IZABELLA GOMES LOPES BERTONI
CONCEITUALISMO E EXPERIMENTAÇÃO EM UM CONTEXTO POLÍTICO
AUTORITÁRIO: FORMAS DE ATUAÇÃO NA OBRA DE CILDO MEIRELES
(1970-1975)
CURITIBA
2004
IZABELLA GOMES LOPES BERTONI
CONCEITUALISMO E EXPERIMENTAÇÃO EM UM CONTEXTO POLÍTICO
AUTORITÁRIO: FORMAS DE ATUAÇÃO NA OBRA DE CILDO MEIRELES
(1970-1975)
Monografia apresentada ao Curso de
História do Setor de Ciências Humanas,
Letras e Artes, Universidade Federal do
Paraná.
Orientador: Prof.º Marcos Napolitano
CURITIBA
2004
ii
SUMÁRIO
RESUMO..................................................................................................................iii
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................1
2 ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: A busca por uma totalidade (19651975)......................................................................................................................5
2.1 Figuração e crítica na arte brasileira...................................................................5
2.2 A idéia sobrepondo-se à forma: a inauguração do conceitual..........................13
3 ARTE E OU OU ENGAJAMENTO POLÍTICO?..................................................19
3.1 Condição limite: Tiradentes: totem monumento ao preso político................... 21
3.2 Os graffitis móveis: Inserções em circuitos ideológicos....................................27
3.2.1 Projeto Coca-Cola..........................................................................................31
3.2.2 Projeto Cédula...............................................................................................34
4 O CONSUMO DA RESISTÊNCIA ISOLADA PELO SISTEMA..........................39
5 CONCLUSÃO......................................................................................................51
REFERÊNCIAS......................................................................................................54
ANEXOS.................................................................................................................58
iii
RESUMO
A arte contemporânea, desde os primeiros movimentos pós-modernos, propõe
diversas questões que circulam entre a utilização de um determinado suporte até
os temas a serem trabalhados por ela. Encontramos essa forma de abordagem na
produção artística brasileira entre as décadas de 1960 e 1970. No campo das
artes plásticas, esse período ficou representado pela utilização de temáticas que
envolviam aspectos éticos, políticos e sociais. Tais temáticas haviam sido
influenciadas pelas tendências da pop art norte-americana e pela nova figuração
ou neo-realismo europeu, além da proposta duchampiana de apropriações de
objetos industrializados e/ou do cotidiano, levados para o campo da arte – os
chamados ready mades. No Brasil, após o golpe militar de abril de 1964, alguns
artistas passaram a se utilizar dessas novas formas de linguagem para apontar
questionamentos a realidade política do país e para emitir críticas sociais. Dessa
forma, dispensavam a estética realista, tradicionalmente utilizada por artistas ditos
“oficiais” da esquerda, em detrimento de linguagens que eram associadas a uma
postura mais crítica. Dentro dessa perspectiva insere-se as obras Tiradentes:
totem monumento ao preso político (1970) e a série Inserções em circuitos
ideológicos: Projeto Coca-Cola (1970) e Projeto Cédula (1975), do artista plástico
Cildo Meireles. Tanto Tiradentes: totem monumento ao preso político quanto a
série Inserções em circuitos ideológicos foram representativas de uma fase de
conscientização criada pela realidade castradora delineada ao longo do regime
militar brasileiro (mais precisamente ao período que vai de 1968 até meados da
década seguinte). Essas obras representam igualmente a tendência da vanguarda
das artes plásticas em partir para uma radicalização artística pautada na estética
da violência, ultrapassando as experiências artísticas de liberdade de participação
da década de 1960. Tiradentes... aborda a temática do tratamento destinado aos
presos políticos em um regime de exceção. O Projeto Coca-Cola propunha uma
crítica à sociedade de consumo em massa, utilizando-se do próprio mecanismo
desse sistema para colocar em circulação uma ideologia contrária a ele. Já o
Projeto Cédula buscava trazer à tona o sistema prisão-tortura-morte
institucionalizado pela ditadura militar e evidenciado pela morte do jornalista
Wladimir Herzog. A escolha por tais obras deu-se por representarem um período
das artes plásticas no Brasil que ficou marcado pelo engajamento mais incisivo e
pelo posicionamento mais radical em relação às questões políticas do país.
Buscamos, com a análise delas, tornar evidente essas formas reduzidas e
individualizadas de ação que mantiveram e subsidiaram a oposição ao regime
vigente, estabelecendo uma perspicaz e representativa alternativa de divulgação
desse posicionamento. Com isso, evidenciamos a trama de relações entre artista
e função social da obra. Assim, partimos para uma pesquisa interdisciplinar,
analisando os contextos sócio-cultural e político em que as obras foram
produzidas, com o objetivo de encontrarmos neles suas origens e significações.
Palavras-chave: arte contemporânea;
comprometimento social.
vanguarda;
engajamento
político;
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho de pesquisa visa abordar as formas de comprometimento
político e social presente nas artes plásticas brasileira entre o final da década de
1960 e início da década de 1970. Para estudar esse tema, escolhemos como
objeto de pesquisa três obras do artista plástico Cildo Meireles produzidas entre
os anos de 1970 e 1975. Entre as diversas obras de Meireles desse período que
poderiam ser associadas ao tema proposto acima, escolhemos especificamente
Tiradentes: totem monumento ao preso político (1970) e a série Inserções em
circuitos ideológicos: Projeto Coca-Cola (1970) e Projeto Cédula (1975). Essa
escolha é justificada por considerarmos tais obras representativas do ambiente
artístico em que elas foram criadas. Tanto Tiradentes... quanto a série
Inserções..., possuem, intrinsecamente, questões formais e temáticas presentes
na arte contemporânea mundial.
Em
suas
análises
abordamos
problemáticas
referentes
à
arte
contemporânea que, a partir dos primeiros movimentos pós-modernos, propunha
questões que abarcavam desde a utilização de um determinado suporte até os
temas a serem abordados por ela.
Em relação à arte contemporânea brasileira, essas questões são
evidenciadas durante o período de produção das vanguardas artísticas das
décadas de 1960 e 1970. Esse período ficou representado por tendências
voltadas ao experimentalismo formal e ao comprometimento com a crítica da
realidade política e social do país. Tais temáticas eram representadas sob a
influência de tendências da arte mundial, como a pop art norte-americana e a nova
figuração ou neo-realismo europeu, além da proposta duchampiana de
apropriações de objetos industrializados e/ou do cotidiano, levados para o campo
da arte – os chamados ready mades. Dessa forma, alguns artistas dispensavam a
estética realista, tradicionalmente utilizada por artistas ditos “oficiais” da esquerda,
em detrimento de linguagens que eram associadas a uma postura mais crítica.
2
Durante a primeira metade da década de 1970, as artes plásticas ficaram
marcadas por uma radicalização temática, caracterizada por sua constante
politização. Cildo Meireles, dentro desse ambiente de produção, passou a
representar a posição dos presos políticos e dos marginalizados socialmente,
trabalhando com a temática do sacrifício, criticando a sociedade de consumo em
massa e denunciando o sistema prisão-tortura-morte institucionalizado pela
ditadura militar. Agrupando, desse modo, elementos que conferiam às suas obras
o caráter de arte engajada.
Sendo assim, a importância que se pode perceber nas obras de Meireles
está ligada a essa maleabilidade de tocar em temáticas importantes para o
momento histórico, sem deixar de lado questões estéticas intrínsecas à obra de
arte.
Por meio da análise contextual do período, da abordagem da situação da
produção artística dentro de um regime de exceção e das associações destes com
as características das obras de Meireles, realizamos um levantamento da maneira
como essas obras foram usadas como meios de contestação política e social
dentro de um regime ditatorial. As formas de circulação dessas obras dentro do
corpo social e as preocupações estéticas contidas em cada uma delas foram
também apontadas. Objetivamos com a análise das obras fazermos uma reflexão
a respeito da produção artística engajada politicamente e comprometida com uma
forma de arte experimental.
O procedimento que foi adotado para a realização deste trabalho uniu
algumas propostas de abordagens e métodos de pesquisa em artes plásticas. As
formas de leitura de imagens selecionadas para este trabalho foram a semiológica
– que enfoca os símbolos, signos e sinais presentes nas imagens – e a
iconográfica – que aborda os conteúdos temáticos e o significado das obras.
Essas formas de leitura não foram praticadas isoladamente, mas ao longo do
texto, mesclando-se para possibilitar uma riqueza maior de interpretação. A
primeira buscando ressaltar o caráter político e social da obra, e a segunda o seu
conteúdo estético, sem, com isso, hierarquizar essas abordagens.
3
Juntamente com essas etapas de análise, apoiando-nos em alguns eixos
teóricos, buscamos fazer uma “[...] análise das ‘entidades criativas’, os artistas,
parcerias e grupos de criação reconhecíveis, localizando os materiais e vivências
sociais e ideológicas que norteiam seu ato e processo criador; [...]”,1 e a união do
debate estético-ideológico das técnicas, dos materiais e das discussões da época.
Com isso pretendeu-se atingir os diversos aspectos da obra, buscando responder
aos objetivos propostos para este trabalho.
Sendo a arte engajada durante a década de 1970 o tema geral pesquisado,
podemos inserir este trabalho na vertente historiográfica denominada história
social da arte, uma vez que o objetivo de abordar essas obras de Cildo Meireles é
tentar encontrar nelas todo o contexto de discussão cultural ao qual elas foram
produzidas. Para isso trataremos essas obras como fenômenos sociais passíveis
de revelar “[...] uma determinada sociedade e momento histórico [...]”.2
De acordo com Maria Amélia Bulhões, “[...] a pesquisa, tendo como objetivo
o fato artístico e seu processo, desenvolveu-se de forma pouco sistemática e
integrada. [...]. Evidencia-se uma defasagem bastante grande da área de artes
plásticas com relação às demais áreas do conhecimento.”3 Assim, a investigação
do tema engajamento político nas artes plásticas torna-se relevante devido à
escassez de produções acadêmicas voltadas para análises relativas à arte
contemporânea brasileira. Por isso, um trabalho como este busca revelar algumas
facetas das obras de um artista, que foi extremamente representativo dentro do
panorama cultural e das artes plásticas no Brasil, tanto na década de 1970 como
nos dias atuais.
No primeiro capítulo deste trabalho traçamos um panorama do contexto
artístico brasileiro da década de 1960 e meados da década de 1970, numa
tentativa de localizar nosso objeto no campo das artes plásticas. Buscamos em
1
NAPOLITANO, M. História e arte, história das artes ou simplesmente história. In: NODARI, E.;
PEDRO, J. M.; IOKOI, Z. M. G. História: fronteiras. São Paulo: Humanitas / FFLCH / USP:
ANPUH, 1999. p. 907.
2
VELHO, G. (Org.). Arte e sociedade: ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1977. p. 7.
3
BULHÕES, M. A. A pós-graduação e a pesquisa em artes plásticas no Brasil. In: PILLAR, A. D. et
al. Pesquisa em artes plásticas. Porto Alegre: Ed. Universidade/ UFRGS/ Associação Nacional
de Pesquisadores em Artes Plásticas (ANPAP), 1993. p. 94.
4
algumas exposições ocorridas durante esse período, o cerne da produção, que
fora mais tarde, denominada de arte conceitual. Abordamos também neste
capítulo a confluência entre uma radicalização temática e as primeiras
manifestações da arte conceitual no Brasil. Buscamos analisar no segundo
capítulo as obras de Cildo Meireles, sempre evidenciando nelas uma provocação
à realidade social brasileira desse período. Por fim, no terceiro capítulo optamos
por observar a recepção e legitimação da obra de arte engajada por parte da
crítica especializada da época. Tentando reconhecer as exigências que geraram
os novos caminhos para a crítica de arte brasileira a partir dos movimentos de
vanguarda dos anos 1960 e 1970.
2 ARTE CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA: A busca por uma totalidade (19651975)
2.1 Figuração e crítica na arte brasileira
A arte brasileira, sobretudo na década de 1960, foi tingida por diversas
nuances estéticas e temáticas que fizeram desse período um ambiente de
renovação e de reflexão. Entre o final dos anos 1960 e início dos anos 1970, as
artes plásticas brasileira foram marcadas por uma espécie de transgressão a
norma, pela finalização da figura do artista como um gênio criador, abrindo as
possibilidades para criações coletivas, e pelo aparecimento de uma gama enorme
de caminhos para o campo estético. Unido a essas transformações, foram
inseridas nas problemáticas propostas por alguns artistas a dimensão ética, social
e política. O elemento que, no mínimo, pode ser chamado de interessante e que
marcou o campo das artes plásticas desse período foi a mudança de
comportamento, tanto em relação à arte como em relação à sociedade e ao
mundo em os artistas estavam vivendo.
De forma geral e sem delimitar padrões, podemos apontar vertentes que
seguiram o caminho do retorno à figuração, na qual se faziam presentes ícones da
sociedade de consumo e da cultura de massas, e outras, nas quais havia “[...]
trabalhos que desdobrariam as tendências construtivas4 dos anos 50 –
particularmente o concretismo e o neoconcretismo5 junto a outras que rompem e
4
O ambiente desenvolvimentista dos anos 1950 marca o ideal construtivista (ou também chamado
de concretista) brasileiro. Já participam com trabalhos construtivistas na I Bienal de São Paulo, em
1951, Ivan Serpa e Abraham Palatnik. O construtivismo traduzia as leis da física nas leis da
percepção, preocupava-se com as cores e formas, estas na maioria das vezes vindas da
matemática, buscando uma maior objetividade das obras. Dentro do construtivismo, a cor era
submetida à forma, e, aos poucos, esta foi sendo simplificada nas figuras do quadrado e do
retângulo.
5
Por volta de 1954, como uma dissidência do construtivismo de São Paulo, surge o grupo
neoconcreto do Rio de Janeiro, denominado Grupo Frente, do qual fazia parte Aloísio Carvão,
Lygia Clark, Lygia Pape, Hélio Oiticica e Franz Weissman. Entre os neoconcretistas havia um
posicionamento de uma forma de produção de arte que consolidasse um pensamento libertário.
Dele faziam parte tanto abstracionistas como expressionistas e surrealistas. Esse grupo passa a
6
inauguram novos campos de investigações mais radicais sobre o ambiente e o
engajamento do corpo.”6 Essas vertentes sofreram fortes influências das
vanguardas artísticas européia e norte-americana, respectivamente com o novo
realismo francês7 e a pop arte americana8. Já não se fazia presente em grande
escala o alcance “[...] dos abstracionismos informal e geométrico – das questões
eminentemente expressionistas e das tradições construtivistas – [...]”.9
A problemática que se colocava aos artistas de início e meados da década
de 1960 passava primordialmente pela questão da vanguarda, com referências
claras a obra de Marcel Duchamp10 e sua proposta de ready-made, e a liberdade
de criação do artista. “Vivia-se então, realmente, no meio artístico, uma libertação
extraordinária, impulsionada pelo pop norte-americano quanto aos materiais (tudo
passava a ser válido entre nós, e com muita rapidez) e a precariedade dos
ter maior representação quando se propõe a ultrapassar a estética abstrata em função de uma
preocupação social.
6
DUARTE, P. S. Anos 60: transformações da arte no Brasil. Rio de Janeiro: Campos Gerais,
1998. p. 14.
