ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA João Carlos de Azevedo Fraga O EMPREGO DAS FORÇAS ARMADAS EM OPERAÇÕES DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM Rio de Janeiro 2011 ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA João Carlos de Azevedo Fraga O EMPREGO DAS FORÇAS ARMADAS EM OPERAÇÕES DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM Trabalho de Conclusão de Curso - Monografia apresentada ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia. Orientador: CMG GUILHERME SANDOVAL GÓES Rio de Janeiro 2011 C2011 ESG Este trabalho, nos termos de legislação que resguarda os direitos autorais, é considerado propriedade da ESCOLA SUPERIOR DE GUERRA (ESG). É permitida a transcrição parcial de textos do trabalho, ou mencionálos, para comentários e citações, desde que sem propósitos comerciais e que seja feita a referência bibliográfica completa. Os conceitos expressos neste trabalho são de responsabilidade do autor e não expressam qualquer orientação institucional da ESG __________________________________ Assinatura do autor Biblioteca General Cordeiro de Farias Fraga, João Carlos de Azevedo. O emprego das Forças Armadas em Operações de Garantia da Lei e da Ordem / João Carlos de Azevedo Fraga - Rio de Janeiro : sigla da unidade, 2011. 48 f.: il. Orientador: CMG Guilherme Sandoval Góes Trabalho de Conclusão de Curso – Monografia apresentado ao Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra como requisito à obtenção do diploma do Curso de Altos Estudos de Política e Estratégia (CAEPE), 2011. 1. Segurança Pública e Forças Armadas. 2. Constituição e Forças Armadas. 3. Garantia da Lei e da Ordem. 1. Marinha do Brasil. 2. Recursos humanos. 3. Gestão de pessoas. 4. Recrutamento. A todos que contribuíram para o meu ingresso no CAEPE, com a estadia da minha família na cidade maravilhosa, assim como àqueles que, durante o meu período de curso, contribuíram com ensinamentos e incentivos. Aos meus amigos, principalmente aos conquistados durante o ano de 2011. À minha amada mulher Kellen e ao meu primeiro filho José pela compreensão, como resposta aos momentos de distanciamento, em dedicação às atividades da ESG. A todos os nossos familiares, pais, mães e irmãos, alunos. de quem somos privilegiados AGRADECIMENTOS Ao Ministério da Defesa, por manter, incentivar e ampliar tão importante Instituição de Ensino que realmente se propõe a pensar o futuro do Brasil. Ao Corpo Permanente da ESG pela condução dos trabalhos, que me fizeram um homem melhor e preparado para ajudar na construção do Brasil. A todos os colegas e amigos estagiários da única, singular e ímpar Turma Segurança e Desenvolvimento, pelos ricos momentos compartilhados durante um ano de muita felicidade e harmonia. EPÍGRAFE Há aqueles que lutam um dia; e por isso são bons; Há aqueles que lutam muitos dias; e por isso são muito bons; Há aqueles que lutam anos; e são melhores ainda; Porém, há aqueles que lutam toda a vida; esses são os imprescindíveis. Bertold Brecht RESUMO Esta monografia abordou os requisitos e as situações legalmente previstas para o emprego das Forças Armadas do Brasil em operações de garantia da lei e da ordem, bem como a sua relação direta com a garantia do exercício dos direitos fundamentais previstos na Carta Magna brasileira. O objetivo foi, a partir da legislação existente e em vigor no país, iniciando pelo texto da Constituição Federal, avaliar a participação das Forças Armadas no processo constitucional de garantia do exercício desses direitos fundamentais da pessoa humana (segurança, locomoção, domicílio, entre outros). Isso porque a participação das Forças Armadas em episódios internos do Brasil é prevista na Constituição Federal apenas de maneira subsidiária, para e em situações excepcionais, como as situações de garantia da lei e da ordem. A metodologia adotada comportou uma pesquisa bibliográfica e documental, visando buscar referenciais teóricos, além da experiência do autor, como Promotor de Justiça atuante no Estado do Rio Grande do Sul. O campo de estudo delimitou-se às situações em que há a autorização legal para o emprego das Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem. Analisou sob o enfoque da garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos moradores de territórios dominados pela criminalidade a possibilidade da intervenção forte do Estado através de medidas excepcionais (Forças Armadas), por prazos determinados e com delimitação geográfica. Por último, estudou o emprego das Forças Armadas na operação de garantia da lei e da ordem que está em andamento do Brasil, especificamente no Rio de Janeiro, em uma localidade denominada Complexo de Favelas do Alemão. Os principais tópicos foram: segurança e forças armadas na Constituição Federal; operações de garantia da lei e da ordem; e o caso da ocupação do complexo de favelas do alemão na cidade do Rio de Janeiro. A conclusão indicou os resultados positivos já alcançados e outras possibilidades para que operações da mesma natureza possam contribuir para que os direitos fundamentais do cidadão sejam garantidos. Palavras chave: Segurança Pública e Forças Armadas. Constituição e Forças Armadas. Garantia da Lei e da Ordem. ABSTRACT This monograph addresses the requirements and situations legally provided for the employment of military operations in Brazil in guaranteeing law and order, as well as their relationship right with the guarantee of the exercise of fundamental rights provided for in the Brazilian Constitution. The goal is, from the existing legislation and in force in the country, starting with the text of the Constitution, to evaluate the participation of the armed forces in the constitutional process to guarantee the exercise of fundamental human rights (security, transportation, home, among other ). This is because the participation of the Armed Forces in inner episodes of Brazil is provided in the Constitution only way subsidiary to and in exceptional situations such as ensuring law and order. The methodology involved a literature search and document in order to get theoretical, beyond the author's experience as acting Public Prosecutor in the State of Rio Grande do Sul The field narrowed to situations in which there is legal authority to employment of the armed forces in operations ensuring law and order. Scans from the standpoint of ensuring the fundamental rights of citizens living in areas dominated by crime the possibility of strong state intervention through exceptional measures (Armed Forces), for certain periods and geographical boundaries. Finally, studying the use of armed forces in operations that operations ensuring law and order underway in Brazil, specifically Rio de Janeiro, in a place called the German Complex Slums. The main topics are: security and armed forces in the federal constitution; operations ensuring law and order, and the case of occupation of the German complex of slums in the city of Rio de Janeiro. The finding indicates the positive results already achieved and other opportunities for similar operations that might contribute to the fundamental rights of citizens are guaranteed. Keywords: Public Security and Armed Forces. Constitution and the Armed Forces. Warranty Law and Order. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11 2 A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO À SEGURANÇA E AS FORÇAS ARMADAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA ............................................................. 15 2.1 O DIREITO À SEGURANÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL ...................... 15 2.2 AS HIPÓTESES DE ATUAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS EM TERRITÓRIO NACIONAL ............................................................................................................... 18 2.3 A ATUAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS EM AÇÕES EXTREMAS RELATIVAS À SEGURANÇA COMO FORMA DE CONCRETIZAÇÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL ....................................................................................................... 21 3 OPERAÇÕES DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM ......................................... 23 3.1 ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ............... 23 3.2 DEFINIÇÃO DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM .......................................... 25 3.3 HIPÓTESES E REQUISITOS ............................................................................ 28 3.4 TEMPORALIDADE, ABRANGÊNCIA TERRITORIAL, LIMITES DE ATUAÇÃO E COMANDO DA OPERAÇÃO ................................................................................... 30 3.4.1 Temporalidade ............................................................................................... 30 3.4.2 Abrangência territorial .................................................................................. 31 3.4.3 Limites de atuação ........................................................................................ 32 3.4.4 Comando da operação ................................................................................. 33 4 O CASO DA OCUPAÇÃO DO COMPLEXO DE FAVELAS DO ALEMÃO ......... 36 4.1 BREVE HISTÓRICO DO DOMÍNIO, PELO CRIME, DAS FAVELAS DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO .............................................................................................. 36 4.2 AS FORMALIDADES DA OPERAÇÃO ARCANJO ............................................ 39 4.3 A NECESSIDADE DO EMPREGO DAS FORÇAS ARMADAS PARA A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO E OS SEUS RESULTADOS ................................. 41 5 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 44 REFERÊNCIAS ..................................................................................................... 