PERIQUITO EL AGUADOR E O PROJETO DE LITERATURA NACIONAL DE JUAN
CARLOS ONETTI
Viviane Monteiro Maroca (UFMG)
É notório que a obra Juan Carlos Onetti seja um marco na literatura de seu
país e continente por articular uma estética existencialista com uma literatura urbana.
Onetti começa a publicar em 1933, e seu primeiro romance, O poço, é editado pela
primeira vez em 1939, ano em que é lançado o célebre semanário Marcha de
Montevidéu. Onetti é convidado por Carlos Quijano, fundador de Marcha, para assumir
o ofício de secretário de redação do semanário desde seu primeiro número (de 23 de
junho de 1939), onde permanecerá até 1941. O escritor também foi responsável pela
coluna de crítica literária de Marcha, cargo que viria a ser ocupado por importantes
intelectuais do país ao longo dos 35 anos de existência do jornal, como Angel Rama e
Emir Rodríguez Monegal.
Uma das colunas que Onetti publica, La piedra en el charco, sob o
pseudônimo de Periquito el Aguador, representou, como VERANI (1996) e ROCCA
(1992) notam, um marco para a literatura do país, que não havia produzido, até então,
obras importantes de vanguarda. Já em 1968, recorda-se de ter dito a Quijano que
desconhecia a existência de uma literatura nacional na ocasião da fundação do
semanário (ONETTI, 2009: 353) e, com sua coluna, visava “apedrejar semanalmente o
charco vazio das letras” de seu país.
É curioso como a noção de literatura nacional emerge do discurso de Onetti.
A princípio soa como uma simples generalização, mas sua constante reiteração ao
longo da publicação – não precisamente semanal – de La piedra en el charco leva a
indagar o que seria nacional aos olhos de Onetti.
Nos dias de hoje, pensar em literatura em termos de nação pode soar
anacrônico, visto que a noção de fronteira parece abstrata em um mundo globalizado
no qual a informação atravessa o globo instantaneamente. Mas a ideia de uma
literatura nacional sempre acompanhou a necessidade de afirmação de um Estadonação.
Frederick Jameson, em Third world literature in the Era of Multinational
Capitalism, de 1986, instala uma polêmica ao afirmar que “todos os textos do terceiro
mundo são necessariamente, discutirei, alegóricos, e de um modo muito específico:
devem ser lidos como o que chamarei de alegoria nacional.” (JAMESON, 1988, p.69).
Indistintamente, haveria esta via de leitura para os textos produzidos nos países de
terceiro mundo.
As respostas a Jameson não demoraram a aparecer, e a de Aijaz Ahmad veio
sob o título de A retórica da alteridade de Jameson e a “alegoria nacional”. Ahmad
expressa seu incômodo com o fato de que, para Jameson, o primeiro e o segundo
mundo sejam estabelecidos segundo seus sistemas de produção (capitalismo e
socialismo), enquanto terceiro mundo é definido “em termos de uma ‘experiência’ de
fenômenos inseridos externamente. Aquilo que é constitutivo da própria história
humana estará presente nos dois primeiros casos, ausente no terceiro” (AHMAD,
1998: 161), sendo ao terceiro mundo relegado o posto de objeto da história do
primeiro mundo. Além disso, Ahmad questiona se, de fato, todos os textos produzidos
em países que foram colonizados seriam textos de terceiro mundo em virtude,
exclusivamente, de sua localização geográfica, e alega que a alegorização não é
específica do terceiro mundo se se pensarem as relações entre público e privado,
pessoal e comunal. A extensa crítica não se restringe a esses pontos, mas aponta o
quão reducionista e empobrecedora pode ser a leitura de Jameson.
É incômodo o vínculo estreito que Jameson impõe aos países colonizados
com as metrópoles, que ainda implica certa inferioridade e subserviência ao “primeiro
mundo”. Contudo, de modo distinto, é interessante a leitura de Doris Sommer que
apresenta a possibilidade de ler algumas obras latino-americanas do século XIX como
alegorias da nação. Elas seriam obras fundadoras da nação, no momento em que os
países latino-americanos iam se tornando independentes. Sommer nota que “os
romances românticos caminham de mãos dadas com a história patriótica na América
Latina”, e que “a paixão romântica (...) forneceu uma retórica para os projetos
hegemônicos, no sentido gramsciano de conquistar o adversário através do interesse
mútuo, ou do ‘amor’, ao invés da coerção” (SOMMER, 2004: 21).
