ALÉM DOS BOLETINS DE OCORRÊNCIA: UMA ANÁLISE DISCURSOS
MIDIÁTICOS SOBRE A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER
Bárbara Nascimento de OLIVEIRA¹*,
1
Universidade Federal de Sergipe, Programa de Pós-graduação em Comunicação e Sociedade – São Cristóvão-SE;
*[email protected];
INTRODUÇÃO
Considerando que a imprensa tem papel central no quesito formação da opinião
pública e que interfere na construção e/ou reprodução de valores simbólicos - que
apreendidos podem reverberar em outras ações e, ainda, que temos em nossa sociedade
diversas mazelas que ferem os direitos humanos, entre elas a negação de igualdade de
direitos à mulher - o presente estudo pretende desbravar essa seara e compreender e
analisar como se relaciona a violência contra as mulheres e a cobertura midiática que
dela é feita no estado de Sergipe.
Alguns conceitos, que servirão de arcabouço para o desenvolvimento do
projeto, precisam ser apropriados. Entre eles a definição teórica de violência de gênero,
que consiste em todo e qualquer engendramento que viole direitos humanos, em
específico a violência contra as mulheres, agrupamento historicamente oprimido pela
cultura do patriarcado. Sendo este uma forma de expressão do poder político dos
homens (SAFFIOTI, 2004, p. 127). Outro fator que devemos levar em conta é a forma
como essa violência se manifesta, quase sempre no espaço privado, [o que] acarreta
prejuízos ainda maiores, pois dificulta a identificação do problema e,
consequentemente, impede a adoção de medidas que visam erradicar esta prática e
promover o direito de as mulheres viverem livre de agressões (SAFFIOTI, 2004, p. 76).
De acordo com o Mapa da Violência de 2012, nos últimos 30 anos a violência
contra a mulher aumentou assustadoramente. Os números de assassinatos,
caracterizados oficialmente como feminicídios, subiram em 230%. Essa demanda exige
uma reflexão sobre o porquê de a violência motivada pelo machismo ser crescente em
nossa sociedade e sinaliza para o entendimento de que as relações de gênero são
culturais e perduram ao longo de nossa história (MACHADO, 1998).
Também é significativa a cobertura midiática feita sobre os casos de violência
contra a mulher, mas o que se percebe - na maior parte das vezes - é que as notícias são
pouco reflexivas e mais parecem repetir relatos contidos nos boletins de ocorrência das
vítimas. Assim, o assunto fica quase que restrito à classificação de pitoresco, de crimes
que chocam, ou se conforma na categoria de fenômenos sociais relativamente ocultos
(SAFFIOTI, 2004). No campo do jornalismo, a limitação das coberturas é justificada
por uma série de fatores: tempo (imediatismo), constrangimentos organizacionais,
rotinas instituídas, entre outros que interferem no texto/produto jornalístico
(TRAQUINA, 2008).
Diante dos índices crescentes de violência contra a mulher e da relevância
social da problemática (seja na perspectiva de direito humano ou ainda de saúde
pública), partiremos da seguinte indagação: Então, qual seria o papel do jornalismo ao
tratar problemas sociais com essa dimensão? São os processos produtivos da notícia que
impõe essa dinâmica superficial à cobertura da violência de gênero? Ou os meios de
comunicação apenas reproduzem de forma semelhante aquilo que já é naturalizado em
nossa sociedade, a violência contra a mulher? Essas perguntas, mais do que motivadoras
desse estudo, são norteadoras da pesquisa que se pretende executar a partir da análise de
dois jornais locais impressos. Um semanário enquadrado no que se define como
jornalismo popular, o Super Popular; e outro diário, o Jornal da Cidade. E, além disso,
tais indagações confirmam que a temática requer um olhar mais aprofundado.
