreitando, logo vos accendeis em amor, que He o maior bem de todos, melhor que ter
visõe, e extasis, e revelações: que isto tudo se pode ter em peccado mortal. Só o amor de Deos se não
pode ter, senão em Graça. Antes importa muito ás pessoas espirituaes, que totalmente tirem de si o
desejo de visões, e consolações. Porque He golozina espiritual. E em quanto a creatura não chega a
união de Deos, aindaque se dera caso, que vos apparecera hum Cristo crucificado, tínheis obrigação
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de duvidar se o era, e de lhe dizer: Senhor, não He isto o que eu quero, nem desejo: o que quero He,
que se faça em mim a vossa vontade: e tratar de vos pôr na solidão; isto He dizendo: Deos na minha
memória, Deos na minha Vontade, Deos no meu Entendimento, e nada mais. E como a solidão do
espírito He nada, He necessário por-vos nesse nada desse modo: nada quero, nada desejo, nada tenho,
nada mereço, nada procuro mais que o amor de meu Senhor Jesu Cristo. E isto vos encommendo
muito. Porque neste nada, e na solidão, com que se diz: Deos na minha vontade, e nada mais, etc. está
quase toda a chave do jogo. E a razão He: porque Cristo não esta sempre comvosco, quanto á
Humanidade, tanto a deveis querer mais. Porem sempre convem que comeceis pela vida de christo. E
sabei, que agora estais no Cabo da Boa Esperança: que isto são as sequidões, froxidoes, e mais
impedimentos do espírito. Se passares adiante, vivereis em altíssimos favores de Deos, e vivereis
nelle, e andareis por cima dos Ceos. Se vos deixares vencer das froxidoes, desgostando, e apartandovos da Oracao, perdereis a Deos, e perdereis tudo. Por isso, aindaque não seja mais que offerecer a
Deos o tempo, convem que lhe offereçais semppre as horas, que costumais ter de Oração. Sobre
aquillo do convento, cedo nos veremos, e então fallaremos. Bem me parece isto. Porque He sinal de
matrimonio espiritual, que He o mais alto estado, a que se chega no Mundo. He sinal; porque assim
como huma pessoa, que se casa, deixa pay, e may, como dizia Christo, pelo seu Esposo: assim quem
casa com Deos, que deixa por elle tudo, dá mostras de que Deos a quer furtar, e cazar-se com Ella.
Mas sobre isto falaremos. E o que importa, He fazer agora esses exercícios todos os dias, começando
sempre por Christo, ate que nos vejamos. Sobre a resa, me parece bem que rezeis as vossas
obrigações, e que vos não canceis em ter o sentido na resa, senão em Deos. E melhore resareis assim,
e não vos fará nenhum impedimento deste modo. Por isso resai em todo o caso, cuidando so em
Deos, e passando-o pela resa. Antes que entreis na Oração, fazei muito por dizer estas palavras com
devoção: Meu Deos, e meu Senhor, se pudera vir aqui com a pureza da Virgem Santíssima, Senhora
Nossa, essa fora a minha alegria. Se pudera vir com o amor de todos os Serafins, e com a reverencia,
e louvor de todos os Anjos do Ceo, essa fora a minha bem-aventurança. Se aqui trouxera o mesmo
amor, com que vós vos amais, essa fora a minha gloria. Se de todos os corações do mundo pudera
fazer hum so coração, eu vo-lo dera, meu Deus, e so para vos o quisera. Se de cada areya do mar, de
cada estrella do CEO, de cada argueiro da terra, de cada hervinha do campo, de cada folha das
arvores, de cada letra dos livros pudera fazer mil Mundos de Almas, mil Reynos de Vidas, mil mares
de corações, mil ceos de espíritos, todos, meu Deos, meu Amor, forao poucos, e me parecerão
limitados para entregar-vos, e render-vos. Se fora Deos, como vos sois, vos adorara por meu Deos, e
andara fazendo sempre creaturas, que vos adoraro, córos de Anjos, que vos louvarão, templos, em
que vos servirão, e Almas, que vos amarão. Se fora o mesmo, que vos sois, deixare de ser Deos,
porque vos o fosseis, e me contentara, pondo-me a vossos pés, com que huma vez amorosamente
puzesseis em mim os vossos olhos, e me não quizesseis mal. Meu Deos, e meu Senhor, se me derais
licença que nesse Ceo furtasse alguma cousa, nem a Gloria furtaria, nem a Bemaventurança: só huma
cousa furtará, e esta He o vosso amor, a todos os Anjos, e Serafins, a todos estes Espiritos
Bemaventurados deixaria eu Bemaventurados, mas o amor, que vos tem, havia de furtar-lho. Nem a
Virgem vossa May escaparia, de que eu para vos amar ardentissimamente lhe furtasse também o
amor. Daí-me vosso amor, meu Deos pay, daí me huma migalha de amor a esta pobrezinha, que vo-lo
pede de esmola por amor de meu Senhor Jesu Christo. Daí-me vosso amor, meu Deos Filho. Daí-me
vosso amor, meu Deos Espirito Santo. Amen. Deos vos guarde. Coimbra, 2 de janeiro de 1664.