Gourgouris corrobora em partes com a posição de Sommer:
Enquanto forma, a nação é fundamentalmente ininteligível. Ou,
mais precisamente: uma nação não pode ser lida como um
texto; inclusive se tivesse (ou produzisse) sentido, deveríamos
desconfiar dele. É por isso que é decisivo perceber a natureza
formal da nação como semelhante à de um sonho. Atribuir ao
imaginário nacional as características de uma exclusiva
formação discursiva não é justo para com sua complexidade. A
ênfase deve mudar de uma nação-como-texto a uma naçãocomo-sonho, o que quer dizer que aqueles textos que portam a
marca da nação podem, em definitivo, ser vistos como
descrições dos pensamentos do sonho da nação[...].
(GOURGOURIS apud ACHUGAR, 2006: 23)
Achugar (2006) concorda com Gourgouris, em Dream Nation, que a nação
não poderá ser reduzida a um conjunto de práticas e leituras predeterminadas, mas
essas leituras deverão dialogar e coexistir com outros projetos de leitura diferentes.
Portanto, concorda-se com Achugar quando diz que: “a construção da nação realizada
por determinados textos, ou discursos, ou por determinados sujeitos sociais, é
passível de ser substituída por outras e implica, de fato, uma leitura incompleta e
parcial; ou seja, inesgotável” (2006: 231), já que, como afirmará mais à frente, ainda
no ensaio Direitos de memória, sobre independências e estados-nação na América
Latina, “esses relatos[...] constroem ‘mundos paralelos’ que, geralmente, dizem mais
dos lugares a partir de onde se narra e da posição de quem narra, do que dos fatos
que descrevem.” (235). Os textos ou práticas discursivas não devem ser
compreendidos como “nação-como-texto”, mas como sonho, porque a nação não pode
ser redutível ou delimitada.
A tentativa de homogeneização de textos e nações nasce do projeto de
Goethe de Weltliteratur. Retomando o diálogo entre Goethe e Eckerman de 1827,
Hugo Achugar (2006: 65-80) já aponta alguns dos conflitos que compõem o que
chama de “a cena primordial da história da literatura contemporânea do Ocidente”: as
relações entre cosmopolitismo e exotismo; localismo e universalismo, estranheza e
universalidade. Nesta cena, Achugar mostra que o movimento homogeneizador em
questão trata de dirimir as especificidades dos textos e suas diferenças culturais,
visando a inseri-los em um todo “razoavelmente burguês”. Neste contexto, surge a
primeira formulação do conceito de Weltliteratur – traduzida como literatura mundial,
universal e até mesmo literatura cosmopolita – que já nasce como antagônica à
literatura nacional. Vale frisar que, para Goethe, a literatura mundial seria produto de
um trabalho coletivo entre franceses, ingleses e alemães.
O conceito de Weltliteratur surge no momento em que se tornavam estadosnação as ex-colônias americanas, e Achugar atenta para a seguinte condição: o que
se costumou chamar de universal surgiu, como argumenta Judith Butler, nos discursos
de esquerda que notaram o uso do termo a serviço do colonialismo e do imperialismo;
ela teme que o que tem sido chamado de universal é a provinciana propriedade da
cultura dominante. Ou, em outras palavras, o ocidentalismo. Em consonância com o
que Walter Mignolo (2003) chama de sistema mundial colonial/moderno (a
modernidade foi concebida em termos de progresso, de cronologia e da superação de
um estágio anterior), a pós-colonialidade não é uma superação da colonialidade, mas
uma reorganização de seus alicerces. Ela não é um significante vazio que apenas
homogeneíza e acomoda os “elementos restantes” do processo de descolonização, e,
sim, está entranhada em cada história local, conectando-as e inserindo-as em um
projeto universal. Mas Mignolo considera a expressão pós-colonial problemática para
ser aplicada às práticas culturais dos séculos XIX e XX na América Latina, preferindo o
termo pós-ocidentalismo para esse contexto.
