Patologias “borderlines” Versus desamparo infantil (Eixo III - Psicanálise de Crianças e Adolescentes) Maria Silvia R. M. Valladares1 Introdução Freud, ao longo de sua obra sobre o social e a cultura, particularmente em “O Futuro de uma Ilusão" (1927) e em “O Mal-estar na Civilização” (1930), relaciona o desamparo infantil como um dos fatores decisivos no desenvolvimento tanto do indivíduo quanto da civilização, sendo, segundo ele, um marco fundamental para o surgimento da religião, por ele considerada uma “ilusão”. É a impressão “terrificante” de desamparo na infância, em sua opinião, que despertou a necessidade de proteção através do amor: a libido segue os caminhos das necessidades narcísicas e liga-se aos objetos que asseguram a satisfação. A mãe, portanto, que amamenta o bebê, torna-se o seu primeiro objeto amoroso e a sua primeira proteção contra os perigos indefinidos que o ameaçam no mundo externo. Freud também chama a atenção para o fato de a criança recém-nascida não ter ainda condições de distinguir o seu ego do mundo externo como fonte de sensações que fluem sobre ela, que as identifica, provavelmente, como sendo os seus próprios órgãos corporais. O próprio ego se acha catexizado pela libido, constituindo-se o seu reduto original, o seu “quartel-general”. Somente depois é que a libido se volta para os 1 Membro Titular e Analista de Criança da SPB e da SPBSP 2 objetos, tornando-se libido objetal , que, por sua vez pode transformar-se novamente em libido narcísica. Enquanto Freud, como vimos, parte de um narcisismo primário, Melanie Klein propõe um modelo de relação objetal – narcisismo secundário – desde o início da vida. Para ela, o narcisismo decorre da atuação da inveja primária. O bebê já conta, assim, com um espaço psíquico no qual as identificações projetivas e introjetivas podem ser processadas. Por sua vez, Winnicott, partindo do narcisismo primário de Freud, nos diz que é o processo de identificação primária (preocupação materna primária) aquele que possibilitará o nascimento do eu separado do não-eu. É através dos cuidados “suficientemente bons” da mãe que o bebê irá, aos poucos, integrando as partes não-integradas do self: necessidades, sentimentos e emoções. Assim, essa mãe se constitui no próprio ambiente do bebê. Ela, identificada com ele, capta suas necessidades básicas (a princípio fisiológicas), as satisfaz em tempo hábil, nem antes nem muito depois, permitindo ao bebê viver a "ilusão" de que o seu seio faz parte dele, foi por ele criado. Somente aos poucos, a “mãe suficientemente boa” vai desiludindo o bebê, fase esta correspondente ao desmame ou, se fizermos um paralelo com Klein, à posição depressiva. Se as falhas ambientais ultrapassam os limites toleráveis para o bebê, elas serão sentidas como invasão, que despertam angústias primordiais, “agonias”, que mobilizam defesas que passam a isolar o núcleo do “self”, com vistas a protegê-lo (o “falso self”). 3 Enquanto o “self” verdadeiro, resultante do êxito repetido da mãe em responder ao gesto natural ou alucinação sensorial do lactente, tem espontaneidade e é básico na formação de símbolos, na estruturação do "falso self” essa capacidade simbólica não se inicia. O lactente sobrevive de uma forma falsa, seduzido à submissão com a finalidade de reagir às exigências do meio, através da construção de um conjunto de relacionamentos falsos, que, por meio de introjeções, pode chegar até a uma aparência real. O “falso self” se sustenta não em experiências reais, mas na condescendência com a imagem que a mãe tem de seu filho, servindo, portanto, mais ao narcisismo do objeto do que do “self”. O Conceito de “Borderline” ou Fronteiriço O que seria uma patologia “borderline” e qual a sua relação com o desamparo infantil descrito acima? Por que alguns indivíduos que sofreram privações e desamparos na infância adoecem e outros não? Que variedades de patologias ("falso self", bipolaridade, depressão, anorexia, bulemia...) podem ser descritas como tal ? Segundo Laplanche e Pontalis (1973) “Borderline” é um termo usado com maior freqüência para designar perturbações psicopatológicas que jazem na fronteira entre a neurose e a psicose, particularmente as esquizofrenias latentes que apresentam uma série aparentemente neurótica de sintomas. Na opinião de André Green, não se deveria tentar compreender esse tipo de paciente nem em termos de neurose nem de psicose. 