Irmao, e Amigo d´alma.
Frei Antonio das Chagas.
Constatamos que a Carta espiritual IVinicia com a seguinte epígrafe:
Recorte 1
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O Amor de Deos more, e arda em vosso coraçaõ;
A epígrafe tem como função situar o co-enunciador no lugar institucional do
discurso e, para isso, propõe uma manobra interdiscursiva em que se retoma o
discurso teológico medieval, a partir de uma estratégia estética típica dos cultores
barrocos. Identificamos que tudo que será enunciado, após a epígrafe, é conduzido e
direcionado por um sistema de coerções que determina o discurso como pertencente
ao campo religioso. A epígrafe pressupõe efeitos de sentido submetidos a uma
espécie de filtro, que estabelece um lugar de pertencimento reconhecido pelo coenunciador.
Por se tratar de um discurso institucionalizado como religioso, há, na epígrafe, a
validação do estatuto do enunciador e do co-enunciador. O enunciador assume o
papel daquele que detém o poder de mediação entre a instância divina, no caso
Deos, e o co-enunciador. Os enunciados da epígrafe buscam mobilizar o aparelho
enunciativo, elevando o enunciador ao status de porta-voz de uma entidade maior,
ou seja, de um SUJEITO-UNIVERSAL divino. O co-enunciador, por sua vez, é
projetado na enunciação como um receptor passivo na mediação, crente e consciente
de sua passividade e dependente da mediação do enunciador. Essa relação, se não
for realizada, implica o comprometimento da prática social desse gênero.
O papel que assume o enunciador durante o processo enunciativo também é autoral.
No enunciado O Amor de Deos more, e arda em vosso coraçaõ a maneira de dizer,
ou seja, o estilo que o enunciador utiliza para realizar sua orientação, coloca-o como
um autor-responsável, que se destaca dos demais orientadores espirituais, por
romper, na interação com o co-enunciador, a relação de poder que tem, enquanto frei
orientador e doutrinador, sobre o orientado. Ao utilizar como categoria gramatical o
pronome vosso, de forma singularizada, o enunciador dirige-se diretamente a seu coenunciador na condição de quem necessita do Amor de Deos. Não podemos ignorar
que o estatuto do enunciador e, consequentemente, sua imagem autoral, tornam-se
constituídos pelo lugar institucional que ele ocupa. Assumindo a representação
social de frei, o enunciador está autorizado na prática social a exercer o papel de
mediador entre Deos e o co-enunciador fiel e, ainda, ser o direcionador das
represálias institucionais, que recaiam sobre aqueles que pecavam. Contudo, mesmo
que o papel assumido pelo enunciador garanta a legitimidade ao enunciado de
epígrafe, que só pode ser outorgado pelo enunciador autorizado institucionalmente,
há uma maior adesão do co-enunciador, frente aos demais orientadores espirituais,
no momento em que ele subverte a autoridade do papel de orientador, revelando-se
igual diante de seu orientado.
A inversão de um sentimento realizando a ação sob alguém e não alguém sentindo o
Amor de Deos é uma marca do estilo cultista do Barroco seiscentista, que subverte o
que é regular na prática social para destacar uma formação discursiva determinada.