7
Aqui, entenda-se, não havendo relação de aproximação com o realismo socialista – mais
coerente com a proposta de engajamento político das artes defendido pelo Centro Popular de
Cultura da União Nacional dos Estudantes – mas de superação. O novo realismo francês –
também chamado de movimento neofigurativo – aproximava-se mais da nova figuração brasileira,
e surgiu como uma crítica a pop arte norte-americana, buscando uma renovação da imagem no
interior da arte.
8
O nascimento da arte pop se deu na Inglaterra, e seu desenvolvimento nos Estados Unidos, onde
se tornou a representação da sociedade industrial na década de 1960. Essa corrente artística
representa todo o imaginário urbano, com seus supermercados, cinemas, televisão, automóveis,
histórias em quadrinhos, publicidade, ou seja, uma arte baseada no modo de vida e na realidade
norte-americana. Propunha uma comunicação direta com o público por meio de signos e símbolos
retirados da cultura de massas e do cotidiano. O objetivo primeiro da arte pop era o de recusar a
separação arte e vida, levando para o campo da arte as imagens de uma sociedade industrializada
e de consumo. Trata-se aí também da adoção de um outro tipo de figuração, que se beneficiava de
imagens, comuns e descartáveis, veiculadas pelas mídias e novas tecnologias, bem como de
figuras emblemáticas do mundo contemporâneo. “Arte do imediato, do brilho, da alegria, da mais
pura celebração da vida e do quotidiano, a pop revela a beleza do ‘american vulgarism’ e do
prosaico, rejeitando a introspecção e o subjetivismo do Expressionismo abstrato [...], trazendo para
a arte a presença abrupta do objeto.” (MORAIS, F. Opinião 65: ontem, hoje. In: Galeria de arte
BANERJ. Opinião 65. Rio de Janeiro, 1985. Não paginado. Catálogo). A arte pop tem como seus
maiores representantes Andy Warhol, Roy Lichtenstein, Claes Oldenburg, entre outros.
9
DUARTE, op. cit., p. 16.
10
Marcel Duchamp já em 1913, passou a captar objetos que não haviam sido produzidos como
objetos de arte, mas como elementos utilitários, de uso comum e cotidiano, e transpô-los para um
ambiente ao qual não pertenciam: o campo da arte. O ready made mais conhecido de Duchamp é
a Fonte, datada de 1917, e com ele surge todo um pensamento de encarar a idéia como o centro
da obra.
7
trabalhos era quase sempre uma constante nessa época”.11 Sendo assim, Aracy
Amaral aponta para as obras produzidas nesse fervilhar de novidades a “[...]
liberdade de participação e [utilização] de materiais e técnicas novas [...] como o
surgimento do ‘objeto’, tridimensional, ‘apropriações’ pelo artista de ready mades
ou objetos por eles manufaturados [...] representavam mais um ‘protesto’ ou uma
postura do artista em geral diante dos fatos sociais e políticos”.12 Podemos pensar,
então, em uma associação entre as inovações técnicas e críticas à sociedade de
consumo, vindas do pop norte-americano, adaptadas a realidade brasileira
formulando, desse modo, tentativas de crítica social e política por parte dos
artistas da época.
No que se refere às apropriações, Maria José Justino coloca que elas são
as representações da antiarte, que desembocam na compreensão do artista a
respeito da “[...] inutilidade da elaboração do objeto artístico. A partir dessa
compreensão, [...], estão depositados na capacidade do artista os limites para
determinar o que é ou não é obra, que podem ser coisas vivas ou conceitos”.13
Esse processo de apropriações acaba por desarticular o sistema de arte14, pois,
produz uma forma de arte sem autor determinado, sem espectador contemplativo
e sem a aura de uma obra presente em instituições como um museu ou um “cubo
branco”. Sendo assim, o artista abdica de sua posição para assumir o papel de
instigador, mas ainda continua sendo ele quem propõe e cria as obras.
Para esclarecer o surgimento esse ambiente de renovações, voltemos ao
início dos anos 1960, quando toda a modernização implementada no Brasil na
década anterior ainda atingia uma parcela pequena da população. No ambiente
11
AMARAL, A. Arte para quê? : a preocupação social na arte brasileira, 1930-1970: subsídios
para uma história social da arte no Brasil. São Paulo: Nobel, 1987. p. 315.
12
AMARAL, op. cit., p. 333.
13
JUSTINO, M. J. Seja marginal, seja herói: modernidade e pós-modernidade em Hélio Oiticica.
Curitiba: Ed. da UFPR, 1998. p. 92.
14
Isso que estamos chamando de sistema de arte “somente começa a se configurar de maneira
mais concreta a partir dos anos 60. Este termo designaria as instâncias – produção, circuito, crítica,
colecionadores – que se confrontam no processo de formação de um mercado de arte no Brasil.
Sem dúvida elas já existiam anteriormente: tratava-se de uma reduzida elite onde o trabalho de
arte era manipulado de uma forma um tanto diletante, suficiente para lhe dar uma certa
institucionalização, sem porém ocasionar maiores conseqüências.” (VENÂNCIO FILHO, P. Lugar
nenhum: o meio de arte no Brasil. In: FUNDAÇÃO NACIONAL DE ARTES. Arte Brasileira
Contemporânea: caderno de textos. Rio de Janeiro, 1980. Convênio: FUNARTE e Fundação de
Artes da Cidade do Rio de Janeiro. p. 23.)
8
artístico começavam a surgir manifestações derivadas de novas investigações
estéticas unidas a preocupações políticas e sociais – o Cinema Novo representa
bem essa forma de comprometimento social. Por outro lado, com mecanismos
mais “fáceis” de assimilação, estavam as correntes mais explicitamente
engajadas, “[...] cujo paradigma se encontrava nas teses do Centro Popular de
Cultura – o CPC – da União Nacional dos Estudantes/UNE, que começou a
funcionar em dezembro de 1961. [...]. Do ponto de vista estético, suas teses
beócias eram, indubitavelmente, reacionárias.”15 Criado com o intuito de levar a
arte ao povo, principalmente por meio do teatro, o CPC produzia peças que
tratavam das lutas políticas do momento. Aos poucos, foram surgindo outras
formas de manifestações artísticas dentro do CPC, como a dança e a música.
Primordialmente as ações do CPC da UNE eram voltadas para um público
universitário, depois esse movimento foi sendo expandido para os sindicatos e
favelas. De modo geral, a visão do CPC no que se referia a posição do artista
brasileiro era a de que a sua produção não poderia estar desconectada da vida
social do país. A crítica feita pelo CPC aos artistas que não seguiam esta linha de
trabalho se dava no sentido da abrangência da obra: “‘Uma vez realizada a obra, o
artista situa-se diante dela como espectador e, porque consegue captar o seu
sentido em todo o seu alcance, conclui que a obra é humanamente apreensível,
conclui que ela pode se comunicar com todos’.”16 O artista que seguisse a linha
popular revolucionária do CPC se dedicaria a trabalhar com questões que
provocassem identificações ao povo, unidas a linguagens que seguissem uma
tradição realista, negando qualquer forma de experimentalismo17.
15
DUARTE, op. cit., p. 30.
AMARAL, op. cit., p. 322.
17
O CPC classificava em três categorias os artistas e intelectuais, as quais podem ser identificadas
como: conformistas, inconformistas e revolucionários-conseqüêntes. Dentro do CPC era proposta
uma orientação da produção artística distinguindo “arte popular”, “arte do povo” e “arte popular
revolucionária”, sendo as duas primeiras rejeitadas pelo CPC, pois, “[...] ‘tais formas artísticas
expressam o povo apenas em suas manifestações fenomênicas e não em sua essência. Com
efeito, só se pode falar em uma arte do povo e de uma arte popular porque se tem em vista uma
obra de arte ao lado delas, ou seja, a arte destinada aos círculos não populares’. Assim, esta arte
dos ‘senhores’ mostra bem o conformismo social, na medida em que divide em parte a sociedade
e, conseqüentemente, nega o povo” (AMARAL, op. cit., p. 321). Por esse motivo, o CPC opta por
direcionar a sua produção artística para a arte popular revolucionária, no sentido de dar ao povo “o
seu devido lugar”.
16
9
Tomemos como ponto principal a ser discutido a participação das artes
plásticas dentro desse projeto que pode ser chamado de participativo e
comprometido com a realidade social e política do país. De acordo com Aracy
Amaral, a
[...] palidez da contribuição dos artistas plásticos é explicável, como sabemos, pelo elitismo
dos canais distribuidores da produção plástica – ao contrário dos grandes auditórios dos
teatros e festivais, bem como pelo isolacionismo que caracteriza o processo da produção
18
individual do artista, ao contrário de outros setores de criação artística em equipe.
Para tentar romper com esse isolacionismo, surge, durante a década de
1960, grupos de artistas plásticos que tomam a cidade como suporte de suas
obras, ou seja, apresentam seus trabalhos em espaços públicos, tratando de
temáticas do espaço urbano objetivando uma maior abrangência de espectadores.
Com o golpe militar de abril de 1964 as pesquisas formais no campo das
artes plásticas agregaram-se às vertentes políticas das manifestações culturais.
As primeiras manifestações documentadas de intelectuais e artistas referentes à
participação atuante nos problemas sociais, de acordo com Aracy Amaral, surgem
durante a década de 1960, “[...] seja em termos de ‘artista de elite’ versus ‘artista
popular revolucionário’, seja como referência à assunção da arte de conteúdo, a
arte política como único caminho para o artista de seu tempo, a par da
preservação necessária da qualidade de sua produção”.19 A princípio, a crítica
levantada por alguns artistas em suas obras não possuía um caráter
declaradamente político. Segundo Aracy Amaral
É evidente que a década de 60, fervilhante em sua múltipla agitação em nível mundial
como nacional e latino-americano (e aqui a revolução cubana e suas conseqüências
gozariam de repercussão considerável) fez com que vários artistas se interessassem pelos
eventos internacionais e nacionais de maneira excepcional [...]. É inegável, igualmente,
que a expressão criativa dessas temáticas é liberada a partir do acesso de novas técnicas
e novas formas expressivas inexistentes anteriormente, a partir dos novos materiais
20
exibidos nas obras pop americanas.
18
AMARAL, op. cit., p. 328.
Ibid., p. 318.
20
Ibid., p. 329.
19
10
Após o golpe militar, apesar da pequena participação das artes plásticas
nesse ambiente “politizado” e comprometido com uma produção engajada política
e socialmente, o que foi realmente feito sofreu fortes influências das iniciativas do
teatro. Como foi o caso da exposição realizada no Museu de Arte Moderna do Rio
Janeiro (MAM), organizada por Ceres Franco e Jean Boghici, inspirada no show
realizado em 1964, no Teatro Opinião21, intitulada Opinião 65. A leitura política
dessa exposição foi realizada pelo crítico de arte Mário Pedrosa. Mas, no entanto,
quando Opinião 65 foi realizada, esse caráter não era, de modo geral, uma regra
entre os trabalhos expostos. Aos organizadores da exposição o objetivo era o de
unir artistas franceses e brasileiros na tentativa de ampliar o mercado de arte
brasileiro. Junto com isso, Opinião 65 revelou a produção de uma vanguarda
brasileira, apontado para uma nova figuração, com influências da arte pop norteamericana, e para um novo realismo. De acordo com Sérgio Duarte,
Opinião 65 marcou muito mais por mostrar linguagens que se encontravam em gestação
do que por ‘uma ruptura com a arte do passado’. De qualquer forma, o efeito de ‘ruptura’
aparecia. Afinal, pela primeira vez, nas artes plásticas, a questão política e a crítica social
apareciam integradas às novas linguagens e não associadas aos ‘realismos’, como eram
22
freqüentemente tratados pelos artistas ‘oficiais’ da esquerda.
Ao abordarem a nova corrente realista, os artistas não buscavam o enfoque das
classes sociais – operários e camponeses –, mas o apontamento da cultura de
massa e de questões urbanas.
Opinião 65 teve uma repercussão no decorrer da arte brasileira, que se
estende até, aproximadamente, 1968, quando o Ato Institucional n° 5, publicado
em 13 de dezembro desse ano, mudou o país. A exposição Proposta 65
representou a repercussão mais imediata de Opinião 65, aquela organizada pelo
21
O show Opinião teve como interpretes Nara Leão e, depois, Maria Betânia, que cantavam
“Caracará” de João do Vale. Esse show obteve um grande sucesso e representou uma
manifestação de protesto da classe artística contra a censura imposta pela ditadura militar. A idéia
de um show inspirar uma exposição se deu por ser o teatro popular próximo da vida social e da
atmosfera política da época. De acordo com Mario Pedrosa, em depoimento colhido pela equipe da
galeria Banerj de arte, o grupo de Teatro de Arena, com sua Opinião, foi o propiciador do desabafo
dos cidadãos pelo clima de terror e de opressão cultural implementado pelo regime militar. E,
continua, foi desse contexto opressor que surgiu “Carcará”, “um hino da revolução social
camponesa nordestina como Carmagnole o foi da plebe urbana e dos seus sans cullotes da
Revolução Francesa durante o terror.” (MORAIS, F. Opinião 65... Não paginado).
22
DUARTE, op. cit., p. 35.
11
artista Waldemar Cordeiro – e, por ser organizada por um artista, já tinha em seu
princípio um propósito diferente de Opinião 65 –, realizada em São Paulo na
Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). No ano de 1966 essas duas
exposições se repetem, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro.
Nessa adequação das inovações trazidas pelo pop e pelo novo realismo,
surge no ano de 1967, a proposta da exposição Nova Objetividade Brasileira
(NOB), que reunia diversas correntes da vanguarda artística brasileira, enfatizando
o experimentalismo, “[...] corporificando a arte como ‘antiarte’, magnificando a
importância do objeto em detrimento dos suportes convencionais, a vinculação
ambiental [e] participação [...]”23 do espectador. A NOB tinha Hélio Oiticica como
um de seus maiores teóricos e “[...] propunha uma atitude radical dos artistas na
criação em face dos acontecimentos políticos e problemas sociais, afirmando,
antes de tudo, a criação coletiva”.24 Dessa forma, a NOB partia como um
contraponto da forma conduzida pelo CPC da UNE as imposições feitas aos
artistas de produzir uma forma de arte engajada ideologicamente que fosse de
fácil acesso ao grande público, mais definida didaticamente. Segundo Maria José
Justino, “[...] a tendência mais marcante do NOB era a sua inclinação para tornar a
população consciente de seu cotidiano, particularmente das atrocidades do
presente”.25 Na exposição Nova Objetividade Brasileira que ocorreu no MAM do
Rio de Janeiro, Oiticica – que expôs a obra Tropicália, que dá nome ao movimento
Tropicalista de 1968 – apontou o caminho da arte que estava sendo produzida por
aquele grupo:
1 vontade construtiva geral;
2 tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete;
3 participação corporal, tátil, visual, semântica etc., do espectador;
4 tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos;
5 tendência a uma arte coletiva;
6 ressurgimento do problema da antiarte.
Essa é a direção tomada pelo grupo Nova Objetividade Brasileira, que se opunha a
26
qualquer espécie de elitismo, a qualquer forma de contemplação e ilusionismo.
23
AMARAL, op. cit., p. 334.
JUSTINO, op. cit., p. 93-94.
25
Ibid., p. 94.
26
Ibid., p. 95.
