A ARTE DA GRAMMATICA DA LINGUA PORTUGUEZA,
DE ANTÓNIO JOSÉ DOS REIS LOBATO E O ENSINO DO
PORTUGUÊS NO BRASIL DO SÉCULO XVIII
JOSÉ PEREIRA DA SILVA (FFP-UERJ E ABRAFIL)
Introdução
Nossa intenção, com esta comunicação, é deixar mais clara a
relação entre a história da língua portuguesa e a história de suas gramáticas e de seu ensino, considerando-os como parâmetros da classe
mais prestigiada da sociedade em relação à da estrutura exemplar do
idioma em cada época.
Academicamente envolvido com a história brasileira do século
XVIII, tenho mostrado em outras oportunidades, as questões relativas à política lingüística e educacional do Marquês de Pombal, à imposição da língua portuguesa aos índios através do Diretório dos Índios, à influência de Verney expressa principalmente em seu Verdadeiro Método de Estudar e ao problema das abonações no Dicionário
de Bluteau relacionado com o nativismo que vicejava intenso nas terras do Brasil de Felipe dos Santos, de Tiradentes etc., adiando o sucesso do português sobre a língua geral para o século de D. João VI
no Rio de Janeiro.
Assunção (2000, p. 50) lembra que o estado caótico da aprendizagem da língua materna no século XVIII radica no desprezo pelo
ensino da gramática vernácula, visto que só com a reforma do ensino
feita sob a orientação de Pombal foi possível dar um importante salto
qualitativo.
Hoje, trago-lhes A Arte da Grammatica da Lingua Portugueza, de Antônio José dos Reis Lobato, como uma contribuição para o
estudo da história da língua portuguesa, que apresenta duas razões
que justificam a sua necessidade: “primeira, para se falar sem erros;
segunda, para se saberem os fundamentos da língua, que se fala usualmente”, lembrando ainda que “esta necessidade da gramática materna têm conhecido geralmente todas as nações cultas” (Cf. p. VII).
Uma gramática esquecida
Segundo o Professor Carlos Assunção (Op. cit., p. 9), a gramática é a armação estrutural da língua, pressuposto este que deveria levar os pesquisadores da lusofonia a não se esquecerem do seu estudo,
visto que foi ela o seu sustentáculo desde o século XVI.
Escrevendo sobre a doutrina gramatical de Jerônimo Soares Barbosa,
o Professor João Malaca Casteleiro, afirma que
O estudo dos gramáticos portugueses (salvo numa ou noutra exceção) tem sido bastante descurado entre nós, ao contrário do que
sucede com os gramáticos de outras línguas românicas (e não
só!).
E, no entanto, tal estudo seria importante sob diversos aspectos.
Em primeiro lugar permitir-nos-ia determinar a contribuição portuguesa para a História da Gramática, no Ocidente, que afinal se
confunde, em parte, com a História da Lingüística.
Em segundo lugar, este estudo representaria uma enorme contribuição para a História da Língua Portuguesa, na época posterior
ao século XV.
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Em terceiro lugar, tal estudo forneceria vários elementos para a
História da Metodologia e Ensino da Língua Portuguesa.
Em quarto lugar, o estudo dos nossos gramáticos permitiria redescobrir descrições de aspectos da língua portuguesa, inovadoras e fecundas, mesmo em termos de “Lingüística Moderna”.
(Casteleiro, 1980, p. 197, citado por Assunção, op. cit., p.
11)
A partir desta citação de Casteleiro, o Professor Carlos Assunção nos apresenta a edição crítica da Grammatica de Antônio José
dos Reis Lobato, quarenta vezes editadas em menos de um século (de
1770 a 1869), considerado por Leite de Vasconcelos (1929, p. 867)
como “um instrumento do Marquês de Pombal”. Referindo-se à política lingüística de D. José, através do Marquês de Pombal, escreveu
Jerônimo Soares Barbosa esta importante abonação relativa ao prestígio da Grammatica de Antônio José dos Reis Lobato na implantação da reforma do ensino do Marquês de Pombal:
(...) estabelecendo por toda a parte Professores Publicos de
Grammatica e Lingua Latina, e ordenando-lhes pelo Alvara de 30
de Septembro de 1770, que, quando em suas classes recebessem
os discipulos para lhes ensinar a dicta Lingua, os instruissem
primeiro na Grammatica Portugueza por tempo de seis mezes, se
tantos precizos fossem.