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A opção estética se dá com o intuito de valorizar a influência de Deos sobre o fiel, o
que possibilita uma interdiscursividade com a teologia medieval, proposta, dentre
outros filósofos, por Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. O fato de Amor de
Deos ser sujeito da ação nos leva a refletir que Deos é quem age pelo fiel, que o fiel
é meio pelo qual Deos se manifesta, ou seja, é parte de um todo. Esses argumentos
fazem parte do paradigma teológico e espiritual da época, uma vez que veiculava o
pensamento que o indivíduo era, desde o seu nascimento, predestinado por Deos, eo
livre-arbítrio consistia em cumprir as missões pelas quais Deos determina ao
indivíduo, para cumpri-las bem em sociedade. Como o indivíduo é dependente da
graça, do julgamento e do Amor de Deos,já no início da orientação, o enunciador
marca essa necessidade do homem com Deos e não de Deos com o homem.
A expressão Amor de Deos compreende o Amor que Deos sente pelas coisas e pelos
seres. Deos, na perspectiva do homem seiscentista, é onisciente e onipresente, pois
tudo passa por sua ciência e julgamento. Deos, para os fiéis, ao abençoar e punir,
não é mal nem parcial, pois realiza todas suas ações sob o sentimento de Amor e
justiça divinas. As punições pelas quais o fiel é submetido são boas para Deos e,
consequentemente, boas em sua essência, mesmo que o fiel não as compreenda
dessa maneira. O ser mundano tem, para os religiosos, uma visão limitada sob o
julgamento e o amor de Deos.
A seguir, identificamos que a Carta IV apresenta a seguinte saudação:
Recorte 2
Minha Irmaã, e Senhora.
Com a finalidade de iniciar as orientações e reflexões e referenciar e identificar o coenunciador, na cena enunciativa, a saudação inicial surge como uma adjetivação,
que engrandece o co-enunciador e aproxima-o intimamente do enunciador.O
enunciador refere-se ao co-enunciador como Minha Irmaã, o que nos possibilita
uma dupla construção de efeitos de sentido: primeiramente, remete-nos a ideia de
irmã como parente, membro familiar, haja vista que Chagas foi orientador espiritual
e responsável pela entrada de suas irmãs na Ordem de São Francisco. Todavia,
também nos possibilita a leitura de irmã como a mulher, que realizou votos
religiosos cristãos, e como todo cristão é filho de Deus; compreendem-se por irmão
e irmã todos os religiosos cristãos.
Tal problemática é difícil de ser validada com exatidão, haja vista a dificuldade em
se objetivar a identidade do destinatário da carta em análise. Contudo, pelo que é
enunciado no decorrer das reflexões e orientações, a carta IV desenvolve-se
diretamente pela temática da doutrinação dos valores e passos a serem seguidos,
com a finalidade de alcançar o sucesso cristão. A segunda leitura tem a possibilidade
de englobar também a primeira hipótese de sentido ao item lexical escolhido pelo
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autor. A Irmaã aque se refere o discurso está presente de alguma forma ao contexto
da vida religiosa.
O tratamento de irmaã para se referir ao co-enunciador também contribui para a
construção de uma imagem autoral do enunciador. O enunciador estabelece uma
relação de igualdade com sua aconselhada, ao apreendê-la como irmã, uma vez que
superior a ambos, somente Deus simbolizado como o pai. Ainda, o item lexical
irmã, além de pertencer ao campo da religiosidade, também faz parte do campo
discursivo da familiar e, ao refletirmos que o gênero do discurso, em análise, é uma
carta particular, endereçada a um remetente específico, o termo irmaã reforça a
imagem autoral de um religioso, que se coloca tão íntimo de sua aconselhada, que a
consideração por irmã é maior do que a simples polidez de um tratamento
institucional.
O enunciador complementa sua saudação com o tratamento Senhora. O uso deste
tipo de tratamento implica a referência de Chagas por um co-enunciador que ocupa
determinado lugar social de destaque na sociedade. Os efeitos de sentido decorrentes
do léxico Senhora nos remetem, em primeiro lugar, ao tratamento de mulher casada.
Isso se comprova, se observarmos, no funcionamento discursivo que a orientação,
que se pretende, destina-se a alguém que almeja o lugar institucional de religiosa, de
freira; neste sentido, o co-enunciador não constitui a instância de uma pessoa casada.