24
12
Esse grupo, portanto, propunha a total liberdade de criação e experimentação, o
desenvolvimento de um pensamento e posicionamento político partindo das artes
plásticas, buscando a união de preocupações estéticas atuais com os problemas
políticos e sociais, sem, contudo, a camisa de força de uma ideologia. Era a
vanguarda que estava se impondo, “[...] atuando a priori, forçando caminhos,
criando novos repertórios, ativando a linguagem”.27 De acordo com o crítico de
arte Frederico Morais, o termo vanguarda significa “[...] ação permanente. A arte
como ação e engajamento. O artista de vanguarda não se restringe a produzir
obras. Ele luta por impor suas idéias, que não se esgotam, evidentemente, no
campo estético”.28 E a proposta da NOB representava essa forma de vanguarda,
atuante na ação e engajamento e não apenas preocupada com questões
puramente estéticas ou ideológicas.
Este, entre outros acontecimentos – projetos como Arte no Aterro, realizado
no MAM do Rio de Janeiro – “[...] encerravam, por assim dizer, o ‘clima’ dos anos
60, do artista tentando se articular com o seu entrono coletivo/urbano, sair de sua
interioridade/ateliê habituais em seu fazer artístico”.29 A partir de 1968, “[...]
impossibilitados de qualquer crítica aberta do sistema com a implantação do Ato
Institucional n° 5, a censura e a autocensura se impõem nos meios artísticos.”30
27
MORAIS, F. Artes plásticas: a crise da hora atual. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975. p. 69-70.
Ibid., p. 69.
29
AMARAL, op. cit., p.339.
30
Ibid., p. 336.
28
2.2 A idéia sobrepondo-se à forma: a inauguração do conceitual
A primeira vez que a expressão “arte conceito” apareceu, foi empregada
pelo escritor e músico Hery Flynt, já em 1961. “Flynt escreveu que ‘arte conceito’ é
acima de tudo uma arte na qual o material são os ‘conceitos’, [argumentando em
seguida que], uma vez que ‘os conceitos são estritamente vinculados à linguagem,
a arte conceitual é um tipo de arte na qual o material é a linguagem’”.31 Nas artes
plásticas, os predecessores da arte conceitual foram os ready mades de Marcel
Duchamp32. A partir desse artista a arte conceitual européia desenvolveu-se em
um espaço criado pela vanguarda, apoiada na crítica aos padrões presentes na
arte moderna.33
A partir de 1969, a arte conceitual ficou caracterizada por sua constante
politização. “O debate no mundo da arte, no entanto, tornava-se cada vez mais
politizado no final da década de 60, [...]”
34
principalmente na América Latina, que,
por razões históricas, a vanguarda tornou-se um espaço para intervenções
políticas e culturais devido à pequena abertura para o debate político. De acordo
com Paul Wood, “O conceitualismo da América Latina não era ‘um reflexo,
derivação ou réplica da arte conceitual realizada no centro’35, mas representava,
antes, uma série de ‘respostas locais às contradições geradas pelo fracasso dos
projetos de modernização pós Segunda Guerra e dos modelos artísticos adotados
31
WOOD, P. Arte conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. p. 8.
Na década de 1970, os artistas retornam a apropriação de objetos “que ganham novas funções e
são enriquecidos semanticamente com idéias e conceitos.”(MORAIS, Contra a arte afluente...,
não paginado).
33
Um marco interessante para a arte conceitual foi realizado pelo artista e professor inglês John
Latham, quando convidou seus alunos e alguns artistas para uma “mastigação” de algumas
páginas do livro Arte e Cultura, do crítico de arte norte-americano Clement Greenberg. De acordo
com Paul Wood, toda a ação “[...] envolvia escolher uma página, arrancá-la, mastigá-la e cuspir o
resultado em um receptáculo preparado para aquele fim. Latham em seguida decompôs a pasta
em um líquido com uma mistura de produtos químicos aos quais acrescentou lêvedo”. Como o livro
havia sido emprestado da biblioteca da St. Martins School of Art, quando foi requisitada a
devolução, Latham o devolveu em um tubo de ensaio contendo álcool. Com isso “[...] a arte
ganhou um ícone conceitual na forma de uma maleta duchampiana contendo um exemplar do livro,
os frascos de produtos químicos utilizados e a carta de demissão de Letham.” (WOOD, op. cit., p.
32-33).
34
WOOD, op. cit., p. 55.
35
Por “centro” entenda-se Estados Unidos e Europa.
32
14
na região’”.36 Esse se torna o início de uma radicalização37 da contracultura, da
resistência e “[...] de um novo tipo de arte de vanguarda que usa a tática da
guerrilha para se expressar”.38 Surge, portanto, uma vanguarda que é gestada na
contestação à tradição na arte, ao academicismo, “[...] uma vanguarda que
desmistificou a arte e espraiou para a vida o fazer artístico, levando em seus
primeiros momentos quase tudo de roldão para poder afirmar sua existência”.39
De acordo com Marcos Napolitano, “[...] o debate intelectual entre 1964 e
1968, no qual se inseriu o problema da criação artística engajada, foi estimulado
pela busca de novas perspectivas culturais e políticas para entender a nova
conjuntura nacional”.40 Apesar do caráter autoritário, o regime militar, entre 1964 e
1968, não perseguiu diretamente artistas e intelectuais, o que possibilitou a eles
certa liberdade para criar e se expressar. Se no Brasil a década de 1960 ficou
representada por um momento de experimentação e relativa liberdade para a
criação, os anos 1970 foram marcados pela consciência de uma realidade
bastante delimitada pelo endurecimento do regime militar. Foi um período para a
cultura “[...] que poderia ser chamado de ingresso na idade da razão, com todas
as suas dolorosas conseqüências”.41
Dentro desse clima, a nova atuação artística foi representada por um
evento promovido por uma firma de publicidade no Rio de Janeiro, em 1969. Com
o título de Salão da Bússola, essa exposição montada no MAM do Rio, apresentou
o que se desenvolveria nas artes plásticas da década de 1970.
Como uma maré montante, um número pequeno de artistas na casa dos 20 anos tomou de
assalto esse salão e ocupou-se com uma série de obras de tal contundência que o restante
dos participantes, assim como seus promotores e o próprio júri transformaram-se em
meros figurantes levados de roldão pela avalancha criadora. Foram Antonio Manuel,
36
WOOD, op. cit., p. 60.
De acordo com Francisco Bittencourt, no âmbito mundial “[...] o parto, doloroso e difícil,
começara muito antes, em 1967/1968, com a tomada de consciência e a revolta dos estudantes
em muitas partes do mundo, com a Primavera de Praga, com a constatação da ineficácia da
filosofia hippie e a arrancada dos jovens para o radicalismo”. (BITTENCOURT, F. Dez anos de
experimentação. In: GALERIA DE ARTE BANERJ. Depoimento de uma geração: 1969-1970. Rio
de Janeiro, 1986. Não paginado. Catálogo.).
38
BITTENCOURT, op. cit., não paginado.
39
Ibid., não paginado.
40
NAPOITANO, M. Cultura brasileira: utopia e massificação (1950-1980). São Paulo: Contexto,
2001. p. 47.
41
BITTENCOURT, op. cit., não paginado.
37
15
Barrio, Thereza Simões, Cildo Meireles, Guilherme Vaz, Odila Ferrez e Luiz Alphonsus,
exatamente os que deram ao Salão da Bússola uma dimensão que seus tímidos criadores
não pretendiam e foi graças tão só à atuação dos jurados Frederico Morais e Mário
Schemberg que não se criou na ocasião um impasse do gênero do fechamento da mostra
de artistas brasileiros que tinham sido escolhidos para participar da VI Bienal dos Jovens
de Paris, cuja representação foi vetada por misteriosos órgãos governamentais.42
A abertura do salão representou uma vitória para a vanguarda, pois, antes
disso, artistas e os jurados citados acima tiveram de travar uma discussão com os
produtores e com o crítico Walmir Ayala para derrubar as intenções de expor
obras de caráter acadêmico. Com a abertura do Salão da Bússola a vanguarda
das artes plásticas consegue se impor e se firmar “[...] com a concessão do prêmio
principal a Cildo Meireles43, com propostas datilografadas, isto é, antiobras,
enquanto dois outros prêmios importantes iam para Antônio Manuel e Thereza
Simões”.44 O Salão da Bússola iniciou um movimento que se desenvolveria nos
anos seguintes em diversos setores da criatividade, questionando todo o sistema
de arte desde sua produção até sua comercialização.
Estamos tomando aqui o Salão da Bússola como o primeiro evento que
evidencia uma produção de arte conceitual no Brasil, ou seja, uma exposição em
que a obra em si não existe, e sim a idéia da obra, seja ela numa ação ou numa
experiência. Os expositores desse salão partiram das mais diversas tendências
artísticas, mas, que, a partir de 1969, “[...] voltaram-se quase que exclusivamente
para experiências mais radicais com o corpo, as sensações, a inteligência e os
conceitos. Com isso, marcaram de forma extraordinária o período e deram-lhe um
42
BITTENCOURT, op. cit., não paginado. A respeito do veto da mostra de artistas brasileiros
selecionados para participar da VI Bienal de Paris, o então diretor executivo do MAM do Rio,
Maurício Roberto, em depoimento à equipe da galeria de arte BANERJ a 14 de maio de 1986,
afirmou que “[...] o Ministério das relações Exteriores delegou ao Museu a responsabilidade de
escolher os artistas que iriam participar da Bienal de Paris. Tivemos o cuidado de escolher um júri
altamente competente para indicar os artistas. [...]. Foi montada uma exposição belíssima, mas
ninguém pode vê-la, nem a crítica. Por volta das 15:30 horas do dia da inauguração, recebi um
telefonema de Vera Sauer, da Divisão de Difusão Cultural do Itamaraty, dizendo que a exposição
era revolucionaria, e que por imposição das Forças Armadas não deveria ser aberta. [...]. As
tropas, efetivamente, invadiram o salão de exposições. [...]. A partir desse momento, o Museu de
Arte Moderna passou a ter uma conotação subversiva e, desde então, um camburão da policia
ficou lá, estacionado.”(GALERIA DE ARTE BANERJ. Depoimento de uma geração: 1969-1970.
Rio de Janeiro, 1986. Não paginado. Catálogo).
43
Sua obra baseava-se em “folhas de papel contendo sugestões, escritas à maquina, para que os
espectadoreses realizassem vários tipos de experiência, como por exemplo, determinar uma área
da praia.”(MORAIS, Contra a arte afluente..., não paginado).
44
BITTENCOURT, op. cit., não paginado.
16
impulso de uma unidade de ação que os seus colegas da década anterior, [...],
poucas vezes conseguiram”.45 Esse grupo de artistas expressava-se partindo de
uma necessidade de revolta, que cada vez era mais abafada pela censura, de “[...]
libertar-se do peso da hipocrisia de costumes que a partir de 1964 passou a ser
regra de comportamento oficial, principalmente através do meio de comunicação
de massa mais poderoso, a televisão”.46
Dentro desse clima é que surge a exposição Do Corpo à Terra, realizada
em Belo Horizonte, Minas Gerais, em abril de 1970, organizada pelo crítico de arte
Frederico Morais. Essa mostra era um dos eventos comemorativos da Semana da
Inconfidência e que também inaugurou o Palácio das Artes de Belo Horizonte.
Realizado no Parque Municipal, teve duração de três dias e ficou marcado pela
participação de artistas mineiros e cariocas com o desenvolvimento de
performances e happenings47.
Certamente o órgão oficial mineiro que patrocinou “Do Corpo à Terra” nunca pretendeu
oferecer à pacata população de Belo Horizonte os rituais de sacrifício e o macabro
espetáculo de distribuição de trouxas ensangüentadas em que se transformou a
48
promoção.
45
BITTENCOURT, op. cit., não paginado.
Ibid., não paginado.
47
O termo happening ficou conhecido no final dos anos 1950 por meio do americano Allan Kaprow
para designar uma forma de arte, que combina artes visuais e um teatro sui generis, sem texto
nem representação. Nos espetáculos, distintos materiais e elementos são organizados de forma a
aproximar o espectador, fazendo-o participar da cena proposta pelo artista (nesse sentido, o
happening se distingue da performance, onde não há participação do público). Os eventos
possuem estrutura flexível, sem começo, meio e fim. As improvisações conduzem a cena - ritmada
pelas idéias de acaso e espontaneidade - que têm lugar em contextos variados: ruas, antigos lofts,
lojas vazias etc. Os happenings são eventos em tempo real, mas recusam as convenções
artísticas. São gerados na ação e, como tal, não podem ser reproduzidos. Os únicos registros que
podem levar ao conhecimento de tal acontecimento a quem não esteve presente são fotos ou
filmagens. Mas, certamente esses registros não são aceitos como a obra em si, ou seja, apenas os
que presenciaram o happening é que realmente viram a obra. Os happenings, de acordo com Allan
Kaprow, são um desdobramento das assemblages e da arte ambiental, mas ultrapassa-as pela
introdução do movimento e por seu caráter de síntese, espécie de arte total em que se encontram
reunidas diferentes modalidades artísticas - pintura, dança, teatro etc. A filosofia de John Dewey,
sobretudo suas reflexões sobre arte e experiência, o zen budismo, a música experimental de John
Cage, assim como a action painting de Jackson Pollock, são as matrizes fundamentais para a
concepção de happening. (ITAÚ CULTURAL. Disponível em: <www. itaucultural.com.br> Acesso
em 15, agosto, 2004.).
48
BITTENCOURT, op. cit., não paginado.
46
17
Diversos artistas participaram dessa exposição como Artur Barrio, Thereza
Simões, Luiz Alphonsus, Umberto Costa Barros, Hélio Oiticica, Cildo Meireles,
este com a obra Tiradentes: totem monumento ao preso político, entre outros. De
acordo com o crítico de arte Francisco Bittencourt,
[...] foi em Cildo Meireles [que queimou animais vivos] e Artur Barrio [que lançou trouxas
com carne e ossos no Ribeirão das Arrudas] que a manifestação assumiu o tom sombrio
de uma situação limite. Ninguém antes deles no Brasil reagiu com tal intensidade dentro do
campo estético à realidade do momento. Os trabalhos que fizeram em Belo Horizonte
ultrapassaram na verdade a simples polêmica estética [...] para adquirir a feição de luta
49
pela vida de todo um povo.
Na definição de Frederico Morais, essas manifestações de arte de
vanguarda no Brasil durante a ditadura militar podem ser vistas como uma forma
de arte-guerrilha. “A tarefa do artista-guerrilheiro é criar para o espectador (que
pode ser qualquer um e não apenas aquele que freqüenta exposições) situações
nebulosas, incomuns, indefinidas, provocando nele, mais do que o estranhamento
ou a repulsa, o medo”.50 Por isso tinha como seu princípio pequenas ações
visando um engajamento popular nas questões referentes à luta contra o
alienamento produzido pelo regime militar, assim como uma espécie de
provocação a todo o aparato de censuras e repressões sustentadas por este
regime.
Apesar dessas manifestações de arte-guerrilha, esse engajamento com o
“coletivo” e com o “popular” não ocorreu no meio das artes plásticas da forma e
com a força que se sucedeu com o teatro, com a música popular e com o cinema.
Com algumas exceções, a temática político-social circundou o campo das artes
plásticas de forma, digamos tímidas. De acordo com Aracy Amaral, talvez “[...] a
única tentativa de direção de uma desmistificação e deselitização do fazer artístico
haja sido, nesse sentido, a iniciativa de Frederico Morais, em ‘Domingos de
Criação’, no espaço do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, já em 1971,
porém dentro do clima de ‘comunhão com o urbano’, vigente nos anos 60”.51
Em se tratando da década de 1970, segundo Aracy Amaral,
49
BITTENCOURT, op. cit., não paginado.
