ALGUNS SENTIDOS POSSÍVEIS SOBRE AS COTAS PARA NEGROS * O mundo viu desaparecer outros saberes, tornou-se pobre em narrativas e narradores, apequenou-se no grande feito de desqualificar o diferente e moldá-lo à imagem real e concreta do homem branco, ocidental e europeizado. J. W. Geraldi (2001: 1) Marlon Leal Rodrigues Resumo: A discursividade que a aborda a identidade do brasileiro encontrou um espaço de materialização significativo no debate sobre as cotas para negros nas universidades públicas. De alguma forma as políticas de reparação histórica estão vinculadas a questão da identidade ou da identificação do seu “beneficiário”, no caso o negro. Dentro os discursos que compõem a polêmica da negação, temos o discurso que marca a posição de sujeito virtual, ou seja, outras posições sujeitas, não a do negro, são convocadas a participar das políticas de reparação para enviabilizar a própria reparação. Outros dois discursos que constituem a polêmica é o discurso de reparação do “modelo americano” e o de “falar em nome do outro”. Estas discursividades marcam entre outros sentidos, a questão da identidade do brasileiro. Palavras-Chave: discurso, cotas, história Abstract: The discursividade which covers Brazilian identity encountered a significant effect space in the debate one part (cota) for blacks in public universities. Somehow historic remedial policies are linked the question of identity or identification of its beneficiary the black people case. Within the speeches that comprise the discussion about this theme, there is the speech marks the position of virtual subject, or other positions placed, not the black, shall be convened to participate repair policies not to make it possible to repair itself. Other two speeches which constitute the provocative speech “American model” to repair and the “speaking on behalf of another”. These discourses self mark among other senses, the Brazilian identity issue Key-Wolds: discussion, one part (cota), history. Introdução A partir de 1999, após o relatório sobre a situação no negro no Brasil, de forma gradativa, os meios de comunicação têm dado alguma importância ao debate sobre as cotas para negros (afrodescendentes, afro-brasileiros etc.) nas universidades públicas. O debate diz respeito à reserva de um percentual de vagas nas universidades para negros prestarem o vestibular entre si, o que aumentaria, de forma talvez significativa, o número e a participação de negros nas universidades. Tal medida conseqüência seria também uma representação maior de negros em lugares sociais (apesar de mais de um século do fim da escravidão oficial no Brasil). Se sua participação na sociedade não é zero, com certeza é possível considerá-la de forma quase insignificante nas áreas que exigem curso superior, de acordo com vários institutos de pesquisa. Assim, a questão das cotas vem gerando um debate que, salvo raras exceções, não trata a questão em profundidade. Ela diz respeito ao seu caráter histórico, como conseqüência de uma política de classe. Um dos objetivos do termo “discurso” para a Análise do Discurso, AD, está na importância, a meu ver, de sua reflexão se constituir no limite do lingüístico com o social. Abriu-se dessa forma um campo ou uma disciplina de “entremeio” (Orlandi, 1999) na sua relação com o marxismo na releitura de Althusser, da psicanálise de Freud na releitura de Lacan e na articulação destes campos com a Lingüística saussureana feita por Michel Pêcheux. O discurso, assim, deixou ser uma atividade em que o sujeito coloca a língua em movimento, funcionamento, pois é considerada, de acordo com Possenti (2002:17), “freqüentemente como se fosse óbvia ou única” e passou a recobrir, ainda em Possenti (idem), “aquilo que a lingüística não dá conta”. Alias Possenti (2002: 15) destaca muito bem a noção de discurso e sua importância para os domínios da AD em relação às outras concepções. A noção de discurso, em particular para a AD, revela o quanto ela está revestida de propriedades, elementos, características que põem em jogo a “violência” do ato de enunciar, que não tem nada de voluntário ou espontâneo, mas uma reação à reação enquanto parte constitutiva da pressão do real, da pressão da história, ambas marcadas pela” incompletude” (Orlandi, 1999). Conforme Foucault, (1971: 53), ele se constitui de “uma violência que fazemos às coisas”, eu acrescentaria, também, nas relações sociais mais elementares, a pressão do fator ideológico (Pêcheux, 1997), da história, das condições de produção, das formações imaginárias (Pêcheux, 1969, 79, 82), do real (idem, 1988: 29). Tudo isso como uma irrupção quer na forma de poesia e seu efeito de sentido (discurso interpelatório, mas considerando que nenhuma interpelação é completa ou totalizadora) (Pêcheux, 1988), que nos abraça e nos encanta, nos constrange, nos acalma, nos deixa em transe ou em estado de ira, quer no efeito interpelatório, com os quais nós reagimos, nos esquivamos, nos aliamos, nos debatemos, nos assujeitamos, nos deslocamos..., na eloqüência do grito, da explosão organizada no jogo duro da sintaxe, na tensidade da paráfrase (Fuchs, 1982), nas astúcias do efeito metafórico (Pêcheux, idem), na paixão do grande feito, na derrota ou nas relações do cotidiano (Certeau, 1990), aparentemente simplórias etc.. É