Em segundo lugar, o tratamento por Senhora revela certa condição social da mulher
à qual se destina o discurso, já que na sociedade seiscentista tratar alguém por
Senhora é elevar e respeitar o que este indivíduo representa socialmente,
recuperando a relação de suserania e vassalagem medieval: aquele que enuncia
Senhora posta-se submisso a quem co-enuncia.
No desenvolvimento das reflexões e orientações do enunciador, identificamos que o
discurso é enunciado em um único parágrafo, que desenvolve e conclui o tema
proposto. O enunciador realiza uma introdução ríspida, de advertência, como
podemos observar no recorte abaixo:
Recorte 3
Vós sois hum pouco de pó, e cinza, huma pouca de terra estéril, e cheya de espinhos, e hum
sacco de podridão, hoje que pareceis melhor. E daqui a pouco, esterco, e mantimento de bichos. E
nada tendes de vosso, mais que peccar, e não saber agradecer a Deos os favores, que vos faz.
O enunciador propõe orientar, espiritual e institucionalmente, um co-enunciador,
que almeja iniciar a vida religiosa missionária. O discurso é constituído por
enunciados, que marcam o valor da vida do homem e sua representatividade
enquanto sujeito individual, autônomo e antropocêntrico. Por referir-se ao corpo e
não à alma humana, o enunciador tem como pressuposto diminuir o valor da vida
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mundana do fiel e reforçar a necessidade do co-enunciador em unir-se ao divino
espiritual e institucionalmente, com o intuito de engrandecer a alma.
O enunciador condena as condições do homem enquanto ser social, ao passo que o
coloca como inferior à figura de Deus, em dívida com o divino durante toda a sua
existência humana. Procura produzir, no funcionamento discursivo,uma imagem do
religioso submisso e inferior a todos e a Deus, posto que o argumento principal da
carta são os votos de humildade. Ainda, ao propor a metaforização do homem como
terra estéril,cheia de espinhos, e pó e cinza, o enunciador propõe, a partir de um
jogo de ideias típicas do cultismo Barroco,o desapego que tem da materialidade do
mundo, compreendendo-as como efêmeras e passageiras. O conselho do enunciador
é que o co-enunciador aproxime sua vida dos passos e da vontade de Deos,conforme
disciplina a Igreja Católica, pautada na Teologia em vigência, particularmente, no
período medieval, por meio do Amor a Cristo. Para o enunciador,a dedicação à vida
espiritual é a única salvação do espírito das impurezas da vida mundana, que o
transforma em terra estéril, cheia de espinhos. O homem mundano é passageiro e
suas proezas e realizações no mundo social serão julgadas divinamente. O
enunciador compreende em sua orientação que Deus é o caminho da salvação do
homem e de sua vida de pecados.
As ações que se desenrolam no corpo do texto tem como função a comoção do coenunciador, almejando sua adesão à instituição religiosa representada pelo
enunciador. A doutrina moral presente no discurso, em tela, centra-se na busca de
adesão do co-enunciador a um ponto de vista específico acerca da cosmo visão,
segundo as coerções do enunciador, que representa um pensamento
institucionalizado e muito comum à Igreja Católica seiscentista. No entanto, a
enunciação só atingirá o efeito de sentido proposto, se a instância enunciativa
emanar de uma autoria de responsabilidade, confluente na enunciação e na prática
social. Os enunciados serão legítimos em concomitância com a instância autoral, que
emerge na confluência do discurso com a prática social e que define o enunciador
como autor-responsável daqueles enunciados, ou seja, digno e autorizável a dizer o
que diz. O enunciador valida sua imagem autoral na enunciação, ao mostrar-se
conhecedor da filosofia teológica medievalista, e na prática social, ao possuir a
função social de frei e a permissão do dizer que a instituição Igreja Católica que lhe
concede tal ministério. Soma-se a esta autoridade presente no discurso, o tratamento
íntimo que o enunciador oferece ao co-enunciador nos enunciados já analisados. Por
este olhar, vemos constituída uma imagem autoral de alguém que detém
conhecimento da verdade teológica, religiosa e espiritual, na medida em que busca,
mesmo com palavras penitenciosas, o bem do co-enunciador.
