Discurso do professor Lauro Campos por ocasião da inauguração do Busto do
professor Carlos Campos na UNB – Brasília.
Exmo. Senhor Carlos Santana, digníssimo Ministro da Educação, exmo senhor
Dr. Fernando Paz, digníssimo representante do governador de Minas Gerais, exmo
senhor Eduardo Queiroz, vice-reitor e representante do reitor da Universidade de
Brasília, exmos senhores José Paulo Sepúlveda Pertence e Carlos Mário da Silva
Veloso, ministros do Superior Tribunal de Justiça, exmo senhor Armando
Rolemberg, ministro do Tribunal Federal de Recursos, exmos senhores professores
Igor Tenório, José Carlos Brand Aleixo, Carlos Fernando Matias, Aurélio Wander
Cunha Bastos, meus senhores e minhas senhoras.
O Busto de Carlos Campos que nesta manhã se inaugura foi fundido graças á
lembrança da direção da Faculdade de Estudos Sociais Aplicados, iniciativa
expontânea dos professores Igor Tenório e José Carlos Brand Aleixo a que a atual
diretoria deu continuidade e fecho. No cadinho de nossa realidade social parece
tornar-se cada vez mais raro o amálgama dos componentes cultural e afetivo que
são as substâncias reais que deram forma ao bronze que eterniza a figura do
homenageado.
A espontaneidade do gesto, no reconhecimento desinteressado do valor da
vida e da obra de Carlos Campos constituem estes elementos raros em nosso meio
social e são eles que emprestam um significado singular a este evento, e é por ter
plena consciência do sentido deste ato, da pureza deste gesto e do conteúdo desta
homenagem é que a família de Carlos Campos mais se comove.
Quando ele interrompeu definitivamente seus passos, Paracatu, a sua cidade
natal, ainda marcava a linde a que atingira a civilização das Minas Gerais, ele não
poderia ter tido a visão premonitória de que 35 anos depois e 250 kms adiante,
avançaria a sua efígie, e que nesta bucólica colina da Faculdade de Direito, cercada
de silêncio e de sabedoria, ela seria parte deste cenáculo de juristas e pensadores
aqui homenageados como sequência e consequência desta iniciativa que se
estenderá a outros nomes ilustres.
Nós que pertencemos ao seu círculo familiar e que nos encontramos reunidos
em torno do seu Busto temos a impressão de que o poder aglutinador que ele
exerceu em vida se transferiu magicamente para sua efígie. Hoje e agora
comungamos daquele sentimento de unificação, de estarmos juntos, de sermos
juntos, que lembraria a ele certamente que esteve presente nas greis, nos clãs onde
emanava do totem tido como origem comum do grupo.
Se é verdade que a riqueza da consciência individual resulta das relações
sociais que a modelam, Carlos Campos encontrou em suas relações familiares, os
veios hubernos que alimentaram o seu processo de enriquecimento intelectual.
Nasceu numa família que se estenderia a dezesseis irmãos, tinha dez tios maternos
e por parte de pai pertencia a uma das mais numerosas famílias mineiras.
Carlos Campos assumiu de corpo e alma o papel de chefe da família após o
falecimento do seu pai. Quando eu nasci, em 1928, lá em casa se encontravam
trinta e cinco parentes entre irmãos e sobrinhos. Nos momentos de crise suas
energias se potencializavam na defesa dos seus. Assim, como um tigre inquieto,
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passou onze dias e onze noites insones por ocasião da morte trágica do seu irmão
Joaquim.
Assim foi também quando sua princesa, sua única e adorada filha adoeceu,
aproximando-se dos umbrais da morte aos dois anos de idade. Carlos Campos
comandou uma equipe de trinta e dois médicos, quantos a atenderam, confrontava
opiniões, comparava exames, dirigia juntas médicas, infatigável, aceso, atento,
acordado. Quando ele venceu as potências de Tanatus, dando outra vida àquela
que já era sua filha, o Dr. Pércio Pinto, irmão do ministro Bilac Pinto lhe disse que o
considerava apto a escrever um Tratado de Medicina.
Quando Salvador um dos seus mais brilhantes irmãos adoeceu, iniciando seu
convívio com a moléstia que durou mais de trinta anos, um reumatismo deformante,
Carlos Campos introduziu em seu acanhado escritório uma grande armação com
pesos e contrapesos que o sr. Sacha Fischer acionava diariamente na tentativa de
repôr-lhe os movimentos. Ele cedia o seu espaço vital mais querido e íntimo, o de
sua biblioteca, para o irmão.