MORAIS, F. Contra a arte afluente..., não paginado.
51
AMARAL, op. cit., p. 330.
50
18
O dado político, na obra da maior parte dos artistas de início e meados dos anos 70, é
quase nulo, embora a presença crítica, através da metáfora, seja evidente, tanto nas
pinturas expressivas de Antônio Henrique Amaral, como de João Câmara Filho, dessa
52
época, além de igualmente visíveis em trabalhos conceituais de Cildo Meireles [...].
Aracy Amaral coloca que não havia um alinhamento político nessas críticas no
sentido de que os artistas não estavam divulgando uma ideologia de um
determinado partido político, mas uma espécie de “[...] ‘comentários’ do artista em
relação a eventos de seu tempo”.53
De modo geral, a produção artística brasileira de início e meados da década
de 1960 teve suas raízes pautadas no “[...] espetáculo da cidade grande e de seu
submundo, aí incluída até a criminalidade [...]”54, ou seja, a circulação dessa forma
de arte só fazia sentido dentro de um ambiente de uma metrópole e atuando em
um certo submundo, às vezes até mesmo no anonimato. Havia igualmente uma
tentativa de envolvimento, em diversos sentidos, com o espectador. A partir de
1968, as motivações no campo das artes plásticas passam a tomar uma direção
menos ligada a euforia da participação, e mais voltada para a tomada de
consciência de uma realidade irreversível.
52
AMARAL, op. cit., p. 337.
Ibid., p. 337.
54
JUSTINO, op. cit., p. 01.
53
3 ARTE E OU OU ENGAJAMENTO POLÍTICO?
Neste capítulo optamos por trabalhar diretamente com a análise de três
obras de Cildo Meireles produzidas entre os anos de 1970 e 1975. Tais obras
possuem um caráter de contestação política ao regime militar, vigente no Brasil
entre os anos 1964 e 1986, assim como a crítica à sociedade de consumo que se
formou com o processo de industrialização do país na década de 1950.
Buscaremos nelas o caráter reflexivo da crítica ao ambiente social e político pelo
qual o Brasil estava passando, sem deixar de lado a análise estética das obras.
Cildo Meireles teve sua formação artística em Brasília, onde participou de
cursos livres da Universidade de Brasília e freqüentou ateliês de arte. Nesse
período de formação, teve como seu mestre o artista peruano Félix Barrenechea.
Quando chega ao Rio de Janeiro, em 1967, traz consigo toda uma tradição de
estudos em desenho e pintura, que mais tarde, de certa forma, abandonaria.
Ainda em Brasília, tinha tido contato com as obras de Hélio Oiticica, Lygia Clark,
Lygia Pape e Artur Barrio, assim como de outros artistas da vanguarda artística da
época, as quais interessavam-lhe suas linguagens. Desde o princípio de sua
produção, Cildo Meireles já podia ser chamado de um artista conceitual,
interessado em mecanismos de percepção, problemas internos de arte, questões
relacionadas ao espaço, sem deixar de lado a interação de suas obras com o
ambiente social ao qual estavam sendo produzidas.
A produção de Cildo Meireles propõe uma ligação entre o movimento
neoconcreto da década de 1960 e a produção engajada politicamente e ligada ao
conceitualismo da década de 1970. De acordo com Paulo Herkenhoff, um de seus
maiores críticos, sua obra pode ser descrita como uma “teoria poética da
sociedade”, pois ele trabalha com
[...] questões que vão da política à ideais e estratégias. Examina espaços e processos de
comunicação, as condições do espectador, os legados da História da arte e o espaço
social do gueto – espaço freqüentemente evocado. O foco de sua arte pode abranger
desde a expansão econômica do capitalismo internacional a um pequeno gesto cultural de
20
índios brasileiros. [...]. A obra é concebida e estruturada em torno de um ponto nodal em
55
que o Real, o Simbólico e o Imaginário se articulam e encontram sua medida.
Suas temáticas são flexíveis, sendo cada uma delas tratadas com sua
devida importância. Em seus trabalhos são incorporadas diferentes linguagens,
gestos e circuitos sociais. A temática social, da arte unida à vida, sempre esteve
presente em suas obras, às vezes de forma mais velada e outras de forma mais
explícita.
As obras que serão analisadas nesse capítulo darão conta de mostrar a
complexidade e a simplicidade, as entrelinhas e o que é apresentado nitidamente,
do pensamento que as envolve.
Está patente que as linguagens emergentes com os anos 1970 não pretendem tanto –
como as vanguardas do início do século XX – promover rupturas formais e sim construir
um ponto de vista diferente acerca da arte e sua inserção cultural e ideológica. Este ponto
de vista, sobretudo político, não implica obviamente submissão a programas partidários,
nem significa uma redução do trabalho de arte à categoria de reflexo das situações
políticas em que aparece. Trata-se de superar a opacidade mítica em que a instituição arte
56
mantinha protegidos os seus lances e ainda o ingênuo platonismo da condição de artista.
Dessa forma abordamos o tema arte e/ou engajamento político focando
para uma forma de arte comprometida com o político e com o social em um
sistema ditatorial. Dentro desse sistema, buscaremos apontar para as alternativas
tomadas por Meireles visando a divulgação de seu trabalho e o raciocínio que
envolveu essas alternativas.
55
HERKENHOFF, P. Um gueto labiríntico: a obra de Cildo Meireles. In: HERKENHOFF, P.,
MOSQUERA, G., CAMERON, D. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. p. 38.
56
ZÍLIO, C. et. al. O boom, o pós-boom e o dis-boom. In: BASBAUM, R. (org.). Arte contemporânea
brasileira: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 190.
3.1 Condição limite : Tiradentes totem monumento ao preso político
Antes do ano de 1970, Cildo Meireles já produzia obras de caráter engajado
politicamente, obras que se comprometiam, de alguma forma, com a denúncia de
um sistema opressor imposto pela ditadura militar desde 1964. Mas, é a partir de
1970, dois anos depois da decretação do Ato Institucional n° 5, que sua produção
passa a ser radicalizada, acompanhada também pela radicalização de trabalhos
de outros artistas da chamada vanguarda da década de 1970. Juntamente com
ação inflexível da censura, das prisões, das torturas e da suspensão dos direitos
políticos dos cidadãos, observa-se uma busca de Cildo Meireles pela
representação das angústias que circulavam entre os artistas, que passavam “[...]
a dirigir-se, por meio de todos os sentidos da percepção, a um público visto então
como um agente potencial da ação”.57
Na exposição intitulada Do Corpo à Terra, organizada pelo crítico de arte
Frederico Morais para a Hidrominas – uma empresa de economia mista do Estado
de Minas Gerais –, “[...] que durou três dias, os trabalhos foram realizados no
Parque Municipal, no centro da capital mineira, e para isso os artistas receberam
uma ajuda de custo. Ou seja, pela primeira vez, em uma manifestação de artes
plásticas, os artistas, não apresentaram obras, mas limitaram-se a desenvolver
ações, eventos, rituais e manifestações”.58 Essa exposição não pretendia oferecer
a população de Belo Horizonte um “show de horror”, ou melhor, um espelho do
que era realizado nos ditos porões da ditadura. De acordo com Francisco
Bittencourt, “[...] a entidade do Estado de Minas viu-se a braças, de repente, com
algo que ultrapassava de muito sua imaginação, um desafio quase insuportável
aos valores ‘culturais’ tradicionais às belas artes”.59 Essa mostra era um dos
eventos comemorativos da Semana da Inconfidência e que também inaugurou o
Palácio das Artes de Belo Horizonte.
57
HERKENHOFF, op. cit., p. 59.
MORAIS, F. Artes plásticas..., p. 104.
59
BITTENCOURT, op. cit., não paginado.
58
22
Nesta exposição Cildo Meireles realiza o happening Tiradentes: totem
monumento ao preso político, apresentado no espaço externo ao pavilhão de
exposições do recém inaugurado Palácio das Artes. Essa obra consistia em uma
“[...] estaca de 2,50m sobre um quadrilátero marcado por um pano branco e tendo
no topo um termômetro clínico. Ao poste foram amarradas dez galinhas vivas,
sobre as quais se derramou gasolina e ateou-se fogo”.60 O sacrifício com as
galinhas foi realizado no dia 21 de abril, dia da abertura do evento, levando ao
extremo grau de violência, que só seria maior, mas impossível, se ateasse fogo
em seres humanos. O emprego da temática da extrema violência como base
deste trabalho fazia alusão direta ao sistema repressor vigente no Brasil no
período tratado, causando um desconforto não só aos que presenciaram o
happening, mas a todo o meio de arte.
Uma das análises dessa obra que pode ser feita é observar a verticalidade
do poste, em uma referência aos monumentos que exaltam personagens
considerados representativos para a história do país. O poste remete também
tanto a um totem (objeto de veneração) quanto à forca usada para matar
Tiradentes61. As galinhas queimadas eram a representação da própria violência
com que eram tratados os presos políticos. Seus corpos despedaçados eram a
imagem da castração da liberdade pelas ações do regime militar. Nesse trabalho
Cildo Meireles usa um discurso mais explícito, a questão formal com a qual
pretendia trabalhar, como explica em entrevista concedida a Gerardo Mosquera,
estava na “[...] metáfora e no deslocamento do tema. Queria usar o tema vida e
morte, como matéria prima do trabalho”.62
Além das questões já mencionadas, Tiradentes... tratava de temas
relacionados com o imaginário da guerra do Vietnã, que estava ocorrendo no
60
HERKENHOFF, op. cit., p. 62.
A citação a Tiradentes, enforcado pela Coroa portuguesa em 1792, não aparecia na arte
brasileira até o final do Império, em 1889, pois, a maioria dos artistas era subordinada ao governo
imperial, o qual tinha ordenado a morte de Tiradentes. Após a proclamação da República, o artista
Pedro Américo de Figueiredo e Melo realizou uma pintura, intitulada Tiradentes esquartejado
(1893), que foi uma das referências para o Tiradentes: totem monumento ao preso político de Cildo
Meireles.
62
MOSQUERA, G. Conversa com Cildo Meireles. In: HERKENHOFF, P., MOSQUERA, G.,
CAMERON, D. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. p. 15.
61
23
período. O que deve ser salientado é que a intenção da metáfora vida e morte foi
representada em Tiradentes... por uma realidade altamente chocante e
desestabilizadora, pois Cildo Meireles usou da metáfora para atear realmente fogo
em animais vivos e deixou-os queimar até que fossem mortos. O material vivo
torna-se ambíguo, não no sentido negativo do termo, mas na questão das diversas
interpretações que podem ser adicionadas a ele.
O termo “preso político” contido no título da obra faz alusão não apenas a
Tiradentes como um mártir do processo histórico de independência do Brasil, nem
como uma tentativa de resgate do passado, mas a geração de uma imagem
associada à liberdade proposta pela figura de Tiradentes que foi manipulada e
distorcida pela política praticada pelos militares. Cildo Meireles ao tratar o tema da
violência como base para essa obra procurou fazer uma menção direta a situação
brasileira de repressão política. Nas palavras do próprio artista:
Na época havia muito cinismo e tentativa de cooptação do personagem [Tiradentes]. Era,
de fato, uma espécie de regra de três simples. Pegar galinhas e matá-las equivalia, na
verdade, a pegar um símbolo nacional e torná-lo símbolo do golpe militar. Ao mesmo
tempo em que eles estavam se aproveitando do símbolo de Tiradentes, herói da
independência brasileira, com todas as contradições que o personagem possa ter, eles
estavam usando de procedimentos análogos aos do artista contra as próprias galinhas, e
63
justamente para defender o contrário do que o próprio Tiradentes defendia.
Tiradentes foi tomado como mártir – devido ao seu enforcamento e
esquartejamento de seu corpo, depois exposto à população de Minas Gerais – da
Inconfidência Mineira de 1789, este que foi o primeiro levante organizado contra a
Coroa Portuguesa e inspirado nos ideais iluministas da Revolução Francesa. O
nome de Tiradentes traz a lembrança a luta pela libertação política, esta que
também, guardadas as devidas proporções, era proposta por aqueles que eram
denominados presos políticos. Estes, extremamente marginalizados da sociedade,
sem direitos aos mesmos tratamentos que os “cidadãos comuns”, por serem
considerados subversivos, são referenciados em Tiradentes... como argumento da
crítica.
63
MEIRELES, C. Cildo Meireles, geografia do Brasil. Rio de Janeiro: Artviva Produção Cultural,
2001. p. 64.
24
A estética da violência adotada por Cildo Meireles nessa obra está em
absoluta sintonia com a metáfora da vida e morte que pretendia trabalhar. A
violência política do regime militar não poupava, como é sabido, nenhuma
particularidade. Cildo Meireles, em Tiradentes..., trabalha de forma suspeita com a
condenação moral da violência. Isso não quer dizer que seu posicionamento fosse
a favor das torturas e humilhações destinadas aos presos políticos, obviamente. O
fato é que a violência é representada com tal radicalismo, ou seja, sem
condenação moral, pois está sendo repetida, que sua intensidade torna-se
insuportável para quem a observa. Essa forma de violência é representada e
repetida com a intenção de expressar a revolta e o repúdio a esse sistema , e não
de apoiar essas formas de opressão. É a amplificação do horror para gerar
consciência e provocar seus verdadeiros executores. Nas palavras de Herkenhoff,
“[...] no imaginário brasileiro, Tiradentes representa uma visão arquetípica do
corpo esquartejado pela violência política, e é assim que Cildo Meireles o tratou.
[...] [como] os corpos mutilados daqueles que, muitas vezes injustificadamente,
foram executados como traidores”.64
Tendo isso, pode-se afirmar que não houve manifestação política nas artes
plásticas brasileira com tal intensidade, assumindo o tom sombrio dessa situação
limite, comparável à Tiradentes... de Cildo Meireles. Uma obra realizada nessa
mesma exposição pode ter tido o mesmo impacto produzido por Meireles, as
Trouxas ensangüentadas65 de Artur Barrio. De acordo com Francisco Bittencourt,
os trabalhos de Cildo Meireles e Artur Barrio “[...] ultrapassam na verdade a
simples polêmica estética – como no caso do porco empalhado de Nelson Leirner
num Salão em Brasília66 – para adquirir a feição de luta pela vida de todo um
povo”.67
64
HERKENHOFF, op. cit., p. 65.
Barrio “[...] fez 15 trouxas de carne e ossos reais, comprados num açougue, e distribuiu-as por
diversos pontos da cidade, concentrando-se porém onde havia um esgoto. [...]. As trouxas
ensangüentadas intrigaram de tal forma o povo de Belo Horizonte, que se pôs a murmurar sobre
crimes do Esquadrão da Morte, que tiveram de ser retiradas com presteza pelos garis. Era a arte
incômoda e fétida que seria posta à prova por seu autor em diversas ocasiões”. (BITTENCOURT,
op. cit., não paginado).