nessa perspectiva que gostaria de ressaltar – sem nada a acrescentar - a protuberância da noção de discurso, principalmente para este trabalho, como ato político, uma ação política, uma relação de força, uma marca do antagonismo, uma arma temível ou uma comédia ridícula, uma resposta direta ou indireta, (Pêcheux, 1988: 77), que ele, o discurso, não é somente aquilo que falamos, já está/foi dito, é aquilo que fazemos com/nas coisas, com/no mundo, com/sobre as pessoas, com/no saber, com/na língua, com/na sociedade etc. (numa relação de ida e vinda na medida em que a sociedade também nos constitui), o que também já foi dito, mas não custa nada relembrar, mesmo considerando que, de acordo como Possenti (2002: 72), “não se pode tratar de todos os tipos de discursos com os mesmos critérios de análise”. I - Corpus A constituição do corpus para este trabalho foi “recolhido” de jornais, revistas, panfletos, informativos, boletim, internet que circularam de 1999 até 2005. O que orientou a seleção foi a “discursividade” (Pêcheux, 1997) sobre as cotas para negros nas universidades públicas. Foi elaborado um corpus que tem servido para diversos textos de forma que a numeração foi mantida neste e em outros trabalhos por se tratar de um projeto único. Seguem, assim, os recortes ou enunciados: (24) “afinal, faremos a opção norte-americana dos guetos étnicos, muito deles miseráveis, ou enfrentaremos nossa pobreza juntos?”; (29) “quantos descendentes de agricultores europeus estarão excluídos no próximo vestibular do Sul (...) a multidão de imigrantes nordestinos vivendo em favelas e na periferia de São Paulo e Rio de Janeiro”; (30) “precisaria de uma cota para empregos que não fossem os de domésticas e de porteiros”; (46), “na realidade, a cota que deveria existir, era de respeito entre os cidadãos (...). Renata, 24 anos, negra e Psicóloga (não)”; (47) “porque será discriminação para com eles, portando não deve ser nem discutido (não)”; (49) “se parte da discriminação racial dos negros em relação aos brancos. Porque também não existe cota para índios, japonês...? (não)”; (52) “essa atitude reforça o racismo (não)”; (57) “absolutamente a maior prova de que somos diferentes e que uns são mais capacitados que os outros. a maior prova de racismo possível. O fim dos tempos. A luta pela igualdade foi por água a baixo (não)”; (59) “ela deve ser estendia para outras ‘raças’ tão discriminadas quanto a negra. Os índios, por exemplo. Acho que com estes a dívida é até mais grave. Porque não foram apenas escravizados, mas massacrados e os sobreviventes, expulsos de suas terras. Os negros são discriminados, mas os índios esquecidos (não)”; (60) “e o que fazer com os brancos de olhos azuis que vivem a margem da sociedade e não conseguem concluir nem o primeiro grau? (não)”; (62) “... estou revoltado... Quem não é racista está virando (não)”; (66) “os negros não precisam deste tipo de favorecimento [cotas]”; (67) “garanto que esta idéia só vai prejudicar a qualidade acadêmica do ensino superior”; (68) “copia imperfeita das chamadas ‘políticas compensatórias’, invenção já descartada nos EUA” (G. Ramos, economista, viceprefeito do RJ, In: Correio da Bahia, 07/09/2002); (75) “vem a Corte Suprema dos Estados Unidos e diz que são constitucionais os mecanismos de admissão da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan destinados a forçar a entrada de negros em suas turmas”; (76) “o debate americano pode reduzir o grau de racismo e rancor que ronda a discussão nacional [sistema de cotas]”; (78) “forçar políticas como essas [cotas] é coisa de radicais” (O Globo On Line. In: Os radicais estão no FMI e na Corte Suprema, 27/06/2003). Gostaria de ressaltar que a partir desta numeração, (43) à (63), são opiniões/discursos de uma pesquisa feita na internet (www.adufepe.com.br/cotas-enquestes.htm) - que o participante responde SIM ou NÃO além de justificar sua opção - com o seguinte título: “Você é a favor da cota para negros nas universidades e em concursos públicos?” Na maioria das opiniões, o autor não se identifica, quando houver identificação, ela será destacada. Outra observação, no dia e hora (não me lembro) que copiei da página da internet, havia 48 opiniões das quais 37 eram contra à cotas e 11 a favor. II - Sujeito virtual ou de plantão para certos interesses de classe Estes enunciados a seguir dizem respeito a um certo tipo de discurso político que em época de eleição articula ou/e procura significar a partir de uma memória discursiva certos grupos sociais que estão sempre lá na sua posição histórica de marginalizados, mas não no mesmo nível. Creio ser importante comentar a respeito dos “imigrantes nordestinos”, em (29). Seria interessante acrescentar que o problema dos nordestinos diz respeito, não a um estado de coisas como o dos negros como um todo, mas a um conjunto de políticas localizadas cujo efeito ainda está por se fazer sentir. Um dos problemas mais graves talvez não seja a seca em si, fenômeno da natureza, e nem a falta de recurso, verbas federais, mas a distribuição de terras, governos locais que levem a cabo as políticas de desenvolvimento, como acabar com as oligarquias nordestinas, por exemplo. Essa invocação a outros sujeitos históricos tem ou poderia ter como conseqüência supor que se trata de uma posição