Também é preciso considerar as diferenças regionais no que tange a aceitação
cultural da violência contra a mulher e sua ocorrência. De acordo com o estudo
Violência contra a mulher: feminicídio no Brasil, realizado pelo Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA), que considerou principalmente o período 2009-2011, a
região nordeste é a que apresenta maiores índices de violência contra a mulher e
feminicídio. E o estado de Sergipe ocupa a 18ª posição no ranking de homicídios de
mulheres, como aponta o Mapa da Violência de 2012.
Diante desse cenário e das particularidades culturais do estado, é que se busca
avaliar qual é a parcela de responsabilidade da mídia na configuração da violência de
gênero nesses moldes pouco reflexivos e naturalizados, outrora diagnosticados por
fatores culturais, como apontam estudos sobre a violência de gênero: “é obvio que a
sociedade considere normal e natural que homens maltratem suas mulheres, assim como
que os pais e mães maltratem seus filhos, ratificando, deste modo, a pedagogia da
violência” (SAFFIOTI, 2004, p.74).
Tendo em vista que “os valores-notícia são um elemento básico da cultura
jornalística que os membros dessa comunidade interpretativa partilham. [E que] servem
de ‘óculos’ para ver o mundo e para o construir” (TRAQUINA, 2008, p. 94), objetivase empreender uma análise sobre a cobertura midiática da violência de gênero,
buscando apreender que valores-notícia permeiam este tipo de cobertura e averiguar
como é desenvolvida a cobertura midiática dos casos de violência contra a mulher nos
jornais Super Popular e Jornal da Cidade e quais implicações sociais essa cobertura traz
para o quadro da violência contra a mulher no estado de Sergipe.
Além disso, espera-se contribuir para visualização de outras possibilidades de
intervenção midiática, que potencializem a desnaturalização e a superação do cenário
atual.
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
O conjunto de valores que determinam se certo assunto tem a capacidade de ser
elaborado e transformado em notícia carrega a alcunha de critérios de noticibilidade.
Esses valores-notícia são apreendidos no processo de produção da pauta. É fato que a
temática da violência contra a mulher tenha elementos suficientemente relevantes para
justificar a sua constante aparição na imprensa, mas o que pretendemos explorar aqui é
como essa abordagem é feita, segundo que preceitos jornalísticos, políticos e sociais.
Por outro lado, percebe-se que essa cobertura midiática é repetitiva, muita das vezes
sensacionalista e não nos apresenta novos elementos. TRAQUINA (2005) relaciona tal
previsibilidade da mídia ao próprio modus operandi do jornalismo:
A previsibilidade do esquema geral das notícias deve-se à existência de
critérios de noticiabilidade, isto é, à existência de valores notícia que os
membros da tribo jornalística partilham. Podemos definir o conceito de
noticiabilidade como o conjunto de critérios e operações que fornecem a
aptidão de merecer um tratamento jornalístico, isto é, possuir valor como
notícia (TRAQUINA, 2005, p. 63).
Considerando a existência de valores-notícia, a pesquisa visa compreender
como esses valores se relacionam e se retroalimentam na produção de matérias, notas e
reportagens que abordem a violência contra a mulher.
Sob a ótica e as contribuições da Teoria do Agendamento (agenda setting), que
também pode ser traduzida como “a capacidade de a mídia criar e sustentar a relevância
de um tema” (WOLF, 2005, p. 142):
O procedimento padrão desse tipo de pesquisa prevê uma comparação entre a
agenda da mídia e a do público: uma medida agregada do conteúdo dos
meios de comunicação é confrontada com uma medida agregada dos
conhecimentos possuídos pelos destinatários. (WOLF, 2005, p. 167).
Tal reflexão exige, para a compreensão da ação da imprensa, a própria
compreensão acerca dos destinatários e de seus conhecimentos sobre a pauta a ser
debatida. Trata-se de uma relação complexa, que pode tender à reprodução de valores
arraigados na sociedade. A elaboração de FILHO (1987) nos ajuda a construir uma
percepção melhor elaborada sobre implicações do fazer jornalístico.