66
A polêmica estética se deu no ano de 1967, quando Nelson Leirner foi premiado pela crítica do
IV Salão Nacional de Artes Plásticas de Brasília com uma menção honrosa por um porco
empalhado. Mais do que uma piada, o porco de Leirner discutia os critérios utilizados para o
65
25
Observando Tiradentes... do ponto de vista da teoria da arte, podemos
adequá-lo ao conceito de obra de Umberto Eco. Tiradentes... deixa de existir
fisicamente, ou seja, a obra em si é um conceito que se expande, é libertada do
suporte e do apoio, passando a ser uma situação, um acontecimento, uma
reflexão. Nessa concepção de arte, o artista é tratado como um propositor de
situações e não mais como um produtor de obras. Como afirma Frederico Morais,
a vanguarda que atuava na década de 1970, tratava a “[...] arte como ação e
engajamento. O artista da vanguarda não se restringe a produzir obras. Ele luta
para impor suas idéias, que não se esgotam, evidentemente, no campo estético”.68
A contemplação da obra de arte não é mais posta em questão, ou melhor, ela é
desprezada,
descartada
em
função
da
participação,
conscientização
e
experimentação dessa obra.
Outro conceito que vai se esfalecendo com a produção da geração de 1970
é o de durabilidade e permanência da obra, igualmente como as bases para esses
conceitos (suportes, molduras, pedestais, chegando até mesmo ao museu e a
galeria). Na conceituação de Frederico Morais, o artista aparecia como uma
espécie
de
guerrilheiro,
fazendo
da
arte
uma
emboscada.
“Atuando
imprevistamente, onde e quando é menos esperado, de maneira inusitada, o
artista cria um estado permanente de tensão, uma expectativa constante. Tudo
pode transformar-se em arte, mesmo o mais banal evento cotidiano”.69 Nesse
sentido podemos entender Tiradentes... como uma transposição dramática da
condição social do período para o campo da arte, de forma imprevista e radical.
Da mesma forma, pode-se interpretar a atitude de Cildo Meireles ao realizar o
julgamento das obras. Leirner provocou o júri que havia aceitado o seu porco empalhado, enviando
para o Jornal da Tarde uma foto da obra juntamente com a pergunta: “que critérios o júri usou para
aceitá-lo?”. A resposta de Frederico Morais, um dos integrantes do júri, a provocação foi: “A arte é,
e sempre foi, provocação. [...]. Este não foi também o seu comportamento ao mandar publicar no
‘Jornal da Tarde’ a fotografia do seu porco empalhado e saber por que foi aceito? O júri não
aceitou o porco, tal como insinua no jornal. Considerou uma proposição digna de exame e
interesse, ainda que no título, equivocada. [...]. À crítica aberta não interessa a obra em si, ela não
julga mais academicamente, os chamados valores plásticos, as qualidades artesanais. A esta
crítica interessa o problema, a proposição e como ela foi resolvida. Para mim tudo é valido, tudo é
possível de se transformar em arte: a vida, o próprio homem. Até o porco do Leirner”.(MORAIS,
Artes plásticas..., p. 89.).
67
BITTENCOURT, op. cit., não paginado.
68
MORAIS, Artes plásticas..., p. 69.
69
MORAIS, Contra a arte afluente..., não paginado.
26
sacrifício com as galinhas para fazer alusão ao massacre e repressão aos seres
humanos no Brasil ou no Vietnã. Ao propor essa situação, o artista assume a
crueldade e violência dos agentes do poder, se violentando e violentando o bemestar dos espectadores, para que todos sintam o horror da morte injusta,
sacrificada e adorada.
Tiradentes: totem monumento ao preso político é uma obra que pertence ao
seu contexto político e social e que, se retirada dele, perde totalmente o seu
significado, “[...] a ‘obra’ perde ou ganha significados em função dos
acontecimentos, sejam eles de qualquer ordem”.70 Portanto, Tiradentes..., seja por
sua radicalidade, seja por sua estética da violência, marcou o início de um novo
período das artes plásticas no Brasil. Esse período, que começa em 1970 e se
prolonga até aproximadamente 1975, foi marcado, dessa forma, por um
engajamento mais incisivo nas questões políticas e por uma espécie de desabafo.
Isso demonstra que o estigma dos anos 1970 ter sido representado por uma
espécie de apatia cultural não considera essas formas de engajamento e
produção artística.
70
MORAIS, Contra a arte afluente..., não paginado.
3.2 Os graffitis móveis:: Inserções em circuitos ideológicos
A idéia básica dos chamados graffitis móveis71 passa, de forma reduzida,
por duas correntes que chamaremos de posicionamentos em relação à obra, uma
ligada aos readymades duchampianos e, outra, à circulação do objeto dentro do
corpo social. Como já foi citada anteriormente, a concepção primordial dos
readymades de Duchamp era a retirada de objetos de uso comum e transposição
deles para o campo da arte. Pautado nesse processo, Cildo Meireles, com seus
graffitis móveis realiza esse caminho, mas de uma forma um tanto particularizada.
Os readymades de Meireles são também objetos trazidos do cotidiano,
modificados, mas, depois devolvidos ao seu ambiente natural. Dentro dessa
perspectiva duchampiana, insere-se também o pensamento presente na pop arte.
Os readymades de Cildo Meireles são associados igualmente a elementos da
cultura de massa, ou seja, a imagens que já foram assimiladas pela sociedade de
consumo devido ao seu alto grau de circulação e, conseqüentemente,
reconhecimento. A cultura do pop dava a possibilidade estética da representação
de ícones do mundo de consumo, organizando “[...] uma operação artística que
reconhecia que o elemento universal da arte poderia estar embutido nos ícones
cotidianos cuja circulação em escala planetária estava assegurada pela história
dos meios de comunicação e pelo universo do consumo”.72
Na análise desses graffitis móveis de Cildo Meireles, pensaremos nessas
vertentes e por elas nos guiaremos para decifrar essas obras. Tanto o conceito de
readymade como o de circulação da obra receberão um tratamento mais
aprofundado ao longo da análise. Contudo, é importante termos em mente que
partindo desses conceitos, por mais que a presença de ícones do consumo
facilitasse a circulação desse objeto de arte, a operação formal não se esgotava
apenas nesses aspectos. Veremos que eles compunham uma parte importante da
obra, mas, de forma alguma, representavam o seu todo. O artista se apropriava de
71
72
Expressão criada pelo próprio Cildo Meireles.
DUARTE, op. cit., p. 22.
28
objetos existentes e com cargas ideológicas já determinadas, numa espécie de
readymade, dando uma nova significação e função a partir das idéias e conceitos
que pretendia veicular.
As Inserções em circuitos ideológicos de Cildo Meireles são interpretadas
pelo crítico de arte Ronaldo Brito como “[...] um circuito de inteligibilidade que se
movimenta à maneira das sombras: sinuosamente, sem cristalizar-se em Formas,
agenciaria Densidades que percorreriam indistintamente o mais singular e o mais
plural, sem respeito à hierarquia do Real, atento à toda espécie de alteração e
perturbação da Ordem”.73 Partindo desse pensamento, pode-se fazer uma
associação com o que Frederico Morais chamava de “artista guerrilheiro”,
propositor de uma espécie de “arte-guerrilha”, com emboscadas, agindo
imprevistamente, sem local nem hora marcados (como em um ambiente de
galerias ou museus), seria aquele artista que “[...] cria um estado permanente de
tensão, uma expectativa constante”.74 Dessa forma imprevista, até garrafas de
Coca-Cola e cédulas monetárias podem ser transformadas em objetos de arte.
As Inserções... buscavam principalmente a oralidade, o mais importante na
obra não era o seu caráter de objeto, mas o de não-objeto. Ela se propunha a um
contato indiferenciado com o público, na tentativa de comunicação e transgressão
constante. A busca por uma oralidade passível de perpassar o corpo coletivo, sem
distinção, numa constante comunicação em forma de senhas, distribuídas no
anonimato. O que Cildo Meireles faz com as Inserções em circuitos ideológicos se
resume a uma manifestação de rua, isolada e sem denominação, como reação a
uma rede formada pela censura e pela repressão.
Podemos dizer que em Inserções..., se relacionadas à Tiradentes: totem
monumento ao preso político, Meireles se afasta do circuito da arte e atua
realmente em um circuito real. Segundo o próprio artista, esse trabalho
[...] não tinha mais aquele culto do objeto, puramente: as coisas existiam em função do que
podiam provocar no corpo social. Era exatamente o que se tinha na cabeça: trabalhar com
73
BRITO, R. Freqüência imodulada. In: BASBAUM, R. (org.). Arte contemporânea brasileira. Rio
de Janeiro:: Rios Ambiciosos, 2001. p. 112.
74
MORAIS, Contra a arte afluente..., não paginado.
29
a idéia de público. Jogava-se tudo no trabalho, que visava um número grande e indefinido
75
de pessoas; esta coisa chamada público.
Assim, uma garrafa de refrigerante e uma nota de dinheiro passavam a ser
suportes ideais para popularizar uma idéia dentro do corpo social e atingir um
grande número de pessoas, sem qualquer forma de privilégio.
Frederico Morais observa que
A cultura de massa, [...] é aberta. A ênfase é dada ao consumo, à quantidade, à
reprodução. Os produtos culturais destinados à massa fundam-se numa estrutura repetitiva
[...] e estandardizada e sua transmissão se faz indireta e descontinuamente pelos veículos
76
de comunicação massiva, na rua ou nos grandes auditórios.
Por conta disso, as Inserções em circuitos ideológicos surgiram a partir de três
pressupostos:
“1. existem na sociedade determinados mecanismos de circulação
(circuitos);
2. esses circuitos veiculam evidentemente a ideologia do produtor, mas ao
mesmo tempo são passíveis de receber inserções em sua circulação;
3. isso ocorre sempre que as pessoas o deflagrem”.77
O conceito de circuito, para Meireles,
[...] determina a carga dialética de trabalho, uma vez que parasitaria todo e
qualquer esforço contido na essência mesma do processo (o meio). Isto é, a embalagem
veicula sempre uma ideologia. Então, a idéia inicial era a constatação de ‘circuito’ (natural)
que existe e sobre o qual é possível fazer um trabalho real. Na realidade, o caráter da
inserção nesse circuito seria sempre de contra-informação. A sofisticação do meio seria
capitalizada em benefício da ampliação da igualdade de acesso à comunicação de massa
e, cabe dizer, em benefício de uma neutralização da propaganda ideológica original (da
indústria ou do Estado), que é sempre anestesiante. É uma oposição entre consciência
(inserção) e anestesia (circuito), considerando-se consciência como função da arte e
anestesia como função da indústria. Porque todo circuito industrial normalmente é amplo,
78
porém alienante (alienado).
75
MEIRELES, C. Textos do artista. In: HERKENHOFF, P., MOSQUERA, G., CAMERON, D. Cildo
Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. p. 110.
76
MORAIS, Artes plásticas..., p. 39.
77
MEIRELES, Textos do..., p. 110.
78
Ibid., p. 112.
30
Portanto, o importante nestas obras é o seu caráter de guerrilha, que exigia
uma tática de ação política específica para essa forma de circulação de idéias. As
Inserções... não eram apenas uma forma de intervenção na ordem política, social
e econômica estabelecida, que se apropriava dos próprios mecanismos de
distribuição do capitalismo; tratavam também da questão do indivíduo encoberto
por um sistema de distribuição e consumo de mercadorias.
3.2.1 Projeto Coca-Cola
Ainda no ano de 1970 houve outro evento importante que contou com a
presença de Cildo Meireles. Além de sua participação na exposição Do corpo à
Terra, Meireles integrou a série de exposições individuais ocorridas na Petite
Galerie, no Rio de Janeiro. A exposição cujo título era Agnus Dei (palavra do latim
que representa a expressão “Cordeiro de Deus”), contou também com a presença
de Thereza Simões e Guilherme Vaz, aquela também teria participado da
exposição Do Corpo à Terra. De acordo com Francisco Bittencourt, essa série de
individuais contava com uma “[...] extraordinária coesão ao nível ideológico, [...]
[com o] denominador comum da vontade de enxugar ao máximo a linguagem
artística”.78 Foi nessa exposição que Cildo Meireles apresentou o primeiro projeto
da série Inserções em circuitos ideológicos. Ainda citando Bittencourt, os trabalhos
de Meireles apresentados nessa mostra foram “todos com um denominador
comum surdo e fúnebre, acusador e premonitório dos holocaustos praticados pelo
homem, num estilo de suprema elegância estilística”.79
O primeiro trabalho da série Inserções em circuitos ideológicos,
apresentado na Agnus Dei, foi o Projeto Coca-Cola. Essa obra consistia na
retirada temporária de garrafas de Coca-Cola do mercado, para que nelas fosse
inscrito: Inserções em circuitos ideológicos: 1. Projeto Coca-Cola. Gravar nas
garrafas opiniões críticas e devolvê-las à circulação. CM.5.70., e colocá-las
novamente em circulação. A expressão a ser veiculada nessa obra foi: Yankees,
go home. Com a técnica do decalque de silk screen (serigrafia), Cildo Meireles se
utilizou dos mesmos caracteres usados pela própria indústria para a impressão
nas garrafas. Tais garrafas eram postas novamente em circulação como uma
forma de readymade. Segundo Paulo Herkenhoff, as proposições desse trabalho
estavam na “[...] existência de determinados mecanismos de circulação na
sociedade e na veiculação da ideologia do produtor por meio deles”.80
78
BITTENCOURT, op. cit., não paginado.
Ibid., não paginado.
80
HERKENHOFF, op. cit., p. 48.
79
32
A idéia das garrafas foi inspirada em uma prática simples, utilizada por
náufragos: enviar mensagens em garrafas. Dessa idéia simples, Meireles
surpreende com as ambições propostas e realizadas por esse trabalho, tanto no
aspecto da linguagem da obra, quanto politicamente e ideologicamente. A prática
de colocar em circulação frases com teor político e ideológico transformava-se em
uma forma de apresentar ao público uma crítica, por meios informais e anônimos,
uma vez que os canais oficiais de circulação de idéias estavam fechados. De
acordo com a análise feita por Marcos Napolitano, as garrafas de Coca-Cola eram
“[...] uma espécie de ‘guerrilha cultural’, um conjunto de pequenas ações e
intervenções no espaço público, clandestinas e anônimas. [...]. Pequenas ações
como estas mantinha o ethos da oposição ao regime em movimento e
estabeleciam uma verdadeira rede de recados sutil, mas significativa”.81 A série
Inserções em circuitos ideológicos tinha a intenção de criar uma rede clandestina
e eficiente de expressão individual, que pudesse ter sua abrangência multiplicada
em grande escala.
Estavam implícitas a essa prática “[...] a noção de meio circulante, como
papel moeda82, e embalagens de retorno, como garrafas de bebida”.83 Portanto,
além da noção de readymade, é importante observarmos o caráter da circulação
do objeto industrializado. Especificamente neste caso, Cildo Meireles trabalha com
a alteração do objeto – garrafas de Coca-Cola – de forma que o produto passa a
negar a sua procedência. É devolvido a um sistema econômico real e não levado
para o campo da arte, assumindo um caminho contrário ao percorrido pelos
readymades. Isso a priori, pois, como foi mencionado, as garrafas foram expostas,
junto com outras obras do artista, na exposição Agnus Dei.
O acaso era também importante para a circulação do Projeto Coca-Cola,
uma vez que não havia nenhuma forma de controle centralizado de quem iria
receber essa informação contida nas garrafas de refrigerante. As Inserções...
foram criadas partindo da necessidade de aderir a um sistema de informações e
de trocas que não dependessem da forma de controle presente em outros
81
NAPOLITANO, Cultura brasileira..., p. 79.
O terceiro trabalho a ser analisado neste capítulo têm como suporte o papel moeda do período.
83
HERKENHOFF, op. cit., p. 48.