sujeito (enunciador) comprometido com as demandas de grupos sociais marginalizados, no entanto é considerável afirmar que é um tipo de discurso de político eleitoreiro (aquele que em eleições lembra de: velhos, aposentados, trabalhadores explorados, meninos (as) de rua, donas de casa, estudantes, pobres, favelados, pobres, miseráveis, prostitutas, “descamisados” [conforme dizia o ex-presidente Collor de Melo, acusado de corrupção e sem defesa foi obrigado a renunciar], retirantes da seca e da fome, desempregados, pais de família, doentes etc., geralmente eles são candidatos de partidos políticos da direita). Esse discurso, no discurso do senso comum possui um sentido negativo que parafrasticamente pode ser representado, em alguma instância, pelos seguintes enunciados: todos os políticos são iguais, “política e político é tudo a mesma coisa”, políticos não prestam, todo político só pensa nele quando chega lá, eles só lembram da gente nas eleições. Esse discurso invocado tem por efeito, entre outros, o de inviabilizar um debate em torno do tema central do discurso das cotas ao invocar outros sujeitos como nos enunciados acima. Esse sujeito invocado se constituiu em um álibi para não tornar menos “visível” a posição do sujeito invocador, uma vez que este está enunciando não somente em nome de sua classe ou categoria, mas em nome de outros que socialmente são reconhecidos como marginalizados. Enfim, ele se desloca para uma posição apenas virtualmente, posição de classe, sem defender diretamente de fato os sujeitos dessa posição social. Um outro efeito, possível de se pensar, é que esse discurso diminui o sentido do processo de escravidão do negro (como se quisesse dizer que não foi assim, que não tem esta ou aquela amplitude etc.) ao mesmo tempo em que atribui uma carga maior de sentidos ao sujeito virtual do discurso político eleitoreiro, situação de exploração que foi/é dramática também para o sujeito invocado, além dos sentidos normalmente atribuídos. É um efeito de equivalência de sentidos: processo de escravidão é igual ao processo de exploração capitalista, portanto se for ter que dar cotas para os negros também terá que se pensar nos demais, situação que, além de tornar inviável um debate específico, seu efeito confunde questões políticas localizadas no âmbito regional com questões étnicas de maior amplitude localizadas. O interessante que esta posição torna inviável o projeto de políticas reparatórias – como foi visto em outras análises -, considerando que se está historicamente em uma sociedade capitalista cujos bens produzidos são para poucos no mesmo nível. Então, já que é inviável para todos usufruírem, da mesma forma, o sujeito se posiciona contra. Para isso, no entanto, há dois apagamentos discursivos bruscos nessa equivalência de sentidos: o primeiro diz respeito à história do negro versus a história dos imigrantes (isto na virada do século e depois ao longo dele). É possível inferir que o sujeito invocador não reconhece a história do imigrante, mas invoca tão somente para contrapor à do negro. O negro foi trazido como escravo nos porões de navios etc. e após a Lei Áurea o negro saiu da senzala para a rua sem nenhum apoio ou assistência do governo – a voz de Joaquim Nabuco não se fez ouvir, não significou - enquanto que os descendentes de agricultores europeus, em (29), japonês, em (49), outras raças, em (59), brancos de olhos azuis, em (60), e imigrantes em (63), vieram ou foram trazidos para o Brasil em condições diferentes: havia uma crise social grave nos países de origem (europeu ou asiático arrasado pela guerra e miséria); os governos custeavam a viagem (tanto o brasileiro quanto o de origem); vieram para substituir a mão-de-obra do escravo; vieram com emprego garantido em sua maioria; muito ganharam terras; havia uma certa qualificação profissional; havia um projeto de tornar o país predominantemente de branco; em pouco tempo alguns ascendiam socialmente; pelo fato de ser estrangeiro, o tratamento, ainda que de explorados, não era mais de escravo sem direito a nada. Eles não traziam na pele o estigma de ser negro; o branco sempre foi e ainda é hoje uma referência de sentidos positivos, o que não demanda estigmatização social e cultural. O segundo apagamento se refere à condição atual desses sujeitos: muitos deles, ainda estão em situação de marginalização social, ainda mantêm uma posição social muito significativa. Se muitos ainda não saíram da roça, como em (29), também não estão nas favelas, de acordo com o IBGE, ou não se constituíram em grupos de reivindicação social, situação que também faz sentido. Um efeito de sentido desse apagamento, é que ele pressupõe que esses invocados se constituem em um grupo específico de reivindicação social o que não se constata de forma empírica. Quando se trata de demanda ou reivindicações sociais, os sujeitos têm “visibilidade” a partir do momento em que o grupo está organizado, se investe de certos discursos, marca sua posição social etc.. Caso contrário, há de se perguntar quem são eles em (29), descendentes; em (49), japoneses; em (59), outras raças; em (60), brancos de olhos azuis; e em (63), imigrantes. Talvez possa responder que são sujeitos virtuais ou de plantão para certos interesses de classe. O mesmo se pode afirmar em relação