Ao deixar sua família cujos casarios que se derramavam por toda parte da
Matriz de Paracatu, Carlos Campos foi para a casa do seu tio Jacinto em Ouro
Preto. O convívio com seus primos Mário, Francisco José, Jacinto, Francisco Luiz, o
Chico Campos, Alberto, Odete, José, Francisca, Maria durou o resto de suas vidas,
marcando-as pela troca de informações, pelas discussões acaloradas, pela
compreensão fraterna.
Dentre os amigos que contribuíram com as moedas do saber para o seu
enriquecimento individual, desejo referir-me a dois apenas: Jackson de Figueiredo e
Iago Pimentel. A amizade com o primeiro foi prematuramente interrompida pela
morte trágica que o arrebatou a altura da Gruta da Imprensa, no Rio de Janeiro. Ao
perceber o fogo, Dolores, sua adorada adoradora correu para apagá-lo, salvando
das chamas ateadas por Carlos Campos cerca de dez cartas da imensa
correspondência trocada pelos dois amigos. Todas as cartas de Jackson de
Figueiredo eram encimadas pelo tratamento de ‘Meu Principe’, que demonstrava o
afeto e a admiração dedicada a Carlos Campos.
Pedro Nava tem razão quando afirmou que o Iago Pimentel foi o primeiro estudioso
de Freud em Minas. Ele se engana, todavia, quando registra que os estudos de
Freud teriam se iniciado em 1929. O autor do ‘Bau de ossos’ não sabia que a
amizade entre Carlos Campos e Iago Pimentel datava do tempo em que esse
exercia a Promotoria Pública em Formiga e Campo Belo. Foi, ao contrário do que
afirma Pedro Nava, no início da década de 20, talvez ao final da Primeira Guerra
Mundial, quando refloreceu o movimento psicanalítico internacional que Iago
Pimentel apresentou a seu maior amigo Carlos o Mestre da Escola de Viena. Freud
veio a constituir uma das mais poderosas influências sobre a formação cultural e a
instrumentalização das pesquisas realizadas por Carlos Campos. Seu encontro com
Freud, Adler, Jung, A. Johnnes, Lafont e outros psicanalistas, permitiu levar para o
campo da Hermenêutica o instrumental psicanalítico.
Para Carlos Campos o ordenamento jurídico como parte da superestrutura
social é uma formação histórica e social que só pode ser entendida uma vez que se
compreenda os interesses da classe dominante, que subjazem e determinam tanto
aquela superestrutura como o seu movimento, isto é, a exegese dos juízes que os
transmitem em suas sentenças o conteúdo que foi inserido no consciente dos
julgadores, de acordo com os determinantes sociais que modelam o juízo dos juízes.
Não é na maldita ciência do Direito ou numa corrente filosófica que constitue uma
forma refinada de justificar os interesses da classe dominante, não é numa falsa
lógica que se diz neutra, mas que não passa de uma marca sobre a qual falam os
interesses dominantes, que se pode compreender o Direito como técnica de
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proteção e salvaguarda dos grupos, que, em dado contexto histórico, são
hegemônicos.
O Direito não é uma ciência, mas deve ser objeto de uma ciência que se
instrumentaliza fora dele na Sociologia, na Psicanálise, na Antropologia, na
Economia, na Etnologia.
Para Carlos Campos o homem aprendeu a pensar como aprendeu a construir
sua habitação, o pensamento é uma manifestação de um super instinto diversificado
e seu objetivo nunca foi o de descobrir a verdade, mas o de servir à defesa da vida,
ser útil a preservação da espécie, da grei, do indivíduo.
O processo do pensamento na gnociologia está inscrito na Ontologia. O
homem desenvolveu seu pensamento na medida em que ele próprio se desenvolvia,
o processo civilizatório. Carlos Campos aceitava a idéia de Freud segundo a qual a
repressão sexual constitue uma das alavancas mais importantes que ergueram as
barreiras, as correntes energéticas, as pulsões do ID obrigando estas energias a
moverem as rodas da civilização, a irrigarem alardes, a se superarem mediante a
sublimação. O ato inaugural da civilização representada pelo drama de Édipo, não é
um ato, mas um processo. O tabu, o Código Penal primitivo, e a proibição do incesto
que Édipo dramatiza são um novo processo em que a técnica da repressão, da
formação da censura, da introjeção do superego surge e faz o papel de uma
catapulta no processo civilizatório.