4 Segundo ele, no contato com o seio materno, o bebê, na tentativa de separar o “prazeroso do desprazeroso” (Freud), o “bom do mau” (Klein), o “eu do não-eu" (Winnicott), dentro e fora, somático do psíquico, fantasia e realidade, o bebê sofre uma divisão nas fronteiras e, consequentemente, está sujeito também à confusão. Essa divisão é uma reação à atitude do objeto, que pode ser de duas maneiras: a) uma falta de fusão da parte da mãe, de forma que o bebê se depara com "seios em branco"; ou b) um excesso de fusão, onde a mãe é incapaz de renunciar em prol do crescimento do filho ao “êxtase paradisíaco reobtido através da experiência da gravidez”. Essa separação da criança-seio vincula-se a um acordo duplo entre mãe-filho com relação a uma terceira parte potencial – o pai – presente desde o início na mente da mãe. A divisão ocorre não apenas entre o externo e o interno, mas também e principalmente entre o soma e a psique, sensações corporais e afetos. Consequentemente, o soma dividido entrará na esfera psíquica sob a forma de sintomas psicossomáticos, histeria ou hipocondríase. Enquanto os sintomas de conversão são construídos de uma forma simbólica e estão relacionados com o corpo libidinal, os sintomas psicossomáticos não são simbolizados e são carregados de uma agressividade refinada, “pura”. Se, por um lado, no recalcamento (caso das neuroses) a energia psíquica está retida, os elos estão intactos e podem ser recombinados com outras representações ou afetos, por outro lado, na divisão os elos são destruídos ou de tal forma prejudicados que ficam de difícil acesso ao analista. O retorno do recalcado – diz Green – é assinalado pela ansiedade, enquanto o retorno de elementos divididos é acompanhado por graves sentimentos de "desamparo” 5 (Freud), “aniquilamento" (Klein), " estados não-integrados ( Esther Bick), "terror sem nome” (Bion), “desintegração" (Winnicott), “estupefação”( Green). Assim, "as depressões e o colapso mental são ameaças constantes nas desordens fronteiriças", acentua André Green. Isto porque, a divisão ocorre em dois níveis: entre o psíquico e o não-psíquico (soma e o mundo externo) e dentro da esfera psíquica. A divisão interna revela que o ego é composto de núcleos diferentes e incomunicantes, como arquipélagos, nos quais não há conexão entre as ilhas. Há uma falta de coesão, de unidade e, principalmente de coerência, além de uma impressão de grupos de relações contraditórias. Esta falha na integração dá ao observador um sentimento de indiferença, uma ausência de vitalidade, como se essas ilhas fossem egos separados (relações de objetos do self), como não conseguissem formar um ser individual. Para Green, contudo, essas ilhas são menos importantes do que o espaço envolvente, por ele descrito como “vazio”. Futilidade, falta de consciência de presença, contato limitado, caracterizam a experiência da pessoa fronteiriça. Cabe ao observador-analista estabelecer o elo que falta usando o seu próprio aparelho psíquico. Em lugar de manifestar fenômenos transicionais (Winnicott) eles criam sintomas. Enquanto o objeto transicional (Winnicott) combina o “sim” e o “não” (“ é – e- não é o seio"), no paciente “borderline” esses mesmos objetos oferecem uma recusa negativa da escolha: “nem sim, nem não”, o objeto “nem está vivo, nem está morto”. Somente a ausência do objeto pode funcionar como estímulo para a imaginação, o pensamento, enfim, a criatividade (capacidade de estar sozinho, de Winnicott, 1958) e capacidade negativa, de Bion (1970). 