Assim como cada disciplina científica constrói os fatos com os quais
trabalha, a notícia é a unidade básica de informação do jornalismo. São
os fatos jornalísticos, objeto das notícias, que constituem a menor unidade de
significação. O jornalismo tem uma maneira própria de perceber e produzir
"seus fatos". Sabemos que os fatos não existem previamente como tais.
Existe um fluxo objetivo na realidade, de onde os fatos são recortados e
construídos obedecendo a determinações ao mesmo tempo objetivas e
subjetivas (FILHO, 1987, p. 184).
Para tanto, as contribuições da sociologia e das ciências sociais em geral nos
auxiliam no entendimento, sobretudo, no que tange a produção social de sentido. Até
porque a própria concepção social de gênero perpassa por diferentes áreas
(MACHADO, 1998). Essa passagem por estudos sociológicos nos fornecerá subsídios
para um melhor domínio acerca da construção da categoria social de mulher. Sobretudo,
porque assimilar esses processos enquanto construções que refletem visões culturais do
contexto social é caminhar para a possibilidade de reconstruções.
Como apontam as contribuições da socióloga Heleieth Saffioti, cujas pesquisas
abordam a naturalização da opressão e hierarquização de gênero em nossa sociedade:
Efetivamente a questão se situa na tolerância e até no incentivo da sociedade
para que os homens exerçam sua força-potência-dominação contra as
mulheres, em detrimento de uma virilidade dócil e sensível, portanto mais
adequada ao desfrute do prazer. O consentimento social para que os homens
convertam sua agressividade em agressão não prejudica, por conseguinte,
apenas as mulheres, mas também a eles próprios (SAFFIOTI, 2004, p. 75).
A autora considera que, de modo geral, as mulheres - especialmente quando
são vítimas de alguma violência - recebem o tratamento de “não-sujeitos”, isso porque
são vistas como passivas, que consentem a violência. Quando, na verdade, estão em
condição de fragilidade acarretada pelo próprio ato violentador, que oprime e reduz a
autonomia das mulheres. Partindo dessa reflexão, indagamos que papel cumpre uma
cobertura midiática pouco aprofundada e que explora o ato violento de forma pontual,
secundarizando os fatores psicossociais que mantêm os índices de violência em escala
crescente, referendando na mídia o tratamento mencionado.
Tal indagação sobre o papel da mídia implicará numa análise do próprio fazer
jornalístico. Será considerado o fator tempo, que condiciona todo o processo de
produção das notícias e que serve à celeridade e à demanda do mercado, e ao mesmo
passo faz com que outros fatores igualmente importantes para a noticiabilidade dos
fatos, sobretudo aqueles de profundo interesse público, fiquem em segundo plano. Outra
questão que deve ser levada em consideração diz respeito às fontes que os veículos
consultam quando dos casos de violência contra a mulher. Restringem-se às vítimas
e/ou às fontes oficiais (delegacia da mulher, secretarias de governo), ou garantem a
participação de outras vozes (organizações feministas, profissionais da saúde)?
Refletir sobre essa problemática, portanto, envolve a própria análise da rotina
do jornalista, o processo de produção, o deadline, entre outros fatores, observação que
se faz crucial por entendermos a comunicação como um espaço de produção de valor
simbólico e de reprodução/manutenção de um modelo societário. Nos ditos de Pierre
Bourdieu (1996 apud TRAQUINA, 2008), cada profissão - com sua dinâmica própria
de funcionamento - é responsável por produzir uma determinada ideologia. Cabendo
ainda ressaltar que:
As definições do que é notícia estão inseridas historicamente e a definição da
noticiabilidade de um acontecimento ou de um assunto implica um esboço da
compreensão contemporânea do significado dos acontecimentos como regras
do comportamento humano e institucional (TRAQUINA, 2008, p. 95).
A conformação de perspectiva teórica desse projeto perpassa por um campo
literário que compreende as teorias do jornalismo e da comunicação, bem como
contribuições do campo sociológico, por entender que o diálogo entre tais campos do
saber poderá constituir as bases para traçar análises de dimensões críticas e
aprofundadas sobre o objeto a ser estudado.