82
33
circuitos, como o da televisão e do rádio, que precisavam de um controle das
mensagens que eram veiculadas para continuar atuando nesses meios. Nesses
casos, de acordo com Cildo Meireles, “[...] a inserção é exercida por uma elite que
tem acesso aos níveis que ela se desenvolve: sofisticação ideológica, altas somas
de dinheiro e poder”.84 Em meios de comunicação de massa, como a televisão e o
rádio, a censura contava com a ajuda dos donos dessas mídias. Esse tipo de
intervenção era praticada porque essas “[...] empresas eram as principais
beneficiárias da política de expansão da infra-estrutura de comunicação [...]
patrocinada pelo regime militar. Qualquer conflito com o governo poderia
ocasionar uma represália em termos econômico-financeiros, desastrosa para a
atividade”.85
Podemos perceber no Projeto Coca-Cola a opção por tomar o mercado
consumidor como público para essa obra e, assim, criar um novo circuito para o
objeto de arte, apropriando-se de um mecanismo de circulação já existente e
inserindo nele elementos que configuravam um embate a condição social vigente.
Essa forma de arte possuía, desse modo, uma função social consciente. Já a
indústria era encarada no sentido oposto, pois, seu princípio estava no maior grau
de alienação possível. Assim, o Projeto Coca-Cola colocava-se como um
obstáculo a ideologia posta movimento pela indústria.
84
85
Ibid., p. 110.
NAPOLITANO, Cultura brasileira..., p. 101.
3.2.2 Projeto cédula
O Projeto cédula da série Inserções em circuitos ideológicos é datado de
1970, mas especialmente a obra desse projeto que iremos analisar foi produzida
no ano de 1975. Apresentaremos apenas uma das propostas do Projeto cédula.
Contudo, desde 1970 Cildo Meireles carimbava frases de caráter político em
cédulas, mas para este trabalho interessa-nos apenas a abordagem de uma delas.
O Projeto cédula fundamentava-se em carimbar frases com teor político e
ideológico
em
papel
moeda,
colocando-os
novamente
em
circulação.
Particularmente a cédula desse projeto que iremos analisar continha a questão:
Quem matou Herzog?. Não à-toa ela foi posta em circulação em 1975, ano da
morte do jornalista da TV Cultura de São Paulo, Wladimir Herzog, nas
dependências do Quartel General do II Exército, em São Paulo. Oficialmente, a
morte do jornalista na prisão foi anunciada como sendo um suicídio. Os próprios
militares fizeram a divulgação de uma fotografia na qual Herzog aparecia com uma
corda amarrada no pescoço, presa a uma janela, e de joelhos no chão. Esse fato
provocou grande indignação principalmente entre a classe média e a Igreja (os
principais alicerces do golpe de 1964), pois, por meio dessa fotografia, os militares
assumiam publicamente e de forma irônica que o jornalista não havia suicidadose, e sim, morto sob tortura. A morte de Herzog representou um marco da
mobilização social pela redemocratização do país. As notas de cruzeiro lançadas
por Cildo Meireles circulavam livremente com a indagação que apontava para a
institucionalização de mecanismos de torturas e mortes.
A fotografia foi fornecida por setores do exército que estavam “[...]
descontentes com a política de abertura e desafiando a ordem do governo de
suspender as torturas em presos políticos, [...] passaram a concentrar a repressão
a jornalistas de esquerda visando sabotar a tímida aproximação entre governo e
grande imprensa, que então se esboçava”.85 Em março de 1974 assume um novo
governo militar, que tinha como presidente o general Ernesto Geisel. De acordo
85
NAPOLITANO, Cultura brasileira..., p.106.
35
com Boris Fausto, a escolha de Geisel para a presidência representou uma
derrota da linha-dura do regime militar.86
Geisel assume a presidência em uma conjuntura inflacionária, com a classe
média, principal apoio do golpe de 1964, insatisfeita. O novo presidente dizia-se
disposto a promover uma abertura gradual, lenta e segura do regime. Os
integrantes dos órgãos de repressão não estavam de acordo com a política de
abertura democrática e continuavam agindo com a mesma violência dos anos
anteriores. “Embora a guerrilha tivesse sido eliminada, os militares linha-dura
continuavam a enxergar subversivos por toda parte. Continuava também a prática
da tortura, acrescida do recurso ao ‘desaparecimento’ de pessoas mortas pela
repressão”.87 Por mais que o regime militar ainda comandasse a situação social e
política do país, tanto a classe média quanto as classes populares estavam
envolvidas em uma discussão política e com perspectivas para a reabertura do
regime. Em relação à cultura, artistas e intelectuais de esquerda viram-se
novamente motivados a realizar uma “[...] participação política mais intensa,
passando de uma fase de resistência para uma fase mais crítica e agressiva, na
medida em que as massas voltavam ao primeiro plano da vida nacional e, com
isso, mudando completamente a correlação de forças entre a sociedade civil e
democrática e o Estado, dominado por um regime autoritário e coercitivo”.88
Nesse delicado período da conjuntura política nacional Cildo Meireles toca
no cerne do regime, carimbando em cédulas monetárias a questão Quem matou
Herzog?. “A pergunta, tão incomoda ao regime quanto ameaçadora para uma
população amedrontada, circulava livremente em cédulas porque ninguém
guardaria ou destruiria dinheiro para esconder a dúvida”.89 Assim, a pessoa que
repassasse a cédula estaria involuntariamente propondo a questão. Com isso,
Cildo Meireles envolveria o público, fazendo-o repetir o mesmo processo realizado
pelo artista no anonimato. Para Meireles
86
FAUSTO, B. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2002. p. 448.
Ibid., p. 491.
88
NAPOLITANO, Cultura brasileira..., p. 121.
89
HERKENHOFF, op. cit., p. 50.
87
36
[...] as Inserções... só existiriam na medida em que não fossem mais a obra de uma
pessoa. Isto é, o trabalho só existe na medida em que outras pessoas o pratiquem. Outra
coisa que se apresenta então é a necessidade do anonimato. A questão do anonimato
compreende por extensão a questão da propriedade. Não se trabalharia mais com o
objeto, pois o objeto seria uma prática, uma coisa sobre a qual não se pode ter nenhum
tipo de controle ou propriedade. E tentaria colocar outras coisas: primeiro, buscaria mais
gente, na medida em que não se precisa ir até a informação. Ela viria até você. Em
90
conseqüência haveria condições de fazer explodir a noção de espaço sagrado.
Ele partia do princípio de que havia um sistema abstrato de retorno e
circulação de notas monetárias, assim como no processo de garrafas de
refrigerante. “As Inserções em circuitos ideológicos tornavam-no visível. Era a
primeira inserção: a noção de circuito”.91 A primeira intenção com essa série era a
de criar, de certa forma, um novo circuito para a livre circulação de idéias, mesmo
que elas fossem expostas sem a identificação do seu autor. Por isso a noção de
readymade não aparece especialmente como estilo de arte, mas é usada em
termos da circulação de um objeto que já possuía seu próprio território de
receptividade. Consideramos, como Herkenhoff, que “[...] como tática de guerrilha,
Inserções em circuitos ideológicos se definem como modelo de atuação simbólica
em sistemas sociais significativos. Na verdade, Coca-Cola ou cédulas monetárias
são apenas veículos de uma ação tática clandestina de resistência política”.92
A referência ao readymade dava-se, novamente, no sentido oposto ao da
proposta de Marcel Duchamp, no sentido do não-objeto. Meireles escreveu, em
texto publicado em 1975, que: “A interferência de Duchamp no sistema de arte foi
do ponto de vista da lógica do objeto de arte, vale dizer, da estética. Qualquer
intervenção nessa esfera hoje – uma vez que o que se faz tende a estar mais
próximo da cultura do que da arte – é necessariamente uma interferência política.
Porque, se a estética fundamenta a arte, é a política que fundamenta a cultura”.93
Cildo Meireles ia no sentido contrário ao caminho dos readymades duchampianos,
ou seja, “[...] atuava no universo industrial. Não mais o objeto industrial colocado
no lugar do objeto de arte, mas o objeto de arte atuando no universo industrial.
Elas [Inserções em circuitos ideológicos] eram um graffiti num meio (suporte) que
90
MEIRELES, Textos do..., p. 112. Por espaço sagrado entenda -se museus e galerias.
Ibid., p. 109.
92
HERKENHOFF, op. cit., p. 48.
93
MEIRELES, Textos do..., p. 113.
91
37
circulava”.94 Seu sucesso independia do meio de arte e não era fundamentado na
quantidade de ocorrências, mas na capacidade de abrangência das frases
inscritas nos objetos industrializados. A eficácia dessa série estava na sua
aparição, enunciação, na explicitação da crítica, traduzida em uma prática social
percebida como prática artística. De acordo com Cildo Meireles, o Projeto CocaCola era “[...] uma metáfora (artística e politicamente necessária naquele
momento) do Projeto cédula, mais amplo e abrangente”.95 E, principalmente,
aquele projeto atendia a três pontos colocados pelo artista para sua produção:
1. A dolorosa realidade político-social-econômica brasileira, conseqüência em boa parte do
2. American way of politics and culture e sua ideologia (filosofia) expansionista,
intervencionista, hegemônica, centralizadora, sem perder de vista os
3. aspectos formais da linguagem, ou seja, do ponto de vista da história da arte, a
necessidade de produzir um objeto que pensasse produtivamente (criticamente, avançado
96
e aprofundado), [...].
Junto com essa postura pode-se perceber a característica vanguardista
desse artista, “[...] embora o que se esteja chamando de vanguarda envolva uma
gama variada e heterogênea, uma das características de alguns de seus
segmentos é o seu caráter mais público”.97 De acordo com Gilberto Velho, “[...] o
ethos dominante estaria ligado a uma visão de mundo política e existencialmente
progressista. Assim, tanto ao nível de sua percepção da realidade política,
propriamente dita, como em relação aos costumes, hábitos e valores dominantes
na sociedade brasileira, tenderiam a adotar uma postura crítica”.98 Isso se torna
importante dentro da análise das obras de Cildo Meireles, já que “[...] as formas
desta manifestação podem variar desde a adoção de um projeto político mais
consistente, aproximando pessoas que pensam de maneira semelhante, até
manifestações de protesto estritamente individuais e momentâneas, sem maior
continuidade”.99 Durante o período tratado por Velho (décadas de 1960 e 1970),
com a ausência de liberdade de expressão, ele coloca que havia diversas queixas
94
MEIRELES, Textos do..., p. 108-109.
Ibid., p. 109.
96
Ibid., p. 108.
97
VELHO, op. cit., p. 29.
98
Id.
99
Ibid., p. 29-30.
95
38
de artistas e intelectuais pela fragmentação, falta de unidade e individualismo
desse grupo. Contudo, apesar das dificuldades impostas pelo período, como
pudemos observar, as atividades artísticas tiveram uma certa continuidade.
Apesar de possuírem um forte caráter de contestação à política do regime
militar e de serem dotadas de um alto valor simbólico, Cildo Meireles não
pretendia que suas obras se esgotassem apenas no discurso político. Pelo
contrário, em todas elas sempre esteve presente a sua preocupação com o objeto
de arte, com aspectos formais e conceituais. Inclusive, é justamente por isso, por
essa maneira de enxergar o mundo e a arte que o seu trabalho se diferencia de
uma simples pichação num muro. Ele passa a criar novos meios de divulgação de
idéias partindo de uma dificuldade de se expressar em uma sociedade
temporariamente privada da liberdade. Esse modo de se ‘infiltrar’ no circuito
comercial e, muitas vezes se valer das armas ‘inimigas’, acaba por criar uma nova
mídia e leva novos dados para o debate histórico e artístico.
4 O CONSUMO DA RESISTÊNCIA ISOLADA PELO SISTEMA
Neste terceiro e último capítulo buscaremos apontar, de certo modo, para a
forma como as obras analisadas no capítulo anterior foram recebidas pela crítica
especializada da época e as formas de percepção implicadas com essa visão. A
princípio, havíamos proposto a busca pelo alcance dessas obras no público, mas
não teríamos como precisar quem esteve presente durante o happening
Tiradentes... ou quem recebeu uma Inserção em mãos, tornando assim essa
pesquisa inviável e condenada de imediato ao fracasso. Portanto, preferimos
atermo-nos a percepção da crítica de arte do período, ou seja, a textos publicados
em jornais ou em livros que emitissem opiniões sobre a obra de Cildo Meireles e a
produção da vanguarda das artes plásticas do início da década de 1970.
O crítico, no sentido que tentaremos abordá-la aqui, aparece como um
aglutinador de significados para a obra de arte. Ele, a partir do surgimento das
vanguardas artísticas da década de 1960 e 1970, teve de buscar novas formas de
relacionamento com o artista e com sua obra. “O crítico, por exemplo, julgava,
ditava normas de bom comportamento, dizendo que isto era bom e aquilo ruim,
isto é válido aquilo não, limitando áreas de atuação, defendendo categorias e
gêneros artísticos, os chamados valores plásticos e os específicos. Para tanto
estabelecia sanções e regras estéticas (éticas)”.100 Acreditamos que o crítico
passava de uma posição de apenas emitir juízos de valor e categorizar a obra de
acordo com a história da arte, para fazer parte da obra criticada, assim como
estava sendo exigido do espectador dessas vanguardas. Nas palavras de
Frederico Morais, que vem sendo citado ao longo desse trabalho, “[...] o crítico fazse artista ao penetrar fundo na intimidade da obra, agravando ainda mais as
contradições da arte”.101 Assim percebemos a função do crítico das vanguardas de
1960 e 1970, não como o sujeito capacitado para dar o aval a respeito da boa ou
má qualidade de uma obra, mas aquele que, atuando com ou sem o artista,
100
101
MORAIS, Contra a arte afluente..., não paginado.
MORAIS, Artes plásticas..., p. 9.
40
propõe uma nova obra, ou ainda uma nova forma de pensar a respeito da obra
proposta pelo artista.
De acordo com texto de Frederico Morais escrito em 1975, a vanguarda
artística brasileira, a partir da década de 1970, passou por um período de pouca
atuação, tanto por um sentimento pessimista como pela auto-censura, uma vez
que a censura em si acabava por desestimular os artistas a uma criação mais livre
e, eles próprios, passavam a se censurarem. Por outro lado, esse argumento da
censura poderia ser tido apenas como uma justificativa para a não criação.
Frederico Morais refere-se a uma certa crise da vanguarda artística
brasileira, atribuindo a essa crise “[...] uma conjunção de fatores, desde aqueles
imanentes à própria arte, e outros subjacentes ou externos e que dizem respeito à
situação do país e do mundo”.102 As tradicionais formas de interpretação de uma
obra de arte, como foi mencionado, vão se esfalecendo com a introdução de
novos caminhos para o objeto “arte”, os meios de consumo em massa ganham
uma proporção gigantesca, propondo o consumo rápido e alienante, e até mesmo
as modificações que ocorreram na sociedade brasileira podem ser vertentes para
a explicação dessa crise.
A arte produzida entre as décadas de 1960 e 1970, ao que tudo indica,
parecia ter como perspectiva uma visão de aproximação com a vida. “A operação
de reelaborar o conceito de trabalho de arte está estreitamente ligado ao fim da
concepção humanística de arte, já delineada no início do século XX com a crise
das vanguardas históricas e que se convencionou chamar de ‘morte da arte’”.103
Para Frederico Morais, toda arte, consciente ou inconscientemente, faz parte de
um projeto de nação. Depois de pronta, ela ganha ou perde significados que o
artista não tem como controlar.