6 Clínica versus Prevenção A incidência de casos “borderlines" hoje na clínica psicanalítica é muito grande, o que requer do analista uma habilidade especial para lidar com esses pacientes de “difícil acesso”. Particularmente, ao longo do meu trabalho psicanalítico tenho me deparado constantemente com pacientes, principalmente mulheres de meia idade, que poderiam ser consideradas fronteiriças (depressão melancólica, bipolaridade, “falso self”). Sem exceção, poderia afirmar que em todos esses atendimentos foi constatado um enorme sentimento de desamparo infantil, seja por morte precoce da mãe (aos três meses de idade), seja por separação da mãe nos primeiros dias de vida, seja por uma relação com uma figura materna não “suficientemente boa”, com pouca ou nenhuma capacidade de “reverie”. Como vimos, distintas divisões estruturais no ego estão presentes nesses pacientes, que não têm o menor contato com elas nem capacidade psíquica para integrá-las. Os “desmames" psíquicos e separações precoces provocam o “vazio" e o terror mental. As falhas ambientais, quando ultrapassam os limites toleráveis, poderão ser sentidas como invasão, despertando angústias primordiais ou de aniquilamento, que mobilizarão defesas ainda maiores e fortalecerão o isolamento do núcleo do ego. Ao longo de mais de dez anos acompanhando as relações mães-bebês, seja pessoalmente em processos de observação, seja através da coordenação de 7 seminários de observação, tenho atestado a importância do papel do observador na melhoria da dinâmica pais-bebês e no desenvolvimento satisfatório da criança. Atualmente, sem nos afastarmos do Método Ester Bick, nosso grupo tem se dedicado ao estudo das intervenções psicoterápicas de base psicanalítica naqueles casos em que são detectadas falhas básicas no relacionamento da dupla mãe-bebê. Temos constatado que o acolhimento do observador e as intervenções adequadas e não invasivas têm contribuído para sanar dificuldades desse relacionamento primordial, se revestindo, segundo acreditamos, num mecanismo de prevenção importante, numa "pele continente" (Bick), com vistas a minorar o sentimento de desamparo infantil. Exemplos Clínicos l. A paciente A procurou-me, juntamente com o seu bebê de um mês, dois meses após o falecimento do seu marido, em estado de profunda depressão e desamparo. Contou que estava amamentando o seu bebê, segundo filho do casal, mas que não estava conseguindo manter com ele nenhum vínculo emocional, exceto sua dor. Sentia-se culpada pela morte do marido, por ter este morrido dormindo ao seu lado sem que ela tivesse podido fazer nada. O filho mais velho (3 anos) também estava precisando de ajuda, na medida em que a morte do pai ocorrera exatamente no auge do seu conflito edípico. Encaminhei o filho mais velho para psicoterapia psicanalítica e passei a acompanhar a dupla mãe-bebê semanalmente pelo período de um ano e meio, 8 inicialmente no ambiente familiar e, após o primeiro ano de vida, em meu consultório. Nas primeiras observações pude perceber que realmente era grande a falta de contato emocional entre a mãe e o bebê. Ele chorava muito, se contorcia todo, dando-me a impressão de estar fazendo uso, através do corpo, de uma segunda pele, pois a pele continente, em estado de depressão e luto, não estava disponível. Além do mais, tinha sempre gripes, febres e cólicas, sem explicação diagnóstica clara. O meu papel terapêutico foi muito mais de conter as angústias e a dor da mãe durante todo esse período do que, propriamente, interferir na relação da dupla, embora ela constantemente me solicitasse. Os dois passaram a ter uma relação muito íntima comigo: ela abria a porta como se eu fosse uma tábua de salvação entrando em sua vida e ele, após o quarto mês, passou a me reconhecer, sorrir e dar os braços. A cada dia, a relação dos dois ficava mais entrosada. A mãe, embora ainda sofrendo muito, sentia-se menos culpada pela morte do marido, voltou a trabalhar em casa e a se dedicar com empenho aos filhos. Já no consultório, montei uma caixa de brinquedos para o bebê e nós três brincávamos e conversávamos durante as sessões. Hoje, o bebê tem quase dois anos, é uma criança feliz e integrada, o irmão mais velho também está se desenvolvendo bem e a mãe parece ter elaborado satisfatoriamente seu processo de luto. 9 2. A observadora ML2 fez a sua primeira visita à família no hospital, no dia do nascimento do bebê. Era o primeiro filho do casal. Nesse primeiro dia de observação ela constatou um ar de preocupação visível, sobretudo no pai. A mãe sugeriu-lhe que olhasse a ficha do bebê que ficava na porta do quarto. Através dos dados descritos, ela pôde tomar conhecimento da polidactilia (seis dedos) em