PERIQUITO EL AGUADOR E O PROJETO DE LITERATURA NACIONAL DE JUAN CARLOS ONETTI Viviane Monteiro Maroca (UFMG) É notório que a obra Juan Carlos Onetti seja um marco na literatura de seu país e continente por articular uma estética existencialista com uma literatura urbana. Onetti começa a publicar em 1933, e seu primeiro romance, O poço, é editado pela primeira vez em 1939, ano em que é lançado o célebre semanário Marcha de Montevidéu. Onetti é convidado por Carlos Quijano, fundador de Marcha, para assumir o ofício de secretário de redação do semanário desde seu primeiro número (de 23 de junho de 1939), onde permanecerá até 1941. O escritor também foi responsável pela coluna de crítica literária de Marcha, cargo que viria a ser ocupado por importantes intelectuais do país ao longo dos 35 anos de existência do jornal, como Angel Rama e Emir Rodríguez Monegal. Uma das colunas que Onetti publica, La piedra en el charco, sob o pseudônimo de Periquito el Aguador, representou, como VERANI (1996) e ROCCA (1992) notam, um marco para a literatura do país, que não havia produzido, até então, obras importantes de vanguarda. Já em 1968, recorda-se de ter dito a Quijano que desconhecia a existência de uma literatura nacional na ocasião da fundação do semanário (ONETTI, 2009: 353) e, com sua coluna, visava “apedrejar semanalmente o charco vazio das letras” de seu país. É curioso como a noção de literatura nacional emerge do discurso de Onetti. A princípio soa como uma simples generalização, mas sua constante reiteração ao longo da publicação – não precisamente semanal – de La piedra en el charco leva a indagar o que seria nacional aos olhos de Onetti. Nos dias de hoje, pensar em literatura em termos de nação pode soar anacrônico, visto que a noção de fronteira parece abstrata em um mundo globalizado no qual a informação atravessa o globo instantaneamente. Mas a ideia de uma literatura nacional sempre acompanhou a necessidade de afirmação de um Estadonação. Frederick Jameson, em Third world literature in the Era of Multinational Capitalism, de 1986, instala uma polêmica ao afirmar que “todos os textos do terceiro mundo são necessariamente, discutirei, alegóricos, e de um modo muito específico: devem ser lidos como o que chamarei de alegoria nacional.” (JAMESON, 1988, p.69). Indistintamente, haveria esta via de leitura para os textos produzidos nos países de terceiro mundo. As respostas a Jameson não demoraram a aparecer, e a de Aijaz Ahmad veio sob o título de A retórica da alteridade de Jameson e a “alegoria nacional”. Ahmad expressa seu incômodo com o fato de que, para Jameson, o primeiro e o segundo mundo sejam estabelecidos segundo seus sistemas de produção (capitalismo e socialismo), enquanto terceiro mundo é definido “em termos de uma ‘experiência’ de fenômenos inseridos externamente. Aquilo que é constitutivo da própria história humana estará presente nos dois primeiros casos, ausente no terceiro” (AHMAD, 1998: 161), sendo ao terceiro mundo relegado o posto de objeto da história do primeiro mundo. Além disso, Ahmad questiona se, de fato, todos os textos produzidos em países que foram colonizados seriam textos de terceiro mundo em virtude, exclusivamente, de sua localização geográfica, e alega que a alegorização não é específica do terceiro mundo se se pensarem as relações entre público e privado, pessoal e comunal. A extensa crítica não se restringe a esses pontos, mas aponta o quão reducionista e empobrecedora pode ser a leitura de Jameson. É incômodo o vínculo estreito que Jameson impõe aos países colonizados com as metrópoles, que ainda implica certa inferioridade e subserviência ao “primeiro mundo”. Contudo, de modo distinto, é interessante a leitura de Doris Sommer que apresenta a possibilidade de ler algumas obras latino-americanas do século XIX como alegorias da nação. Elas seriam obras fundadoras da nação, no momento em que os países latino-americanos iam se tornando independentes. Sommer nota que “os romances românticos caminham de mãos