Para esta instrução se propunha então a Grammatica de Antonio
Jose dos Reis Lobato. (Barbosa, 1822, p. 56)
Para deixar mais clara a importância desta Grammatica e abonar documentalmente a base da política lingüística de D. José I de
Portugal, transcreve-se aqui parte do Alvará de 1770:
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EU ELREY. Faço saber aos que este Alvará virem, que em Consulta da Real Meza Censoria me foi presente, que sendo a correcção das linguas nacionaes hum dos objectos mais attendiveis para
a cultura dos povos civilizados, por dependerem della a clareza, a
energia, e a magestade, com que devem estabelecer as Leis, persuadir a verdade da Relegião, e fazer uteis, e agradaveis os Escritos. Sendo pelo contrario a barbaridade das linguas a que manifesta a ignorancia das nações: e não havendo meio, que mais possa contribuir para polir, e aperfeiçoar qualquer Idioma, e desterrar
delle esta rudez, do que a applicação da mocidade ao estudo da
Grammatica da sua propria lingua; porque sabendo-a por principios, e não por mero instincto, e habito, se costuma a fallar, e escrever com pureza, evitanto aquelles erros, que tanto desfigurão a
nobreza dos pensamentos, e vem a adquirir-se com maior facilidade, e sem perda de tempo a perfeita intelligencia de outras differentes linguas; pois que tendo todas principios communs, acharáõ nellas os principiantes menos que estudar todos os rudimentos, que levarem sabidos na materna; de sorte que o referido methodo, e espirito da educação foi capaz de elevar as linguas Gregas e Romanas ao gráo de gosto, e perfeição, em que se virão nos
formosos seculos de Athenas, e Roma, e que bem testemunhão as
excellentes, e inimitaveis obras, que delles ainda nos restão: Conformando-me Eu com o exemplo destas, e de outras nações illuminadas, e desejando, quanto em Mim he, adiantar a cultura da
lingua Portugueza nestes Meus Reinos, e Dominios, para que nelles possa haver Vassalos uteis ao Estado: Sou servido ordenar,
que os mestres da lingua Latina, quando receberem nas suas
Classes os discipulos para lha ensinarem, os instruão previamente
por tempo de seis mezes, se tantos forem necessarios para a instrução dos Alumnos, na Grammatica Portugueza, composta por
Antonio José dos Reis Lobato, e por Mim approvada para o uso
das ditas classes, pelo methodo, clareza, e boa ordem, com que he
feita. (Apud Assunção, 2000, p. 27-8)
Estrutura da Gramática
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A Arte da Grammatica de Antônio José dos Reis Lobato se
divide em duas partes: “I. Da Etymologia” e “II. Da Syntaxe”, subdividindo a primeira em seis e a segunda em quatro livros, cada um dos
quais com número variado de lições, num total de setenta, fora a carta nuncupatória1, a introdução e os proêmios.
Na primeira parte, apesar de ainda tratar, no Livro I, do artigo,
nome, pronomes e suas diferenças e declinações, denunciando sua
submissão estrutural à gramaticologia latina, contribui reflexivamente, no Livro II, tratando do gênero dos nomes substantivos, definindo-o como “a diferença com que os nomes se distinguem uns dos outros conforme o sexo que significam” (49), a que acrescenta a
seguinte nota de pé de página:
Os gramáticos chamam do gênero masculino aos nomes que significam cousa macha e do gênero feminino aos nomes que significam cousa fêmea. Os mesmos gêneros atribuem, ainda que impropriamente, aos nomes que significam cousa que nem é macha
nem fêmea; porém isto é por causa da concordância dos adjetivos, como veremos na sintaxe.
Os nomes adjetivos não têm gênero algum, mas sim duas formas
ou terminações, das quais a primeira se chama masculina, por se
ajuntar aos substantivos masculinos, e a segunda feminina, por se
ajuntar aos substantivos femininos.
Fica evidente, neste ponto, que Reis Lobato tinha consciência
de que não há relação necessária entre sexo e gênero e que são os adjetivos que flexionam para concordar com os substantivos. Ou seja:
os substantivos da língua portuguesa são de gênero masculino ou de
1
Carta nuncupatória é o texto que contém a dedicatória.
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gênero feminino por causa do que significam e não por causa das
terminações que tenham.
Neste particular, Jerônimo Soares Barbosa foi muito mais explícito, no segundo artigo que trata das “suas formas exteriores e idéias acessórias” (Barbosa, op. cit., p. 118), referindo-se longamente
aos gêneros dos nomes substantivos, como transcrevemos abaixo, fazendo a atualização ortográfica:
Gênero quer dizer classe, e esta é o arranjamento de muitos indivíduos ou cousas que têm alguma qualidade comum a todos; e
como todos os animais naturalmente se distinguem em duas classes ou gêneros segundo os dous sexos de macho e de fêmea, os
gramáticos puseram os nomes dos primeiros na classe ou gênero
masculino e os dos segundos no feminino. Estas são as classes
naturais, em que entram só os animais. Todos os seres que não
têm sexo algum deveriam ser arranjados na classe ou gênero neutro, isto é, formarem todos uma terceira classe, em que entrassem
os nomes dos indivíduos e das cousas que nenhum sexo têm, nem
masculino nem feminino.
