José Alberto Navarro Guerreiro Narcisismo: A Constituição Do Sujeito André Gide na abertura de seu livro “O Tratado de Narciso”, de 1891, fala assim a seus leitores: “Conheceis a história. Por isso nós a diremos de novo. Todas as coisas já foram ditas, mas como ninguém as escuta, é preciso recomeçar sempre.” Por isso, o mito: Narciso nascera belo à perfeição. Sobre seu futuro, predissera o oráculo: “seria feliz se jamais mirasse a própria imagem”. Narciso cresceu belo. Eco, uma ninfa, apaixonou-se por aquela perfeição. Como Narciso a desprezasse, Eco se queixou à deusa Nêmesis, que tramou sua vingança. Num dia quente, em meio à caçada, o fez sentir sede. Assim, cansado e sedento, Narciso debruçou-se sobre um riacho no qual o fluxo d’água parecia imóvel. E Narciso então viu. Se viu. Viu a bela forma, a forma perfeita e, sem saber que via a si mesmo, por ela se apaixonou. Ao tentar tocá-la, dissipou-a; e então, vidrou! E, vidrado, deixou-se morrer ali mesmo, à beira d’água, à borda do espelho. O melhor modo de começar é dizendo que estamos nos metendo em um dos pontos mais difíceis da teoria psicanalítica. E que se pretende, aqui, hoje, poder articular o que de decisivo — ou não — tem esse conceito. Comecemos do início: o filhote humano surge neste planeta pelo desejo de outro. Alguém, de algum modo, o deseja: para amá-lo, para odiá-lo, para destruí-lo, para se dizer mulher, para se dizer pai, para dar algum sentido a tudo ou a qualquer coisa. O desejo de alguém possibilita ao humano, o nascimento. Nascido está, desejado foi. Mas o pequeno humano ainda não tem palavras. Não sabe dizer. Não se sabe ainda. Nesse momento ele e tudo são o mesmo. O bebê não se diferencia psiquicamente O Narcisismo: A Constituição Do Sujeito José Alberto Navarro Guerreiro do mundo à sua volta. Vê as partes de seu corpo e as coisas do mundo como um todo. Bebê e mundo são igual, são tudo. A esse estádio, Freud dá o nome de auto-erotismo, que é postulado enquanto “um estágio inicial da libido”, ou seja, da energia sexual, que ainda não tem objeto diferenciado e tudo erotiza. Tudo se resume anarquicamente em prazer/desprazer. Mas, há um momento fundamental, há um evento que inaugura, que dispara, que precipita a formação do eu, do ego. Diante do espelho, no colo da mãe, ele se vê. E porque ao voltar o olho em torno de si, reconhece o que duplamente está ali refletido, percebe que se vê. E é com sentimento de júbilo que escuta aquela mãe confirmar a sua impressão, a sua percepção quando lhe diz: “lá está o bebê!” É claro que não é absolutamente necessário que seja a mãe ou o pai concretos. Qualquer um serve. Trata-se de corroborar. Mas falávamos do momento inaugural, da experiência fundamental - o espelho que dá alguma ordem ao caos, que começa a organizar o sujeito, que faz a ruptura, a brecha, a fenda que desfaz o todo e que faz a unidade. Ao descrever o Paraíso, o mesmo André Gide diz o seguinte: “O Paraíso não era amplo. Perfeito, cada uma de suas formas abria-se uma única vez. [...] Tudo permanecia imóvel já que nada ansiava por estar melhor.” Mas quando Adão estende os braços para colher entre os dedos orgulhosos um ramo da Ygdrasil, a árvore logarítmica... “Assim se fez. ...Uma fissura, à primeira vista imperceptível, um grito, mas que rebenta, desdobra-se, exaspera-se, assobia com estridência e logo geme como temporal. Desfalecida, a árvore Ygdrasil oscila e estala; as folhas [...] rodopiam na borrasca. [...] Rumo ao céu sobe um vapor, lágrimas [...] E o Homem, aturdido [...] chorou de angústia e horror...” Voltemos a Narciso: nascera belo à perfeição. Ora, o que é perfeito anseia nada mudar. Mas Narciso se vê no espelho d’água. Vê a perfeição do outro. Vê a imagem do 2 O Narcisismo: A Constituição Do Sujeito José Alberto Navarro Guerreiro outro. Vê a perfeição sem saber que vê a si mesmo. Vê, portanto, a perfeição fora de si e a deseja. Ora, se a perfeição, o perfeito anseia nada mudar e Narciso deseja algo fora dele: então instala-se aí o furo, a brecha, a fenda que produz a ruptura. Ruptura essa, de força brutal. Assim, a fissura que instala em nós a simples mirada em que vemos a nossa