dadas com a história patriótica na América Latina”, e que “a paixão romântica (...) forneceu uma retórica para os projetos hegemônicos, no sentido gramsciano de conquistar o adversário através do interesse mútuo, ou do ‘amor’, ao invés da coerção” (SOMMER, 2004: 21). Gourgouris corrobora em partes com a posição de Sommer: Enquanto forma, a nação é fundamentalmente ininteligível. Ou, mais precisamente: uma nação não pode ser lida como um texto; inclusive se tivesse (ou produzisse) sentido, deveríamos desconfiar dele. É por isso que é decisivo perceber a natureza formal da nação como semelhante à de um sonho. Atribuir ao imaginário nacional as características de uma exclusiva formação discursiva não é justo para com sua complexidade. A ênfase deve mudar de uma nação-como-texto a uma naçãocomo-sonho, o que quer dizer que aqueles textos que portam a marca da nação podem, em definitivo, ser vistos como descrições dos pensamentos do sonho da nação[...]. (GOURGOURIS apud ACHUGAR, 2006: 23) Achugar (2006) concorda com Gourgouris, em Dream Nation, que a nação não poderá ser reduzida a um conjunto de práticas e leituras predeterminadas, mas essas leituras deverão dialogar e coexistir com outros projetos de leitura diferentes. Portanto, concorda-se com Achugar quando diz que: “a construção da nação realizada por determinados textos, ou discursos, ou por determinados sujeitos sociais, é passível de ser substituída por outras e implica, de fato, uma leitura incompleta e parcial; ou seja, inesgotável” (2006: 231), já que, como afirmará mais à frente, ainda no ensaio Direitos de memória, sobre independências e estados-nação na América Latina, “esses relatos[...] constroem ‘mundos paralelos’ que, geralmente, dizem mais dos lugares a partir de onde se narra e da posição de quem narra, do que dos fatos que descrevem.” (235). Os textos ou práticas discursivas não devem ser compreendidos como “nação-como-texto”, mas como sonho, porque a nação não pode ser redutível ou delimitada. A tentativa de homogeneização de textos e nações nasce do projeto de Goethe de Weltliteratur. Retomando o diálogo entre Goethe e Eckerman de 1827, Hugo Achugar (2006: 65-80) já aponta alguns dos conflitos que compõem o que chama de “a cena primordial da história da literatura contemporânea do Ocidente”: as relações entre cosmopolitismo e exotismo; localismo e universalismo, estranheza e universalidade. Nesta cena, Achugar mostra que o movimento homogeneizador em questão trata de dirimir as especificidades dos textos e suas diferenças culturais, visando a inseri-los em um todo “razoavelmente burguês”. Neste contexto, surge a primeira formulação do conceito de Weltliteratur – traduzida como literatura mundial, universal e até mesmo literatura cosmopolita – que já nasce como antagônica à literatura nacional. Vale frisar que, para Goethe, a literatura mundial seria produto de um trabalho coletivo entre franceses, ingleses e alemães. O conceito de Weltliteratur surge no momento em que se tornavam estadosnação as ex-colônias americanas, e Achugar atenta para a seguinte condição: o que se costumou chamar de universal surgiu, como argumenta Judith Butler, nos discursos de esquerda que notaram o uso do termo a serviço do colonialismo e do imperialismo; ela teme que o que tem sido chamado de universal é a provinciana propriedade da cultura dominante. Ou, em outras palavras, o ocidentalismo. Em consonância com o que Walter Mignolo (2003) chama de sistema mundial colonial/moderno (a modernidade foi concebida em termos de progresso, de cronologia e da superação de um estágio anterior), a pós-colonialidade não é uma superação da colonialidade, mas uma reorganização de seus alicerces. Ela não é um significante vazio que apenas homogeneíza e acomoda os “elementos restantes” do processo de descolonização, e, sim, está entranhada em cada história local, conectando-as e inserindo-as em um projeto universal. Mas Mignolo considera a expressão pós-colonial problemática para ser aplicada às práticas