Porém, o uso das línguas, sempre arbitrário ainda quando procura
ser conseqüente, vendo que a natureza lhe tinha prescrevido a regra dos sexos na classe dos animais, quis seguir também a mesma
nos nomes das cousas, que os não podem ter, fazendo por imitação uns masculinos e outros femininos, e por capricho outros
nem masculinos, nem femininos, mas neutros. Das classes naturais, a significação mesma determinava o seu gênero: das arbitrárias, só a terminação dos nomes, análoga à dos primeiros, é que a
podia determinar. Daqui a divisão das regras dos gêneros dos
nomes, ou pela sua significação, ou pela sua terminação.
Todas estas regras seriam escusadas, se não houvesse a necessidade da concordância e os adjetivos fossem de uma só terminação, como há muitos. Porém como a maior parte deles tomam
formas genéricas, correspondentes aos gêneros dos nomes com
que concordam, foi necessário distinguir e saber os gêneros dos
nomes substantivos para lhes aplicar as formas dos nomes adjetivos, que o uso quis lhes correspondessem.
6
O gênero, pois, do nome substantivo é quem determina e, por
conseqüência, mostra a forma adjetiva, que com ele deve concordar, e não às avessas. Se o artigo, que precede ordinariamente o
nome substantivo, e se o adjetivo, que ordinariamente o segue,
tomam, segundo o seu gênero, ou a forma masculina ou a feminina, e digo, por exemplo: O homem sábio, A mulher virtuosa, o artigo e os adjetivos tomam estas formas genéricas porque supõem
já estabelecidos pelo uso da língua os gêneros destes dous nomes
homem e mulher, os quais se alguém ignorasse, mas poderia fazer
a concordância.
A regra sumária, pois, que dá a Grammatica da Lingua Castelhana, parte I, capítulo III, artigo IV, e que segue o autor dos Rudimentos da Grammatica Portugueza, parte I, capítulo II, § 3, para conhecer os gêneros dos nomes, pelos dos artigos e adjetivos
que se lhes ajuntam, é uma regra ilusória, que só pode ser vir a
quem ouve e a quem lê para saber de que gênero é o nome; mas
não a quem fala e a quem escreve. Os primeiros conhecem logo o
gênero do nome pela concordância dos adjetivos, que fez aquele
que falou e que escreveu. Os segundos têm eles mesmos de fazer
esta concordância, e facilmente podem errar não sabendo primeiro de que gênero é o nome com o qual devem concordar o artigo
e os adjetivos. (Barbosa, op. cit., p. 123-5)
Gostaríamos de registrar aqui o alerta de Carlos Assunção
relativamente à gramática que foi “o suporte da aprendizagem do
ensino da língua materna” durante um século:
Com efeito, se não fosse a ligação às gramáticas latinas na declinação dos nomes, dos artigos, dos pronomes, diríamos mesmo
que a gramática de Lobato seria exemplar, porque trata estas categorias com clareza, simplicidade e rigor, aspectos que não vimos em alguns gramáticos portugueses contemporâneos, ditos
gramáticos pedagógicos, cujos compêndios são autênticas miscelâneas gramaticais, talvez porque o lucro esteja acima dos conhecimentos científicos. (Assunção, op. cit., p. 67)
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Tratando da prosódia, Lobato fala de sílaba longa e sílaba breve, decalcando a gramática latina, apesar de esclarecer, em nota de
pé de página, que “nas línguas vulgares, rigorosamente falando, não
há sílabas longas nem breves, por se distinguirem pelo acento” (Cf.
Lobato, 1802, p. 157-8 apud Assunção, op. cit., p. 299-300).
Quanto à sintaxe, “foi seguido o modelo latino”, não só por
Lobato, mas por todos os gramáticos até Jerônimo Soares Barbosa,
sem exceção. (Cf. Assunção, op. cit., p. 85). O modelo direto de Lobato foi o Pe. Antônio Pereira da Figueiredo (1752 e 1761).
Na verdade, é bem possível que Antônio José dos Reis Lobato
ser mais um dos pseudônimos utilizados pelo padre Antônio Pereira
de Figueiredo, segundo defende Carlos Assunção (Op. cit., p. 101).
Conclusões
A história da gramaticologia portuguesa não pode desconsiderar a gramática de Reis Lobato, dada a importância que o trabalho
teve nos séculos XVIII e XIX, especialmente na implantação da política lingüística e pedagógica do Marquês de Pombal, com o intuito
de uniformizar o ensino da língua materna em todo o reino.
Voltando à edição que dela nos apresentou Carlos Assunção, lembramos que
Com efeito, se assistimos, em Portugal, na segunda metade do
século XVIII a consideráveis mudanças nos hábitos dos utentes
8
da língua, a nível da escrita e da leitura, devêmo-lo muito a Reis
Lobato. Foi por esta gramática simples que aprenderam os grandes escritores de finais do século XVII e primeira metade do século XIX e que se formaram homens instruídos para os cargos
administrativos desses tempos. (Assunção, 2000: 103).
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10
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