aos imigrantes nordestinos, em (29); às domésticas e aos porteiros, em (30); e ao respeito entre cidadãos, em (46). Esses não constituem em um grupo de reivindicação social, muito embora se reconheça sua existência enquanto sujeitos nas instâncias de outros discursos – sindicatos, associações, cooperativas, grupos organizados - e não enquanto de reivindicação de reparação histórica. Quando o sujeito desse discurso invoca a questão indígena, ao contrário dos anteriores, aqui o efeito é de apagamento ou um efeito de um não-sentido das conquistas indígenas, pois o sujeito trata, na mesma instância discursiva, questões distintas. Isso se refere a estratégia discursiva da dispersão do núcleo central do debate. Se, de um lado, aqueles sujeitos virtuais são invocados por um discurso político demagógico, sem compromisso; de outro lado, os índios têm avançado em suas reivindicações - o que não quer dizer que sejam suficientes, muito pelo contrário - ao transformarem suas necessidades em demandas sociais, conforme Geraldi (2001): algumas etnias estão organizadas em associações; dialogam com setores da sociedade, como a academia de onde vem certa mobilização em torno da questão indígena; conseguiram demarcações de terras; estão reconquistando outras (ver caso recente em Mato Grosso do Sul e Mato Grosso); há ainda linha de financiamento específico para projetos de pesquisa e intervenção nas comunidades indígenas (saúde, educação, agricultura, artesanato, capacitação profissional, “resgate cultural”); algumas aldeias e etnias recebem cestas básicas; a UNEMAT – Universidade do Estado do Mato Grosso abriu um curso superior de formação indígena para índios no Câmpus de Barra dos Bugres; em várias instituições (ongs, universidades, fundações particulares, órgão como a Funai etc.) existem projetos ligados às questões indígenas etc. De forma geral, é possível afirmar que é mais uma posição ideológica, como se tem observado ao longo das análises. III - Discurso: Modelo americano Esses enunciados: (24), “afinal, faremos a opção norteamericana dos guetos étnicos, muito deles miseráveis, ou enfrentaremos nossa pobreza juntos?”; (68), “cópia imperfeita das chamadas ‘políticas compensatórias’, invenção já descartada nos EUA”; (75), “vem a Corte Suprema dos Estados Unidos e diz que são constitucionais os mecanismos de admissão da Faculdade de Direito da Universidade de Michigan destinados a forçar a entrada de negros em suas turmas”; (76), “o debate americano pode reduzir o grau de racismo e rancor que ronda a discussão nacional [sistema de cotas]”; (78), “forçar políticas como essas [cotas] é coisa de radicais”; mantém uma relação de interdiscursividade de negação e desqualificação do modelo americano como condição ideológica para negar a proposta brasileira. Há duas questões importantes que se deve levar em conta: no discurso do senso comum, os norte-americanos se constituíram em um discurso ideal de democracia, liberdade e direitos civis; em segundo, eles mesmos se proclamam o país da democracia, liberdade e direitos civis, no nível das discursividades. Isso é significativo porque, uma vez desqualificado e negado o modelo americano e/ou a sua experiência, estabelece-se um universo discursivo, (Maingueneau, 1993), limitado de possibilidades de significar as cotas, evitando, dessa forma no debate brasileiro, invocar os norte-americanos como referência, considerando tudo que eles significam em alguns de seus aspectos ideológicos (país da democracia, liberdade e direitos civis). Em (24), o sujeito nega as cotas, atribuindo um sentido de fracasso, política que não deu certo e provavelmente não dará aqui; em (68), ao qualificar de invenção descartada, diminui o sentido político das políticas compensatórias ao mesmo tempo em que o inscreve em uma outra instância discursiva, em que as relações político-ideológicas não atuam diretamente. É uma instância discursiva da técnica e manuseio material, tanto que pode ser descartada, algo que não serve mais ou está ultrapassado. Há uma carga pejorativa de sentido na unidade do enunciado em descartada. Em (75), desqualifica a instância máxima da democracia norte-americana, a Suprema Corte, ao atribuir um sentido negativo e ilegítimo ao ato de considerar constitucional os mecanismos de admissão (as cotas), e que além de tudo é forçar a entrada de negros nas universidades. Seria interessante observar que é justamente a instância máxima, onde não cabe mais recurso das decisões, que o sujeito desqualifica. Em (76), qualifica as cotas como uma proposta oportunista que está à espreita, esperando a chance se inscrever discursivamente por duas estratégias: a primeira é admitir que há racismo no Brasil, enquanto se afirma que não há, mas que ele pode diminuir com base na experiência norte-americana, já desqualificada. Em segundo, é ponto de maior efeito desse discurso: conceber que o debate sobre as cotas ronda a discussão nacional é atribuir um sentido ilegítimo, algo que vem de fora e está passivo de desconfiança, um estratagema, sem legitimidade. No discurso do senso comum, o termo ronda, entre outros sentidos, pode ser aquele que vigia (fulano fez ronda a noite toda) ou está com intenções pouco confiáveis (vi uma pessoa fazendo ronda aqui perto, vou ficar de olho). Em (78), o sujeito atribui