Este termo pós-ocidental, de reorganização de uma nova epistemologia
latino-americana, ainda não tocará o período a partir do qual Onetti escreve sua crítica
em Marcha. Mas entender a relação intrínseca – se não a sinonímia - entre
universalismo e ocidentalismo parece imprescindível para o problema que ora se
apresenta.
O primeiro artigo de Periquito el Aguador, Señal, apresenta “a ostensiva
depressão literária que caracteriza os últimos anos da atividade nacional. (...)As letras
seguem destilando-se das antigas e deslizantes plumas”(ONETTI, 2009: 355), o que
induziria a pensar que o Uruguai seria um país fantástico, onde teria desaparecido a
juventude e o relógio marcasse sempre a mesma hora. Ainda, atribui esse marasmo
ao momento que vive o país – o golpe de estado de Gabriel Terra –, que exige que
todas as forças sejam direcionadas à política.
A princípio, poder-se-ia ter a impressão de que o nacional trataria apenas de
uma questão territorial: a literatura produzida dentro das fronteiras do estado-nação
uruguaio. Mas o final do texto sinaliza para uma questão muito cara a La Piedra en el
charco: “virgens territórios literários da cidade e do campo1oferecem sua mais estreita,
mas profunda riqueza sentimental aos mais novos passageiros.”(356) Mas, na semana
seguinte, vem a proposta de “esboçar o futuro desejável para a literatura uruguaia”:
Hemos hablado de nuestras gentes y lugares, frondosamente,
sin perdonar nada. Pero no hay aún una literatura nuestra, no
tenemos un libro donde podamos encontrarnos. Ausencia que
puede achacarse al instrumento empleado para la tarea. El
lenguaje es, por lo general, un grotesco remedo del que está
de uso en España o un calco de la lengua francesa, blanda,
brillante y sin espinazo. No tenemos nuestro idioma; por lo
menos, no es posible leerlo. La creencia de que el idioma
platense es el de los autores nativistas resulta ingenua, de puro
falsa. No se trata de tomar versiones taquigráficas para los
diálogos de los personajes. Esto es color local, al uso de
turistas que no tenemos. Se trata del lenguaje del escritor;
cuando aquél no nace de su tierra, espontáneo e inconfundible,
como un fruto del árbol, no es instrumento apto para la
expresión total. No hay refinamiento del estilo capaz de suplir
esta impotencia ingénita. (ONETTI, 2009: 357. grifos meus)
Agora, a constatação do problema vai além: não há uma literatura uruguaia
porque não há um livro em que os uruguaios podem se encontrar. Seja por uma
linguagem imitada da França ou da Espanha, seja por se crer erroneamente que o
idioma platense era aquele utilizado pelos autores nativistas. A autenticidade nacional
da linguagem e da língua são elementos imprescindíveis para o projeto de Onetti,
somada ao “espíritu nuestro”. Do que precisaria a literatura rioplatense é uma voz que
1
Grifo nosso.
diga “simplesmente quem e que somos, capaz de dar as costas a um passado artístico
irremediavelmente inútil e de aceitar despreocupada o título de bárbara.” Aqui parece
se esboçar melhor a questão do nacionalismo, desta vez, contudo, um “nacionalismo
platense”. Mas o que soa ainda mais curioso é que Onetti também reclame a sua
condição de bárbaro. Principalmente porque a narrativa urbana é um dos principais
aspectos dessa nova estética nacional que estaria por vir e que reclamava Onetti, e a
barbárie remete, imediatamente, à vida nos pampas e, no âmbito da literatura, à
gauchesca.
Para o autor, o fato de a literatura ser gauchesca não é um problema por si
só:
Declaramos en voz alta – para que se nos oiga en toda orilla
del charco que apedreamos semanalmente – que si Fulano de
Tal descubre que el gaucho Santos Aquino, de Charabón
Viudo, sufre un complejo de Edipo con agregados narcisistas, y
se escribe un libro sobre ese asunto, nos parece que obra
perfectamente bien. (ONETTI, 2009: 368)
O problema seria a falta de familiaridade do autor Fulano de Tal com
Charabón Viudo, com o paisano Aquino e seu complexo. E, ainda, a persistência de
autores que nunca saíram de Montevidéu, queriam fazer uma literatura nacional e
teimavam em escrever sobre ranchos de totora, velórios de angelitos e épicos rodeos.