Pode-se perceber a partir da análise das obras de Cildo Meireles realizada
no segundo capítulo deste trabalho, que esse artista coloca em tensão a arte
como instituição. De acordo com o crítico de arte Harold Rosenberg, o que se
102
MORAIS, Artes plásticas..., p. 70.
CABO, S. Barrio: a morte da arte como totalidade. In: BASBAUM, R. (org.). Arte
contemporânea brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 98. A respeito da “morte da
arte” ver GULLAR, F. Argumentação sobre a morte da arte. Rio de Janeiro: Revan, 1993.
103
41
fazia nesse período tratado, apesar de estar destinado a suportar a incerteza de
ser ou não ser uma obra de arte, nunca foi outra coisa senão um movimento
artístico.104 Para ele, a desestetização praticada pelas vanguardas artísticas
referia-se às tendências da arte produzida no início da década de 1970, de ir
contra a negociação do seu produto por conta da função atribuída a ela naquele
momento: “[...] a função da Arte no nosso tempo não é agradar aos sentidos [...], a
idéia ou processo do artista é mais importante que o produto acabado [...]”.
Complementa Rosenberg que a arte, “[...] para ser verdadeiramente destrutiva em
relação à estética, deveria renunciar à ação artística em benefício da ação
política”.105 Para Meireles o interessante não era a destruição da estética na obra
em função do seu caráter político de ação. Mas “[...] o caráter duplo desses
trabalhos: um objeto podia simultaneamente abarcar dois níveis, dentro e fora de
uma definição artístico-histórica do objeto de arte”.106 Para ele era importante
pensar sobre a arte de uma forma que não fosse restrita ao visual, à estética, mas
não que essas características fossem simplesmente descartadas. Talvez em
Tiradentes... possa-se aplicar parcialmente a noção de desestetização proposta
por Rosenberg, pois nela, Meireles pensava em uma obra radical de caráter
político. Contudo, essa obra correspondia às exigências de um trabalho de arte,
com todas as questões que o termo abarca. “Havia aspectos formais e
conceituais, intimamente ligados à questão do objeto de arte, que nada tinham a
ver com o discurso político”107, como diz o artista, não excluindo nem o caráter
político nem o estético da obra.
Segundo Morais, a vanguarda brasileira, após o movimento neo-concreto,
se apagou por um tempo, retomando sua atuação entre 1965 e 1967, durante o
governo do general Costa e Silva. Como pode ser percebido pelas datas desse
ressurgimento, o golpe militar de 1964 não provocou reações imediatas entre os
artistas plásticos no Brasil. “Um ano depois, 1965, os artistas, timidamente
começaram a se agrupar, para poder falar novamente. Em parte sob o impulso
104
ROSENBERG, H. Desestetização. In: BATTCOCK, G. A nova arte. São Paulo: Perspectiva,
1986. p. 218.
105
Ibid., p. 216.
106
MOSQUERA, op. cit., p. 13.
107
Ibid., p. 15.
42
das novas tendências mundiais: a Pop-Art americana e a Nova Figuração
européia”.108
Os primeiros anos do governo instaurado com o golpe ficaram
representados pelo veto em diversos setores sociais. O direito de greve abolido –
proibida dessa forma a resistência operária –, a provocação de uma recessão no
desenvolvimento econômico do país gerando também a entrada do capital
estrangeiro e uma conseqüente privatização de grande parte das indústrias
nacionais. Em poucas palavras, foi um período de forte adesão ao capitalismo.
“Tudo, portanto, se desenvolveu nos quartéis, entre militares. Intramuros. A
grande massa da população brasileira foi mantida à margem, proibida de falar”.109
Ainda citando Frederico Morais, “[...] a principal tarefa da vanguarda
durante o primeiro ‘governo revolucionário’ foi tentar opinar”.110
Nas artes
plásticas surgem nesse contexto as já citadas primeiras versões das exposições
Opinião 65 e Proposta 65, respectivamente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Já
em 1968, no campo cultural, a decretação do AI-5
[...] oficializou a censura prévia, o que iria repercutir obviamente sobre a produção
intelectual e artística. [...]. Do final de 68 ao início da nova década a arte brasileira viveria
momentos de grande inquietação, até se sensibilizar negativamente, com a auto-censura,
numa aceitação passiva do status-quo. A vanguarda assumiu uma posição de
marginalidade em relação ao sistema.111
Sheila Cabo compartilha do mesmo posicionamento que Frederico Morais
quando afirma que “[...] o experimental da década de 1970 no Brasil significava
estar à margem de qualquer instituição. Ser marginal é então uma recusa do papel
institucional da arte (circuito) e também uma recusa de si mesmo, que se dá
[também] na recusa dos materiais instituídos para a arte”.112
Uma das primeiras manifestações da censura se deu no VI Salão de
Brasília, mas devido à ação do júri, a retirada de trabalhos considerados políticos,
ou seja, que agrediam de alguma forma o regime militar, foi impedida.
108
MORAIS, Artes plásticas..., p. 82-83.
Ibid., p. 83.
110
Ibid., p. 85.
111
Ibid., p. 101.
112
CABO, op. cit., p. 104.
109
43
Contudo, o primeiro conflito realmente grave com a censura ocorreu na II Bienal da Bahia,
inaugurada alguns dia antes do Ato Institucional [n° 5]. No discurso inaugural, o então
governador Luiz Vianna Filho afirmou que ‘toda arte jovem tem de ser revolucionária’ e que
‘a liberdade caracteriza a arte’. No outro dia, entretanto, a Bienal foi fechada, presos seus
organizadores, seguindo-se da retirada de vários trabalhos considerados eróticos e
113
subversivos.
Em 1969 o conflito com a censura tornou-se mais intenso devido à proibição da
abertura da exposição, que seria realizada no MAM do Rio de Janeiro, de
trabalhos dos artistas que haviam sido selecionados para participar da VI Bienal
de Veneza. “Os prejuízos proporcionados pela ação da censura em 68/69 tanto
internamente (criando a chamada ‘fossa cultural’ [...]) e externamente (para a
imagem cultural do Brasil) foram irrecuperáveis”.114
Frederico Morais afirma que o último suspiro da vanguarda artística
brasileira foi representado pelo (também já citado) Salão da Bússola, em 1969,
realizado no MAM do Rio de Janeiro. Foi desse salão que se viu nascer uma nova
vanguarda carioca que proporcionou uma dimensão dessa mostra não prevista
por seus organizadores. O Salão da Bússola trouxe novas tendências, presentes
também na arte mundial, que foram vistas nos trabalhos de Cildo Meireles,
Antônio Manuel, Artur Barrio, Luiz Alphonsus, Thereza Simões e Guilherme
Magalhães Vaz. Na definição de Frederico Morais, essas tendências passavam
por um neo-construtivismo e pela contra-arte. Esse grupo que tomou posição
durante a chamada “fossa cultural”, iniciado aproximadamente após a decretação
do AI-5, adotou uma
postura que mantiveram de embate com a totalidade na arte. Essa geração só foi possível
no vazio provocado pela morte da ‘obra de arte’; só se tornou possível porque os artistas
não fazem obras, mas propõem atos, gestos, ações coletivas. Movimentam-se no plano do
agir, no sentido de assumir o experimental [...]. O movimento da contracultura propõe:
transgressão das instituições pela arte/comportamento desregrado. Nada tem em comum
com a coerência dos discursos contestadores, da crítica militante ou dos programas
115
estéticos.
O termo contra-arte ou arte da contracultura, que é uma das vertentes
113
MORAIS, Artes plásticas..., p. 101.
Ibid., p. 102.
115
CABO, op. cit., p. 107.
114
44
desse trabalho, pode ser entendido, segundo Frederico Morais, como a soma da
[...] contestação política à contestação da própria arte (sobretudo suas categorias
tradicionais). [...] sua arte é cada vez mais conceitual. [...]. Surgidos repentinamente, vindos
de outros setores, fazem uma arte selvagem, que tende ao nomadismo (fora dos museus e
galerias, de preferência) e ao anonimato. Atuam imprevisivelmente como guerrilheiros, sem
116
se anunciar, e onde menos se espera.
Para esse crítico de arte, enquanto os neo-construtivistas, de alguma forma,
poderiam ser absorvidos pelo comércio de arte, os artistas que produziam essa
forma de contra-arte, mesmo quando expunham em galerias, ficavam à margem
de tal comércio. Para essa vanguarda da década de 1970 a “[...] arte é
irrecuperável, invendável, por isso mesmo alimenta-se do precário, de situações
fortuitas, das oportunidades que surgem”.117 Analisando tanto Tiradentes: totem
monumento ao preso político quanto as Inserções em circuitos ideológicos,
percebe-se
que
Cildo
Meireles
pertence
a
essa
vanguarda
pelo
seu
posicionamento, sua forma de agir, inserindo-se em sistemas de circulação,
aproveitando-se de situações existentes para expressar seu ponto de vista,
atuando, dessa forma, na contramão da chamada crise da vanguarda da década
de 1970.
Pelo que foi analisado ao longo desse trabalho pode-se perceber que a
obra de Cildo Meireles estava tão próxima da arte contemporânea européia e
norte-americana quanto a própria vanguarda da Europa e dos Estados Unidos. De
acordo com Paulo Venâncio Filho, essa independência de criação não poderia ser
pensada para arte brasileira até o movimento modernista da década de 1920, este
que, apesar de revolucionar o campo das artes no Brasil, foi de certo modo mera
transposição, guardadas suas devidas particularidades, do que estava sendo
produzido em países europeus, como França e Alemanha.118 A autonomia da arte
brasileira a partir de 1960 chegou a surpreender os grandes centros de hegemonia
cultural, tanto que, como afirma Frederico Morais, a crise que fora observada na
vanguarda artística brasileira a partir da década de 1970, entre diversos fatores,
116
MORAIS, Artes plásticas..., p. 103-104.
Ibid., p. 104.
118
Em relação ao movimento modernista no Brasil ver AMARAL, A. Artes plásticas na Semana
de 22: subsídios para uma história das artes no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1972.
117
45
teve um deles decorrente da saída de muitos artistas do território brasileiro,
transferindo-se para os Estados Unidos ou Europa, sendo reconhecidos e
aclamados mais vivamente fora, que dentro de seu próprio país. Entre eles
podemos localizar Cildo Meireles, que teve o sucesso alcançado primeiramente
nos Estados Unidos e, só depois disso, seu nome ganhou maior destaque no
Brasil. O caminho traçado por Meireles elucida de forma plausível o esquema
elaborado por Frederico Morais para a arte brasileira de meados da década de
1960 e início da década de 1970: “1- Agravamento sensível do conflito com a
censura; 2- o surgimento de uma contra-arte ou arte-guerrilha; 3- êxodo crescente
de artistas e intelectuais para o exterior”.119 Francisco Bittencourt coloca também
que “[...] a essa altura dos acontecimentos a vanguarda já começava a se
encaramujar, numa fase de refluxo. Depois de uma atividade esgotante, seus
principais artífices dispersaram-se e alguns deles viajaram para o exterior por
longos períodos”.120
Esse caminho percorrido também por Cildo Meireles não o impediu de
propor uma articulação entre a preocupação estética com um determinado
contexto político-social brasileiro. Buscamos encontrar a medida compreensível
dessa relação. Manifestamos que os trabalhos de Cildo Meireles se inscrevem
num quadro de experimentalismo da arte contemporânea brasileira. Como afirma
Paulo Venâncio Filho,
[...] esse quadro tinha como referências as tendências construtivas vigentes nos anos 1950
e as tendências pop nos anos 1960. Numa sociedade ainda insuficiente de signos de
amplo reconhecimento social, a estratégia pop era estruturalmente problemática. A escolha
duchampiana do ready-made, que na América era simples apropriação pelo artista de uma
imagem previamente escolhida, eleita pela sociedade de consumo, exaustivamente posta
em circulação, aqui se tornaria inviável [...]. Dessa maneira persistia ainda um resíduo de
afeto, uma inevitável sentimentalização, nada equivalente ao cinismo e à indiferença
121
pop.
Não podemos concordar com essa argumentação pois, acreditamos que tanto em
Tiradentes: totem monumento ao preso político quanto em Inserções em circuitos
119
MORAIS, Artes plásticas..., p. 101.
BITTENCOURT, Dez anos de..., não paginado.
121
VENÂNCIO FILHO, P. Situações limite. In: BASBAUM, R. (org.). Arte contemporânea
brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. p. 319-320.
120
46
ideológicos, Meireles atua com o mais alto grau de cinismo – talvez maior ainda do
qual fora observado na pop norte-americana – em relação a forma de conduta
adotada pelo regime militar com os presos políticos e ao consumo de massa de
uma determinada ideologia. Os três trabalhos analisados no segundo capítulo são
representados por uma forma de pensar e atuar socialmente, podendo ser
entendida como uma espécie de se “fazer política”. Essa forma de agir não
acabava com o término da obra, mas tornava-se presente pela sua inserção e por
sua existência crítica. Não era uma forma de arte representativa da subjetividade
do artista, e sim de uma realidade objetiva. Para Paulo Venâncio, nos trabalhos de
Meireles “[...] encontramos um sistema que se poderia chamar de visionário,
coerente e rigoroso, aglutinador de experiências, que articula desde gestos
insignificantes do cotidiano até grandes estruturas sociais. Daí o fato de não
podermos esperar desses trabalhos imagens ilustrativas e superficiais. Elas
procuram menos a superfície do que as forças, relações, tensões que estão por
trás da superfície”.122 Essa superficialidade apontada por Paulo Venâncio e
encontrada na pop art norte-americana, não aparece nas obras de Meireles.
Contudo, o cinismo superficial da pop dá lugar na obra de Cildo Meireles a um
cinismo crítico e elucidativo sobre a sociedade brasileira.
O ponto que mais buscamos enfocar nos trabalhos de Cildo Meireles foi a
vinculação da arte produzida por esse artista as preocupações sociais, que não
aparecem apenas nas obras citadas nesta análise. Em crítica publicada no Jornal
do Brasil, Sérgio Ryff ridiculariza os argumentos utilizados para a análise das
obras de Meireles. Apesar da citação ser longa é importante que seja mostrada,
pois, Ryff coloca que tal artista traz
[...] em seu currículo de realizações artísticas a façanha de ter, numa exposição organizada
por Frederico Morais no ano de 1970, em Belo Horizonte, explodido ‘10 galinhas vivas num
totem-monumento ao preso político, na semana de Tiradentes’. (...). Outra de suas
realizações, esta menos macabra, consistia em produzir ‘inserções em circuitos
ideológicos’, proposição aparentemente complexa mas que na realidade não passava de
imposição de inscrições em garrafas de Coca-Cola já vazias que depois de trocadas por
outras cheias do refrigerante – como faz de ordinário qualquer consumidor – devolvendoas assim ao circuito normal botequim-casa-casa-botequim. Peca, no sentido da proposta
pela total ausência de originalidade. Sabe-se de há muito que tal experiência vem sendo
realizada com maior eficácia pelos artistas (autores?) anônimos que costumam rabiscar
122
VENÂNCIO FILHO, op. cit., p. 320.
47
versinhos pitorescos – e muito mais objetivos – nas notas de dinheiro de pequeno valor,
123
reinserindo-as nos circuitos ideológicos, isto é, devolvendo-as à circulação.