47 1 INTRODUÇÃO Um dos grandes entraves ao desenvolvimento e ao progresso de qualquer país que ainda não tenha alcançado o rol de “países desenvolvidos”, identificados como aqueles possuidores de consideráveis índices de qualidade de vida, distribuição de renda, industrialização, emprego, entre outros, diz repeito à segurança pública. Como tal, esse estado/sensação deve ser entendido como um direito fundamental do cidadão e estreitamente ligado ao principio democrático1, tratando-se, também, de uma das condições basilares para o livre exercício dos demais direitos individuais (liberdade de locomoção, de manifestação, direito à intimidade e à propriedade, por exemplo), todos ligados à própria dignidade da pessoa humana2. Nesse sentido, a concepção de Estado Democrático de Direito3 fundado sob uma Constituição com força normativa4 trouxe consigo o fortalecimento de uma série de instituições5, assim como a criação6 e o aprimoramento7 de instrumentos legais para a consecução da observância8 e do cumprimento, pelo Estado, dos direitos fundamentais 1 historicamente reconhecidos9, mais especificamente aqueles Afonso da Silva leciona que o princípio democrático “nos termos da Constituição, há de constituir uma democracia representativa e participativa, pluralista, e que seja a garantia geral da vigência e eficácia dos direitos fundamentais”. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17 ed. São Paulo: Malheiros Editores ltda, 2000, p. 126. 2 Cfe. Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 3 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 101. 3 Cfe. Afonso da Silva, idem, p. 122. 4 Cfe. Hesse, A Força Normativa da Constituição. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 24-27. 5 Dentre essas instituições, cumpre destacar o Ministério Público em relação aos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos de toda a sociedade e a Defensoria Pública em face dos hipossuficientes. 6 Como inovação, a arguição de descumprimento de preceito fundamental surgiu como um novo instrumento disponibilizado para a realização dos direitos fundamentais. 7 A ação civil pública, na constituição federal, mereceu atenção especial do legislador constituinte, que fez com que se tornasse um meio importantíssimo de ação dos atores processuais envolvidos com causas coletivas. 8 Cfe. Hesse, Elementos de Direito Constitucional da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 290-330. 9 Lembra Canotilho que “Em geral, costuma fazer-se um corte histórico no processo de desenvolvimento da idéia de direitos fundamentais, cnducente a uma separação absoluta entre duas épocas: uma, anterior a Virgínia Bill of Rights (12-6-1776) e à Declratio des Droits de L’Homme ET Du conhecidos como direitos fundamentais de 1.ª geração10, também chamados de direito de proteção. São direitos mínimos, civis e políticos, que devem garantir uma proteção do cidadão contra terceiros e, principalmente, contra eventuais ações ou omissões arbitrárias do próprio Estado. Neste sentido, vale reproduzir o pensamento de Streck e Morais11: O Estado Democrático de Direito tem um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto material de concretização de uma vida digna ao homem e passa a agir simbolicamente como fomentador da participação pública quando o democrático qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os seus elementos constitutivos e, pois, também sobre a ordem jurídica. E mais, a ideia de democracia contém e implica, necessariamente, a questão da solução do problema das condições materiais de existência. De outro lado, certamente essa tentativa de prever um grande número de fatos que atentassem contra as liberdades individuais fez com que fossem reforçadas algumas e criadas outras instituições, assim como estabelecidas, na Lei Maior12 do Estado Nacional, as condições para o exercício e os limites existentes ao exercício do poder coercitivo estatal. Isso, na maioria das vezes, considerando, uma situação de normalidade, mas também concedendo alguma margem para que o Citoyen (26-8-1789), caracterizada por uma relativa cegueira em relação á idéia de direitos do homem;outra, posterior a esses documentos, fundamentalmente marcada pela chamada constitucionalização ou positivação dos direitos do homem nos documentos constitucionais”. Direito Constitucional. 5ª. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 378. 10 Na concepção de Bonavides, esses direitos “Entram na categoria do status negativus da classificação de Jellinek e fazem ressaltar na ordem dos valores políticos a nítida separação entre Sociedade e Estado. Sem o reconhecimento dessa separação, não se pode aquilatar o verdadeiro caráter antiestatal dos direitos da liberdade, conforme tem sido professado com tanto desvelo teórico pelas correntes do pensamento liberal de teor clássico”. Curso de Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2003, p. 564. 11 Cfe. Streck e Morais, Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 2 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 93. 12 Como Lei maior ou Constituição, Moraes afirma que “é o ato de constituir, de estabelecer, de firmar; ou, ainda, o modo pelo qual se constitui uma coisa, um ser vivo, grupo de pessoas; organização, formação. Juridicamente, porém, Constituição deve ser entendida como a lei fundamental e suprema de um Estado, que contém normas referentes à estruturação do Estado, à formação dos Poderes Públicos, forma de governo e aquisição do poder de governar, distribuição de competências, direitos, garantias e deveres dos cidadãos. Além disso, é a Constituição que individualiza os órgãos competentes para a edição das normas jurídicas, legislativas ou administrativas. Direito Constitucional. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 02. Estado pudesse agir, também dentro da legalidade, em situações extremas, através de medidas excepcionais e urgentes. Nessa concepção, a partir de 1988, foi extremamente limitada a participação das Forças Armadas em operação cotidianas e comuns, fazendo com que estivesse pronta para atuar, quase que exclusivamente, apenas no caso ataques de inimigos externos, passando a ser vista, até mesmo, como um elemento estranho a qualquer política de segurança pública, mesmo que subsidiariamente e em caráter excepcional. Grande parte de tal concepção, no Brasil, decorreu até mesmo do preconceito estimulado pela mídia e por partidos políticos ligados a grupos de extrema de esquerda, os quais ainda possuem muitos ressentimentos com as Forças Armadas do Brasil em razão do regime militar adotado no país a partir de 196413 e por temerem que um maior campo para a sua atuação, seja em matéria de segurança pública ou outra qualquer, venha a conduzir a um novo regime predominante militar. Entretanto, em que pese a referida limitação inicial, diversos fatos de elevada gravidade foram praticados nos últimos anos por poderosas organizações criminosas contra a população ordeira, causando pânico geral e grave risco à ordem pública, principalmente no Estado do Rio de Janeiro, que demonstraram uma necessidade urgente de que a força militar brasileira estivesse pronta para atuar em cooperação com as forças estaduais de segurança pública. E, nesses casos pontuais, podemos falar em Operações de Garantia da Lei e da Ordem, previstas na Constituição Federal e regulamentadas pela Lei Complementar n.º 9714, de 09 de junho de 1999, e pelo Decreto n.º 3.89715, de 24 de agosto de 2001, que constituem instrumentos que determinam a forma, a maneira e em que situações as Forças Armadas do Brasil podem atuar para a garantia desses dois pilares do Estado Democrático de Direito: a Lei e a Ordem. Da mesma forma, através da simples leitura do texto constitucional, já é possível verificar que foi previsto como direito fundamental na Constituição Federal 13 Em 31 de março de 1964, após uma grave crise institucional e com amplo apoio da população, as Forças Armadas assumiram o governo do Brasil. 14 Dispõe sobre as normas gerais para a organização, o preparo e o emprego das Forças Armadas. 15 Fixa as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, e dá outras providências. o direito à segurança, certamente por estar intimamente ligado à própria dignidade da pessoa humana e a outros direitos fundamentais decorrentes, tais como o direito à propriedade, à intimidade e à locomoção. Tais direitos, uma vez atingidos por grupos armados e organizados, que atuam muitas vezes com verdadeiros contornos terroristas contra a população de uma determinada localidade, impedindo o acesso do Estado até mesmo a determinados territórios e impondo medo e temor a seus moradores, constituem verdadeiros ataques aos direitos fundamentais mais básicos das pessoas, de forma a autorizar uma ação estatal extrema e excepcional, com a possibilidade do uso de todos os instrumentos legalmente previstos para o enfrentamento de uma ação dessa natureza. Nesse contexto, mesmo havendo previsão constitucional e legal para tanto, bem como o ataque aos direitos fundamentais da população, não raras vezes surgem vozes16 na mídia invocando uma pretensa irregularidade no emprego das Forças Armadas nessas ocasiões, sustentado que tal cooperação seria uma verdadeira intervenção, a qual não poderia subsistir sem os requisitos constitucionais previstos para tanto. Com esse raciocínio, tenta-se passar uma imagem de ilegalidade de tal atuação, dando condições e argumentos para que integrantes de organizações criminosas capturados no curso dessas operações obtenham junto a tribunais suas respectivas solturas ou declarações de ilegalidade dos respectivos procedimentos. Ante a essas situações e considerando a atualidade do tema proposto, o presente trabalho tem por objetivo realizar uma análise profunda e propositiva do sistema legal das Operações de Garantia da Lei e da Ordem, verificando os seus pressupostos fáticos e legais, a sua diferenciação para as demais formas de atuação militar no âmbito interno em tempos de paz, assim como apontar eventual deficiência legal para a eficiência dessas operações. Além disso, considerando que no momento da elaboração do presente trabalho está em andamento uma Operação de Garantia da Lei e da Ordem na cidade do Rio de Janeiro, mais precisamente no Complexo de Favelas do Alemão, pretende-se analisar especificamente essa Operação à luz dos pressupostos iniciais traçados no curso deste estudo. 