Um outro ponto que incomodava a Onetti no que toca a literatura gauchesca é sua
repetição, a que chamará de “retórica literária”, e relativa também à repetição de
temas não nacionais. Para Periquito el Aguador, ela havia se tornado retórica, assim
como a literatura de vanguarda que vinha se fazendo no continente. Ainda, a questão
da vanguarda representava outra questão para Onetti, que dizia respeito também a
imitar moldes europeus: “Darío entró de saco a Verlaine y, seguidamente, los bardos
tropicales de entonces se inspiraron en el que fuera llamado [...] ‘primer poeta de
América’.” (ONETTI, 2009: 359).
Para Néstor García Canclini (2003: 67) “os movimentos de vanguarda foram
‘transplantes’, ‘enxertos’, desvinculados da realidade latino-americana” e que, em
realidade, teriam atrasado a entrada da América Latina na modernidade literária:
[...] o cubismo e o futurismo correspondem ao entusiasmo
admirado da primeira vanguarda frente às transformações
físicas e mentais provocadas pelo primeiro auge da
mecanização; o surrealismo é uma rebelião contra as
alienações da era tecnológica; [...] Temos praticado todas
essas tendências na mesma sequência que na Europa, quase
sem ter entrado no “reino do mecânico” dos futuristas, sem ter
chegado a nenhum apogeu industrial[...]. (YURKIEVICH apud
GARCÍA CANCLINI, 2003: 70)
García Canclini acredita que nossos países realizam mal e tarde o modelo
metropolitano de modernização e distingue a modernização do modernismo, o qual
“não é a expressão da modernização socioeconômica, mas o modo como as elites se
encarregam da intersecção de diferentes temporalidades históricas e tratam de
elaborar com elas um projeto global. (GARCÍA CANCLINI, 2003: 73). De igual forma, o
apego às vanguardas europeias representa para Onetti um atraso no desenvolvimento
das letras do país.
A relação de Onetti com o pintor Joaquín Torres García é de amizade pessoal
e de afinidade estética. O elogio ao pintor em La piedra en el charco assume também
um caráter de defesa de sua obra, “corajosa, independente”, e Onetti reclama, em
1940, faltar um escritor que seja para as letras uruguaias o que Torres García é para
as artes plásticas.
Em Universalismo, Torres declara o fim do período de colonização e
importação de cultura, tendo rompido com a arte de vanguarda da Europa e o velho
academicismo, e afirma que o artista uruguaio não deve trocar o que é próprio de sua
cultura pelo que lhe é alheio (o que seria snobismo); seria possível, contudo, fazer do
alheio substância própria. “fora! com aquele que, literariamente, fale outra linguagem
que não a nossa natural (e não digo crioula).” (TORRES GARCÍA apud ACHUGAR,
2006: 293). Em Nosso norte é o Sul, ensaio dedicado a Torres García, Hugo Achugar
observa que Borges irá substituir o crioulismo por um americanismo cosmopolita,
diferente de Torres, quem rompe com uma representação colonizada e vai para uma
representação da positiva originalidade uruguaia. (ACHUGAR, 2006: 295)
Para Onetti, entrar na cidade e deixar para trás o campo era algo que estava
intimamente ligado ao projeto de uma literatura de cunho universal. Assim como
Onetti, Torres García pensava que o povo uruguaio tem um caráter próprio, e
Montevidéu também, diferenciando o Uruguai de outras nações. (TORRES GARCÍA
apud ACHUGAR, 2006: 293)
A urbanização dos países da América Latina em fins do século XIX/início do
século XX trazem uma nova perspectiva à vida nacional, como nota Periquito el
Aguador:
La llegada al país de razas casi desconocidas hace unos años;
la rápida transformación del aspecto de la ciudad, que levanta
un rascacielos al lado de una chata casa enrejada; la evolución
producida en la mentalidad de los habitantes – en algunos, por
lo menos, permítasenos creerlo – después del año 33; todo
esto tiene y nos da una manera de ser propia. Por qué irse
buscar los restos de un pasado con el que casi nada tenemos
que ver y cada día menos, fatalmente? (…)Es necesario que
nuestros literatos miren alrededor suyo y hablen de ellos y su
experiencia. Que acepten la tarea de contarnos cómo es el
alma de su ciudad. Es indudable que, si lo hacen con talento,
muy pronto Montevideo y sus pobladores se parecerán de
manera asombrosa a lo que ellos escriban. (ONETTI, 2009:
368)
Os novos aspectos arquitetônicos da cidade, a nova vida política, os novos
habitantes, todos eles podem ser narrados, pelo novo escritor uruguaio. Esta é uma
mudança muito significativa no âmbito da literatura do país, que não abrigaria, até
então, dramas psicológicos, crises existenciais, a cidade, imigrantes. Agora, fala-se de
política internacional em Montevidéu, estrangeiros caminham pela cidade, os
imigrantes fazem parte da paisagem urbana de onde seus narradores escrevem; eles
nomeiam seus personagens: Díaz Grey, Larsen, Owen, Molly, Kirsten, Chapars, Baldi,
Samuel Freider, e isso ainda significa fazer literatura nacional.