culturais dos séculos XIX e XX na América Latina, preferindo o termo pós-ocidentalismo para esse contexto. Este termo pós-ocidental, de reorganização de uma nova epistemologia latino-americana, ainda não tocará o período a partir do qual Onetti escreve sua crítica em Marcha. Mas entender a relação intrínseca – se não a sinonímia - entre universalismo e ocidentalismo parece imprescindível para o problema que ora se apresenta. O primeiro artigo de Periquito el Aguador, Señal, apresenta “a ostensiva depressão literária que caracteriza os últimos anos da atividade nacional. (...)As letras seguem destilando-se das antigas e deslizantes plumas”(ONETTI, 2009: 355), o que induziria a pensar que o Uruguai seria um país fantástico, onde teria desaparecido a juventude e o relógio marcasse sempre a mesma hora. Ainda, atribui esse marasmo ao momento que vive o país – o golpe de estado de Gabriel Terra –, que exige que todas as forças sejam direcionadas à política. A princípio, poder-se-ia ter a impressão de que o nacional trataria apenas de uma questão territorial: a literatura produzida dentro das fronteiras do estado-nação uruguaio. Mas o final do texto sinaliza para uma questão muito cara a La Piedra en el charco: “virgens territórios literários da cidade e do campo1oferecem sua mais estreita, mas profunda riqueza sentimental aos mais novos passageiros.”(356) Mas, na semana seguinte, vem a proposta de “esboçar o futuro desejável para a literatura uruguaia”: Hemos hablado de nuestras gentes y lugares, frondosamente, sin perdonar nada. Pero no hay aún una literatura nuestra, no tenemos un libro donde podamos encontrarnos. Ausencia que puede achacarse al instrumento empleado para la tarea. El lenguaje es, por lo general, un grotesco remedo del que está de uso en España o un calco de la lengua francesa, blanda, brillante y sin espinazo. No tenemos nuestro idioma; por lo menos, no es posible leerlo. La creencia de que el idioma platense es el de los autores nativistas resulta ingenua, de puro falsa. No se trata de tomar versiones taquigráficas para los diálogos de los personajes. Esto es color local, al uso de turistas que no tenemos. Se trata del lenguaje del escritor; cuando aquél no nace de su tierra, espontáneo e inconfundible, como un fruto del árbol, no es instrumento apto para la expresión total. No hay refinamiento del estilo capaz de suplir esta impotencia ingénita. (ONETTI, 2009: 357. grifos meus) Agora, a constatação do problema vai além: não há uma literatura uruguaia porque não há um livro em que os uruguaios podem se encontrar. Seja por uma linguagem imitada da França ou da Espanha, seja por se crer erroneamente que o idioma platense era aquele utilizado pelos autores nativistas. A autenticidade nacional da linguagem e da língua são elementos imprescindíveis para o projeto de Onetti, somada ao “espíritu nuestro”. Do que precisaria a literatura rioplatense é uma voz que 1 Grifo nosso. diga “simplesmente quem e que somos, capaz de dar as costas a um passado artístico irremediavelmente inútil e de aceitar despreocupada o título de bárbara.” Aqui parece se esboçar melhor a questão do nacionalismo, desta vez, contudo, um “nacionalismo platense”. Mas o que soa ainda mais curioso é que Onetti também reclame a sua condição de bárbaro. Principalmente porque a narrativa urbana é um dos principais aspectos dessa nova estética nacional que estaria por vir e que reclamava Onetti, e a barbárie remete, imediatamente, à vida nos pampas e, no âmbito da literatura, à gauchesca. Para o autor, o fato de a literatura ser gauchesca não é um problema por si só: Declaramos en voz alta – para que se nos oiga en toda orilla del charco que apedreamos semanalmente – que si Fulano de Tal descubre que el gaucho Santos Aquino, de Charabón Viudo, sufre un complejo de Edipo con agregados narcisistas, y se escribe un libro sobre ese asunto, nos parece que obra perfectamente bien. (ONETTI, 2009: 368) O problema seria a falta de familiaridade do autor Fulano de Tal com Charabón