toda uma carga semântica negativa à política de cotas ao compará-la a certas pessoas ou grupos organizados socialmente que mantêm um posicionamento firme, que normalmente são significados de radicais. O termo está intrinsecamente ligado aos partidos da antiga esquerda brasileira ou a alguns grupos sociais que afrontam a suposta ordem da legalidade e normalidade institucional de classe. Afirmar que o sentido das cotas é um tipo de imposição – forçar - e que esta imposição não tem nada de sensata é coisa de radicais é uma forma de negação e desqualificação em torno dos sentidos sobre o debate das cotas. IV - Discurso em nome do outro Deslocar-se de sua posição sujeito e enunciar em nome de um outro com que mantém uma relação interdiscursiva de conflito/negação, é o mesmo que tomar a palavra em um gesto violento, em nome do seu adversário e falar por ele como se ele não tivesse voz, efeito suficiente para se pronunciar e enunciar seus discursos. Falar em nome do seu adversário é a tentativa desesperada de desqualificar o outro. Em (47), “porque será discriminação para com eles, portanto não deve ser nem discutido (não)”, há duas considerações possíveis: a primeira é a possibilidade de significar as cotas como uma prática discriminadora, não em relação ao branco, mas contra os próprios reivindicadores. Um dos efeitos dessa ressignificação é querer simular que não é contra as cotas em virtude de sua posição de classe ou ideologia. Está, com essa posição, querendo evitar discriminação sobre os afros-descendentes, o que justifica seu discurso de oposição. Se se considerar, no fio do discurso, que o uso do operador, no discurso porque vem explicar e marcar sua posição contra cujo efeito de sentido pode ser de ênfase, conclusão acabada sem direito a uma provável réplica discursiva ou uma contra-palavra. Na segunda consideração, ainda no fio do discurso, pode-se apreender um outro efeito de sentido de deslocamento brusco da posição sujeito e posição discursiva para uma posição autoritária e antidemocrática. Não é mais a posição de falar em nome do outro, na posição do outro, mas na sua própria posição ideológica. Se o primeiro discurso tem por efeito explicitar a negação, o segundo, introduzido pelo operador discursivo portanto, ao contrário do que se poderia supor que o sujeito iria continuar discursivamente na mesma posição, rompe bruscamente com o primeiro discurso. O sentido desse novo deslocamento é como se houvesse uma relação ou conseqüência lógica entre os dois discursos: porque X portanto X’. X não é sua posição e sim a do outro, em X’ seria um efeito, ainda estaria falando pelo outro. A relação é diversa: porque X portanto Z. A posição Z é a posição ideológica ao passo que a posição X’ seria o efeito que deveria cobrir a posição Z como se fosse evidente. Um outro aspecto que reforça a posição ideológica de Z é a dupla negação, não e nem, cujo efeito é o de fechamento de qualquer possibilidade, até de discutir (a discussão de idéias é uma marca das democracias). Caso haja consenso de que a atual situação dos negros é de desvantagem, então deve haver um consenso de que há alguém que está em vantagem. Então (47) seria a manutenção violenta do estado de coisas. Em (66), “os negros não precisam deste tipo de favorecimento [cotas]”, há uma certa sutilidade discursiva no deslocamento ao falar no lugar do outro, pois as marcas ideológicas/discursivas quase não são perceptíveis na superfície lingüística, o que não denuncia a sua própria existência. É, assim, possível observar o seguinte: em primeiro lugar, esse discurso se constitui a partir, entre outros fatores, de um deslizamento de sentido de uma afirmação positiva (a necessidade das cotas) para uma afirmação negativa (a negação das cotas). Pode-se considerar, de alguma forma, a seqüência como demonstração desse deslizamento, entre outras possíveis: a) os negros reivindicam uma reparação histórica pela escravidão; b) a política de ação afirmativa é um tipo de reparação histórica dos negros; c) a política de ação afirmativa é uma reivindicação dos negros; d) uma das propostas da política de ação afirmativa é a cota; e) a cota é uma das formas de reparação histórica; f) os negros reivindicam a cota; g) a cota é uma reivindicação dos negros; h) os negros precisam da cota; i) cota é diferente de favorecimento; j) a cota não é um tipo de favorecimento; k) a cota é um tipo de favorecimento; l) os negros não precisam de favorecimento; m) os negros precisam do favorecimento; n) os negros precisam desse favorecimento; o) os negros precisam deste favorecimento; p) os negros precisam deste tipo de favorecimento; q) os negros talvez precisem deste tipo de favorecimento; r) acho que os negros talvez precisam deste tipo de favorecimento; s) os negros precisam talvez deste tipo de favorecimento, acho; t) os negros não precisam deste tipo de favorecimento. Em segundo, o deslocamento da posição sujeito implica em ressignificar negativamente as cotas, desqualificando-as, cujo efeito seria a recusa dos negros pelas cotas. Dessa forma há um efeito de distanciamento do sujeito tanto de sua posição, possivelmente nãonegro, como da posição do negro, que reivindica as cotas. Isto implica em se colocar em um lugar supostamente neutro pelas seguintes estratégias discursivas, como