Este aspecto era impensável alguns anos antes, como mostra Achugar (2006:
232), para o escritor Zorilla de San Martín e o pintor Blanes – marcos do nacionalismo
estético de fins do século XIX no Uruguai – que constituíram “uma projeção do sonho
da nação onde se construiu ‘um corpo da pátria’ que buscava evitar o risco, ou o
terror, desse Outro que constituíam os estrangeiros – aumento da migração – e o
impulso dos desejos ou das pulsões individuais.” (ACHUGAR, 2006: 232)
A predominância de uma narrativa neonaturalista entre as décadas de 1920 e
1930 somada à pouca expressividade – ou quase inexistência - de obras literárias de
vanguarda no Uruguai apontam para uma “paradez cansada” da literatura nacional,
nas palavras de Onetti, e divergem do movimento modernista/vanguardista que estava
em vigor na América Latina. O processo modernizador da literatura uruguaia, portanto,
parece se dar de forma distinta. Tal processo – se comparado a outras literaturas
nacionais latino-americanas do período em questão - talvez se dê de modo distinto
justamente por não tentar evocar a imagem do indígena (ou do negro)2 e, ainda, por
combater a figura do gaucho como o herói nacional. O caráter de localidade da
gauchesca privaria a literatura uruguaia – aos olhos de Onetti – de adquirir o status de
universal, única via concebida por ele para adentrar uma modernidade literária. Ainda,
La piedra en el charco propõe a recusa ao uso do castelhano corrente na Espanha tal como ocorre nos movimentos vanguardistas de outros países hispano-americanos mas também rechaça o idioma utilizado por autores nativistas uruguaios, por não
corresponder ao espanhol que se falava em Montevidéu naquela época. O
reconhecimento da urbanidade do país por meio de sua representação na literatura
2
Considerando-se que as duas etnias tenham sido praticamente extintas do país, a primeira,
na ocasião da dominação pelos espanhóis e da consolidação da república uruguaia; a
segunda, no momento da independência da Espanha, em que os escravos negros foram
colocados em guerra. Hoje se estima que 4% da população do país seja negra. Acerca da
monumentalização da memória dos índios Charrúas, ver ACHUGAR, 2006, p. 185-197)
seria para Onetti uma reivindicação decorrente do fato de mais da metade da
população uruguaia já viver na capital do país naquela época. No entanto, parece um
pouco controverso que a reivindicação de uma nova literatura, independente e
modernizada, reclame justamente o espaço urbano para se desenvolver. Para Angel
Rama,
(...) a cidade latino-americana tem sido um parto da
inteligência, pois ficou inscrita em um ciclo da cultura universal
em que a cidade passou a ser o sonho de uma ordem e
encontrou nas terras do Novo Continente o único lugar propício
para encarnar.