Essa mesma imagem autoral é mantida no Recorte 4:
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Recorte 4
A Graça de Deos, e o Amor de Deos, he a natureza, e o ser de Deos, que todo he Amor,
assim como nós somos Corpo e Alma. E daqui vem, que quem vive em graça, e em amor, vive em
Deos, e Deos vive nelle, e Deos he o que obra nele.
A Graça de Deos e o Amor de Deos são associados à natureza. A finalidade dessa
associação é exemplificar como o co-enunciador deve compreender a fé em Deus e a
necessidade de torná-la exterior no trabalho missionário.
Graça aproxima-se ao dom de Deus que eleva o homem ao estado sobrenatural de
santidade, ou assemelha-o a esse estado. Compreende, também, a prática do bem,
das palavras e dos atos de Deus por parte do fiel. Amor tem como pressuposto o
sentimento predisposto de desejar o bem do próximo, com afeto, apego e dedicação,
que, composto em Amor de Deos, remete a uma inclinação emotiva que o coenunciador deve ter pelo divino que lhe deseja o bem. O Amor e a Graça de Deos
estão relacionados ao sentimento de adoração, veneração e devoção a Deus e,
quando associados à natureza por comparação, o enunciador propõe que as
condições necessárias para o trabalho missionário e o enriquecimento espiritual do
co-enunciador são naturais, ou seja, regulados por fenômenos universais e
inquestionáveis, inato e inerente a si mesmos, que dependem apenas da vontade e da
atuação humana, para despertá-los. Isso tudo representa, além do paradigma
teológico medieval, o institucional religioso seiscentista.
Associar a Graça Divina e o Amor de Deos à natureza é reforçar o pensamento
teocêntrico de que tudo está suscetível e centralizado na vontade divina. A
associação reflete uma oposição ao cientificismo do século XVII, que busca
distanciar e dissociar o divino dos fenômenos naturais e sociais, compreendendo o
meio e a sociedade de forma mais racional do que metafísica. Essa dupla perspectiva
de observar a fé provoca uma antítese que percorria o cerne do homem seiscentista e
revela características do pensamento Barroco. Muitos cientistas do século XVII
eram rotulados de pecadores imorais por negarem, em suas pesquisas, a associação
de um fenômeno natural ou a relação de uma lei institucional com o divino.
Destacam-se pensadores como Maquiavel, Descartes, Spinoza, Leibniz, dentre
outros, que polemizaram a relação natural/divino, que edificou o pensamento
teológico medieval.
Na proposição de um jogo de ideias, muito comum à estética Barroca seiscentista, o
enunciador constrói, no Recorte 4, um raciocínio lógico com a finalidade de
provocar a adesão do co-enunciador. Pautado nos pensamentos da Teologia
medieval, dos quais destacamos São Tomás de Aquino e Santo Agostinho,
identificamos que o enunciador, ao relacionar a Graça de Deos e o ser de Deos com
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o Corpo e a Alma dos homens, incluindo-se, afirma que tanto Corpo quanto Alma
são necessários ao trabalho de fé. O corpo, para o enunciador, é meio pelo qual a
alma executará as boas ações de fé e as funções preestabelecidas pela instituição
Igreja Católica, em nome do divino. Todavia, não é apenas o jogo de ideias que irá
garantir a adesão do co-enunciador ao discurso enunciado, mas a legitimidade que
esse discurso carrega na prática social seiscentista: o enunciador tem conhecimento
da base filosófica que regula o funcionamento institucional da Igreja Católica. O fato
de realizar uma comparação que facilita a visão de seu co-enunciador, para a
compreensão do discurso, reforça a noção de que o enunciador domina o discurso
institucional e teológico e com humildade, esforça-se, o máximo possível, para se
fazer entender. Os elementos destacados possibilitam a emergência de uma instância
autoral que influencia na legitimidade desse discurso.
Na carta em análise, encontramos a seguinte finalização:
Recorte 5
Dai-me vosso amor, meu Deos Espirito Santo. Amen. Deos vos guarde.