relação tensa em torno dos sentidos. Cotas têm um sentido positivo dado a sua configuração de um discurso de políticas afirmativas, ao passo que favorecimento – no discurso do senso comum e nas competições, concursos etc. equivale e demérito - implica em algo negativo, indesejável uma vez que favorecimento sempre é levar vantagem em detrimento de alguém, o que deixa entrever uma certa prática desonesta em menor grau de sentido. Então cotas passam de positivo para negativo. O efeito como conseqüência é que ninguém deveria desejar ou se identificar com algo negativo. Ao mesmo tempo, também, acontece o apagamento de um certo estigma e preconceito de ser negro na medida em que os negros passam a significar positivamente (sem estigma e preconceito) para recusar o favorecimento. Assim, se ser negro tem um sentido positivo, então deve recusar o favorecimento, se ser negro tem um sentido negativo, então justifica não recusar o favorecimento. V - Algumas possíveis marcas de racismo De acordo com Possenti (2002: 107), “o racismo não pode só depender de palavras” todavia é nelas que talvez esteja sua maior forma de materialização, seja para negar, ou seja para denunciar ao mesmo tempo. Para compreender um pouco a forma de racismo no âmbito da palavra, ainda em Possenti (2002a.: 46), “a utilização de termos escolhidos com demasiado cuidado denunciaria, exatamente pelo cuidado (...) Assim, como a denegação acaba por afirmar, escolhas muito cuidadosas pareceriam sintoma de preconceito”. Para o sociólogo Fernandes (1999: 254. Apud: P. de Souza) “o brasileiro não evita, mas tem vergonha de ter preconceito”. Essa vergonha de ter preconceito não impede a sua manifestação no plano do discurso (sem desconsiderar que o discurso também é um tipo de prática) ou na prática (ação). Nesse jogo, há certos lugares de materialização do racismo em que não é possível dizer-se racista ou ser acusado de racista objetivamente, esse lugar é a piada, os ditos, o discurso do senso comum, os estereótipos e as brincadeiras travestidas na cultura. Não é sem propósito que o racismo é crime na forma da lei. Uma outra reação ou resistência, importada de forma diversa dos norte-americanos e anglo-saxões, é o politicamente correto (Possenti, 2002a: 38), que “inclui em especial o combate ao racismo e ao machismo, à pretensa superioridade do homem branco ocidental e sua cultura pretensamente racional”. No decorrer das análises foi visto que ser contra ou estar contra as cotas é marcar uma posição ideologicamente de classe entre outras. Como um dos objetivos foi analisar a configuração discursiva contra as cotas, por isso não foi feita uma análise minuciosa para averiguar se a posição de classe ou ideológica comporta (parcial ou totalmente) ou não o sentido de racismo, ou seja, será que todo discurso que é contra as cotas pode-se dizer racista em algum nível, ou ainda, marcar posição de classe é uma forma velada de não se dizer ou assumir racista. Não é o propósito “descobrir” discursos racistas rigorosamente, no entanto, acredito que alguns deles não “resistiram” e “deixaram”, se não uma declaração racista, pelo menos algumas marcas que talvez se possa dizer que ficaram à mostra na enunciação contra as cotas. A despeito disso cumpre ressaltar o que disse Possenti (idem, 42-3): os locutores que produzem tais discursos [racista e machista] acabam por ser classificados, por exemplo, como racista, machista (...), com base em sua prática discursiva, ou pelo menos também através dela, mesmo que não tenham intenção de produzir os efeitos que produzem falando, ou, ainda mais, mesmo que não se dêem conta de que seus discursos, por incluírem determinados termos marcados, têm efeito. Além disso, há outro aspecto relevante: alguns falantes se dão conta e outros não, da carga negativa ou positiva de certos termos. Hora das considerações. No enunciado (52), “essa atitude reforça o racismo (não)”, há a confirmação da existência de um racismo interditado, fraco ou racismo cordial (Souza, 1999: 254) que resiste de forma tensa pela presença do interdiscurso: da Lei (Constituição Federal), da vergonha de ter preconceito (Fernandes, 1999: 254) ou ainda do politicamente correto (considerando que o último sistema de restrição ou discurso é um pouco mais recente, pelo menos no Brasil). Toda prática ou ação de resistência, de alguma forma, é também um modo de ficar à espreita ou uma forma de “tática da ocasião” (De Certeau: 1990), à espera de uma oportunidade de materializar-se ou mostrar-se. Assim, o discurso das cotas não apenas possibilita um espaço de materialização (contra) como também favorece a possibilidade do discurso racista se investir de mais sentido para o racismo se materializar ou resistir face à presença do interdiscurso ou sistemas de exclusão (Foucault, 1971) que o constrange, ou seja, é uma oportunidade de mostrar-se racista sem ser diretamente interditado. As cotas acabam por se constituir em um álibi discursivo. Dizer, mesmo que se colocando à distância, como faz o sujeito de (52), que “essa atitude reforça o racismo”, não o nega e, acima de tudo, afirma que agora tem um sentido ou uma razão a mais para sua existência e re-inscrição ou manutenção. O enunciado (57), “absolutamente a maior prova de que somos diferentes e que uns são mais