As observações de Malinovisk vêm se somar a Gerentius, este já conhecido
de Freud. A moral sexual cultural reduz o domínio do princípio do prazer em
benefício do útil que conduz o princípio da realidade.
Os sistemas filosóficos são para Carlos Campos, políticos, os conceitos e as
categorias dos filósofos são resultado de um processo de supervalorização de parte
da realidade, que passa a ser considerada como realidade toda ou como condição
de existência do real.
Nos conceitos de soberania de pessoa jurídica, etc, Carlos Campos enxerga a
mesma forma de pensamento que produziu o tabu. Estes conceitos fundamentais
são políticos, não são pura ilusão do espírito, como pretendia Duguit em sua crítica
negativa do conceito de soberania. Para Carlos Campos o conteúdo imaginário,
místico, fantástico que anima estes conceitos é tão real quanto o conteúdo material
e objetivo, sagrado e profano, amado e odiado, o duplo aspecto dos conceitos
modernos já se encontra presente no tabu.
O ministro Victor Nunes Leal presenteou Carlos Campos no início da década de 40
com a obra magna de Karl Mannheim a ‘Ideologia e Utopia’ e nela Mannheim afirma,
quase como o fizera Carlos Campos, que todo conceito constitue uma espécie de
tabu diante da pluralidade possível de sentidos e por isto unifica e simplifica a vida
em proveito da ação, isto é, da organização da utilidade coletiva mais ampla.
Para Carlos Campos não são todos os conceitos que possuem esta duplicidade de
sentidos, mas apenas aqueles conceitos que valorizam parte do real e obscurecem
outros aspéctos tidos como inconvenientes, desagradáveis, perigosos.
Eu, que me considero um modesto discípulo de meu pai, só tive a ousadia de
criticar, com 27 anos de idade apenas, e de empreender um trabalho de
desmascaramento do maior economista do capitalismo do séc. XX,
porque, desde os 16 anos iniciara a caminhada seguindo a trilha aberta por Carlos
Campos; aquele que levara para a Faculdade de Direito novas perspectivas, o
horizonte que se alargava com a incorporação de outras ciências sociais ao mundo
jurídico e que o clareava com o fulgor das contribuições maiores dos seus colifeus,
de Hegel a Marx, de Levi Brul a Durkaimm, de Morgan a Malinovsky, de Freud a
Jung, de Bacon a Karl Mannheim, de Darwin a Spencer. Não foi, desta forma, difícil
para mim detectar o duplo aspecto, o tabu, contidos nos conceitos fundamentais da
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nova ideologia macro econômica. O pleno emprego de Keynes é na verdade o
ótimo, do ponto de vista do capital, porque a ele corresponde o nível máximo de
lucro e ao mesmo tempo o pior possível a máxima redução do salário real,
achatamento obtido por meio da ação, o novo instrumento colocado a serviço das
finanças públicas. O desenvolvimento econômico contém a mesma dualidade, é
sagrado e profano, amado e odiado. O desenvolvimento econômico, escrevia eu em
tese defendida em Roma em 1958, é o pleno emprego dos pobres e dos
subdesenvolvidos. O desenvolvimento econômico tal como no pleno emprego é a
marca ideológica que contem em seu rosto real a pobreza, a miséria, a maximização
do lucro e da poupança feitos por meio da fome e da exclusão da massa de
trabalhadores. Como o pleno emprego só pode ser obtido, como confessa
Keynes, pelo menos cinco vezes, numa economia de guerra, o desenvolvimento
econômico deveria passar por uma economia ditatorial, militarizada e seu
coroamento revelaria a essência comum que ela guarda com sua matriz
Keynesiana. O resultado final daquele padrão, daquele modelo de desenvolvimento
seria a própria instauração de uma economia de guerra nas economias em
desenvolvimento.