A finalização associa-se diretamente com os temas desenvolvidos nas reflexões e
orientações constitutivas da enunciação da carta em análise. Identificamos que o
enunciador se coloca, novamente, em situação semelhante a de seu co-enunciador
diante de Deos, ao utilizar o pronome oblíquo vos e o pessoal meu. Os pensadores da
Teologia medieval compreendem que todos, diante de Deos, são iguais por
carregarem o pecado original, mas distinguem-se pelas funções que executam e que
são determinados na vida mundana.Trata-se, então, de destacar, no instante de
finalização do discurso, o engrandecimento da fé e a confiança no poder da oração
para o outro, centrado sempre no Amor de Deos.
O enunciador objetiva, com a finalização, mostrar ao co-enunciador a necessidade
de manter-se em ligação com Deos em todos os trabalhos missionários e
institucionais que realizar. O cumprimento dessas funções acarreta o
engrandecimento espiritual do co-enunciador e no seu caminho para o Reino dos
Céus. Novamente, observamos a interdiscursividade que o gênero realiza tanto com
o campo teológico medieval, na perspectiva de centralizar Deos em todos os atos
mundanos, quanto ao campo da literatura e da língua portuguesa no Barroco, por
incidir, naquele tempo histórico de grande dualidade, um ponto de vista
determinado: o homem sujeito à fé e não à razão e aos próprios juízos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Por nossa pesquisa fundamentar-se nos estudos enunciativo-discursivos da
linguagem, ao término dessa pesquisa observamos que a Carta Espiritual IV,
selecionada para este artigo, é passível de ser tomada como prática discursiva
institucionalizada do discurso religioso e literário. As cartas espiri
tuais são gêneros de discurso e apresentam como pressuposto orientar e doutrinar o
posicionamento de fiéis e religiosos aos paradigmas da Igreja Católica e da
espiritualidade cristã seiscentistas. O enunciador, inserido em um lugar social,
interage enunciativamente com um co-enunciador que, também, possui
especificidades socioculturais, com a finalidade de convencê-lo de que a orientação
epistolar detém direcionamentos que solucionam as inquietações da vida cotidiana
do homem seiscentista.
Tanto o enunciador como o co-enunciador são instâncias que influenciam e são
influenciadas pela instituição a qual se filiam e representam. O gênero de discurso
carta institui um padrão de orientação epistolar que, além de cumprir com o dever
missionário de um frei, ao orientar seus fiéis, pode substituir, na prática social, a
orientação confessionária pessoal. O enunciador, distante de seu orientado, por meio
da Carta mostra-se próximo, íntimo e amigo de um co-enunciador, que lhe pede
orientações, necessita de suas palavras para resolver tanto questões do espírito
quanto incômodos sociais e pessoais.
Na verdade, não é apenas a relação dos campos da religiosidade da teologia que
enfatizamos como espaços discursivos de embate na amostra selecionada. Ao
refletirmos acerca da imagem autoral, que emerge no discurso,como fruto da
interação entre o enunciador e o co-enunciador, vimos que há evidências estéticolinguístico-discursivas que legitimam a carta selecionada como pertencente ao
Barroco português. No processo enunciativo, o enunciador exerce o papel social,
que lhe é instituído, sendo o missionário que busca, pela autoridade institucional e
pela aproximação pessoal, a adesão do ponto de vista de seu orientado. Por se
destacar dos demais autores de cartas espirituais, devido às escolhas estéticodiscursivas, que caracterizam sua maneira, inovadora, à época, de enunciar o
discurso religioso, podemos validar Chagas como auctor de discursos possíveis de
serem localizados como Thesaurus da cultura Barroca seiscentista, ao lado e, talvez,
acima de autores como Padre Manuel Bernardes e Padre Antonio Vieira, que
utilizam da estética barroca para realizar orientações institucionais e espirituais.
Por fim, os resultados apresentados nessa pesquisa não se findam, mas permitem a
abertura de uma vereda ainda não explorada nos estudos enunciativo-discursivos
acerca da relação entre autoralidade e gêneros do discurso em Cartas Espirituaisde
Frei Antonio das Chagas.
REFERÊNCIAS
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i
Doutor em Letras (Semiótica e Linguística Geral) pela USP. Professor Titular do Departamento de Português e do
Programa de Estudos Pós-graduados em Língua Portuguesa da PUCSP.
ii
Mestrando em Língua Portuguesa pela PUCSP.
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