Viudo, com o paisano Aquino e seu complexo. E, ainda, a persistência de autores que nunca saíram de Montevidéu, queriam fazer uma literatura nacional e teimavam em escrever sobre ranchos de totora, velórios de angelitos e épicos rodeos. Um outro ponto que incomodava a Onetti no que toca a literatura gauchesca é sua repetição, a que chamará de “retórica literária”, e relativa também à repetição de temas não nacionais. Para Periquito el Aguador, ela havia se tornado retórica, assim como a literatura de vanguarda que vinha se fazendo no continente. Ainda, a questão da vanguarda representava outra questão para Onetti, que dizia respeito também a imitar moldes europeus: “Darío entró de saco a Verlaine y, seguidamente, los bardos tropicales de entonces se inspiraron en el que fuera llamado [...] ‘primer poeta de América’.” (ONETTI, 2009: 359). Para Néstor García Canclini (2003: 67) “os movimentos de vanguarda foram ‘transplantes’, ‘enxertos’, desvinculados da realidade latino-americana” e que, em realidade, teriam atrasado a entrada da América Latina na modernidade literária: [...] o cubismo e o futurismo correspondem ao entusiasmo admirado da primeira vanguarda frente às transformações físicas e mentais provocadas pelo primeiro auge da mecanização; o surrealismo é uma rebelião contra as alienações da era tecnológica; [...] Temos praticado todas essas tendências na mesma sequência que na Europa, quase sem ter entrado no “reino do mecânico” dos futuristas, sem ter chegado a nenhum apogeu industrial[...]. (YURKIEVICH apud GARCÍA CANCLINI, 2003: 70) García Canclini acredita que nossos países realizam mal e tarde o modelo metropolitano de modernização e distingue a modernização do modernismo, o qual “não é a expressão da modernização socioeconômica, mas o modo como as elites se encarregam da intersecção de diferentes temporalidades históricas e tratam de elaborar com elas um projeto global. (GARCÍA CANCLINI, 2003: 73). De igual forma, o apego às vanguardas europeias representa para Onetti um atraso no desenvolvimento das letras do país. A relação de Onetti com o pintor Joaquín Torres García é de amizade pessoal e de afinidade estética. O elogio ao pintor em La piedra en el charco assume também um caráter de defesa de sua obra, “corajosa, independente”, e Onetti reclama, em 1940, faltar um escritor que seja para as letras uruguaias o que Torres García é para as artes plásticas. Em Universalismo, Torres declara o fim do período de colonização e importação de cultura, tendo rompido com a arte de vanguarda da Europa e o velho academicismo, e afirma que o artista uruguaio não deve trocar o que é próprio de sua cultura pelo que lhe é alheio (o que seria snobismo); seria possível, contudo, fazer do alheio substância própria. “fora! com aquele que, literariamente, fale outra linguagem que não a nossa natural (e não digo crioula).” (TORRES GARCÍA apud ACHUGAR, 2006: 293). Em Nosso norte é o Sul, ensaio dedicado a Torres García, Hugo Achugar observa que Borges irá substituir o crioulismo por um americanismo cosmopolita, diferente de Torres, quem rompe com uma representação colonizada e vai para uma representação da positiva originalidade uruguaia. (ACHUGAR, 2006: 295) Para Onetti, entrar na cidade e deixar para trás o campo era algo que estava intimamente ligado ao projeto de uma literatura de cunho universal. Assim como Onetti, Torres García pensava que o povo uruguaio tem um caráter próprio, e Montevidéu também, diferenciando o Uruguai de outras nações. (TORRES GARCÍA apud ACHUGAR, 2006: 293) A urbanização dos países da América Latina em fins do século XIX/início do século XX trazem uma nova perspectiva à vida nacional, como nota Periquito el Aguador: La llegada al país de razas casi desconocidas hace unos años; la rápida transformación del aspecto de la ciudad, que levanta un rascacielos al lado de una chata casa enrejada; la evolución producida en la mentalidad de los habitantes – en algunos, por lo menos, permítasenos creerlo – después del año 