16 Ver o Blog do Desembargador Siro Darlan, no sítio <http://www.blogdosirodarlan.com/?m=201106> em seu artigo sob o título Intervenção Federal Branca no Rio de Janeiro. 2 A RELAÇÃO ENTRE O DIREITO À SEGURANÇA E AS FORÇAS ARMADAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA 2.1 O DIREITO À SEGURANÇA COMO DIREITO FUNDAMENTAL Durante a mais recente evolução histórico-cultural da civilização ocidental17, uma série de direitos inerentes à pessoa humana tem sido conquistada e reconhecida de maneira universal. Por se tratarem de direitos que dizem com as necessidades mais básicas dos indivíduos, podem estar relacionados aos direitos do indivíduo contra ações do Estado, também conhecidos como direitos de proteção, ou com obrigações do Estado em relação aos indivíduos e a coletividade, também denominados como direitos de prestação. A tais direitos se reconhece uma característica que os distingue dos demais, a “fundamentalidade”, razão pela qual são conhecidos como direitos fundamentais e devem prevalecer sobre os demais quando existente algum conflito. Nesse sentido, é primordial ter sempre em consideração que a origem de tais direitos, por regra, está na violação ou na omissão do Estado18 em relação aos indivíduos, o que, quando de ocorrência reiterada, produz uma reação coletiva e, posteriormente, um reconhecimento a tais proteções e prestações, impondo-se uma obrigação ao Estado, ou seja, um processo cíclico de ação/reação que produz, ao final, o reconhecimento de um direito. Isso ocorreu ao longo de centenas de anos, sendo muito mais acentuado durante os séculos XVIII, XIX e XX, culminando, nos dias de hoje, com a consolidação de tais direitos no âmago da civilização ocidental 19, de modo que já encontram respaldo e fundamentação legal em inúmeras cartas e 17 Trata-se de um processo que tem na Revolução Francesa (1789 -1799) o seu apogeu, ocasião em que o pensamento sobre os direitos do homem vinham sendo fomentados tomam forma de movimento revolucionário. 18 O termo violação aqui é colocado no sentido de um agir concreto do Estado contra os direitos fundamentais e a omissão uma não ação para preservá-los, deixando-os à própria sorte. Da mesma forma, o Estado que se fala é o Estado Nacional, independente de sua divisão política eventualmente concebida (União, Estados e Municípios). 19 Cfe. Canotilho, idem, p. 384. regulamentos, tanto de origem nacional20 quanto internacional, sempre no sentido de reconhecimento e observância obrigatória. No Brasil, assim como se fez em relação às garantias e liberdades fundamentais mais tradicionais21, o legislador constituinte22 não se olvidou do tema segurança e alçou-o a direito fundamental. Em seu texto, a Constituição da República Federativa do Brasil trouxe o tema segurança23 com bastante ênfase, demonstrando a sua verdadeira e real importância, assim como o devido tratamento correspondente. O preâmbulo, ou seja, o texto que define os objetivos do Estado Brasileiro, assim dispõe (BRASIL, 1988): Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bemestar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Da mesma forma, importante a leitura dos artigos 5.º e 6.º, caput, da Constituição Federal, que ensinam: (BRASIL, 1988) Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: 20 Em termos de direitos fundamentais no Brasil, além dos tratados internacionais dos quais o país é signatário, a Constituição Federal é o principal instrumento legal que positiva e garante a exequibilidade e primazia respectiva. 21 Exemplo de direitos fundamentais tradicionais são os direitos à vida, à igualdade e à propriedade, todos devidamente expressos no artigo 5.º da Constituição Federal de 1988. 22 Por legislador constituinte entende-se aquele grupo de pessoas eleito pelo povo para, em seu nome, elaborar uma nova constituição, necessária em face de uma ruptura com os valores e princípios que vigiam num modelo imediatamente anterior e não são mais reconhecidos pela sociedade. 23 O tema segurança objeto do presente estudo diz com a segurança pública, ou seja, individual. [...] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Além disso, também é possível que o direito fundamental à segurança esteja intimamente relacionado com diversos outros direitos fundamentais violados, até mesmo como uma forma de garantia de preservação e do exercício desses outros direitos, como o direito à liberdade de locomoção, de propriedade ou à inviolabilidade do seu domicílio24. Assim, além da segurança em sentido individual, que por si só já detém um caráter de direito fundamental dos indivíduos da sociedade brasileira de viverem em paz sem que sejam perturbados de maneira indevida, o direito fundamental à segurança também funciona como uma espécie de garantia à preservação de diversos outros direitos estabelecidos como fundamentais pelo legislador constituinte. Nesse sentido, como garantias individuais pertinentes ao direito à segurança, lecionam os incisos II, XI, XV e XXII do artigo 5.º da Constituição Federal: (BRASIL, 1988) II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; [...] XI - a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial; [...] XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens; [...] XXII - é garantido o direito de propriedade; E essa concepção do direito à segurança como direito fundamental, que se extrai dos artigos 5.º e 6.º da Constituição Federal, constitui-se num importante 24 Isso porque a falta de segurança ao cidadão, além de fragilizar esses referidos direitos, é capaz de impedir o seu exercício, seja de forma total ou parcial. aspecto para a compreensão da necessidade da ação pró-ativa estatal, sem medir esforços, para o alcance desse estado aos seus cidadãos. O elo existente entre a segurança pública, ou seja, a segurança do cidadão e a garantia de seus direitos mais básicos, e a presença de um Estado forte e robusto frente a poderosas estruturas criminosas com longo tempo de atuação, que impõe medo e se sustenta por atividades ilícitas, determina que a atuação estatal seja concebida da maneira mais atuante, eficiente e forte possíveis, pois se tratam de situações graves e excepcionais. Nesses termos, certamente para a consecução dos fins objetivados, que são a paz social e o estado de segurança aos cidadãos, em caso de a estrutura formal concebida em atendimento às situações de normalidade25 não esteja preparada para dar uma resposta efetiva, ações excepcionais previstas também na Constituição Federal estarão autorizadas a serem tomadas. Isso, sempre com vistas à garantia do exercício dos direitos fundamentais que estão sendo violados, sendo que a ação Estatal deve ser à altura dessa violação e suficiente para o retorno da paz social e ao estado de segurança aos cidadãos. 2.2 AS HIPÓTESES DE ATUAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS EM TERRITÓRIO NACIONAL Em que pese a redução e a limitação da atuação das Forças Armadas26 em tempos de paz constante da Constituição Federal em relação ao modelo imediatamente anterior27, o que certamente ocorreu em face de um sentimento revanchista de parcela da classe política brasileira após duas décadas de regime militar, o legislador constituinte previu situações especiais em que as Forças 25 Ou seja, aquelas em que não há uma conturbação da ordem capaz de desencadear um sentimento geral de medo/pânico da população ou o impedimento ao exercício dos direitos fundamentais pelos cidadãos. 26 Nos dias de hoje são apenas 03 (três) as situações em que podem ser empregadas as Forças Armadas, conforme o artigo 142 da Constituição Federal. 27 No período anterior à Constituição Federal de 1988, até por se tratar de um regime militar, o campo de atuação das Forças Armadas tinha espectro superior. Armadas poderiam ser empregadas, sempre sob a autoridade suprema28 do Presidente da República, mesmo em situações originadas por convocação dos demais representantes dos poderes federais que também possuem legitimidade para tanto (Presidente do Supremo Tribunal Federal ou da Mesa do Congresso Nacional). Importante ressaltar que o emprego das Forças Armadas com vistas à garantia da lei e da ordem não se confunde com Intervenção Federal, Estado de Defesa ou Estado de Sítio, respectivamente explicitados nos artigos 3429, 13630 e 13731, incisos I e II, da Constituição Federal. Tais eventos tratam de crises de extrema gravidade e com natureza institucional, que são capazes de merecerem até mesmo uma ação unilateral através da União, com ou sem o uso das Forças Armadas. 28 O chefe do Poder Executivo possui o comando sobre as Forças Armadas, podendo determinar, ou não, o seu emprego nas situações constitucionalmente previstas. 29 Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: I - manter a integridade nacional; II - repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da Federação em outra; III - pôr termo a grave comprometimento da ordem pública; IV - garantir o livre exercício de qualquer dos Poderes nas unidades da Federação; V - reorganizar as finanças da unidade da Federação que: a) suspender o pagamento da dívida fundada por mais de dois anos consecutivos, salvo motivo de força maior; b) deixar de entregar aos Municípios receitas tributárias fixadas nesta Constituição, dentro dos prazos estabelecidos em lei; VI - prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial; VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana; c) autonomia municipal; d) prestação de contas da administração pública, direta e indireta. e) aplicação do mínimo exigido da receita resultante de impostos estaduais, compreendida a proveniente de transferências, na manutenção e desenvolvimento do ensino e nas ações e serviços públicos de saúde. 30 Art. 136. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza. 31 Art. 137. O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de: I - comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa; II - declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira. Nesse sentido, sob a égide da atual32 Constituição Federal, mais precisamente em seu artigo 142, restaram estabelecidas 03 (três) hipóteses de situações em que as Forças Armadas do Brasil poderiam ser empregadas, quais sejam: a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais e a garantia da lei e da ordem, sendo que é esta última hipótese constitui o objeto do presente estudo. Dispõe o artigo 142 da Constituição Federal: (BRASIL, 1988) Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Como defesa da pátria, identifica-se uma situação em que o território nacional ou as riquezas de nosso país encontram-se em situação de risco, o que faz com que a necessidade do emprego das Forças Armadas seja direcionado a um fato hostil determinado, seja em relação a outro estado nacional ou a um grupo de indivíduos determinados ou determináveis. Assim, tal hipótese trata tanto de uma manobra defensiva quanto de um ataque, desde que direcionado de algum modo à defesa das instituições e do próprio Estado Brasileiro, características das situações extremas da Intervenção, Estado de Defesa ou Estado de Sítio. A garantia dos poderes constitucionais diz com a manutenção dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário frente a um ataque ou uma ameaça interna e concreta ao seu livre exercício, ou seja, uma afronta à própria democracia brasileira, que se encontra fundada sob princípio da triparticipação harmônica dos poderes constitucionais. Além disso, trata-se de uma proteção ao próprio sistema constitucional, uma vez que os poderes constitucionais emanam do povo e são exercidos mediante representação, constituindo-se em uma garantia da vontade popular que assim estabeleceu o Estado Brasileiro e as suas instituições. 32 A Constituição Federal vigente no país desde 1988 foi promulgada após duas décadas de regime militar e teve como orientação primordial o estabelecimento de um regime democrático, assim como a sua respectiva manutenção. Por derradeiro, a garantia da lei e da ordem encontra-se situada no campo da defesa do Estado de Direito, ou seja, do respeito às leis e da paz social, de modo que a ordem social perturbada por alguma situação de extrema gravidade, que restou transformada ou corre sério e iminente risco de partir para a desordem, retorne ao estado anterior de paz e harmonia, ou seja, efetivamente garantida, a fim de que os cidadãos possam livremente exercer seus mais básicos direitos fundamentais. Assim, tem-se as três situações estabelecidas de maneira exaustiva 33 pelo Poder Constituinte e dentre as quais qualquer emprego das Forças Armadas Brasileiras deverá encontrar respaldo, sob pena de flagrante ilegalidade, a qual poderá ser passível de correção e responsabilização pelos órgãos de fiscalização e instâncias administrativas e judiciais respectivas. 2.3 A ATUAÇÃO DAS FORÇAS ARMADAS EM AÇÕES EXTREMAS RELATIVAS À SEGURANÇA COMO FORMA DE CONCRETIZAÇÃO DE UM DIREITO FUNDAMENTAL A ação estatal com vistas à garantia e à satisfação de um direito fundamental deve, sempre, ser pautada pela necessidade de se proteger ou satisfazer o direito fundamental que está ameaçado, não medindo esforços para tanto. Uma vez em se tratando de direito fundamental, o qual, por si só, já está intimamente ligado à própria dignidade da pessoa humana e à democracia, essas ações estatais deverão ser direcionadas para a sua proteção e satisfação, sob pena de uma omissão, esta sim, ilegal, inconstitucional e passível de punição ao administrador público respectivo34. 33 Tal conclusão decorre do fato de que o texto não possui caráter meramente exemplificativo, pois fecha naquelas três situações, sem margem para interpretações extensivas. 34 O servidor ou agente público que pratique atos em desacordo com os princípios ou normas relativas à Administração Pública, assim como cause prejuízo ao erário poderá incorrer nas sanções previstas na Lei n.º 8.429/1992, também conhecida como lei de Improbidade Administrativa. Nesse contexto, da mesma maneira como ocorre em áreas sensíveis como educação e saúde35, a cooperação entre os entes da federação se constitui em medida essencial para a consecução da satisfação do direito fundamental à segurança, razão pela qual os esforços conjuntos, quando possível, podem e devem ser concretizados, senão, ao menos tentados. Certamente, a união de esforços entre os entes interessados tornam extremamente mais fácil o alcance do direito estatal cuja obtenção foi alçada a fundamental pelo legislador constituinte. E tais esforços não precisam ser reduzidos apenas a transferências de recursos para programas da área de segurança36, mas também podem ser concretizados através das cooperações institucionais37. Assim, a Constituição Federal previu uma série de instituições a quem incumbem a Segurança Pública em território nacional, quais sejam: polícia federal, polícia rodoviária federal, polícia ferroviária federal, polícias civis, polícias militares e bombeiros militares 38. 35 Essas duas importantes áreas possuem uma tripartição de competências e recebem recursos de três esferas: União, Estados e Municípios. Trata-se de um exemplo que poderia ser seguido área da segurança, repartindo-se as obrigações aos entes federados diretamente envolvidos e interessados. 36 Muito importante lembrar que está em vigor um programa federal que destina recursos a projetos de segurança pública, o PRONASCI. Entretanto, não é o bastante, uma vez que destinado apenas para qualificar os profissionais envolvidos com segurança pública e justiça criminal. 37 As Forças-tarefas são exemplos de que uma ação integrada entre os órgãos policiais e os de fiscalização fazendária podem ajudar a combater a corrupção e as demais espécies de crimes. 38 Ver o artigo 144 da Constituição Federal. 3 OPERAÇÕES DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM 3.1 ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL Ao prever as possibilidades do emprego das Forças Armadas, tanto para a defesa da pátria, quanto para a garantia dos poderes constitucionais e da lei e da ordem, o legislador constituinte determinou que fossem estabelecidas, através de Lei Complementar, as normas gerais sobre a organização, preparo e emprego das Forças Armadas. Dispõe o parágrafo 1.º do artigo 142 da Constituição Federal: (BRASIL, 1988) Art. 142. [...]. § 1º - Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas. Nesse sentido, as normas infraconstitucionais devem estar em conformidade com o estabelecido na Constituição Federal, nos seus estritos limites, a fim de que não seja verificada qualquer incoerência ou contradição que possa viciar de inconstitucionalidade a legislação complementar e regulamentar. Assim, analisando o disposto na Constituição Federal acerca do emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, a interpretação que emerge das legislações infraconstitucionais, num primeiro momento, é no sentido de que se encontram em perfeita sintonia. Entretanto, em que pese a harmonia entre as legislações, são possíveis apenas umas poucas considerações, a fim de impedir que subsista uma dissonância entre o disposto na Constituição Federal e os termos estabelecidos na Lei Complementar n.º 97/1999 e o Decreto n.º 3.897/2001. Nesse sentido, em que pese a Lei Complementar n.º 97/1999, que regulamenta o preparo e o emprego das Forças Armadas, tenha feito de acordo com as diretrizes já traçadas pelo legislador constituinte, a regulamentação realizada pelo Decreto n.º 3.897/2001 parece ter ocorrido um pouco além do limite do poder regulamentar39. Isso porque, apesar de não inovar, trouxe uma situação específica que merece atenção, referente à competência equiparada aos Militares a das polícias militares, estabelecida em seu artigo 3.º, que dispõe: (BRASIL, 1999) Art. 3º Na hipótese de emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem, objetivando a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, porque esgotados os instrumentos a isso previstos no art. 144 da Constituição, lhes incumbirá, sempre que se faça necessário, desenvolver as ações de polícia ostensiva, como as demais, de natureza preventiva ou repressiva, que se incluem na competência, constitucional e legal, das Polícias Militares, observados os termos e limites impostos, a estas últimas, pelo ordenamento jurídico. Nesse aspecto, a fim de impedir qualquer interpretação que conclua pelo vício da inconstitucionalidade/ilegalidade em razão de o Decreto ter extrapolado o seu limite de regulamentação, trata-se de um caso típico de interpretação40 conforme a constituição, sem redução de texto41. Tal conclusão decorre do fato de que ao presente caso cabe uma leitura do dispositivo que impede o prejuízo que ocorreria com a sua inteira retirada do ordenamento jurídico pátrio. Ao contrário da simples retirada do mundo jurídico, a interpretação conforme a constituição42, no presente caso, possibilita dar efetividade à ação militar de 39 Poder regulamentar como a capacidade que possui o Chefe do Executivo em editar decretos para fins de execução da legislação ordinária. 40 Cfe. Juarez Freitas, A interpretação sistemática do direito. 4ª. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2004, p. 80-83. 41 Cfe. Streck, 2002. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 517-540. 42 Cfe. Barroso, Interpretação e aplicação da constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. 6ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 371-372. garantia da lei e da ordem. Esse artigo deve ser interpretado de maneira restritiva e com o esclarecimento necessário de que os militares empregados na ação, apesar de não possuírem as mesmas competências legalmente previstas para as polícias militares, ao estarem incumbidos da preservação da ordem pública, poderão praticar os atos assemelhados aos da polícia ostensiva que sejam necessários à operação. Assim, ressalvado esse possível vício inicial da regulamentação, corrigível através de uma interpretação conforme a constituição para a respectiva aplicação ao caso em concreto, a legislação infraconstitucional se encontra em perfeita sintonia com os princípios e normas constitucionais, atendendo, até mesmo, à concretização de direitos fundamentais. Desta forma, para verificar a legalidade/constitucionalidade do emprego das Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem, deve ser observado se o caso está ao abrigo da Constituição Federal em termos conceituais43, se o emprego foi realizado conforme determina a Lei Complementar n.