imagem do outro lado do espelho. Essa mirada nos devolve algo insuspeito: os limites do corpo, a forma, o definido. Quebra-se o que antes era totalidade. Ainda que seja a minha própria imagem, a imagem invertida que o espelho me devolve, é diferente de mim, é imagem de outro que não eu. Imagem, que não é igual ao corpo, mas que é tomada como imagem do corpo, como se ele e a imagem fossem um. Faz-se unidade. Ou melhor, ilusão de unidade. No texto do Narcisismo, de 1914, Freud diz que “uma unidade comparável ao ego não pode existir desde o começo; o ego tem de ser desenvolvido. Os instintos autoeróticos, contudo, ali se encontram desde o início, sendo, portanto, necessário que algo seja adicionado ao auto-erotismo - uma nova ação psíquica - a fim de provocar o narcisismo.” Assim se dá com o filhote humano. “Lá está o bebê!” Essa marca de absoluta brutalidade, que rompe a totalidade na qual o bebê vivia e que lhe dá a imagem refletida no espelho como unidade, identidade — “Isso é você!”. Essa marca — que inaugura o eu do sujeito, mas, que o identifica desde fora dele — produz, de saída, a alienação do sujeito. Essa imagem corporal — ilusória — é investida narcisicamente. É o primeiro narcisismo, o narcisismo primário. Lacan, no Seminário 1, diz: “Há inicialmente, com efeito, um narcisismo que se relaciona à imagem corporal. [...] Ela permite organizar o conjunto da realidade”. E noutro ponto: “Ela faz a unidade do sujeito.” 3 O Narcisismo: A Constituição Do Sujeito José Alberto Navarro Guerreiro Assim a libido encontra finalmente um objeto: a imagem. Ou melhor ainda: o eu inseparável da imagem que se formulou aí. MDMagno afirma que “a noção de imaginário é de uma correspondência assim entre dois sistemas: cada ponto de um encontra correspondente no outro.” Estamos, portanto, no registro do imaginário. Neste momento, para a criança, tal imagem corresponde ponto a ponto ao próprio corpo, entendido enquanto “eu”. Por conta então, dessa relação imaginariamente biunívoca entre esses dois representantes do mesmo ser, o pequeno humano faz a unidade. Imaginariza a unidade e a investe libidinalmente. Dirige sua libido para o nascente “eu”. Essa unidade não lhe devolve, no entanto, a totalidade, antes supostamente vivenciada. Então, há algo que algo sobra, há alguma coisa que vai ficar fora pra sempre. É a fenda, o buraco, que Lacan chama de “objeto a”, objeto causa do desejo. Indizível, inominável, está lá o real, que, no dizer do próprio Lacan, não cessa de não se escrever. O sujeito parte então, à procura de algo que lhe tape o buraco, que o possa completar e devolver-lhe a totalidade, mas como o real não cessa de não se escrever, ele nada encontrará que feche o furo, a ferida, o buraco. E assim partirá novamente e sempre em busca de tal objeto. Esse investimento naquilo que é, segundo Chemama, “o primeiro esboço do eu”, tomado como unidade, formaliza o que conhecemos como o Eu Ideal, que se traduz pelo fato de o sujeito tomar a si mesmo como o seu próprio ideal e que se caracteriza pela fantasia de onipotência, onde o sujeito pode tudo, ou seja, pode ser totalidade novamente. Embora tomada de amor pela suposta totalidade de si mesma, a criança segue marcada pela falta que a constituiu e que jamais vai ser preenchida. Falta essa que se inscreve no ato mesmo da identificação com a imagem do espelho, porque imagem do outro. 4 O Narcisismo: A Constituição Do Sujeito José Alberto Navarro Guerreiro Se o “eu” se forma fundido, confundido com a imagem que se inscreve desde fora do sujeito, não pode ser capaz de representá-lo completamente. Desse modo, toma forma um desconhecimento crônico do eu. E porque o “eu” foi constituído desde fora, que ela, a criança, vai continuar a buscar no desejo do outro, o seu desejo, vai continuar a buscar novas identificações, vai em busca de alguma coisa que possa suprir essa falta e que possa torná-la inteira, una. Ou, para retomar o mito, perfeita. Mas não há possibilidade de recuperar o que nunca houve, não há possibilidade de perfeição. E se a totalidade não é mais possível, se o espelho dá unidade ao sujeito, se o diferencia de todos os outros objetos