Na década de 40 Carlos Campos percebera com antevisão de décadas em
relação, por exemplo, a Charles Betehaim, especialista na economia soviética, que a
economia de guerra na União Soviética produz uma estratificação social em que os
grupos ligados à produção e ao poderio militar formam uma classe poderosa dentro
da sociedade que se propõe abolir a luta de classes. A tecnocracia limitada e
burocracia restauram sob nova forma, a luta de classes, escrevia Carlos Campos e
com ela, obviamente, os problemas e as crises daquela organização. As fraquezas
do regime soviético reveladas pela Perestroika derivam da economia de guerra que
a organização econômica, política e social da União Soviética reproduziram numa
espécie de mimetismo das sociedades de classe capitalista.
Dizia Agnes que o presente está sempre grávido do futuro, de modo que
quem souber enxergar poderá ver as formas futuras já contidas embrionáriamente
no presente. Não é, pois, de se estranhar a capacidade premonitória do pensamento
de Carlos Campos.
O ministro Oscar Corrêa indicando afinidade e a atração da natureza de
Carlos Campos para as grandes profundidades, afirmou que ele era um
escafandrista intelectual.
Quando em Roma fui apresentado a Georgio Del Vecchio a quem revelei
minha filiação, ele, que foi um dos maiores jurisfilósofos do século me disse: “Lei
porta un grande nome”. “Você é portador de um grande nome. Eu discuto as obras
de seu pai em meu curso aqui em Roma”.
Os comentários de Renè Demogues; o convite de Jean Val para que ele
colaborasse na Revue Metaphisique e Morale; os elogios de Sorieux às suas
contribuições críticas às chamadas formas puras da intuição; de Rafael Bielsa, etc,
mostram que, com dificuldade, sem auxílio e sem apoio a não ser o de sua
companheira Dolores e de seu filho Álvaro, secretário e datilógrafo incansável,
paciente e carinhoso, ele construira um nome e elaborara uma obra que
ultrapassavam as fechadas fronteiras mineiras.
Darci Ribeiro, que usa a pena às vezes como espada contundente e outras
como pincel artístico, como pluma delicada, testemunhou à página 89 do seu livro de
memórias ‘Migo’ o seguinte: “Na Faculdade, ainda rapazola, descobri Carlos
Campos, único sábio verdadeiro que conheci e frequentei. Uma vida toda de ler, de
meditar, amarga e triste vida de uma infelicidade densa que ao se desvelar para
mim, me aterrou, queria ser sábio e probo, mas não tanto”. Esta impressão
aterradora que o sábio Carlos Campos transmitiu a Darci Ribeiro foi a mesma que
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Aliomar Baleeiro me disse certa vez ter sentido ao conhecer meu pai, então seu
colega na Câmara dos Deputados.
Darci Ribeiro não percebeu que a alegria de Carlos Campos morava ao seu
lado, acompanhou durante toda vida, iluminou de riso e amor seu lado ensombreado
e triste e sua alegria se chamava Dolores, olhos de sol, olhar de pura poesia, sorriso
encantado a que as tristezas não podiam resistir. Ela o ajudou em tudo, foi capaz, já
quando o oxigênio faltava e Tânatus o estrangulava através de um enfizema, de
fantasiar-se, de mascarar-se no último carnaval, provocando a curiosidade deles,
dos vizinhos e dos irmãos que moravam perto. Com estas peraltices ela carreava
para dentro da solidão que ele contruíra como um canteiro de obras necessário ao
seu trabalho e o jogo de risos revivificadores de seu ídolo, de seu deus, de seu
companheiro. Ela, que sempre fôra a sua alegria, se convertera em sua vida: “Você
é o oxigênio que eu ainda respiro”, disse no final.
Desejo finalmente, em nome da família Carlos Campos, agradecer a presença
carinhosa dos que aqui vieram testemunhar este evento, principalmente ao ministro
José Paulo Sepúlveda Pertence que teceu os fios de ouro da sua cultura e com a
competência que marcam os trabalhos de sua lavra, este fruto sazonado que foi a
sua oração.
Termino citando um dos autores prediletos de Carlos Campos, Anatole
France: Il n’y a que amply triste
universal de chose. A tristeza do perecimento e
da decadência universais das coisas se transforma subitamente em alegria, prazer e
rejuvenecimento quando o tempo guarda a emoção e o carinho de cerimônias como
esta e revelam seu conteúdo ensolarado como deste céu de Brasília nesta manhã
clara, transparente e amorosa.
A quantos aqui vieram para fazer brilhar ainda mais esta reunião, o
agradecimento da família do professor Carlos Campos.
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Inauguração do Busto do Prof. Carlos Campos na UNB