º 97/1999 e se a execução atende o disposto no Decreto n.º 3.897/2001, em todo o seu âmbito. 3.2 DEFINIÇÃO DE GARANTIA DA LEI E DA ORDEM Conforme já analisado, as Operações de Garantia da Lei e a da Ordem encontram respaldo jurídico na concretização dos direitos fundamentais previstos no artigo 5.º e na previsão constante do artigo 142 da Constituição Federal44, assim como na Lei Complementar n.º 97/1999 e no Decreto n.º 3.897/2001, diplomas legais que estão em conformidade com o texto constitucional e que estabelecem as circunstâncias, as formas e os procedimentos necessários para a execução de operações desse caráter. Da mesma forma, a situação de garantia da lei e da ordem não pode ser confundida com a previsão constante do artigo 144 da Constituição Federal, que trata especialmente da segurança pública dentro de uma circunstância 43 Ou seja, se é caso de garantia da lei e da ordem, de modo que a situação que esteja ocorrendo tenha a gravidade necessária. de normalidade, onde são destacadas e estabelecidas as instituições responsáveis pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Desta forma, importante lembrar o texto do artigo 144 da Constituição Federal: (BRASIL, 1988) Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. Assim, mesmo que a partir de uma simples leitura, já se verifica que há uma distinção sutil, mas significativa e importante na intenção do legislador constituinte no intuito de diferenciar a atuação das Forças Armadas daquelas realizadas por órgãos destacados como sendo de segurança pública. Nesse sentido, às Forças Armadas compete a “garantia” da lei e da ordem, enquanto às forças auxiliares compete a “preservação” da ordem pública e da incolumidade e do patrimônio. Portanto, enquanto uma visa garantir e a outra procura preservar45, de modo que a garantia, por si só, já se destina a situações de maior gravidade, aquelas em que há risco para a própria existência da ordem, ou seja, existe uma situação tão grave a ponto de estabelecer um estado de desordem, em que a lei não é observada, prevalecendo a vontade do mais forte, mais poderoso ou de grupos com superioridade numérica ou bélica. No caso das situações de normalidade, em que a atuação das instituições elencadas no artigo 144 da Constituição Federal visa à “preservação” da ordem, o risco existente diz com a integridade da ordem pública. Portanto, a ordem é ameaçada no que se refere a toda sua abrangência, ou seja, há o risco de a ordem pública ser atingida sim, mas não a ponto de ser extinta e a instalação de um verdadeiro caos. 45 Aqui se vê que a garantia diz com a própria existência da lei e da ordem, ante a situações de tamanha gravidade que podem vir a extingui-las; enquanto a preservação diz com a integridade, que pode ser atingida pela concretização de ameaças mais brandas sem que sejam visualizadas condições para a extinção. Também, relativamente ao termo “lei” utilizado pelo legislador constituinte como um dos objetos de garantia, deve-se entender como o conjunto de direitos preservados e estabelecidos pelo sistema jurídico pátrio, assim como a “ordem” tem relação com a normalidade social no espaço público, de modo que as condutas de algumas pessoas não impeçam o transcurso normal do quotidiano e do dia-a-dia, os quais devem ser garantidos para o próprio desenvolvimento econômico, social e financeiro do país. Além disso, o parágrafo 2.º do artigo 15 da Lei Complementar n.º 97/1999 ainda previu que a situação passível de garantia da lei e da ordem pressupõe o esgotamento dos instrumentos previstos no artigo 144 da Constituição Federal, os quais são destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade e do patrimônio, como uma espécie de direito penal46 no sistema jurídico47, ou seja, a ultima ratio48. Dessa forma, trata-se do último instrumento previsto no ordenamento jurídico para que haja a manutenção da ordem pública, e ao fim e ao cabo do próprio Estado de Direito, que se encontra fundamentado no respeito às leis e às normas legalmente instituídas, que regulam as relações sociais com a finalidade de preservação. Importante frisar o que estabelece o parágrafo 2.º do artigo 15 da Lei Complementar n.º 97/1999: (BRASIL, 1999) Art. 15. (...). o § 2 A atuação das Forças Armadas, na garantia da lei e da ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, ocorrerá de acordo com as diretrizes baixadas em ato do Presidente da República, após esgotados os instrumentos destinados à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, relacionados no art. 144 da Constituição Federal. 46 Cfe. Capez, Curso de Direito Penal: Parte Geral. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 11-27. 47 O Direito Penal no sistema jurídico tem duas características que o distinguem fundamentalmente dos demais ramos do direito: a subsidiariedade e a fragmentairiedade. A primeira, diz com a ineficiência dos demais ramos para solucionar aquela situação e a segunda com a relevância para o meio social daquele bem atingido pela conduta ilícita 48 Trata-se de uma expressão de origem latina muito usada no Direito Penal, que designa a última razão, ou seja, em último caso, não sendo visualizadas outras possibilidades para a situação examinada. Portanto, uma operação de garantia da lei e da ordem é aquela em que a ação estatal por meio das Forças Armadas se faz necessária para a garantia do próprio Estado de Direito e da paz social, em face da inviabilização das estruturas de segurança pública previstas na Constituição Federal. Isso, seja em razão da dimensão do próprio fato que atenta contra a lei e a ordem, seja por outro motivo que inferiorizou o sistema e as instituições de segurança pública previstas na Constituição Federal, as quais se tornaram incapazes de responder à demanda de preservação da ordem. 3.3 HIPÓTESES E REQUISITOS O emprego das Forças Armadas nessas situações decorre do atendimento a um ato administrativo, que como tal deve obedecer rigidamente aos seus próprios princípios e regras49. Da mesma forma, a decisão sobre o emprego das Forças Armadas é de responsabilidade do Presidente da República50, o qual determinará ao respectivo Ministro de Estado da Defesa que faça cumprir a sua determinação 51, nos termos das diretrizes que forem baixadas na ocasião e através de atos administrativos correspondentes de sua competência. Além da iniciativa própria do Presidente da República, possuem legitimidade52 para requerer o emprego das Forças Armadas em operações de garantida da lei e da ordem quaisquer dos poderes constitucionais53, por meio dos Presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado Federal ou da Câmara dos Deputados. Para tanto, devem formalizar um pedido ao Presidente da República, que avaliará a sua pertinência de maneira discricionária54. 49 Cfe. Maffini, Direito Administrativo. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 43-45. Cfe. Artigo 142, caput, da Constituição Federal. 51 Ver artigo 15, caput, da Lei Complementar n.º 97/2001. 52 Legitimidade aqui empregada como a capacidade jurídica para requerer ao Presidente da República a intervenção das Forças Armadas. 53 Os poderes constitucionais tratados no artigo 142 da Constituição Federal são o Legislativo e o Judiciário, uma vez que o chefe do executivo já é o comandante supremo das Forças Armadas e quem decide sobre o pedido formulado pelos demais poderes. 54 Cfe. Di Pietro, Direito Administrativo. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2000, p.98. 50 Ainda no âmbito da iniciativa própria do Presidente da República, conforme previsão do Decreto n.º 3.897/2001, também se encontra o emprego das Forças Armadas em operações para garantia da lei e da ordem em atendimento à solicitação realizada formalmente por Governador do Estado ou do Distrito Federal. Assim dispõe o parágrafo 2.º do artigo 2.º do Decreto n.º 3.897/2001: (BRASIL, 1988) Art. 2º [...] § 2º O Presidente da República, à vista de solicitação de Governador de Estado ou do Distrito Federal, poderá, por iniciativa própria, determinar o emprego das Forças Armadas para a garantia da lei e da ordem. (BRASIL, 2001, p.) Da mesma forma, também há previsão para operações dessa natureza em situações em que se presuma a possibilidade de perturbação da ordem, como eventos oficiais ou públicos, assim como aqueles que contem com a participação de Chefes de Estado ou de Governo estrangeiros, e até mesmo em relação à pleitos eleitorais, desde que, nesse último caso, haja solicitação do Poder Constitucional competente (STF), conforme a redação do artigo 5.º do Decreto n.º 3.897/2001, que dispõe: (BRASIL, 2001) Art. 5º O emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, que deverá ser episódico, em área previamente definida e ter a menor duração possível, abrange, ademais da hipótese objeto dos arts. 3º e 4º, outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem, tais como as relativas a eventos oficiais ou públicos, particularmente os que contem com a participação de Chefe de Estado, ou de Governo, estrangeiro, e à realização de pleitos eleitorais, nesse caso quando solicitado. (BRASIL, 2001, p.) Como pressuposto a tal emprego, tanto a Lei Complementar n.º 97/1999 quanto o Decreto n.º 3.897/2001, estabeleceram que estivesse caracterizado o esgotamento – assim como a real possibilidade de que ocorra – dos instrumentos legais previstos no artigo 144 da Constituição Federal e que são destinados precipuamente à preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Tal fato é fundamental para demonstrar a necessidade do emprego das Forças Armadas, sendo, também, prevista a possibilidade do reconhecimento formal, através manifestação do chefe do Poder Executivo Estadual, acerca da indisponibilidade, inexistência ou insuficiência dos instrumentos previstos no artigo 144 da Constituição Federal ao desempenho regular da sua missão constitucional. Assim, verifica-se que compete ao Presidente da República a decisão acerca do emprego das Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem, a qual também pode atender a uma solicitação ou chancelar a iniciativa de outro Poder Constitucional. Isso, sempre que sejam considerados esgotados os instrumentos previstos no artigo 144 da Constituição Federal para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através de constatação ou reconhecimento formal. 