Os próprios conquistadores que a fundaram perceberam
progressivamente ao longo do século XVI que tinham se
afastado da cidade orgânica medieval na qual tinham nascido e
crescido para entrar em uma nova distribuição do espaço que
enquadrava um novo modo de vida, o qual já não era o que
haviam conhecido em suas origens peninsulares. Tiveram que
se adaptar dura e gradualmente um projeto que, como tal, não
esconde sua consciência racionalizadora, não sendo suficiente
para ela organizar os homens dentro de uma repetida
paisagem urbana, pois também requeria que fossem
emolduradas/moldadas com destino a um futuro também
sonhado de uma maneira planejada, em obediência às
exigências colonizadoras, administrativas, militares, comerciais,
religiosas, que iriam se impor com crescente rigidez. (RAMA,
2004: 35)
Seria possível que a cidade, que representara a ordem e a dominação, agora
seria o espaço da liberdade? Em que medida é possível ser independente no seio da
cidade ordenada? Seria a cidade modernizada ainda como a cidade ordenada? Sabese que a cidade modernizada contemplava que jornalismo garantisse não só uma
respiração independente aos intelectuais, mas também o desenvolvimento do
pensamento de oposição (RAMA, 2004: 148). Em um momento não mais de
dominação
espanhola,
haveria
ainda
subserviência
intelectual
aos
países
hegemônicos?
Se a literatura não consegue de fato ser independente, pois trará sempre
essa chaga da colonização, o que se vê em Onetti é a entrada em um outro momento
da modernidade literária. É possível que ela esteja integrada em projeto
homogeneizador universal, mas não se insira ainda em uma nova práxis
espistemológica pós-ocidental.
Pois bem, o discurso de fundação de Onetti acerca de uma nova literatura
uruguaia parece localizar-se num interstício, nesse momento que não é mais, pois não
se identifica com os projetos de vanguarda nacionalistas - mas que ainda não é,
porque ainda não se insere por completo em uma lógica global. Os artigos de Onetti
em Marcha falam também de política internacional. Fala-se da guerra. Em um artigo,
Periquito afirma viver e seguir a guerra telegráfica entre a Sigfrido e a Maginot. Além
disso, o porto de Montevidéu é um lugar de passagem de vários estrangeiros.
O Uruguai sabe do mundo na ocasião da escrita de La piedra en el charco,
mas quem sabe do Uruguai? O reconhecimento tardio de Onetti daria mais força ao
argumento de que a voz da periferia – não só a voz crítica – é, como diz Hugo
Achugar, um balbucio? Algumas dessas questões só podem ser respondidas tendo
em vista ficção do autor.
Voltando à questão que orienta este trabalho, o que seria o nacional para
Onetti? Em um trabalho anterior, propus pensar algumas ressonâncias que a crítica do
autor tem em sua produção ficcional. Penso que no projeto de literatura de Onetti, ser
nacional não é estar inserido em uma alegoria de nação; não é ser nacionalista. É
estar em solo uruguaio e lutar para que as idiossincrasias regionais de seu país
possam ser narradas, em idioma platense, mas que todos esses aspectos sejam um
suplemento ao universal. Não é mais necessário trazer o gaucho para a narrativa para
ser uruguaio.
REFERÊNCIAS
ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca. Trad. Lisley Nascimento. Belo Horizonte:
UFMG, 2006.
AHMAD, Aijaz. A retórica da alteridade de Jameson e a “alegoria nacional”. In: Novos
Estudos Cebrap. São Paulo, n.22. p.157-182, out, 1988.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima
Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da
modernidade. São Paulo:Edusp, 2003.
HALL, Stuart. Da diáspora. trad. Adelaine La Guardia Resende [et.al.].Belo Horizonte,
UFMG, 2008.
JAMESON, Frederic. Third World Literature in the Era of Multinational Capitalism.
Social uuuext. New York, n.15, p.65-88, Fall 1986.
MIGNOLO,
Walter.
Histórias
locais/projetos
globais.
Colonialidade,
saberes
subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença. trad. Eliana Lourenço de Lima Reis,
Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2001.
ONETTI, Juan Carlos. Obras completas III. Cuentos artículos y miscelánea. Barcelona:
Galáxia Gutenberg, 2009b.
RAMA, Angel. La ciudad Letrada. Santiago: Tajamar, 2004.
ROCCA, Pablo. 35años en Marcha. Crítica y literatura en Marcha y en el
Uruguay
(1939-1974). Montevideo: División Cultural de la I.M.M., 1992.
SOMMER, Doris. Ficcções de fundação – Os romances nacionais da América Latina.
Belo Horizonte, UFMG, 2004. Trad. Gláucia Renate Gonçalves & Eliana Lourenço de
Lima Reis.
VERANI, Hugo J.De la vanguardia a la posmodernidad: Narrativa Uruguaya (19201945). Montevidéu: Ediciones Trilce/Librería Linardi y Risso, 1996.
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