à sua volta; e se a partir de então, ele vai em busca de novas identificações, devemos estabelecer aqui o caráter parcial da pulsão. A partir da experiência do espelho, o que há de fato, são pulsões, fragmentadas, parciais, que nunca podem ser satisfeitas, que nunca refazem a supostamente perdida perfeição. Apaixonado, Narciso busca possuir o objeto de seu amor. Estende seus braços para abraçar a perfeição. Ao toque das mãos, porém, a água se agita e a imagem se torna imprecisa. A perfeição se desfaz. Assim com as pulsões, que circundam os objetos sem poder tocá-los e que voltam para o sujeito mesmo. É a água que se turva. É Narciso tentando tomar para si o objeto inalcançável de sua paixão. Passa então o sujeito humano a buscar novas identificações que possam devolver-lhe uma imagem própria. A criança imita o adulto como se assim pudesse sêlo. Mas o selo que ela carrega é o da falta. Essa série de identificações, que a criança persegue, estabelece o desenvolvimento do narcisismo secundário. Ou seja, o narcisismo secundário é uma resultante da experiência especular. Quer dizer, após o júbilo do reconhecimento da própria imagem — a despeito de ser imagem do outro —, após esse reconhecimento que determina desde sempre a alienação do sujeito; após a formação de um “eu”, que é imaginário, que é engodo, a 5 O Narcisismo: A Constituição Do Sujeito José Alberto Navarro Guerreiro criança passa a investir a sua libido nos objetos à sua volta em busca de identificar-se com algo que responda à questão da falta, algo que lhe tape o buraco, o furo que fica posto desde a origem daquele “eu”. Percebam que a busca é ainda narcísica. A libido se dirige ao objeto para voltar ao eu. Esse narcisismo secundário, todos nós o temos e o mantemos, ou melhor, ele nos mantém até a morte. Como no mito: Morre Narciso à beira do riacho, à borda do espelho. E ali, tempos depois, diz a lenda, nasce uma bela flor, que recebe o nome de Narciso. Mas isto não é toda a constituição do sujeito. Ainda é Gide quem diz: “Os livros não são talvez coisa muito necessária. À primeira vista, uns tantos mitos seriam suficientes. [...] Depois, quisemos explicar. Os livros ampliaram os mitos. Uns poucos mitos, no entanto, seriam suficientes.” Assim, para entender a constituição do sujeito é necessário que outro mito intervenha. O mais famoso mito da psicanálise, o de Édipo. Édipo, filho de Laio e de Jocasta, reis de Tebas, também teve seu futuro predito pelo oráculo, que afirmou que aquela criança se transformaria em assassino do próprio pai e desposaria a própria mãe. Laio e Jocasta apavorados com tal previsão, ordenaram que um criado matasse a criança. Mas, está escrito que ninguém foge ao próprio destino. Não seria diferente com Édipo. Por isso, o criado não o matou; deu-o a um pastor, que por sua vez o deu a outro casal, Políbio e Mérope, também reis da cidade de Corinto, que o criou como filho. O menino virou homem. E foi ele mesmo consultar o oráculo acerca de seu destino. Ao ouvir o que os deuses haviam reservado para si, fugiu. E como não podia deixar de ser, fugiu para o seu próprio destino: para Tebas. Ainda antes mesmo de chegar à cidade, na estrada, encontra um homem com quem briga e a quem mata. Era Laio. Édipo, sem o saber, mata o próprio pai. 6 O Narcisismo: A Constituição Do Sujeito José Alberto Navarro Guerreiro Vivia em Tebas, uma Esfinge que propunha enigmas aos homens e como eles não os decifrassem, ela os devorava. A Esfinge tanto os afligia que não houve na cidade grandes investigações para aquele assassinato. Morto o rei, a cidade decidiu que aquele que decifrasse o enigma da Esfinge seria o novo rei e desposaria a rainha. Édipo assim o fez: decifrou o enigma da Esfinge, que se precipitou no abismo, libertando a cidade daquele terror e casou-se com Jocasta. Édipo, sem o saber, desposa a própria mãe. Édipo, rei, e vive Tebas uma grande peste. Os deuses o informam que a desgraça só teria fim quando o homem que matou o rei Laio fosse banido da cidade. Édipo se põe a investigar aquele crime até descobrir através do relato de um pastor, que ele próprio era o filho e o assassino de Laio. Em