3.4 TEMPORALIDADE, ABRANGÊNCIA TERRITORIAL, LIMITES DE ATUAÇÃO E COMANDO DA OPERAÇÃO 3.4.1 Temporalidade Tratando-se de situação episódica e excepcional, que visa fundamentalmente o retorno a uma situação de normalidade que foi alterada e deu ensejo ao emprego das Forças Armadas, não se poderia pensar em uma operação que se perpetuasse no tempo. Essa também foi uma preocupação do legislador, tanto no § 4.º do artigo 15 da Lei Complementar n.º 97/1999 quanto no artigo 5.º do Decreto n.º 3.897/2001, respectivamente, onde fez questão de ressaltar a necessidade de que essas operações para a garantia da lei e da ordem fossem limitadas no tempo, mesmo que não tivessem um prazo máximo de duração estabelecido em lei, mas que deveria ser o suficiente para o restabelecimento da situação de normalidade e possibilitada a tomada de providências a fim de que os motivos que lhe deram causa não voltassem a ocorrer. O citado §4.º do artigo 15 da Lei Complementar n.º 97/1999 tem a seguinte redação: (BRASIL, 1999) Art. 15. [...] o o § 4 Na hipótese de emprego nas condições previstas no § 3 deste artigo, após mensagem do Presidente da República, serão ativados os órgãos operacionais das Forças Armadas, que desenvolverão, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, as ações de caráter preventivo e repressivo necessárias para assegurar o resultado das operações na garantia da lei e da ordem. Em sintonia, dispõe o artigo 5.º do Decreto n.º 3.897/2001: (BRASIL, 2001) Art. 5º O emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, que deverá ser episódico, em área previamente definida e ter a menor duração possível, abrange, ademais da hipótese objeto dos arts. 3º e 4º, outras em que se presuma ser possível a perturbação da ordem, tais como as relativas a eventos oficiais ou públicos, particularmente os que contem com a participação de Chefe de Estado, ou de Governo, estrangeiro, e à realização de pleitos eleitorais, nesse caso quando solicitado. Dessa forma, desde início da operação, ou logo após o seu começo, deve haver o estabelecimento de uma data, certa ou provável, para que as Forças Armadas deixem a área conturbada onde esteja ocorrendo uma operação de garantia da lei e da ordem, a fim de que as autoridades e as instituições originariamente competentes possam voltar a cumprir as suas missões constitucionais de preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, dentro da normalidade necessária. 3.4.2 Abrangência territorial Desde a preparação para o emprego das Forças Armadas com vistas a uma operação para a garantia da lei e da ordem, o local conturbado que receberá o efetivo já deverá estar delimitado territorialmente55. Isso decorre do próprio objetivo precípuo da operação, que não é substituir as forças locais, mas sim cumprir a 55 A delimitação territorial do espaço onde será desenvolvida a ação é fundamental apara o seu futuro êxito, de modo que não seja ampliado a cada momento e se tenha a perda do foco inicial. missão de restabelecimento da lei e da ordem, ou seja, a retomar a presença do Estado de Direito56 em determinado local. Nesse sentido, a inteligência do §4.º do artigo 15 da Lei Complementar n.º 97/1999 e do artigo 5.º do Decreto n.º 3.897/2001, referidos por ocasião da questão da temporalidade, sempre ressaltam a necessidade de uma delimitação prévia da área onde ocorrerá o emprego das Forças Armadas. E tal previsão é fundamental, uma vez que se trata de situação episódica e excepcional com um objetivo muito bem definido e predeterminado: o restabelecimento de uma situação de normalidade. Para tanto, a fim de que a atuação das Forças Armadas ocorra em consonância com o fim desejado, uma área definida é fundamental. Isso porque o limite geográfico deverá ser profundamente estudado em face da necessidade de que ocorra uma avaliação prévia do contingente a ser empregado, dos meios logísticos e de mobilização da operação, que deverão constar do planejamento para uma melhor execução. Portanto, em conformidade com a legalidade e para um cumprimento eficiente da missão de garantir a lei e a ordem, o prévio estabelecimento dos limites geográfico da operação constitui requisito imprescindível e que deve constar da própria Diretriz do Ministério da Defesa referente à operação militar que será levada a efeito. 3.4.3 Limites de atuação Por se tratar de uma operação de caráter publico, os limites de atuação das Forças Armadas são aqueles previamente estabelecidos na lei57. Portanto, só pode ser feito pelos agentes, no caso os militares, o que a norma assim dispõe, pois há a necessidade de que esteja definido e expresso no ordenamento jurídico, ou seja, 56 Estado organizado em conformidade com os preceitos legais vigentes, onde todos devem respeitos às normas estabelecidas. 57 Cfe. Justen Filho, Curso de direito administrativo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 374-354. autorizado, a fim de que a conduta realizada pela administração pública através de seu agente possa ser considerada legal58. Conforme o disposto no artigo 3.º do Decreto n.º 3.897/2001, as Forças Armadas, assim sendo necessário, serão incumbidas das ações de preservação da ordem pública, sendo que os efetivos empregados na ocasião deverão agir por meio de ações que estejam em conformidade com o objetivo da missão. Igualmente, caso existam meios disponíveis, porém insuficientes, relativos à polícia militar estadual, nada impede que estes atuem sob o controle do comando militar responsável pelas operações, de acordo com as circunstâncias e as necessidades fáticas das situações e desde que haja a anuência do Governador de Estado respectivo, a quem são subordinadas originariamente, conforme preceitua o artigo 4.º do Decreto n.º 3.897/2001: (BRASIL, 2001) o Art. 4º Na situação de emprego das Forças Armadas objeto do art. 3 , caso estejam disponíveis meios, conquanto insuficientes, da respectiva Polícia Militar, esta, com a anuência do Governador do Estado, atuará, parcial ou totalmente, sob o controle operacional do comando militar responsável pelas operações, sempre que assim o exijam, ou recomendem, as situações a serem enfrentadas. Desta forma, para que alcancem seus objetivos de restabelecimento da ordem, as forças militares em operações de garantia da lei e da ordem podem desenvolver ações que seriam de caráter de policiamento ostensivo, mas que diriam respeito à preservação da ordem. Além disso, as policias militares locais poderão, sendo necessário, atuarem em uma cooperação subordinada ao comando militar responsável pela operação, desde que com a autorização do Governador do Estado onde ocorrer a operação militar. 3.4.4 Comando da operação Após a decisão do Presidente da República sobre o emprego das Forças Armadas, seja por iniciativa própria ou em atendimento a pedido de quaisquer dos poderes constitucionais (Supremo Tribunal Federal, Senado Federal ou Câmara dos Deputados), serão editadas as diretrizes a serem seguidas para o emprego e preparo das Forças Armadas na operação de garantia da lei e da ordem. Essas referidas normas são as orientações gerais que devem ser seguidas pelos comandantes das forças envolvidas, tanto para o alcance dos objetivos da operação quanto para uma correta execução, através do plano de operações e das regras de engajamento59. No mesmo sentido, o artigo 15 da Lei Complementar n.º 97/1999 dispõe acerca da subordinação a qual deve ser obedecida pelos órgãos operacionais, devendo seguir os critérios estabelecidos em seus incisos: (BRASIL, 1999) Art. 15. O emprego das Forças Armadas na defesa da Pátria e na garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem, e na participação em operações de paz, é de responsabilidade do Presidente da República, que determinará ao Ministro de Estado da Defesa a ativação de órgãos operacionais, observada a seguinte forma de subordinação: I - ao Comandante Supremo, por intermédio do Ministro de Estado da Defesa, no caso de Comandos conjuntos, compostos por meios adjudicados pelas Forças Armadas e, quando necessário, por outros órgãos; II - diretamente ao Ministro de Estado da Defesa, para fim de adestramento, em operações conjuntas, ou por ocasião da participação brasileira em operações de paz; III - diretamente ao respectivo Comandante da Força, respeitada a direção superior do Ministro de Estado da Defesa, no caso de emprego isolado de meios de uma única Força. Desta forma, havendo a execução de uma operação de garantia da lei e da ordem apenas pelo Exército Brasileiro, ou seja, ocorrendo o emprego isolado de meios do Exército Brasileiro sem a participação das demais forças, os órgãos operacionais envolvidos estarão subordinados diretamente ao Comandante do Exército, sempre respeitando a direção superior do Ministro de Estado da Defesa. 59 Regramentos administrativos para a execução da missão. De outro lado, caso não sejam suficientes os meios disponíveis por uma única Força, havendo a necessidade de comandos conjuntos, compostos por meios das Forças Armadas, ou outros órgãos, a subordinação será ao Comandante Supremo, por intermédio do Ministro de Estado da Defesa. Portanto, em operações de garantia da lei e da ordem tanto pode haver a incidência do inciso “I” quanto do “III”, o que deverá ser verificado quando do emprego da Força e da necessidade comandos conjuntos, através das necessidades existentes para o cumprimento dos objetivos traçados. 