33; todo esto tiene y nos da una manera de ser propia. Por qué irse buscar los restos de un pasado con el que casi nada tenemos que ver y cada día menos, fatalmente? (…)Es necesario que nuestros literatos miren alrededor suyo y hablen de ellos y su experiencia. Que acepten la tarea de contarnos cómo es el alma de su ciudad. Es indudable que, si lo hacen con talento, muy pronto Montevideo y sus pobladores se parecerán de manera asombrosa a lo que ellos escriban. (ONETTI, 2009: 368) Os novos aspectos arquitetônicos da cidade, a nova vida política, os novos habitantes, todos eles podem ser narrados, pelo novo escritor uruguaio. Esta é uma mudança muito significativa no âmbito da literatura do país, que não abrigaria, até então, dramas psicológicos, crises existenciais, a cidade, imigrantes. Agora, fala-se de política internacional em Montevidéu, estrangeiros caminham pela cidade, os imigrantes fazem parte da paisagem urbana de onde seus narradores escrevem; eles nomeiam seus personagens: Díaz Grey, Larsen, Owen, Molly, Kirsten, Chapars, Baldi, Samuel Freider, e isso ainda significa fazer literatura nacional. Este aspecto era impensável alguns anos antes, como mostra Achugar (2006: 232), para o escritor Zorilla de San Martín e o pintor Blanes – marcos do nacionalismo estético de fins do século XIX no Uruguai – que constituíram “uma projeção do sonho da nação onde se construiu ‘um corpo da pátria’ que buscava evitar o risco, ou o terror, desse Outro que constituíam os estrangeiros – aumento da migração – e o impulso dos desejos ou das pulsões individuais.” (ACHUGAR, 2006: 232) A predominância de uma narrativa neonaturalista entre as décadas de 1920 e 1930 somada à pouca expressividade – ou quase inexistência - de obras literárias de vanguarda no Uruguai apontam para uma “paradez cansada” da literatura nacional, nas palavras de Onetti, e divergem do movimento modernista/vanguardista que estava em vigor na América Latina. O processo modernizador da literatura uruguaia, portanto, parece se dar de forma distinta. Tal processo – se comparado a outras literaturas nacionais latino-americanas do período em questão - talvez se dê de modo distinto justamente por não tentar evocar a imagem do indígena (ou do negro)2 e, ainda, por combater a figura do gaucho como o herói nacional. O caráter de localidade da gauchesca privaria a literatura uruguaia – aos olhos de Onetti – de adquirir o status de universal, única via concebida por ele para adentrar uma modernidade literária. Ainda, La piedra en el charco propõe a recusa ao uso do castelhano corrente na Espanha tal como ocorre nos movimentos vanguardistas de outros países hispano-americanos mas também rechaça o idioma utilizado por autores nativistas uruguaios, por não corresponder ao espanhol que se falava em Montevidéu naquela época. O reconhecimento da urbanidade do país por meio de sua representação na literatura 2 Considerando-se que as duas etnias tenham sido praticamente extintas do país, a primeira, na ocasião da dominação pelos espanhóis e da consolidação da república uruguaia; a segunda, no momento da independência da Espanha, em que os escravos negros foram colocados em guerra. Hoje se estima que 4% da população do país seja negra. Acerca da monumentalização da memória dos índios Charrúas, ver ACHUGAR, 2006, p. 185-197) seria para Onetti uma reivindicação decorrente do fato de mais da metade da população uruguaia já viver na capital do país naquela época. No entanto, parece um pouco controverso que a reivindicação de uma nova literatura, independente e modernizada, reclame justamente o espaço urbano para se desenvolver. Para Angel Rama, (...) a cidade latino-americana tem sido um parto da inteligência, pois ficou inscrita em um ciclo da cultura universal em que a cidade passou a ser o sonho de uma ordem e encontrou nas terras do Novo Continente o único lugar propício para encarnar. Os próprios conquistadores que a fundaram perceberam progressivamente ao longo do século XVI que tinham se afastado da