MATERIAL E MÉTODOS
Apresentada a temática e os objetivos do trabalho, e considerando que se trata
de um tema de relevância e recorrência nos veículos midiáticos, a pesquisa fará uso da
Análise de Conteúdo dos dois jornais impressos (Super Popular e Jornal da Cidade) para
aferir a abordagem do tema – violência de gênero – e diagnosticar correlações ou
distinções entre os veículos.
O recorte temporal para a análise dos jornais será de 90 dias, englobando os
meses de julho, agosto e setembro de 2013 - período em que se pôde notar uma forte
incidência na mídia de casos de violência doméstica e violência de gênero, de modo
geral, em espaços públicos e privados no território sergipano.
A metodologia parece contribuir para a construção de conhecimento
socialmente relevante ou, como aponta Peruzzo (2005, p. 131), “Junta-se, pois, a
intenção também presente em outras áreas de conhecimento, de não se fazer pesquisa
pela pesquisa, mas uma pesquisa que pudesse contribuir para o processo de mudança
social”.
Considerado o material a ser analisado (matérias de dois veículos impressos no
período de 90 dias), a pesquisa será desenvolvida tomando as seguintes contribuições:
Desde a sua presença nos primeiros trabalhos da communication research às
recentes pesquisas sobre novas tecnologias, passando pelos estudos culturais
e de recepção, esse método tem demonstrado grande capacidade de adaptação
aos desafios emergentes da comunicação e de outros campos do
conhecimento. (FONSECA JR, 2005, p. 280).
A partir da análise de conteúdo será possível constituir um mapeamento
qualificado do objeto de estudo. Esse método de pesquisa será priorizado por sua função
de inferência (BARDIN, 1998 apud DUARTE, 2005, p. 283) e será trabalhado a partir
de indicadores que dizem respeito ao conjunto de valores que permeiam os critérios de
noticiabilidade (WOLF, 2005), e assim determinam a seleção dos acontecimentos e a
sua construção enquanto notícia (TRAQUINA, 2008).
Vale-se desse método entendendo que não pode haver dicotomia entre o
método (averiguação) e o conteúdo da pesquisa (fundamentação) sob pena de traçarmos
análises de conteúdo escassas em contribuições sociais.
Essa tipologia metodológica é aplicada às pesquisas, através de palavras
indutoras, categorias, métodos de comparação e aferição e afins, elementos variáveis de
acordo com o estudo em desenvolvimento. E ainda destacam-se as inferências das
amostragens através de questionários e entrevistas, um método clássico, porém bastante
atual. Esses elementos somados dão corpo a um campo de pesquisa em Comunicação
que tem como premissa averiguar efeitos e relações entre os produtos e a população que
os consome (BARDIN, 1977).
Outros elementos serão auxiliares para a condução dessa pesquisa, como a
análise morfológica das páginas dos jornais dedicadas ao tema (tamanho das matérias,
fotos, ilustrações, etc.).
Como fonte complementar de dados, será feita a aplicação de questionários no
desenvolvimento da pesquisa, por dois objetivos: apreender que elementos são levados
em consideração no ato da produção da notícia (valores-notícia, ethos profissional,
valoração de ordem pessoal, senso comum) e como o público assimila o conteúdo
informativo dos jornais Super Popular e Jornal da Cidade. De modo que dois
questionários serão elaborados e aplicados em grupos distintos. O primeiro grupo
configura-se por profissionais da comunicação (repórteres, editores, fotógrafos) dos
veículos em questão, o segundo será composto pelo público leitor desses veículos.
A opção pelos questionários decorreu da busca de maior eficácia na análise:
permitirá compreender, a partir desse nicho específico (profissionais do Super Popular e
Jornal da Cidade), como se desenvolve na práxis aquilo que se convencionou a chamar
de cultura jornalística; e com relação aos leitores, poderá ser observada como se dá a
produção de sentido a partir da mensagem, ou seja, dos textos jornalísticos que
discorrem sobre a violência contra a mulher.
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Disponível
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