4 O CASO DA OCUPAÇÃO DO COMPLEXO DE FAVELAS DO ALEMÃO 4.1 BREVE HISTÓRICO DO DOMÍNIO, PELO CRIME, DAS FAVELAS DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO Além das belezas naturais, a cidade do Rio de Janeiro é mundialmente conhecida por suas mais variadas formas de ocupação do solo urbano pela população de mais baixa renda. Na maioria das vezes, essa ocupação, dadas as características geográficas realmente específicas e características da cidade, ocorreu e ocorre de maneira desordenada sobre qualquer espaço onde o cidadão mais pobre – por vezes até os mais ricos – verifique existirem condições para a construção de uma pequena casa de madeira ou de alvenaria. A essas construções realizadas de forma acumulada, ou seja, muitas, lado a lado e até mesmo umas sobre as outras, em condições de solo totalmente desfavoráveis, seja em morros ou em áreas alagáveis, muitas vezes insalubres, deuse o nome de favelas, também chamadas, atualmente, de comunidades. Na origem, as favelas eram formadas apenas por pessoas que não possuíam melhores condições financeiras para estabelecerem suas moradias em locais mais apropriados, em face da absoluta falta de recursos – pobreza extrema – e da inexistência de políticas públicas estatais fortes no campo da habitação60. Nesse contexto, com o total abandono por parte do Estado, tanto social quanto policial, esses locais foram se tornando nichos61 propícios ao acúmulo de pessoas de má índole, condenados e foragidos sistema prisional, enfim, ao próprio 60 Não havendo uma política séria, duradoura e eficiente no campo da habitação para pessoas de baixa renda, famílias acabam sendo “obrigadas” a ocuparem moradias precárias em favelas. 61 Cfe. Darcy Ribeiro, O Povo Brasileiro. 2 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 204-205. estabelecimento de organizações criminosas62 ligadas ao tráfico de armas e de drogas. Analisando essa situação, cumpre trazer à balia a percepção de Darcy Ribeiro: (1995, p. 200) O doloroso é que esses bandos se instalam no meio das populações faveladas e das periferias, impondo a mais dura opressão para impedir que escapem do seu domínio. Isso é o que desejam muitas famílias pobres, geralmente desajustadas. Paradoxalmente, confiam é no crime organizado, que costuma limpar a favela dos pequenos delinquentes mais irresponsáveis e violentos e põe a cobro à caçada de crianças pelos matadores profissionais. E é a partir do estabelecimento desta “zona livre” 63 para o crime que as organizações criminosas ali estabeleceriam seus “quartéis generais” e partiriam para ações criminosas por toda a cidade (furto, roubo, extorsão e comércios de drogas e armas) – com o objetivo específico de financiar os luxos de seus líderes e os salários dos subalternos. Para tanto, após o cometimento de tais atos ilícitos em outros bairros da cidade, essas pessoas retornavam ao território dominado pela força do crime com a certeza de que não iriam sofrer quaisquer espécies de ações estatais de cunho repressivo, dadas as características dos locais e do seu amplo domínio armado naquele espaço. Além disso, a disputa pelo poder dentro da própria favela, por grupos criminosos rivais, também era responsável por inúmeras mortes e crimes, seja entre os próprios criminosos ou com vítimas inocentes alvejadas por “balas perdidas”, sem falar no pânico causado à população em geral vizinha da “comunidade”, que convivia diariamente com essa disputa. Nessa realidade, o Estado Policial é impedido de ingressar nas favelas, e quando se via na obrigação de entrar naquela localidade somente o fazia com armamento muito pesado e com intensa troca de tiros, o que colocava em risco tanto os agentes do Estado quanto os moradores do local. 62 Tais organizações primeiramente encontraram sustento na venda de drogas e armas. Hoje, lucram também com toda uma série de serviços, muitos também ilícitos, à população daquela localidade, como gás e TV a cabo clandestina. 63 A zona livre é estabelecida por meio de um pacto silencioso. Ninguém sabe e ninguém vê. O medo prepondera na população local e o aparato estatal policial, distante, não possui condições para atuar preventivamente ou para investigação posterior. Quanto aos projetos sociais em áreas dominadas pelo crime, esses eram rotineiramente negociados de maneira obscura com líderes comunitários ligados às organizações criminosas, ou seja, o Estado Social se via obrigado a negociar com bandidos em face do domínio exercido por grupos armados naquele espaço urbano dominado por um “poder paralelo”. Entretanto, no dia 19 de dezembro de 2008, no morro Santa Marta, na cidade do Rio de Janeiro, esse contexto começou a mudar, através do início de um programa elaborado e executado pelo Estado do Rio de Janeiro chamado UPP – Unidade de Polícia Pacificadora da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Tal programa fundamenta-se na instalação de unidades da Polícia Militar no interior da favela, de modo que o Estado volte a estar presente de maneira efetiva naquela localidade. E essa presença possibilita segurança à população ordeira e é decisiva para a expulsão dos grupos armados, de modo que a vida social na favela (comércio, bares, restaurantes) não seja mais regulada pelo crime e o acesso a tais locais seja possível a qualquer pessoa sem qualquer tipo de restrição, seja de dias, de horários ou de qualquer outra espécie estabelecida unilateralmente pelo crime. Tal iniciativa traz uma vida nova para todos, tanto aos trabalhadores quanto aos criminosos, os primeiros por terem restabelecidos os seus direitos fundamentais mais básicos e os últimos que, acuados, são obrigados a mudar de atividade, trabalhar licitamente ou empreender fuga para outras comunidades que ainda não contam com tal iniciativa governamental. E esse processo de instalação de UPP em favelas, com a respectiva fuga dos criminosos, ocorre sem maiores consequências até que, no final do mês de novembro de 20116465, é iniciada uma série de ataques a alvos civis na cidade do Rio de Janeiro. Nessa ocasião, certamente em razão de estarem com seus negócios muito prejudicados e sendo acuadas pela polícia em “seus” territórios, facções criminosas começam a realizar uma série de ataques em toda a cidade do Rio de 64 Cfe. Informação do sítio da internet disponível em: <http://g1.globo.com/rio-dejaneiro/noticia/2010/11/onibus-e-incendiado-na-baixada-fluminense.html>. Acesso em 27.06.2011. 65 Ver também notícia do sítio da internet disponível em: <http://g1.globo.com/rio-dejaneiro/noticia/2010/11/homem-tem-60-do-corpo-queimado-em-onibus-incendiado-no-rio.html>. Acesso em 27.06.2011. Janeiro66 e sua região metropolitana67, numa clara demonstração de força e insatisfação com tal política governamental. Num primeiro momento, através desses ataques a alvos civis, as organizações criminosas alcançam os seus objetivos iniciais, pois é instalado um estado de pânico e medo em toda população da cidade do Rio de Janeiro. As pessoas encontram-se acuadas pelo crime, sem que possam reagir de alguma maneira efetiva, apenas assistindo passivamente – como meros espectadores – a uma série de fatos criminosos que ocorrem em larga escala por toda a cidade e região metropolitana. Entretanto, uma vez constatada a origem do foco criminoso (Vila Cruzeiro, no Bairro da Penha), verificou-se necessária a colaboração das Forças Armadas até que o Estado do Rio de Janeiro pudesse formar pessoas em número suficiente à demanda policial desse contexto. Nesse sentido, o Governador do Estado, no intuito de obstar a ocorrência desses atentados e paralisar essas atividades criminosas, promovendo o reestabelecimento da ordem na região, pediu o apoio do Presidente da República, pois seria necessário o emprego das Forças Armadas, através de uma típica operação de garantia da lei e da ordem, o que viria a desencadear a Operação Arcanjo, executada pelo Exército Brasileiro no Complexo de Favelas do Alemão. 4.2 AS FORMALIDADES DA OPERAÇÃO ARCANJO Como já referido, ao final do mês de novembro de 2010, a população da cidade do Rio de Janeiro e sua região metropolitana vivia dias de medo e pânico, 66 Na cidade do Rio de Janeiro, os ataques foram realizados da zona sul à zona norte, da zone leste à zona oeste, de acordo com notícia veiculada no sítio da internet disponível em: < http://www.sidneyrezende.com/noticia/110445+nove+carros+e+tres+onibus+queimados+na+madruga da+do+rio+de+janeiro > Acesso em 27.06.2011. 67 Na região metropolitana, Baixada Fluminense e Niterói também tiveram alvos atingidos, conforme notícia veiculada no sítio da internet disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/cidades,policia-e-exercito-montam-cerco-no-morro-doalemao,645591,0.htm >. Acesso em 27.06.2011. com inúmeros ataques a meios de transportes (incêndio de ônibus e carros) e a prédios da Polícia Militar (tiros alvejaram cabines e quartéis da polícia militar carioca). A cada hora que se passava era noticiado um novo ataque, em locais diversos, da zona sul à zona norte, de Niterói à Baixada Fluminense, todos realizados de maneira autônoma, mas com as mesmas características: nitidamente para impactar a população e ganhar as principais manchetes de jornais e televisão, normalmente na capa. Analisados os locais de onde poderiam ter sido determinados tais ataques, chegou-se a um território dominado pelo crime há muitos anos na cidade do Rio de Janeiro: a Vila Cruzeiro68, no Bairro da Penha. Aliadas às dificuldades para o ingresso da polícia no referido perímetro urbano, tradicionalmente formado por ruelas e becos, tratava-se de uma área onde o Estado Policial não poderia ingressar em uma situação de rotina, dadas as condições geográficas do interior da Vila e da disponibilidade de armamento pesado pelos criminosos. Como resposta aos ataques, ante a demonstrada insuficiência de policiais (homens) e meios (armamento e veículos apropriados) necessários, foi requerido, pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro69 ao Presidente da República, apoio integral das Forças Armadas. Desta forma, ao requerer a colaboração das Forças Armadas para que pudesse buscar o retorno da ordem no Estado do Rio de Janeiro, o respectivo Governador declarou a insuficiência dos instrumentos disponibilizados pelo artigo 144 da Constituição Federal, desde logo cumprindo uma das formalidades estabelecidas através do Decreto n.º 3.897/2001, em seu artigo 15, §3.º. Além disso, após a formalização do pedido, o Presidente da República, no âmbito da sua discricionariedade disposta nos artigos 142 da Constituição Federal, 15, § 1.º da Lei Complementar n.º 97/1999, 1.º, § 2.º do Decreto n.