desespero, Édipo fura os próprios olhos e pede que o levem para algum lugar longe de Tebas e de Corinto, cidades onde nunca voltaria a pisar... A história contém outros detalhes, mas já temos aqui os elementos necessários para seguirmos em frente. Estávamos mesmo, antes de entrarmos no Édipo, na busca que o sujeito faz de algo que lhe tape o buraco, lhe obture a falta. Busca que é narcísica, posto que envolve o objeto para se voltar ao próprio sujeito. O primeiro — e mais sedutor — objeto que a criança encontra é Jocasta, ou seja, é a mãe. Objeto de amor, portanto, objeto libidinal, a mãe é mesmo — pelo menos, imaginariamente — aquela que tudo supre, que tudo faz para o filho. Então, a criança pensa que encontrou o tal objeto, que ela e a mãe podem formar a tal completude perdida. Acontece que não podem, não podem porque é impossível, mas isso a criança não sabe. O que ela percebe é que há algo além dela mesma que é presente, que comparece — ainda que enquanto falta, enquanto furo — no discurso, e portanto, no desejo da mãe. Porém, outra vez a criança não pode saber que se trata do mesmo objeto, o “objeto a”, ao qual ela persegue. Para ela, existe mais alguém, um rival, que também solicita o amor daquela mulher: o pai, que enquanto presente no discurso materno é metáfora, metáfora 7 O Narcisismo: A Constituição Do Sujeito José Alberto Navarro Guerreiro paterna. Identificado, então, ao próprio Falo, o pai será visto como aquele que tem tudo. Por isto: porque solicita o amor daquela mulher, porque a “rouba” da criança, porque assim lhe diz que ela, a criança, e a mãe não podem se completar, porque faz um impedimento, uma interdição... por isso a criança vai odiá-lo, vai brigar com ele, vai desejar eliminá-lo de seu caminho. Por isso o pai é Laio. O pai, que afirma para a criança que ela e a mãe não podem se completar — não podem porque é impossível, não podem porque não há o que complete —, esse pai, vai funcionar como o “representante” da castração, da lei. É ele quem vai colocar a criança na ordem — simbólica — da cultura. É ele que, castrado — porque sabe que não há o que complete — vai castrar o filho. Daqui se deriva ainda aquilo que Freud chama o Ideal do Eu, que tem a função, no plano simbólico, de regular as relações do sujeito com a realidade e os conflitos que daí advêm, além de servir, conforme o nome diz, de modelo para o eu. Mas, como sempre em Psicanálise, tudo começou antes. Estávamos com a criança em frente ao espelho, onde a mãe lhe dizia a frase de mais abrupta alteridade que se pode escutar: “Aquele é você!” e que, no entanto dá ao sujeito a ilusão de unidade. A criança já pode, então, distinguir-se dos outros humanos e das coisas. Mas, segue marcada pela falta que a constitui e vai começar a procurar nos objetos em volta de si, aquele que é capaz de completá-la. Surge Jocasta, a mãe. Aquela que dá o alimento vai ser o primeiro objeto de amor. O prazer de mamar, de se alimentar, que era auto-erótico, se transforma em prazer amoroso, libidinal. É importante perceber que aqui se dá uma separação entre a atividade alimentar e a sexual. É a chamada fase oral, que se prolonga até mais ou menos os dois anos, quando termina também a fase do espelho. Funda-se aí um tipo de relação que é o de incorporação do objeto. A criança quer experimentar o mundo pela boca, primeiro pela sucção, depois pela mordedura. A criança, que já reconhece a boca como sua, tenta se apropriar do objeto amado através dela. Realiza-a enquanto uma zona erógena. 8 O Narcisismo: A Constituição Do Sujeito José Alberto Navarro Guerreiro E se frustra porque a frustração acompanha qualquer tentativa de restaurar a plenitude do eu. A criança elege, entre dois e quatro anos, a zona anal como a principal fonte de seu prazer. Primeiro no ato de expulsar as fezes; depois no de retê-las. É a chamada fase sádico-anal. Aqui o sujeito exercita a bipolaridade, ligada ao relaxamento ou à contração dos esfíncteres, à passividade ou à atividade, à entrega ou à posse. Simbolicamente, ambos os atos são dirigidos à mãe, seu objeto amoroso: defecar é apresentar as fezes como um presente, uma oferta; retê-las é índice