Já o crítico de arte Ronaldo Brito, discorrendo a respeito das Inserções em
circuitos ideológicos de Cildo Meireles expõe que esse trabalho
não é construção de obra, mas fluxo de desperdícios comunicantes. Não se toma como
processo de agenciamento de sentidos próprios, distintivos, e sim como bateria de
descargas nos circuitos de informações estabelecidos. Os seus efeitos não se deixariam
assim medir simplesmente no espaço e no tempo. No espaço, porque quase não se
exibem aí, não são sólidos o suficiente para atrair atenção. No tempo, porque têm um
percurso aparentemente aleatório, misturam-se ao acaso e ao anonimato. [...]. Não há
como contar inscrições no dinheiro e nos muros. Objetivamente isso não conta e não vale.
Mas o que a ‘inserção’ tematiza é a espécie de inteligência, a espécie de discurso, a
espécie de sociabilidade que movem essas insignificâncias. O que a ‘inserção’ nota é que
o próprio gesto de classificá-las como insignificâncias implica reconhecimento e
valorização. Nega-se e recalca-se apenas o que existe e pressiona. Desejo suspeito,
estranhamento radical, o de condenar à inexistência o que por si só já não existia. O
importante não são os conteúdos, mas a estrutura dessa comunicação volátil: murmúrio
coletivo que não cessa de acontecer. A ‘inserção’ tira daí seu modelo, opera nessa
124
freqüência, aposta nessa homeopatia explosiva.
Os apontamentos de Brito por si só já rebatem a crítica elaborada por
Sérgio Ryff. No entanto, não podemos concordar inteiramente com a posição de
Ronaldo Brito por um detalhe, esse crítico coloca como ponto mais importante das
Inserções... a sua forma de comunicação/infiltração social, não atribuindo
importância semelhante aos conteúdos veiculados nelas. De acordo com a análise
proposta neste texto, os conteúdos difundidos, no momento histórico em que
foram expostos e da forma praticada em Inserções..., tomaram o mesmo lugar de
importância que sua circulação. Tanto na crítica a sociedade de consumo, com a
frase Yankees go home, quanto na questão-acusação Quem matou Herzog?,
Cildo Meireles não buscava priorizar a forma em função do conteúdo. Ao que tudo
indica, tanto uma quanto a outra foram pensadas juntas e não fariam sentido se
praticadas separadamente.
A respeito da Inserção em circuito ideológico: Projeto Coca-Cola, Frederico
Morais realizou em 1970 – mesmo ano que esse projeto foi exposto na Petite
Galerie – uma exposição que criticava os trabalhos apresentados na mostra
123
RYFF, S. Cildo Meireles, com risco de incêndio, prova que tem toda razão. Jornal do Brasil,
Rio de Janeiro, 27 abr. 1979.
124
BRITO, op. cit., p. 113-114.
48
Agnus Dei. A exposição de Frederico Morais, intitulada Nova Crítica, teve a
duração de uma noite e foi realizada também na Petite Galerie no Rio de Janeiro.
Nela o crítico de arte, agora assumindo a posição de artista, encheu a galeria com
quinze mil garrafas de Coca-Cola, tendo algumas a frase ideológica Yankees go
home que Cildo Meireles havia empregado em seu Projeto Coca-Cola. Frederico
Morais fez alusão semelhante ao trabalho de Thereza Simões e Guilherme Vaz,
que também participaram da Agnus Dei.
Essa exposição-comentário que adotava as mesmas táticas dos artistas criticados foi muito
mais que a simples tentativa de inaugurar uma nova crítica, pois o crítico estava ali não
como opressor do artista, mas em pé de igualdade com ele, levantando de forma
inteligente e sensível as barreiras que sempre existiram entre as duas classes. Mais do
que o crítico, ali estava o colega de luta, atuante e irreverente, capaz de utilizar de
125
qualquer arma para chegar ao melhor entendimento do fenômeno artístico.
Frederico Morais com essa atitude buscava justamente executar uma nova
forma de ação para os críticos de arte, a nova crítica que fora mencionada no
início deste capítulo. Essa crítica de Morais ao Projeto Coca-Cola, bem diferente,
aliás, da crítica redigida por Sérgio Ryff, parece-nos um tanto controversa para um
crítico que se mostrava estimulador de atitudes contrárias ao status quo. Morais
ataca o Projeto Coca-Cola de Cildo Meireles apontando para sua ineficácia em um
sistema de circulação de mercadorias forte e esmagador desses pequenos atos. A
crítica de Morais é colocada em função da individualidade desse projeto, no
sentido de que uma ação solitária em um sistema gigantesco de consumo e
distribuição de mercadorias não resultaria no efeito desejado. Em outras palavras,
Frederico Morais buscava apontar para a impossibilidade de infiltração nesses
circuitos que, pela sua grandiosidade, iriam inevitavelmente engolir essas formas
de ação. Explicando, décadas mais tarde, como reagiu a crítica de Frederico
Morais, Cildo Meireles disse que sua “[...] intenção na época era chegar a uma
fórmula que tivesse efeito político [...]”, completando que acreditava ter alcançado
seu objetivo. Meireles acrescenta que naquele momento era “[...] praticamente
impossível concretizar qualquer coisa em escala individual [...] [e que] na ocasião,
estava muito contente com o projeto porque era o menos factível, ainda que
125
BITTENCOURT, Dez anos de..., não paginado.
49
levantasse a questão da desproporção”.126 Em relação ao Projeto cédula Meireles
afirmava que: “A idéia de circuito ainda estava lá e teve um efeito maior que o
Projeto Coca-Cola. No confronto entre o indivíduo e o Estado naquelas
circunstâncias, o Estado era claramente visto como o problema. O Projeto CocaCola tratava mais da questão do indivíduo em relação ao capitalismo. Como a pop
art, utilizava de forma irônica a iconografia de massa”.127
Outro pensamento que pode ser mencionado neste trabalho é o da crítica
de arte Sheila Leirner, que apesar de não tratar especificamente da obra de Cildo
Meireles, discorre sobre o período de produção das obras que abordamos.
Segundo texto escrito por Sheila Leirner, no ano de 1978, “[...] a arte
contemporânea parece transgredir mais a si própria do que estabelecer a profícua
relação de trocas transgressivas com a realidade externa”.128 De acordo com
Sheila Leirner, os artistas que atuavam no início dos anos 1970 não estavam
preocupados com uma produção artística engajada politicamente. Desse modo,
para essa autora,
[...] pode-se dizer perfeitamente que grande parte dos artistas contemporâneos de países
que vivem tanto em estado de exceção como de superdesenvolvimento sofre
transformações resultantes das circunstâncias opressoras ou repressoras de seu
ambiente. Tendem a renunciar radicalmente às realidades externas, descobrindo verdades
paralelas e se fecham cada vez mais dentro de um casulo protetor.129
Para Leirner as transformações ocorridas nesses ambientes não vão além do
indivíduo, e só aparecem em questões referentes à própria obra ou a criação. O
fato criticado por essa autora é a extrema individualização das obras, com
temáticas e preocupações que não se relacionam com a sociedade como um todo,
mas com o desenvolvimento do artista apenas em torno de si e da própria arte.
Ela afirma que:
126
MOSQUERA, op. cit., p. 12.
Ibid., p. 13.
128
LEIRNER, S. Arte como medida. São Paulo: Perspectiva, 1982. p. 36. Esses fragmentos
a
compõem um texto escrito depois que o Conselho Permanente de Justiça da 4 Região Militar de
Juiz de Fora condenou o artista Lincoln Volpini a um ano de prisão sob acusação de que seu
quadro, Penhor da igualdade, continha “mensagens altamente subversivas”.
129
Ibid., p. 2.
127
50
Praticamente não há uma arte verdadeiramente política. São poucas as tentativas
ponderadamente modificadoras; assim como é mínimo o empenho em questionar normas
estabelecidas. São raros os sistemas artísticos engajados, organizados e coesos que
tenham viva participação na vida cultural de seus países. No nosso, grande parte das
diferentes manifestações não são mais do que subtítulos permitidos para a arte que não
respeita o silêncio.130
Contudo, pela exposição do posicionamento de alguns críticos de arte em
relação à produção da vanguarda da década de 1970, podemos considerar que
mesmo dentro desse grupo não havia um pensamento homogêneo a respeito do
que estava sendo produzido nesse período no campo das artes plásticas. Alguns
ignoravam claramente as investidas e tentativas dos artistas que se propunham a
produzir uma forma de arte voltada para a participação política e envolvimento
com questões sociais. Outros louvavam essas formas de atuação artística, mas,
no entanto, não deixavam de censurar iniciativas como as de Cildo Meireles, que
eram pautadas na atuação individual. Sendo assim, pudemos perceber,
observando o posicionamento da crítica especializada em artes plásticas, que a
característica de movimentos artísticos bastante presente na década de 1960 de
coletivização da arte, de colocar na prática o conceito de participação e de criação
coletiva marcou o pensamento e o posicionamento dos críticos de arte durante o
início da década de 1970. Sendo assim, deduzimos que a atuação individual de
artistas nesse período era vista com um certo incômodo, pois, saindo de uma
década na qual a participação coletiva representava a espinha dorsal da arte
brasileira, a individualização dos projetos artísticos era observada mais pelas
questões intrínsecas à arte do que pelo seu caráter de engajamento políticosocial.
130
LEIRNER, op. cit., p. 39.
5 CONCLUSÃO
Nessa pesquisa direcionada para a história social da arte, a própria obra
representou nosso campo documental essencial, mas não apenas ela, a sua
inserção dentro de um contexto cultural acabou estruturando esse trabalho. Na
abordagem de Marcos Napolitano a respeito das questões teórico-metodológicas
referentes à utilização da documentação artística pelo historiador, é colocada a
necessidade de se observar a historicidade tanto da obra quanto do artista. Sendo
assim, “[...] o campo da arte, pela ambigüidade e polissemia de suas bases, abrese para a gestação de projetos sociais e utopias, assim como expressa visões de
mundo predominantes ou contestadoras”.130 E expõe a discussão de como a obra
de arte poderia ser analisada da perspectiva do historiador: “[...] a obra deveria
funcionar como um receptáculo de temporalidades, tradições e projetos sóciohistóricos, que encontram nela uma formulação material, concreta, submetida a
um conjunto de códigos estabelecidos por cada área de expressão, estilo e gênero
artístico”.131 E o artista observado como um ponto de confluência dos campos
estético, sociológico e ideológico. Pautando-nos nisso pudemos fazer uma
abordagem de três obras produzidas por Cildo Meireles, buscando por meio delas
evidenciar vertentes da produção artística brasileira na primeira metade da década
de 1970.
Conforme apresentado ao longo dessa pesquisa, no Brasil as mudanças
ocorridas entre as décadas de 1960 e 1970 foram significativas em diversos
setores da vida social e extremamente sensível para o campo das artes plásticas.
As modificações políticas após o ano de 1964, mas, principalmente após a
publicação do Ato Institucional n° 5 no ano de 1968, incidiram diretamente sobre o
campo cultural e, de acordo com o que foi analisado, foram também decisivas
para a produção artística.
130
131
NAPOLITANO, História e arte..., p. 902.
Ibid, p. 902-903.
52
No campo das artes plásticas havia esgotado-se o debate da limpeza e do
equilíbrio, do bom acabamento e da contemplação da obra, que foram por muito
tempo considerados essenciais para toda uma geração de críticos de arte e de
artistas. Foi então o momento de superar esses valores e adotar – principalmente
pós 1968 – uma estética da violência, do lixo, de materiais inusitados. Podemos
afirmar, com base nas obras de Cildo Meireles, que a vanguarda da década de
1970 demonstrava um interesse maior em manifestações artísticas que fossem
associadas a ações políticas, capazes de abrir brechas para a divulgação de
idéias em um país marcado pela censura e sob o peso de uma ditadura.
Acreditamos que, apesar do momento histórico castrador da liberdade de
expressão e de criação, o período que abrange o final da década de 1960 e
meados da década seguinte, tenha sido um dos mais ricos para a arte
contemporânea brasileira. A vanguarda artística de 1970 foi marcada por inúmeras
propostas inovadoras, por formas singulares de atuação política e social, tanto
com provocações que evidenciavam a relação entre realidade e representação,
quanto em relação à crítica que era colocada à própria arte e ao regime militar.
A arte brasileira do início da década de 1970 foi representativa do espaço
urbano, apresentada tanto na vertente da pop art, quanto na vertente experimental
ou ainda nas intervenções em espaços públicos (performances e happenings). No
caso de Cildo Meireles, percebemos todas essas vertentes que, no seu conjunto,
achamos ser apropriado denominarmos como uma vertente conceitual.
Constatamos que, apesar de ter existido um controle sobre a produção
cultural do período ditatorial, no que se referia as artes plásticas esse controle
atuou de forma relativamente branda. Esse fato explica o surgimento da
diversidade de tendências estéticas e da busca por um comprometimento político
e social maior por parte dos artistas.
As obras de Cildo Meireles emergem com total coerência a esse ambiente
de produção. Tornando-as ativas, Meireles apropria-se de meios inesperados para
lidar com a questão do engajamento político e social em seu trabalho, sem
menosprezar as questões que conferem a uma determinada “coisa” o caráter de
arte. Tiradentes: totem monumento ao preso político e a série Inserções em
53
circuitos ideológicos forjam respostas não usuais às condições políticas e sociais
do seu momento. São formas de arte marginal. Marginal no estilo, marginal na
poética, marginal no processo de produção e execução das obras. Marginal até
mesmo na forma de distribuição e no plano de circulação desses trabalhos. Neles,
destacamos a ação transgressora e isolada de resistência, de se fazer ouvir, de
pôr em público por meios informais seus pontos de vista.
Atualmente os trabalhos de Cildo Meireles continuam a ser politicamente
comprometidos, mas seu alvo de críticas foi transferido para as formas atuais de
produção e comércio da arte. Dessa forma, Meireles ultrapassa a década de 1980,
separada da anterior pela passagem da arte como local de transgressão para a
arte que foi sendo absorvida pelo mercado. Apesar dos aspectos comerciais já se
fazerem presentes no campo das artes plásticas em um período anterior, foi a
partir dos anos 1980 que o comprometimento político e social cedeu espaço para
a arte vista como mercadoria. A partir de então, a discussão sobre o comércio de
arte se tornará uma questão crucial para os artistas que pertenceram à vanguarda
de 1970 e para os que representaram a geração de 1980.
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ANEXOS
Anexo 1 - Tiradentes: totem monumento ao
preso político
ANEXO 2 – TIRADENTES TOTEM MONUMENTO AO PRESO POLÍTICO
ANEXO 3 - TIRADENTES: TOTEM MONUMENTO AO PRESO POLÍTICO
ANEXO 4 – TIRADENTES: TOTEM MONUMENTO
AO PRESO POLÍTICO
ANEXO 5 – TIRADENTES: TOTEM MONUMENTO AO
PRESO POLÍTICO
ANEXO 6 – INSERÇÕES EM CIRCUITOS IDEOLÓGICOS: PROJETO CÉDULA
ANEXO 7 – INSERÇÕES EM CIRCUITOS IDEOLÓGICOS: PROJETO C
COLA
ANEXO 8 – INSERÇÕES EM CIRCUITOS IDEOLÓGICOS: PROJETO CÔCACOLA
ANEXO 9 – INSERÇÕES EM CIRCUITOS IDEOLÓGICOS: PROJETO COCACOLA
ANEXO 11 - INSERÇÕES EM CIRCUITOS IDEOLÓGICOS: PROJETO COCACOLA
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