capacitados que os outros. A maior prova de racismo possível. O fim dos tempos. A luta pela igualdade foi por água abaixo (não)”, pode-se dizer que a marca do discurso racista se sustenta e é constituído a partir de outros discursos: a afirmação da diferença pela capacidade pode implicar em uma relação entre desiguais que concebe, de um lado, o branco como diferente e, portanto mais capacitado enquanto negro desigual menos capacitado. Diferentes e capacitados dizem respeito a sentidos de superioridade inata (pelo menos nesse discurso), ou seja, o sujeito já nasce com este ou aquele traço biológico com o qual o distingue dos outros e não como um traço cultural, que seria o de se supor. Considerar-se diferentes e capacitados está sempre relacionado ao outro que geralmente não pertence à mesma classe ou que tem uma história de dominado que é acompanhada e constituída por certos estigmas e estereótipos histórico-social. No fio do discurso do sujeito – a maior prova de racismo possível. O fim dos tempos - acontece um deslocamento de posição sujeito como condição para ressignificar em outro lugar (o de vítima) o efeito de seu discurso. É historicamente notório que a prática e discurso do racismo têm procedência quase que exclusivamente européia, do homem branco e ocidental. Conforme Geraldi (2001: 2), “apequenou-se no feito de desqualificar o diferente e moldá-lo à imagem real e concreta do homem branco, ocidental e europeizado”. Esse de lugar de exercício de poder e do discurso institucionalizados que só reconhece a si mesmo, nas disputas em torno dos sentidos, sua palavra já vem com certa procedência de garantia de efeitos, fato que ele passa de racista à vítima do racismo – conforme Santos (2002: 35), seria “um racismo às avessas” -, ou seja, o branco escraviza o negro e, quando este, pela sua luta, se liberta na demanda de outros sentidos, ele é quem passa ser racista. No entanto, é comum no discurso do senso comum acusarem o negro de racismo (o negro é o primeiro a ser racista, tem que acabar com o racismo do negro para acabar com o racismo dos outros etc.). Dizer que as cotas são a maior prova de racismo possível. O fim dos tempos seria o mesmo que acusar o outro daquilo que, em primeiro lugar, ele está procurando se libertar ou se esquivar de uma materialidade dos sentidos; e em segundo, da prática do racismo e dos efeitos de sentido que recaem sobre ele. A relação não é invertida, como o efeito de sentido deixa sugerido: o negro (condição dominado e estereotipado historicamente) vitimizado pelo branco (condição de dominador e estereotipador historicamente); o negro passaria agora (com as cotas) a vitimizar o branco (condição de dominado e estereotipado) o levaria a supor que o negro também exploraria o branco. No entanto, a relação não é esta, as cotas vêm, como parte de uma política, combater a desigualdade para que possa falar que brancos e negros são diferentes e iguais. Mas, para isso, ela (política) precisa combater o estereótipo, conforme Souza (1999: 256), que “assinala a vigência da repetição de uma mesma pauta de sentidos para se referir ao negro. Rudeza, incapacidade, licenciosidade”. Esse mesmo discurso que acusa as políticas de afirmação de uma prática racista e injusta, de acordo com Santos (2002a: 36), é o mesmo discurso que, por volta da libertação dos escravos, circulava nos jornais da época; “é uma injustiça dilapidar o patrimônio dos fazendeiros”. Esse discurso da época ainda é parafraseado, assumido ainda hoje, pelos jornais, conforme Santos (idem), “todos os grandes jornais são contra as políticas afirmativas. Folha de S. Paulo, Estado de São Paulo, O Globo... Os editoriais são freqüentes”. Se na época se tratava de dilapidar o patrimônio, hoje é garantir acesso a uma instituição que é um tipo de patrimônio para a burguesia, o ensino superior gratuito. Em (62), “... estou revoltado... Quem não é racista está virando (não)”, o sujeito também não nega o racismo, até o admite, e tenta se manter à distância para dizer que não é, mas que possivelmente outros poderão ser racistas em decorrência das cotas. Estar revoltado é uma forma de dizer que é contra a ponto de admitir que pode ou vai se tornar racista. De novo a mesma estratégia discursiva, o sujeito se desloca para um lugar supostamente neutro e fala em nome de outros sujeitos que ele quer representar: os outros não são racistas, mas são contra as cotas e agora têm um motivo para ser racista, ou de outra forma, agora eles têm um álibi para mostrarem-se racistas. Assumir que os outros são e que outros ainda poderão ser também, é querer não se dizer racista ou não assumir uma posição mais evidente, o que equivaleria a estar revoltado. Em (67), “garanto que esta idéia só vai prejudicar a qualidade acadêmica do ensino superior”, há duas questões básicas: uma diz respeito à presença de um sujeito cuja presença se fará inscrever em um espaço social privilegiado para a classe social dominante. Esse sujeito estereotipado historicamente, conforme Souza (1999: 257), pela “rudeza, incapacidade, licenciosidade designam pontos de cristalização discursiva (...) regidas por um mesmo eixo de fixação de significações e constituição de alteridade”, tem a possibilidade que se reveja sua posição social e os sentidos que o constitui em