cidade orgânica medieval na qual tinham nascido e crescido para entrar em uma nova distribuição do espaço que enquadrava um novo modo de vida, o qual já não era o que haviam conhecido em suas origens peninsulares. Tiveram que se adaptar dura e gradualmente um projeto que, como tal, não esconde sua consciência racionalizadora, não sendo suficiente para ela organizar os homens dentro de uma repetida paisagem urbana, pois também requeria que fossem emolduradas/moldadas com destino a um futuro também sonhado de uma maneira planejada, em obediência às exigências colonizadoras, administrativas, militares, comerciais, religiosas, que iriam se impor com crescente rigidez. (RAMA, 2004: 35) Seria possível que a cidade, que representara a ordem e a dominação, agora seria o espaço da liberdade? Em que medida é possível ser independente no seio da cidade ordenada? Seria a cidade modernizada ainda como a cidade ordenada? Sabese que a cidade modernizada contemplava que jornalismo garantisse não só uma respiração independente aos intelectuais, mas também o desenvolvimento do pensamento de oposição (RAMA, 2004: 148). Em um momento não mais de dominação espanhola, haveria ainda subserviência intelectual aos países hegemônicos? Se a literatura não consegue de fato ser independente, pois trará sempre essa chaga da colonização, o que se vê em Onetti é a entrada em um outro momento da modernidade literária. É possível que ela esteja integrada em projeto homogeneizador universal, mas não se insira ainda em uma nova práxis espistemológica pós-ocidental. Pois bem, o discurso de fundação de Onetti acerca de uma nova literatura uruguaia parece localizar-se num interstício, nesse momento que não é mais, pois não se identifica com os projetos de vanguarda nacionalistas - mas que ainda não é, porque ainda não se insere por completo em uma lógica global. Os artigos de Onetti em Marcha falam também de política internacional. Fala-se da guerra. Em um artigo, Periquito afirma viver e seguir a guerra telegráfica entre a Sigfrido e a Maginot. Além disso, o porto de Montevidéu é um lugar de passagem de vários estrangeiros. O Uruguai sabe do mundo na ocasião da escrita de La piedra en el charco, mas quem sabe do Uruguai? O reconhecimento tardio de Onetti daria mais força ao argumento de que a voz da periferia – não só a voz crítica – é, como diz Hugo Achugar, um balbucio? Algumas dessas questões só podem ser respondidas tendo em vista ficção do autor. Voltando à questão que orienta este trabalho, o que seria o nacional para Onetti? Em um trabalho anterior, propus pensar algumas ressonâncias que a crítica do autor tem em sua produção ficcional. Penso que no projeto de literatura de Onetti, ser nacional não é estar inserido em uma alegoria de nação; não é ser nacionalista. É estar em solo uruguaio e lutar para que as idiossincrasias regionais de seu país possam ser narradas, em idioma platense, mas que todos esses aspectos sejam um suplemento ao universal. Não é mais necessário trazer o gaucho para a narrativa para ser uruguaio. REFERÊNCIAS ACHUGAR, Hugo. Planetas sem boca. Trad. Lisley Nascimento. Belo Horizonte: UFMG, 2006. AHMAD, Aijaz. A retórica da alteridade de Jameson e a “alegoria nacional”. In: Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n.22. p.157-182, out, 1988. BHABHA, Homi K. O local da cultura. trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: UFMG, 2007. GARCÍA CANCLINI, Néstor. Culturas Híbridas. Estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo:Edusp, 2003. HALL, Stuart. Da diáspora. trad. Adelaine La Guardia Resende [et.al.].Belo Horizonte, UFMG, 2008. JAMESON, Frederic. Third World Literature in the Era of Multinational Capitalism. Social uuuext. New York, n.15, p.65-88, Fall 1986. MIGNOLO, Walter. Histórias locais/projetos globais. Colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Belo Horizonte: UFMG, 2003. MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença. trad. 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