de agressividade, de recusa. A isso se segue a chamada fase fálica, onde a primazia do falo vigora. Isso quer dizer que meninos e meninas conhecem apenas um órgão genital: o masculino. O foco do prazer se desloca para a zona genital, mas uma zona genital que ainda não se diferencia enquanto os próprios órgãos. Um belo dia, o menino se depara com uma visão inusitada, impensada, inesperada: o órgão genital feminino. Ou melhor, ao ver uma menina nua, vê uma ausência, uma falta de órgão genital. Formula, para explicar o que viu algumas teorias do tipo: “vai crescer”, “vai ganhar um”, “perdeu”, ou “foi cortado”. Daí o susto: “mas, se ela perdeu, então eu posso perder também!” Conclusão: ou se tem ou não se tem o falo. A oposição entre atividade e passividade transforma-se em fálico e castrado. Nas meninas, a inveja do pênis e nos meninos, a angústia de castração são as marcas regentes desse período. Sentir prazer, masturbar-se, coloca o menino frente à culpa e ao medo de ter o seu membro cortado. Não importa que ele nunca tenha sido assim ameaçado. Mas todas as ameaças que tenha sofrido convertem-se nessa. E todas as pessoas que, porventura, o tenham ameaçado de qualquer coisa convertem-se aqui na figura do pai, ou seja, em Laio. A fase fálica, cujo final coincide com o fim do Complexo de Castração, é também marcada pelo ápice e pelo declínio do Complexo de Édipo. 9 O Narcisismo: A Constituição Do Sujeito José Alberto Navarro Guerreiro Agora quero fazer um pequeno parêntese para situar que essa historieta, essa reteatralização do mito na vida psíquica de cada um, que contamos aqui, se dá de maneiras diversas para os meninos e para as meninas. E que este que acompanhamos aqui é o percurso do Complexo de Édipo mais comum nos meninos. Entre Narciso e Édipo há muito o que comentar, há muito o que dizer, mas gostaria de destacar alguns aspectos que a mim, me chamam a atenção: Em primeiro lugar, há em ambos os mitos um desconhecimento fundamental do sujeito em relação a si mesmo. Narciso não sabe quem é ele, não conhece a própria imagem. Édipo não sabe quem ele é, não se sabe filho do pai e nem filho da mãe, quer dizer, não se sabe nem assassino do pai, nem se sabe amante da mãe. Assim com o sujeito humano que se engana o tempo todo a respeito de si mesmo, que pensa conhecer-se e poder dizer-se num “eu” que é puro imaginário, mas que o supõe próprio, autêntico, original. Em segundo lugar, há para ambos um terceiro, um alguém que desde outro lugar, desde o lugar do outro os obriga a se verem a si mesmos. Para Narciso é a deusa Nêmesis; para Édipo é o pastor. Assim para o sujeito humano, cujo “eu” é objeto tomado, por assim dizer, de empréstimo desde fora de si. E em terceiro lugar, há para ambos uma pena a ser cumprida, uma condenação por se conhecerem: Narciso é condenado à uma espécie de cegueira — a da paixão, que não lhe permite ver nada além da própria imagem — e à morte; Édipo é condenado à cegueira e ao desterro, que é uma espécie de morte, posto que o afasta do convívio das gentes e das terras a que amava. Assim com o sujeito humano, que por cada um seu desejo que conheça tem um preço a pagar. A esses dois mitos, podemos juntar o terceiro de que já falamos aqui hoje, que é o mito de Adão, o mito do Paraíso Perdido, o qual o homem não cessa de procurar e ao qual só pode chegar — assim diz o próprio mito — com a morte. Também em Adão há um desconhecimento de si mesmo; também em Adão há uma serpente ou uma maçã que o obriga a ver-se; também em Adão há uma condenação, um desterro — e, por assim dizer — a morte. 10 O Narcisismo: A Constituição Do Sujeito José Alberto Navarro Guerreiro Mas do que tratam então os mitos? Tratam da verdade do desejo. Tratam daquilo que o ser humano quer sempre saber mais e para o qual há um outro que lhe revele e uma condenação por sabê-lo. Ou seja, tratam do próprio sujeito humano que quer sempre saber mais de si, mas que necessita de um outro que possa dizê-lo e que, por fim, ainda que pague pelo que sabe, está condenado a nunca saber de si realmente, porque o real é impossível. Piracicaba, 1997 Bibliografia: CHEMAMA FREUD GIDE LACAN MDMAGNO 11