ambas as mãos e no pé esquerdo. O pai tinha direito legal a 5 dias e tirou 12 dias de férias para dar assistência à família. Os primeiros meses de observação foram marcados por muita ansiedade, tanto por parte dos pais, particularmente a mãe, como da observadora, que vivenciava um complexo de emoções desconhecidas em jogo, e, com a ajuda do grupo, pôde não só nomear e elaborar suas angústias primitivas e identificações projetivas, bem como reconhecer a importância do estabelecimento de uma relação de confiança entre ela, a mãe, o pai e a família. Apesar disso, o amadurecimento do bebê não se fazia acompanhar de uma situação de observação mais calma, com menos tensões, particularmente no tocante à temperatura ambiente e ao modo como o bebê era ou não coberto. Vários fatores preocupavam a observadora: o sono do bebê (“olhos vermelhos de sono”), o frio (o bebê nunca é coberto ao dormir), os sustos freqüentes durante o sono, leva susto com a voz da mãe: “mamãe vive te assustando, né meu pequerrucho?”; com 5 meses e 16 dias (28/10/2003) a mãe observa que “quando na cama o bebê chupa o braço direito. Chupa até fazer hematoma, se surpreende 2 Maria de Lourdes Teodoro - Membro do Grupo de Observação da Relaão Mãe-Bebê e Candidata do Instituto de Psicanálise Virgínia Leone Bicudo da Sociedade de Psicanálise de Brasília 10 e diz, não, até ficar vermelho”; os brinquedos, 99% deles, são de feltro (para que não se machuque), o bebê, excessivamente coberto, começa a apresentar bolhas no rosto, por causa do calor. Sempre de luvas e com meia e sapatos. A mãe diz que o cobre muito e “fecha tudo por medo”. Todavia, com o correr dos meses, o que vai se tornar usual será o bebê sentir frio e nunca ser coberto para dormir durante o dia, paradoxo que chama a atenção da observadora e do grupo de supervisão. Durante esses primeiros meses de observação, foram inúmeras as situações de discordância entre a avó e a mãe sobre várias questões, inclusive as relativas ao bebê. A avó cuidava do bebê pela manhã e à tarde, até a mãe voltar do trabalho. A mãe vinha almoçar em casa. Ela se ofereceu para essa tarefa porque “tinha mais ciúmes que a mãe”, disse-me a avó. Percebemos que a forma excessiva como o bebe estava anteriormente sendo coberto, era um modo de encobrir o desamparo a que ele estava submetido por angústias primitivas da mãe, que também afetavam a observadora por contratransferência. À medida que a observadora passou a introjetar melhor a sua função continente, pôde acolher as ansiedades maternas, fazendo inclusive pequenas intervenções e nomeando (como um modelo para a mãe) as experiências emocionais manifestadas pelo bebê nas sessões de observação. Hoje, o bebê está com um ano e um mês, já está andando, desenvolve-se bem e o vínculo da mãe com o seu bebê tem nítida cumplicidade, com afeto, e abrindo espaço para o pai, que, como terceiro, tem trazido a ordem e o limite, 11 através de brincadeiras "típicas dos homens". A observadora continua seu trabalho em condições, portanto, mais favoráveis. Considerações Finais Ao terminar este trabalho, gostaria de reafirmar ponto de vista segundo o qual o acolhimento do analista pode possibilitar uma maior aproximação na relação mãe-bebê, com prognóstico favorável para o desenvolvimento da criança, evitando, quem sabe, patologias futuras como as "borderlines". 12 Resumo A autora traça um paralelo entre as patologias “borderlines”, tão incidentes na atualidade, e o desamparo infantil, destacando a importância da prevenção, através de intervenções psicoterápicas de base psicanalítica (Método Esther Bick) nas relações pais-bebês, durante o primeiro ano de vida. 13 Bibliografia Bion, W. "Uma Teoria do Pensar". In: Melanie Klein Hoje, Vol I, Rio de Janeiro, Imago, 1990. Freud, S. "O Futuro de uma Ilusão" (1927) e o "Mal-estar da Civilização" (1930). In: Ed. Standart Bras., Vol. XXI, Rio de Janeiro, Imago. Klein, M. Inveja e Gratidão e Outros Trabalhos. Rio de Janeiro, Imago, 1991. Green, A. "O Conceito de Fronteiriço". In: Sobre a Loucura Pessoal, Rio de Janeiro, Imago, 1988. Winnicott, D. "Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro 'self' ". In: O Ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.