O Diabo mora ao Lado 29 Polegadas, de Joselito Crispim e Bernard Attal, é um filme estranho, a priori, mas que cresce na memória com o passar do tempo Por Cláudio Marques O encontro entre um francês (Bernard Attal) com o coordenador do Bagunçaço (Joselito Crispim) resultou numa série de workshops em Alagados e na realização de dois curtas. Dentre esses, está 29 Polegadas, recentemente selecionado para o Festival de Cinema de Pernambuco. Trata-se de um filme muito bem articulado, mas estranho e até mesmo frio, apesar de seu conteúdo social e elementos de suspense. A história gira em torno de uma mulher que trai seu marido com o vizinho. Logo após o marido sair para o trabalho, ela passa para a casa ao lado para desfrutar do bem bom. Deliciosa cena, essa, aliás, da passagem da infiel. A câmera acompanha seu andar, a saia vermelha acaricia suas pernas, num dia de luz intensa, que realça as cores da parede ao fundo e celebra a alegria e disposição da mulher para a vida. Logo em seguida, sujeito de violão e voz excelentes se inspira nos gemidos do casal para cantar mais gostoso, no batente da casa do vizinho. Mas, uma TV 29 polegadas entra na história e desestabiliza tênue harmonia. Sonho de consumo, o aparelho eletrônico modifica os comportamentos, sobretudo do amante. Aqui, obviamente, entra a denúncia, não apenas do poder corrosivo da TV, mas da pobreza cultural a qual está presa boa parte da população. A história, em si, é simples e poderia, apesar de séria, ser apresentada de forma limitada, banal e mesmo sensacionalista. Mas, 29 Polegadas foge do óbvio, justamente pela destreza como os elementos cinematográficos são elaborados. Existem duas articulações claras e distintas, que se unem em momentos chaves do filme. Elas delimitamse, entre muitos outros aspectos, pelo espaço físico. As seqüências exteriores são sempre muito claras, luz espetacular. Os cenários são caóticos, periferia abandonada, pobre, mas repletos de cores e vida, passada e presente. Roupas no varal, jogo de dominó em meio às ruínas de antigas fábricas, pessoas indo e vindo. Momentos de contemplação, que funcionam como respiro de uma situação crescente e tensa. Tal situação acontece, via de regra, no interior das casas, que é escuro, nebuloso, granulado, chega a ser feio, mesmo. Espelho do caso e personagens, o espaço interno determina atmosfera terrificante, apoiada numa narrativa meticulosa. Plano após plano, algum novo elemento vai sendo cuidadosamente colocado, compondo cada personagem e arquitetando situação que tende ao limite. De antemão, não se sabe aonde tudo vai parar. Algo pouco comum, em tempos que já se entende tudo o mais na primeira cena. De forma curiosa, ao mesmo tempo que esse bem articulado discurso cativa, também distancia, graças a uma estranha frieza imposta pela narrativa e protagonistas. O marido é metódico, recluso e discreto. O amante, caliente na cama, mas malandro e, por isso mesmo, jogador e calculista. Eles não gritam, não esperneiam, não partem para agressão física. O malandro quer manter suas vantagens, não causa o confronto direto, que poderia colocar tudo a perder. Apenas a mulher, numa ou colocar tudo a perder. Apenas a mulher, numa ou outra cena, parece perder o norte, mas rapidamente se encontra ou mesmo resigna-se. Essa opção, em princípio, soa muito estranha para latinos de sangue quente, o que aproxima 29 Polegadas a um ar europeu de contenção das emoções. Mesmo numa cena crucial, a da arma, tudo é revelado com muito controle e tranqüilidade aparente. Mais ainda no desfecho, trágico e plenamente entendível, mas colocado em cenas silenciosas, discretas. Ainda nesse sentido, essa forma de olhar remete ao pensamento de Brecht, que propõe distância do objeto analisado, para que esse possa ser melhor compreendido. Bem diverso da idéia da catarse, que demanda sofrimento contínuo e que influencia diretamente nossas realizações. 29 Polegadas arrisca para um lado oposto ao qual estamos acostumados e se torna, automaticamente, um corpo estranho. Talvez seja mais fácil que o filme ganhe reconhecimento em festivais fora do país. Verdade, também, que 29 Polegadas tende a crescer na memória com o passar do tempo, sobretudo quando há disposição de se debruçar sobre o curta. Vale ressaltar, por fim, o excelente trabalho dos atores, dotados de tipos físicos fora do padrão usual estabelecido. Bertho Filho, figura conhecida por aqui, tem um rosto muito interessante e é filmado com extremo carinho. *Confira outras críticas de Cláudio Marques Esses Moços Do Luto à Luta Herói e Clã das Adagas Voadoras Amor à Flor da Pele Menina de Ouro O Anjo Daltônico Cadastrado em 06/05/05