negativamente. Rever sentidos e posições sociais não acontece como um ato ou um discurso impune aos revezes das disputas. Se de um lado está o negro a demandar novas significações, de outro lado está o não-negro a resistir a essas novas significações. Daí a tentativa de que o negro não saia do lugar social que lhe vem sendo destinado, que de certa forma o questionário da pesquisa (a título de exemplificação) realizada pelo Instituto de Pesquisa Datafolha (In: P. de Souza, 1999, 252-3), a respeito do provável racismo, consegue sintetizar de alguma forma os discursos acerca do negro, reproduzo o questionário para ilustrar um pouco desse discurso: 1. Negro bom é negro de alma branca?; 2 as únicas coisas que os negros sabem fazer são música e esporte?; 3. se Deus fez raças diferentes, é para que elas não se misturem?; 4. negro quando não faz besteira na entrada, faz na saída?; 5. se pudessem comer bem e estudar, os negros teriam sucesso em qualquer profissão?; 6. uma coisa boa do povo brasileiro é a mistura de raças?; 7. toda raça tem gente boa e gente ruim, isso não depende da cor da pele?; 8. quem são mais inteligentes, os brancos ou os negros?; 9. você já votou ou votaria em algum político negro? 10. O que faria se tivesse um chefe negro? 11. o que faria se várias famílias negras viessem morar na sua vizinhança? 12. o que faria se seu filho ou filha casasse com uma pessoa negra? Daí que em (67) é possível que haja algum tipo de racismo ou preconceito em relação ao negro, discurso que não está ao acaso, mas fazendo significar certas posições ideológicas. A segunda questão se estrutura na primeira. Somente um sujeito como esse e com essas significações, com certa estabilidade, ainda que tensas, não faz sentido nesse espaço social, tanto que o efeito dele nesse espaço vai prejudicar a qualidade por ser menos capaz, condição inata, seria o mesmo que confirmar a demanda de sentidos no discurso do Datafolha nas perguntas de número 1, 2, 4, 5 e 8, a princípio. Talvez fosse o caso de indagar que outros povos ou etnias, como os índios, os asiáticos (japoneses e chineses etc.), os europeus (italianos, austríacos, húngaros, croatas, alemães etc.) que constituíram colônias no País se enquadrariam na mesma prerrogativa de prejudicar a qualidade acadêmica do ensino superior, considerando-se que estes vieram como estrangeiros, com exceção dos índios que aqui já estavam. Poderá não ser sem acaso que dois termos nesse discurso provocam redundância (acadêmica e superior) ou um efeito sutil a mais de sentido. O termo acadêmica está se referindo ao ensino universitário, dadas as condições de produção do discurso. O termo ensino superior se refere à atividade acadêmica, ou seja, se um remete ao outro e podem até ser sinônimos (nesse discurso) a suposta redundância não estaria a demandar efeitos de que a academia seria para aqueles que estão lá - superiores ou oposição ao negro que é inferior - e não para aqueles (desiguais) que nela desejam ingressar por outro sistema, supostamente. Talvez seja especulação em torno dos sentidos. VI - Considerações Finais Considerando que as cotas são um tipo de discurso da ordem do político e das relações históricas e sociais inscritos na agenda de demanda nacional, pode-se dizer que elas encontram forte resistência para significar-se enquanto um discurso de reparações históricas pela escravidão dos povos africanos. Isso, talvez, decorra da ausência de uma memória discursiva de políticas de reparação das minorias no País, pois, as cotas não são um discurso recente. Outros países, apesar das polêmicas, como os Estados Unidos da América – a Suprema Corte Americana recentemente confirmou as políticas de cotas para as universidades americanas -, a Índia, desde 1948, a Malásia, desde a década de 50, o Líbano, a Noruega, a Bélgica, o Canadá, a África do Sul etc., cada qual adaptando as condições históricas e culturais reconhecem e confirmam as cotas como parte de um processo de reparação e afirmação. O discurso de reparação histórica do negro pela escravidão encontra forte resistência, produzindo um efeito de sentido não apenas pela negação da identidade, da igualdade, mas como se não tivesse ocorrido a escravidão e nem o negro ou tendo sido um acontecimento irrelevante historicamente. Esse discurso, pelas relações que estabelece com o poder, não fará sentido na memória da história do Brasil sem antes se impor e vencer – sempre provisoriamente à espera do próximo embate - os processos de interdição (processos judiciários e a recusa “pessoal de reitores e governadores”), os sistemas e regimes de verdades (desqualificação, críticas, ataques, manifestação), assim, constituindo um espaço no social e na memória que lhes são próprios. Considerando a dispersão dos discursos, dos sujeitos e dos enunciados, é possível inferir, entre outras questões, que as cotas colocam em cena não só a questão da reparação histórica, o racismo travestido de preconceito, e uma certa passividade do negro, mas, sobretudo, que ela se inscreve na reivindicação de um espaço social que se constituiu em algo de valor significativo e contraditório, ao mesmo tempo, para a classe média e para uma boa parcela da elite brasileira. Referências Bibliográficas CERTEAU. M. de (1990). 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