º 3.897/2001, entendendo tratar-se de um típico caso de emprego das Forças Armadas para a 68 Trata-se de localidade da zona norte da cidade do Rio de Janeiro conhecida há muitos anos pelo domínio territorial do crime organizado. 69 Através de ofício s/n.º , datado de 25 de novembro de 2010, o Governador do Estado solicitou o apoio das Forças Armadas. garantia da lei e da ordem, comunicou70 ao Ministro de Estado da Defesa que estava autorizada a participação das Forças Armadas. Após, seguiu-se a elaboração das diretrizes e regras de engajamento pertinentes ao respectivo emprego das Forças Armadas71. Assim, no caso da Operação Arcanjo, as formalidades necessárias previstas para o emprego das Forças Armadas em uma operação de garantia da lei e da ordem obedeceram exatamente ao disposto na legislação específica, uma vez que foi desencadeada após um pedido formal e expresso do Governador do Estado do Rio de Janeiro, com a sua declaração de que os meios disponíveis ao Estado eram insuficientes para a situação. 4.3 A NECESSIDADE DO EMPREGO DAS FORÇAS ARMADAS PARA A OCUPAÇÃO DO TERRITÓRIO E OS SEUS RESULTADOS Além da legalidade formal acima explicitada, em termos materiais, ou seja, conceituais, mais precisamente quanto ao conteúdo, não há como negar que realmente trata-se de uma típica ação militar absolutamente necessária para a garantia da lei e da ordem. A situação visualizada e percebida nas ruas da cidade do Rio de Janeiro traduzia perfeitamente o desrespeito a um conjunto de direitos dos cidadãos (lei) e a conturbação da ordem estabelecida (ordem). Aliado essas circunstâncias, verificouse a total insuficiência, ao menos de forma imediata, dos meios elencados pelo artigo 144 da Constituição Federal para o enfretamento da situação. Dessa forma, além de a lei estar sendo desrespeitada, a ordem era atingida e os meios constitucionalmente previstos para um Estado Federado responder a tais demandas eram flagrantemente insuficientes. E isso, por si só, já autorizaria a medida extrema do ponto de vista do seu conteúdo. 70 Por meio de simples ofício, foi comunicado pelo Sr. Presidente da República ao Sr. Ministro de Estado da Defesa que estava autorizada a participação das Forças Armadas naquela situação de garantia da lei e da ordem. 71 Atos administrativos que delimitam a extensão da operação e as normas a serem seguidas durante a ação militar. À época, muitas críticas foram realizadas no sentido de que as Forças Armadas não estariam preparadas para operações dessa natureza72, pois sua finalidade seria o combate ao inimigo e não haveria treinamento de seus homens sobre a necessária relação a ser estabelecida entre militares e cidadãos. Outros73, chegaram a afirmar que a Operação Arcanjo tratar-se-ia de uma intervenção federal da União no Estado do Rio de Janeiro. Entretanto, conforme referido em capítulo anterior, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu 03 (três) situações nas quais as Forças Armadas poderiam ser empregadas, ao Comando Supremo do Presidente da República: (1) defesa da Pátria, (2) garantia dos poderes constitucionais e (3) da lei e da ordem. Assim, sendo uma das três situações previstas na Constituição Federal como hipótese de emprego, as Forças Armadas, se não estivessem, deveriam estar sendo preparadas para situações urbanas como aquela que precedeu a Operação Arcanjo. Além disso, deve ser ressaltada que houve um atendimento a uma solicitação do Governador para uma situação específica e de caráter republicana, não havendo motivos para se falar em qualquer espécie de intervenção federal, medida que possui outros pressupostos e natureza completamente distinta74. Isso se confirmou pelos resultados obtidos desde o início da ocupação, com uma redução permanente dos índices de criminalidade75 por toda a cidade do Rio de Janeiro, assim como a não ocorrência de situações que pudessem indicar o despreparo das Forças Armadas para lidar com aquela situação excepcional, mas constitucionalmente prevista, não havendo qualquer revés ao pacto federativo e ao respeito às autonomias estaduais. Aliado a isso tudo, o apoio da população à ação 72 Entretanto, essa crítica só pode vir do desconhecimento acercas das situações em que as Forças Armadas podem ser empregadas, pois o texto constitucional é taxativo. 73 Conforme o artigo “Intervenção Federal Branca no Rio de Janeiro”, publicado no sítio <http://www.blogdosirodarlan.com> Acesso em 28.06.2011. 74 A presente situação de garantia da lei e da ordem, que apresenta verdadeira cooperação em prol do interesse público, em que houve solicitação de apoio do Governador do Estado do Rio de Janeiro e a sua anuência para que as forças estaduais ficassem sob o comando militar difere, em tudo, de um ato unilateral em que um ente federado, por iniciativa própria e contra a vontade de outro, invade a sua competência constitucionalmente estabelecida. 75 Todos os índices de criminalidade apresentam significativa redução, do homicídio ao roubo, de acordo com o sítio <http://www.isp.rj.gov.br>. Acesso em 15.07.2011. militar foi amplamente divulgado pela mídia76, uma vez que puderam retomar seus hábitos sociais com a tranquilidade necessária, seja dentro ou fora da área ocupada, agora, por forças do Estado. 76 Diversas entrevistas com moradores que não quiseram se identificar foram divulgadas pelo sítio <http://www.g1.com>. Acesso em 20.07.2011. 5 CONCLUSÃO Certamente entre as hipóteses de atuação das Forças Armadas brasileiras previstas na Constituição Federal, o emprego em operações de garantia da lei e da ordem é aquela que se encontra mais próxima da realidade brasileira. Isso não quer dizer que as outras duas situações sejam de menor importância, muito pelo contrário, pois concebidas para situações em que estejam ocorrendo verdadeiros ataques ao Estado e à democracia do país, o que, porém, na atualidade, possuem uma probabilidade de incidência extremamente reduzida ante o presente período de estabilidade interna e externa. Nesse contexto, verifica-se que a execução de uma operação para a garantia da lei e da ordem constitui-se, sempre, num instrumento de proteção e garantia dos direitos fundamentais que foram violados pela situação imediatamente anterior e que devem ser restabelecidos o mais rápido possível. Da mesma forma, deve-se ter presente, por se tratar de uma operação de cunho militar e haver a possibilidade de restrições a alguns direitos fundamentais em seu desenrolar, que a determinação do emprego das Forças Armadas deve ser precedida de uma análise da situação ao princípio da proporcionalidade/razoabilidade, a fim de examinar, com precisão, a adequação da medida ao caso concreto. Tal análise deve ser precedida de uma conclusão sobre legalidade da medida, tanto em termos adjetivos quanto substantivos, ou seja, se realmente é o caso de uma operação para a garantia da lei e da ordem, se estão presentes os pressupostos básicos, e, a partir daí, executá-la em conformidade com a Lei Complementar n.º 97/1999 e o Decreto n.º 3.897/2001, que regulamentam o preparo e o emprego das Forças Armadas. Na sua execução, deve-se obedecer às regulamentações existentes e fundamentadas nos textos legais acima referidos, a fim de que a legalidade seja preservada e o êxito da missão seja alcançado. Isso porque, após a constatação de que se trata realmente de uma situação de garantia da lei e da ordem, a execução seja realizada dentro dos limites previstos, evitando-se qualquer tipo de excesso que possa comprometer o objetivo precípuo da ação militar, que é o restabelecimento do respeito à lei e à ordem estabelecidas. Além disso, jamais a execução dessa medida excepcional deve ser desviada do seu foco inicial, pois deve visar, sempre, a proteção de direitos fundamentais da população. Dessa maneira, sempre objetivando a preservação de direitos fundamentais, tanto a decisão de empregar as Forças Armadas em operações de garantia da lei e da ordem quanto a forma de colocá-la em prática, o respaldo da população será alcançado e a lei cumprida. E essa forma de determinar o emprego das Forças Armadas e executar a medida objetivando a garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos é o que fornece a sustentação para a Operação Arcanjo no Complexo de Favelas do Alemão, atualmente em execução da cidade do Rio de Janeiro. Isso porque, além de libertar a população local do domínio pelo crime organizado, trouxe mais tranquilidade para outros bairros da cidade, o que, efetivamente, ofereceu uma possibilidade para a concretização dos direitos fundamentais dos moradores da região atingida diretamente pela operação de garantia da lei e da ordem e segurança para todos os demais. No mesmo sentido, a fim de que não seja utilizada de maneira rotineira por administrações públicas ineficientes, deve ser ressaltado que, por se tratar de uma medida de caráter excepcional, não pode, de maneira alguma, se constituir em uma regra para o combate ao crime organizado. Pode, isso sim, ser concebida como uma boa ferramenta a ser utilizada em situações de extrema gravidade, assim como ocorreu e ainda ocorre na cidade do Rio de Janeiro. Por fim, conclui-se que, por ser uma importante medida prevista na Constituição Federal, as Forças Armadas devem estar devidamente preparadas para executá-la. Isso porque a sua execução, desde que correta e dentro dos limites estabelecidos pela lei, poderá significar a preservação dos direitos fundamentais mais básicos dos cidadãos brasileiros, os quais, nessas ocasiões, foram cerceados ou limitados em razão do desrespeito à lei e à ordem. REFERÊNCIAS BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13 ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda., 2003. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília, DF. . Decreto n.º 3.897, de 24 de agosto de 2001. Fixa as diretrizes para o emprego das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 27 ago. 2001. . Decreto n.º 6.703, de 18 de dezembro de 2008. Aprova a Estratégia Nacional de Defesa, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 dez. 2008. . Decreto n.º 5.484, de 30 de junho de 2005. Aprova a Política de Defesa Nacional, e dá outras providências. 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